Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 144, de Janeiro/Março 2002

Destaque 1:

Sem perdão!
O pecado do Cardeal Patriarca de Lisboa

Ninguém, em Portugal e no mundo católico em geral, se indignou. E, no entanto, o facto de o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Policarpo, ter aparecido a presidir às mediáticas cerimónias do último 13 de Outubro em Fátima, materializa o que em teologia cristã jesuânica se há-de chamar, com toda a propriedade, um pecado contra o Espírito Santo, ou seja, um daqueles pecados que o Evangelho de Jesus classifica como sem perdão.

(Podem não tomar a sério esta denúncia do Jornal Fraternizar, mas nem por isso ela deixa de ser oportuna e de ter razão de ser. E tanto pior, se nem o visado, nem o resto da hierarquia da nossa Igreja católica tomam a sério esta denúncia. É toda a Igreja em Portugal que sai descredibilizada. E, com ela, o Evangelho de Jesus que, como Igreja cristã, nos cumpre viver e anunciar, a tempo e fora de tempo)

Por força da sua autoridade de bispo e de presidente da CEP, e devido ao "peso" simbólico que o cargo de cardeal Patriarca de Lisboa ainda tem entre nós, portugueses, D. José Policarpo contribuiu, decisivamente, com esta sua presença/intervenção, em Fátima, para ajudar a manter, no obscurantismo e na mentira, um elevado número de pessoas do nosso país e do mundo, as quais, erradamente, persistem em afirmar que a imagem da senhora de Fátima representa, simbolicamente, Maria, mãe de Jesus. Quando, hoje, é já indiscutivelmente manifesto para toda a gente que se debruce a sério sobre essa actividade altamente fecunda, que é a Teologia cristã, que de modo algum a imagem da senhora de Fátima representa Maria, mãe de Jesus. E só mesmo por crassa inércia pastoral católica é que alguém ainda pode continuar a pensar, neste início do século XXI e do terceiro milénio do Cristianismo, que dizer «senhora de Fátima» é outra maneira de dizer Maria, mãe de Jesus. É manifesto que não é! (E que apareça o primeiro teólogo cristão a defender o contrário, se não tiver vergonha na cara!...)

Mas fez pior o cardeal D. José Policarpo. Com a sua presença/intervenção, no 13 de Outubro em Fátima, contribuiu para que muitas pessoas, inclusive, ateias e não católicas, continuem a laborar no erro de pensar que Fátima faz parte da Fé cristã católica, quando não faz, nunca fez, nem nunca fará. E, hoje, até já começa a ser manifesto para a maioria da Humanidade – não apenas para as cristãs e os cristãos conscientes - que Fátima é, porventura, a mais vergonhosa caricatura da Fé cristã e do Cristianismo, pelo menos, do Cristianismo vivido ao jeito de Jesus de Nazaré - e pode haver outro?!

(Por exemplo, alguém é capaz de conceber Jesus a ir a Fátima a pé?, a submeter-se àquelas cerimónias religiosas mais do que patetas?, a rezar o terço pela paz no mundo?, a andar de rastos diante daquela imagem sonsa?, a depositar dinheiro nos cofres do santuário?, a acenar com um lenço branco à imagem transportada num andor?, e a cantar "ó Fátima, adeus"? Haja modos, senhores!...)

Foi ainda mais longe o patriarca de Lisboa, no seu pecado contra o Espírito Santo. Prestou-se, inclusive, ao papel de ingénuo palhaço e de promotor público de idolatria, ao aceitar andar, de custódia de ouro em punho, no interior da qual foi, previamente, colocada uma hóstia branca de farinha de trigo sem fermento – quem, senhores eclesiásticos-mor, se atreve hoje a dizer que "aquilo" é o Corpo de Cristo tão real e perfeitamente como está no céu?! – e a traçar cruzes no ar, no jeito de quem abençoa cada um dos doentes que, todos os meses, de Maio a Outubro, lá são atraídos em busca de cura para os seus males, mas que, depois de toda aquela estopada, têm que regressar a suas casas de mãos a abanar, numa frustração de bradar aos céus.

Custa a crer que D. José Policarpo, com a formação filosófica e teológica que tem – não esquecer que, durante anos e anos, foi reitor da Universidade Católica Portuguesa! – e com a sabedoria que a experiência e a idade costumam dar a quem não perde o hábito de reflectir criticamente a sua prática quotidiana, ainda se preste a um papel destes, mormente, num país, como o nosso, onde é visível que as populações em geral e as populações católicas em especial continuam a sofrer de um escandaloso défice de consciência crítica, de atroz obscurantismo e de ancestrais medos de míticos deuses/deusas e de demónios.

Quando era de esperar que o Bispo do Patriarcado de Lisboa assumisse, em Fátima, a arriscada e lúcida missão de Evangelizar os pobres e as populações mais esquecidas e sofridas que, nas aflições de toda a ordem em que continuam condenadas a ter de viver, insistem em correr para lá, na reiterada ilusão de que aí poderão encontrar uma saída - na verdade, o que fatalmente encontram é a imagem duma senhora visceralmente cruel que não fala, não ouve, não anda, não se comove, não se desloca, não abraça, não toca em ninguém, não dá nada a ninguém, pelo contrário, tudo devora sem dó nem piedade, desde cordões e pulseiras, anéis e alianças, e dinheiro, muito dinheiro, à mistura com algum sangue de devotas e de devotos que se arrastam diante dela, na esperança de que ela tenha dó e os compense com um "milagre", sempre esperado e procurado, mas nunca conseguido, sempre adiado para a próxima, sem que alguma vez se concretize em alguém, um único doente que fosse - eis que D. José Policarpo, na sua qualidade de presidente da CEP, foi lá alimentar ainda mais todo este pecado organizado, toda esta mentira, todo este anti-Evangelho de Jesus, todo este Catolicismo romano anti-cristão e anti-jesuânico que Fátima sempre foi e que hoje - após a divulgação da terceira parte do «segredo» atribuído à «vidente» Lúcia, e após a caricata interpretação que desse mesmo «segredo» fez de imediato a Cúria do Vaticano - atinge foros não só de espectáculo religioso altamente degradante, mas também de um tipo de catolicismo verdadeiramente intolerável.

Para cúmulo, D. José Policarpo nem sequer se deu conta da contradição em que caiu, com esta sua presença/intervenção, no 13 de Outubro em Fátima. Com ela, acabou por canonizar, de forma inquestionável, o que, por esses mesmos dias, havia oportunamente desautorizado.

Na verdade, por aqueles dias, ele havia escrito uma carta aos bispos portugueses, na sua qualidade de presidente da CEP, a informá-los de que o conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa havia entendido, e bem, demarcar-se do programa televisivo, «Canção Nova», do Brasil, o qual, 24 horas sobre 24, emite, para Portugal, na tv-cabo, canal 40, e cuja programação é uma sacrílega blasfémia, em versão católica, contra o santo nome de Deus.

Ora, como é que D. José Policarpo pode, como bispo da Igreja que está em Portugal, demarcar-se da «Canção Nova» e da respectiva programação televisiva que ela fornece, 24 horas sobre 24, e, ao mesmo tempo, não se inibe de aparecer a presidir às mediáticas cerimónias do 13 de Outubro, em honra da senhora de Fátima? Mas haverá alguma diferença de fundo entre a fastidiosa programação televisiva da «Canção Nova» e as fastidiosas e repetitivas cerimónias de Fátima? Não estão ambas uma para a outra? Não têm ambas por pai o Diabo, ou seja, a Mentira, a Idolatria? Não visam ambas o lucro fácil, em troca de umas quantas balelas e de um estereotipado blá-blá sem sentido, cretino e estupidificante? Não buscam ambas manter as populações na opressão e no medo, cativas do Poder eclesiástico e clerical, que não abre mão dos privilégios de casta, o mesmo é dizer, canónicos? Não têm ambas um bafiento discurso moralista, de pôr os cabelos em pé, não só a católicos ilustrados, mas também a ateus e agnósticos? Não manipulam ambas o santo Nome de Deus, para se fazerem passar por boas, por santas, por puras, por íntegras, quando, na verdade, são covis de ladrões, sempre a pensar em cifrões, mesmo quando se envolvem em projectos que parecem ter como objectivo o bem de algumas pessoas marginalizadas, caídas na droga, no álcool, ou vítimas de deficiência mais ou menos profunda?

Se dúvidas houvesse de que entre Fátima e a «Canção Nova» não há diferenças de maior e de que ambas estão empenhadas em manter um certo tipo de Catolicismo sem Cristo, sem Evangelho de Jesus de Nazaré, bastaria constatar que o Bispo de Leiria-Fátima, o sacerdote-mor da cruel senhora de Fátima, não hesitou em assinar, há algum tempo atrás e totalmente à revelia da CEP, um contrato de cooperação e de apoio com aquela comunidade audiovisual do Brasil, sem esperar para ver o que sobre ela e a sua programação pensariam os restantes bispos portugueses.

Mas há mais. Basta ver como Fátima e a sua senhora cega surda e muda estão diariamente presentes na programação televisiva da «Canção Nova». E, ironia das ironias, a «Canção Nova» revê-se tanto no tipo de catolicismo e no tipo de Igreja que se faz e mostra em Fátima, à sombra da sua cruel senhora, que nem sequer resistiu a transmitir em directo, quer para o Brasil, quer, através da tv-cabo, para o nosso país, as cerimónias do 12-13 de Outubro, essas mesmas que vieram a ser presididas por D. José Policarpo, precisamente, o autor da carta que, por aqueles mesmos dias, os Bispos portugueses estavam a receber nos seus paços episcopais, e que os informava da deliberação tomada pelo conselho permanente da CEP, de se demarcar da «Canção Nova» e da sua blasfematória programação!...

Meu caro irmão bispo do Patriarcado de Lisboa: Eu sei que são tremendas as palavras que aqui escrevo. Sei que é terrível a denúncia que aqui faço. Mas mais tremendo e mais terrível é o pecado contra o Espírito Santo que a tua presença/intervenção no mediático 13 de Outubro em Fátima materializou. Uma coisa, porém, te peço: Não enterres a cabeça na areia; abre-te ao Espírito; deixa de vez - ainda estás a tempo - a mentira dos privilégios eclesiásticos em que vives. E o pecado contra o Espirito Santo que cometeste em directo, via tv, ser-te-á perdoado. É pedir-te o impossível? É talvez por isso que o Evangelho de Jesus diz que um pecado assim não tem perdão.

Um abraço deste teu irmão Mário, presbítero.


Destaque 2:

Alcorão
Que pensar deste livro?

"Em nome de Deus beneficente e misericordioso! Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos, beneficente e misericordioso, Senhor do Dia do Julgamento! A Ti somente adoramos; de Ti somente esperamos socorro! Mostra-nos o bom caminho, o caminho desses que tens favorecido; não o caminho desses que incorrem na Tua cólera e dos que se perdem! Amen."

Esta é a primeira «sura», ou capítulo, do Alcorão, e também a mais recitada pelos muçulmanos ou islamitas fiéis, uma vez que faz parte de todas as orações que eles são obrigados a pronunciar todos os dias, ao longo de cada dia.

Numa altura, como a presente, em que os muçulmanos de todo o mundo estão a ser objecto de todas as atenções e de todas as desconfianças, por parte de todos os povos, nomeadamente, depois que a administração norte-americana, liderada pelo presidente George W. Bush, resolveu bombardear, semanas a fio, sem dó nem piedade o Afeganistão, a pretexto de que este país oprimido pelo regime taliban estava a dar abrigo aos principais responsáveis pelo brutal ataque do dia 11 de Setembro de 2001 às torres de Nova Iorque e ao Pentágono, torna-se imperioso debruçarmo-nos sobre este livro, tido como sagrado por mais de mil milhões de seres humanos, esses mesmos que, neste início do século XXI e do terceiro milénio, continuam ainda a repetir, sem cessar: "Não há outra divindade senão Alá [Deus] e Muhammad [Maomé] é seu profeta".

Jornal Fraternizar mete mãos a este empreendimento, mas com a condição de jamais renunciar à consciência crítica que, desde o início do seu aparecimento, tem sido a sua saudável imagem de marca. Por isso, de modo algum temos a preocupação de alinhar no politicamente correcto e - com toda a frontalidade o declaramos - recusamos entrar na paranóia de dizer que tudo o que é muçulmano é bom, como agora parece estar na moda, na Europa. Ou que tudo o que está no Alcorão é bom. Não é. Como também não é bom tudo o que é católico. Nem é bom tudo o que está na Bíblia judaico-cristã.

É sabido que em nome da Bíblia e do Alcorão, e em nome do Deus da Bíblia e do Deus do Alcorão, muitas guerras «santas» se fizeram, ao longo dos séculos, muito sofrimento humano se causou, e muitas vidas humanas foram criminosamente assassinadas.

Podemos até dizer que o próprio assassinato de Jesus de Nazaré foi feito em nome da Bíblia judaica. E, pelos vistos, esta macabra procissão de horrores ainda agora vai no adro, como claramente nos revelam os dramáticos e sangrentos acontecimentos que fazem a nossa actualidade internacional, vergonhosamente dominada pelo expansionismo imperialista do paranóico presidente Bush e de toda a paranóica administração norte-americana.

(Os restantes governantes das nações do mundo, em lugar de terem mão nele e nela, fazem questão de dizer amen a ambos e parecem até competir entre si, para ver quem é o maior lacaio deles; do mesmo modo, os intelectuais da nossa praça parecem ter renunciado ao papel de consciência crítica e de juízo severo que sempre se espera deles, relativamente ao Poder assassino e genocida, e é vê-los aí prontos a justificar toda esta postura expansionista e imperialista norte-americana, como se Bush e a sua administração, de repente, se tivessem transformado nos enviados de Deus, com a missão de defenderem a Humanidade e o planeta Terra do «terrorismo internacional». Tanto uns como outros parece que nem sequer vêem que, com estas suas posturas acríticas e seguidistas, mais não fazem do que ajudar a roubar, a matar e a destruir a Humanidade e o planeta Terra, e a aterrorizar quem, porventura, escapar com vida no meio de tão medonha e tão mediática acção de terror e horror, presentemente em curso).

No que respeita ao Alcorão, podemos dizer que tudo começou no ano 570 (século VI) da nossa era, quando, na cidade de Meca, na Arábia, nasceu um menino, a quem foi dado o nome de Muhammad ben Abdullah ben Abdul Mutlib ben Háxime. Um menino a quem Deus, pelo menos no possível sentir dos inúmeros deístas da nossa praça, não terá especialmente abençoado, uma vez que, dois meses após ter nascido, logo ficou sem o pai Abdallah, e por herança, nada mais recebeu do que cinco camelos, umas poucas de ovelhas e uma escrava etíope, Baraka, de seu nome.

O menino Muhammad ficou, por isso, entregue aos cuidados da mãe, Bibi Amina, mas também esta veio a morrer, tinha ele seis anos de idade! A escrava Baraka fez de mãe do menino órfão, durante uns três anos, até o confiar aos cuidados do avô paterno, o qual, por sua vez, veio a falecer também, quando ele tinha onze anos.

O menino Muhammad acabou por ficar a viver com o tio Talib, até que, aos 20 anos, foi contratado para dirigir as caravanas de camelos duma viúva rica, Cadija de seu nome, com quem, cinco anos depois, e por proposta dela, veio a casar. A partir desta altura, a vida passou a correr-lhe de feição. E prosseguiu assim até aos 40 anos de idade, quando Muhammad podia gabar-se de ter uma esposa amorosa, filhos exemplares, e uma fortuna que dava bem nas vistas.

Mas é por esta altura, mais propriamente, na Grande Noite que precede o dia 27 do mês do Ramadão do ano de 609, que, segundo rezam as crónicas, lhe ocorreu a primeira revelação da palavra de Alá [Deus], por intermédio do anjo Gabriel, revelação essa que haveria de prosseguir, ao longo de 23 anos mais, e que, depois de devidamente compilada, veio a constituir o Alcorão que hoje se conhece. Só que, a partir desta data, nunca mais a vida de Muhammad conheceu sossego até à sua morte, no ano de 632 da nossa era.

Suleiman Valy Mamede, um dos mais mediáticos muçulmanos residentes em Lisboa, conta-nos como foi que se deu a primeira revelação. Podemos ler as suas palavras no prefácio que escreveu para a tradução em língua portuguesa do Alcorão, edição Europa-América:

"Muhammad, envolto na sua manta, em silenciosa vigília nocturna, ouve uma voz que o chama; descobrindo a cabeça, um jacto de luz incide sobre ele tão intolerável esplendor que o faz desmaiar. Ao voltar a si, Muhammad vê um anjo de forma humana que, aproximando-se dele, lhe mostra um pano prateado coberto de caracteres.

- Lê!, diz-lhe o anjo.

- Não sei ler!, replica Muhammad.

- Lê em nome de Deus!, repete o anjo.

No mesmo instante, o Profeta sentiu que uma luz celestial lhe iluminava o entendimento e leu o que ali estava escrito. Terminada a leitura, anunciou-lhe o mensageiro divino: «Ó Muhammad, em verdade és Profeta de Deus! E eu sou o anjo Gabriel!»".

Estava-se no início do século VII, da nossa era. Portanto, uns bons seiscentos anos depois do nascimento de Jesus de Nazaré, cognominado pelas suas discípulas e pelos seus discípulos da primeira hora, o Cristo ou o Libertador, isto, depois que elas e eles o experimentaram na condição de Ressuscitado, ou seja, na condição de alguém a quem o Deus totalmente Outro deu razão, contra o Deus do Sistema que, ao contrário, até havia aprovado a sua morte na cruz!

Mas o curioso é que quem conhece com algum pormenor a Bíblia judaico-cristã, não pode deixar de associar aquele relato da primeira revelação atribuída a Muhammad, feita por intermédio do anjo Gabriel (o mesmo que aparece nos relatos da infância de Jesus, segunfo S. Lucas), e que está na origem do Alcorão, a um outro famoso relato, concretamente, o relato bíblico da revelação de Deus feita pelo mesmo anjo Gabriel ao profeta Daniel (cf. livro de Daniel 8, 15 e ss). Leiam este segundo relato, comparem-no com o referente a Muhammad e tirem as vossas conclusões:

"Ora, enquanto eu contemplava esta visão e procurava compreendê-la, notei que estava de pé, diante de mim, um ser de forma humana. Ouvi uma voz de homem que vinha do meio do rio Ulai: «Gabriel -–gritava ela – explica-lhe a visão.» Dirigiu-se, nesse momento, para o lugar onde eu me encontrava. Ao aproximar-se, fui acometido de terror e caí de face por terra. Gabriel disse-me: «Filho de homem, fica sabendo que esta visão se refere ao tempo final.» Enquanto me falava, desfalecia eu, de rosto por terra. Mas ele tocou-me e pôs-me de pé, aí onde me encontrava. E disse-me: «Eis que vou manifestar-te o que advirá nos últimos tempos da ira, porque o fim tem a sua hora (...)»".

É por demais evidente que quem inicialmente relatou a primeira revelação da palavra de Alá a Muhammad, conhecia bem o relato do livro de Daniel ou outros relatos idênticos, referentes a vocações proféticas, em que sempre foram peritas as elites escolarizadas dos antigos povos orientais.

Mas é igualmente evidente que, visto de hoje, nomeadamente, depois dos mais de duzentos anos que levamos já sobre a Revolução Francesa e a chamada Modernidade que se lhe seguiu, o relato da primeira «revelação» que dá origem ao Alcorão não passa duma mítica construção literária, em tudo idêntica e até dentro dos mesmos moldes em que são useiros e vezeiros todos os fundadores de antigas e modernas religiões, autores bíblicos incluídos.

Na verdade, todos os fundadores de antigas e modernas religiões (só homens, já que as mulheres, até agora, têm sido mais consumidoras/financiadoras de religiões do que fundadoras de religiões!) gostam de apresentar-se aos seus concidadãos, como favorecidos por visões, aparições, as quais acontecem sempre no meio duma intensíssima luz (só não se percebe como é que uma tão intensa luz os não cegou, nem por um instante sequer!). Tais fundadores de religiões referem, também, quase sempre, nos seus relatos, a presença de anjos, em forma humana, que lhes falam e, pelos vistos, como acontece no caso da «revelação» que está na origem do Alcorão, até os dispensam de frequentar a escola, pois os põem a ler caracteres que eles nunca na vida tinham aprendido a decifrar!...

O problema é que toda esta linguagem mítica, tão do gosto, inclusive, da própria Bíblia judaico-cristã, não é para ser tomada à letra, pois é apenas isso, linguagem mítica, género literário, arte literária, uma maneira de tentar dizer o indizível, seja porque o que se tem para dizer é pura invenção e mentira de todo o tamanho, seja porque se está em presença duma experiência espiritual individual tão intensa e tão profunda, que a pessoa que a vive não consegue depois dizê-la por palavras vulgares.

Num e noutro caso, porém, a verdade é que tais relatos nunca são para tomar à letra. Se formos por aí – infelizmente, a Humanidade tem ido quase sempre por aí - cometeremos erros sem conta, pois acabamos por dar mais importância ao papel colorido do embrulho do que ao conteúdo desse mesmo embrulho. Por outras palavras, perdemo-nos no maravilhoso do relato e não prestamos a devida atenção ao seu conteúdo, ou seja, à mensagem que ele veicula.

Por outro lado, só porque o relato nos é apresentado sob a forma de maravilhoso, logo nos predispomos a atribuir-lhe todo o valor, sem cuidarmos de saber se o que se diz através desse relato é ou não verdade. Só porque o relato é maravilhoso, logo concluímos que vem de Deus, que Deus está aí. E pode estar o Diabo, disfarçado de Deus, ou seja, pode estar a Mentira disfarçada de Verdade, e com a qual todas as pessoas que lhe derem atenção e guarida serão sistematicamente enganadas, oprimidas, subjugadas e, finalmente, mortas.

Jornal Fraternizar não pretende dizer, com isto, que tudo o que o Alcorão afirma é Mentira. Tal como não pretende dizer que tudo o que o Alcorão afirma é Verdade. Contenta-se com levantar o problema. Para que, depois, cada pessoa e cada povo, uma vez alertados, ousem ter posturas que não dispensem nunca o indispensável discernimento.

Ora, discernimento é o que, nestes séculos para trás, mais nos tem faltado, como Humanidade. Temos sido demasiado ingénuos e gregários, mais carneiros e ovelhas do que seres humanos autónomos e independentes, dotados de aguda consciência crítica. O que não deixa de ser muito cómodo, muito preguiçoso, mas também demasiado perigoso. Mortal, mesmo. Ou não fosse verdade que o comodismo e a preguiça, levados ao extremo, matam quem se deixa fazer por eles.

Entretanto, que ninguém se assuste, pelo facto de Jornal Fraternizar insinuar que pode não ser verdade tudo o que, em todos estes séculos passados, os considerados mestres do saber nos têm andado a ensinar, concretamente, que tudo o que o Alcorão contém é a revelação de Alá [Deus] para os árabes e para os muçulmanos, do mesmo modo que tudo o que a Bíblia judaico-cristã contém é a revelação de Deus Javé para os judeus e para os cristãos.

Uma formulação assim, tão dicotómica, só pode mesmo ser crassa mentira, pura afirmação ideológica e interesseira. Porque não pode haver, por um lado, um Deus para os judeus e para os cristãos e, por outro lado, um Deus para os árabes e para os muçulmanos.

Porém, tão pouco chega a ser correcto falar em revelação de Deus para uns certos povos eleitos, em detrimento de todos os outros povos que não seriam eleitos, nem teriam revelação de Deus. Um Deus assim, ainda seria Deus? Não seria uma refinada projecção dos projectos egoístas de dominação do mundo, por parte de certos povos mais desenvolvidos e, sobretudo, mais hábeis do que os outros povos?

A este respeito, Jornal Fraternizar vai ainda mais longe e afirma que nem sequer é correcto falarmos em revelação de Deus, mesmo que esta acontecesse em todos os povos, em pé de igualdade. Na verdade, quem pode garantir que é de Deus o que este homem ou aquela mulher ou aquele grupo diz ser palavra de Deus? Quem entre os seres humanos, alguma vez, teve ou terá acesso a Deus? Quem alguma vez viu Deus? Quem alguma vez ouviu Deus? Não é Mentira tudo o que alguém ousa dizer sobre Deus, sobretudo, quando o diz no tom de quem parece ter a definitiva e última palavra? (ou no tom de definição dogmática, como faz a nossa Igreja católica?)

É claro que, a toda esta luz, temos que dizer que o Alcorão não é a revelação de Deus para os muçulmanos e para os árabes. Assim como a Bíblia judaico-cristã não é a revelação de Deus para os judeus e para os cristãos.

Temos que dizer que o Alcorão não passa de um livro mais, entre milhões e milhões de outros que há no mundo, constituído por vários capítulos ou «suras», escrito no correr de alguns anos por alguém muito hábil, sob a orientação e a influência directa de Muhammad, ou simplesmente a coberto do nome dele, depois que ele conseguiu afirmar-se como líder incontestado entre os seus concidadãos.

Por sinal, é um livro chato de ler, pelo menos, para um ocidental, quase intragável, repetitivo, em cujas páginas – e são muitas - abundam orientações moralistas muito concretas e datadas, destinadas a ser acatadas e praticadas sem discussão, sejam quais forem as circunstâncias das pessoas que as lêem ou ouvem recitar, como se essas orientações fossem a verdade última para todo o sempre.

A História confirma que tais orientações moralistas, servilmente acatadas e praticadas, contribuíram, e muito, para dar coesão e identidade aos povos a quem elas prioritariamente se destinavam e que, antes de o Alcorão ser escrito e oficialmente apresentado como revelação directa de Deus a Muhammad, seu profeta, eram povos divididos por guerras fratricidas e por isso politicamente enfraquecidos.

Mesmo assim, não significa que tais orientações sejam todas boas em si mesmas, muito menos que sejam boas para todo o sempre, concretamente, para os povos muçulmanos e outros do terceiro milénio. Quando tais orientações, como logo se pode ver na "sura" ou capítulo de abertura do Alcorão, por sinal, a mais solene e a mais repetida pelos muçulmanos fiéis, dividem os seres humanos em seres "que Tu [Alá] tens favorecido" e em seres humanos "que incorrem na Tua [de Alá] cólera" e, por isso, "se perdem", é evidente que não podem ser orientações do Deus totalmente Outro, do Deus Espírito e Vida que não faz parte do Sistema, mas apenas orientações de certos seres humanos com ambições de domínio e de poder absoluto sobre os demais, e que invocam um Deus à sua medida e à sua semelhança para, em nome dele, abençoarem quem lhes obedece e lhes presta vassalagem, e amaldiçoarem e condenarem ao inferno (= à exclusão e à não-existência oficial) quem se recusar a reconhecê-los como pequenos deuses caseiros e a prestar-lhes vassalagem.

Com a Bíblia judaico-cristã, as coisas são, neste aspecto, totalmente diferentes, do Alcorão, desde logo, pelo modo como ela se veio a constituir. Ainda que não sejam menores os males que em nome dela se cometeram e cometem, ainda hoje, quer no âmbito da Igreja católica, quer no âmbito das outras Igrejas cristãs protestantes, quer, finalmente, no âmbito das novas Igrejas e seitas, desde as autodenominadas Testemunhas de Jeová à chamada Igreja Universal do Reino de Deus.

Basta advertir que a Bíblia não é um livro de um só autor, como o Alcorão. A Bíblia (= livros) é uma pequena-grande biblioteca, constituída, na edição judaico-católica, por 73 livros escritos e re-escritos por múltiplos autores, durante mais de mil anos, nas circunstâncias económicas, políticas e culturais, as mais diversas.

Mas, atenção! Mais do que procurarmos nos livros da Bíblia a revelação de Deus para judeus e cristãos e, por eles, para todos os povos do mundo, como se tais livros fossem uma espécie de depósito da revelação de Deus – é isto que as Igrejas cristãs sempre nos têm ensinado - o que neles encontramos é sobretudo a pedagogia do Deus totalmente Outro. Com a qual Ele tenta despertar a Humanidade para que ela se dê conta da sua misteriosa e gratuita Presença/Acção no universo e na História. Sem que, entretanto, mesmo essa parcela da Humanidade que chegue a dar-se conta dessa sua Presença/Acção, alguma vez consiga conhecê-lO a Ele definitivamente, muito menos, chegue a servir-se dEle em proveito próprio e egoísta.

Deus, na Bíblia, será sempre distinto do que alguma vez tivermos dito que Ele é, será sempre o totalmente Outro, o indizível, aquele que ninguém consegue nomear e, se se atreve a nomeá-lo, será sempre de forma provisória, inevitavelmente redutora, já que Deus é sempre infinitamente mais do que possamos dizer dele.

Isto que o Jornal Fraternizar acaba de afirmar pode chocar muita gente, teólogos incluídos. Mas nem sequer é novo. Já o disse, há dois mil anos, Jesus de Nazaré. Disse-o por palavras e, sobretudo, pela sua prática radicalmente libertadora de todo o tipo de opressão, também da opressão «sagrada», cometida a coberto do nome de Deus.

Foram dois, os momentos maiores em que a prática libertadora de Jesus gritou esta Boa Notícia do Deus totalmente Outro: 1. Quando, no início da sua missão evangelizadora e libertadora, recusou seguir todas as orientações/tentações (três, no Evangelho, quer dizer todas), por sinal, muito religiosas, formuladas por Satanás (um nome mítico, para dizer o anti-Deus, ou o Deus do Sistema); 2. Quando, na cruz que os chefes religiosos e políticos lhe impuseram, não só recusou descer dela, como não exigiu de Deus que o tirasse de lá, e, sobretudo, foi capaz de acolher, como a Palavra Maior de Deus, à sua desesperada e angustiada pergunta: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?", o tremendo e escandaloso silêncio de Deus, e como a Presença Maior de Deus a tremenda e escandalosa Ausência de Deus.

Por Jesus ter dito sem ambiguidades nem rodeios que Deus é o totalmente Outro e que não há religião ou culto que O domine e O ponha ao serviço dos nossos interesses egoístas, seja individuais, seja de grupo, de etnia ou de nação (no estilo, "Deus salve a América"!!!), é que foi quase de imediato assassinado.

Os chefes da religião oficial e dominante, que viviam e vivem à custa do nome de Deus e que sempre se servem do nome de Deus para medrar, enriquecer, crescer em privilégios e em poder sagrado sobre os demais, não lhe perdoaram a audácia e mataram-no, não sem antes conseguirem o pleno dos outros dois poderes – o económico e o político – assim como das respectivas elites privilegiadas que o exercem. Todos se puseram de acordo nessa inqualificável decisão.

É por isso que Jesus de Nazaré se tornou, para toda a Humanidade, a referência última, no que respeita a Deus e no que respeita ao ser humano. Hoje, esta original missão evangelizadora e libertadora de Jesus não aparece com toda a clareza, devido à Igreja católica romana, às outras Igrejas cristãs e às Religiões se terem apoderado dele. É por isso que é preciso, imperioso e urgente, resgatar Jesus das Igrejas e das Religiões, para que ele volte a ser Património de toda a Humanidade, porque é o que ele sempre foi e será. Não é verdade que Jesus é o ser humano por antonomásia, o ser humano tão humano, que humano assim, só pode mesmo ser Deus entre nós e connosco?

É com Jesus de Nazaré, e só com ele, que aprendemos – havemos de continuar a aprender - que a ninguém havemos de chamar pai sobre a terra, nem mestre, nem senhor, porque um só é o nosso Pai, um só é o nosso Mestre, um só é o nosso Senhor. E esse pai, senhor e mestre não é ninguém que os nossos olhos vejam e os nossos ouvidos oiçam! Só pode mesmo ser Aquele que é Espírito e Vida, por isso, nos potencia, nos liberta de raiz, nos cria e recria continuamente, e nunca por nunca desiste de nos fazer à sua imagem e semelhança.

É com Jesus de Nazaré, e só com ele, que aprendemos a ser ateus de todos os deuses, chame-se ele Alá ou Javé, Pai ou outro nome qualquer que nós, seres humanos, lhe atribuamos. Deus nunca é o que dizemos que é. Nunca é o que imaginamos que é. Nunca é o que pensamos que é. Deus nunca é o que vemos, palpamos, cheiramos, pensamos, imaginamos. Se fosse, seria automaticamente inferior a nós, seria obra das nossas mãos, da nossa inteligência, da nossa mente, dos nossos desejos, da nossa imaginação. Deus só pode ser o totalmente Outro. Só pode ser quem me faz ser, quem me encontra, quem me liberta de raiz, quem me leva ao colo, quem me anima, quem me levanta quando caio, quem me ama, quem me perdoa, quem me salva, quem, finalmente, me ressuscita. Deus, nunca o vemos. Nunca o ouvimos. Nunca lhe falamos. E se, alguma vez, dissermos que o vimos, mentimos. Se dissermos que o ouvimos, mentimos. Se dissermos que lhe falamos, mentimos. Diante dEle, só nos resta deixar-nos continuamente surpreender, levar, conduzir, amar. Só nos resta confiar como um menino confia noutro menino, como uma menina confia noutra menina.

Textos do Alcorão

Jornal Fraternizar apresenta alguns textos do Alcorão. Para que as suas leitoras e os seus leitores possam conhecer em directo e experimentar pessoalmente a mensagem que nele se veicula. São textos seleccionados quase à sorte. No género, onde abrir. São extraídos, com a devida vénia, da tradução portuguesa do Alcorão, editado em dois volumes pelas Edições Europa América.

"Se vos combatem, matai-os:
essa é a recompensa dos incrédulos"

ombatei no caminho de Deus aqueles que vos combatem, mas não sejais nunca os agressores. Deus não ama os agressores. Expulsai-os donde vos expulsaram! A perseguição dos crentes é pior do que o homicídio: não os combateis junto da Mesquita Sagrada antes de vos terem combatido, mas se vos combatem, matai-os: essa é a recompensa dos incrédulos. Se deixam de vos atacar, então certamente Deus será indulgente, misericordioso. Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus. Se eles se converterem, não haverá mais hostilidade; esta não cessará senão para os injustos. O mês sagrado pelo mês sagrado! A quem vos ataque, atacai-o da mesma maneira que vos tenha atacado. Temei a Deus e sabei que Deus está com os tementes! Gastai na causa de Deus e não vos lanceis por vossas mãos para a ruína. Fazei o bem. Deus ama os que assim procedem.

Cumpri a peregrinação e a visita em honra de Deus. Se estiverdes impedidos de o fazer, eximi-vos pela oferenda que vos seja exequível, uma ovelha. Não rapeis a vossa cabeça antes de a oferenda chegar ao seu lugar de imolação. Aquele de vós que estiver enfermo ou tiver um mal na cabeça realizará o seu resgate mediante jejum, esmola ou sacrifício ritual. Quando estejais são, qualquer que faça uso da visita até à peregrinação, pois sacrifique a oferenda que lhe seja possível. Quem não a tenha, faça jejum de três dias na peregrinação e de sete quando regresse, isto é, dez dias completos. Isto serve para quem não tem a sua família presente na Mesquita Sagrada. Temei a Deus e sabei que Deus é severo nos castigos!"

Sura 2, 190-196

"Quem se afaste da Minha admoestação terá uma vida miserável. No Dia da Ressurreição havemos de o trazer, perplexo, ao Juízo Final. Perguntará: «Senhor meu! Porque me trouxeste cego ao Juízo? Antes eu via.» Deus responderá: «De maneira idêntica àquela em que te chegaram os Nossos versículos, mas tu esqueceste-os e assim hoje és esquecido.» Assim recompensaremos a quem haja sido transgressor e não haja acreditado nos versículos do seu Senhor. O tormento da outra vida é mais duro e mais longo! Não serve de guia aos descrentes o saber quantas gerações aniquilámos antes da sua? Em suas moradas passeiam. Nisso há sinais para os possuidores de entendimento. Se não tivesse sido por decreto que, proveniente do teu Senhor, veio com antecedência e num prazo determinado, o castigo já lhes teria chegado forçosamente. Tem paciência com o que dizem e entoa o louvor do teu Senhor antes da saída do Sol e antes do ocaso. Durante parte do tempo da noite louva-O; louva-O nos extremos do dia. Talvez estejas satisfeito. Não dirijas os teus olhos para o que demos em prazer – esplendor da vida mundana – a alguns deles para os pôr à prova. O quinhão do seu Senhor é melhor e mais duradouro! Ordena aos teus fiéis a oração! Persevera nela! Não te pedimos nenhum quinhão! Nós damos-to. O bom fim pertence à piedade.

Dizem: «Porque não nos trouxe um sinal proveniente do teu Senhor?» Porventura não lhes chegou a prova manifesta do que está nos primeiros Livros? Se nós os tivéssemos aniquilado com um tormento antes da sua vinda, teriam dito: «Senhor nosso! Se nos tivesses mandado um Enviado teríamos seguido os teus versículos antes de nos aviltarmos e de nos humilarmos»."

Sura 20, 124-132.


Editorial

Inimigos da Humanidade

Depois do Acontecimento definitivamente revelador do Deus totalmente Outro e do ser humano à sua imagem e semelhança, que é para todo o sempre Jesus de Nazaré, o Cristo, nomeadamente a sua prática radicalmente libertadora, a sua Palavra constituída de Verdade e a sua Morte violenta na Cruz, na qual estiveram directamente envolvidos, como seus juizes e assassinos, os principais chefes das nações, na pessoa do procurador romano Pôncio Pilatos, e os principais líderes religiosos, na pessoa do sumo sacerdote judeu Caifás, nunca mais uns e outros podem invocar o nome de Deus e agir como se fossem infalíveis chefes das nações e incontestados líderes das Religiões.

Se o fazem – hoje, é público e notório que o fazem, a começar pelo todo poderoso George W. Bush, dos EUA, e a acabar no todo poderoso papa João Paulo II, do Vaticano – uma tal invocação do nome de Deus tem todo o sabor a sacrilégio e a blasfémia, pois visa encobrir todo o tipo de crimes de lesa-Humanidade por que eles são moralmente responsáveis, enquanto representantes maiores desta Ordem Económica, Política e Religiosa Mundial intrinsecamente perversa em que todos, mulheres e homens, nascemos e que, se não lhe resistimos com todas as forças, reiteradamente nos oprime, corrompe e desumaniza.

Uma tal invocação só não é efectivamente um sacrilégio e uma blasfémia, porque o Deus que os principais chefes das nações e os principais líderes das Religiões invocam, a tempo e fora de tempo – no estilo, "Deus abençoe a América" (a frase, ultimamente, mais repetida por Bush) ou no estilo, "Peçamos a Deus, por intercessão de nossa senhora, que conceda a paz ao mundo" (o apelo mais repetido pelo papa de Roma, ou por um qualquer outro bispo católico) - não passa do Deus do Sistema que está sempre aí como suporte e cúpula da Ordem Económica, Política e Religiosa mundial intrinsecamente perversa. E que, de tão perversa que é, inevitavelmente arrasta para a demência e para a mentira, os principais chefes das nações e os principais líderes das Religiões, os quais, por sua vez, em consequência das decisões económicas, políticas e morais que adoptam e fazem executar, acabam por semear todo o tipo de desgraças, cada qual a pior, que hoje afectam todos os povos do planeta.

Neste particular, temos de reconhecer que nem as Igrejas, a começar pela nossa Igreja católica, o têm sabido ser em plenitude, na peugada de Jesus de Nazaré, o Cristo Crucificado/Ressuscitado e na martirial fidelidade ao seu Espírito. Na verdade, também elas se converteram em grandes religiões do Sistema que hoje serve de suporte e de cúpula à perversa Ordem Económica, Política e Religiosa mundial em que todos, mulheres e homens, somos forçados a viver. E a prova é que os principais líderes das Religiões, a começar pelo chefe de Estado do Vaticano, o papa João Paulo II, e a acabar em Dalai Lama, o líder n.º 1 do Budismo do Tibete (esteve, como bem se lembram, no passado mês de Dezembro, de visita particular ao nosso país), são geralmente reconhecidos como seus pares pelos principais chefes das nações do mundo. E é ver como todos geralmente se entendem tão bem entre si! Como todos se elogiam e respeitam mutuamente! Como todos tentam deixar a impressão em quem os vê e ouve, de que são superiores ao comum dos seres humanos - uma espécie de deuses que todos os outros havemos de reverenciar, idolatrar, senão mesmo, adorar!...

(O que, a este propósito, se passou no nosso país, com a visita de Dalai Lama, foi simplesmente caricato, já que a mensagem de que ele é portador, não passa de um conjunto de lugares comuns, repetidos em todo o lado, como se fosse uma cassete, sejam quais forem as circunstâncias e sejam quais forem as pessoas presentes. Nem se percebe muito bem porque é que a toda poderosa China se deu aqueles ares de virgem ofendida, ao exigir publicamente que o pequeno Estado português não o recebesse oficialmente. Com esta sua autoritária determinação, só contribuiu para dar ainda mais notoriedade à medíocre figura de Dalai Lama que, entretanto, foi recebido como herói por certas figuras nacionais menores, mas com notórias ambições de poder e de prestígio, sem que, entretanto, se saiba lá muito bem quais as nobres batalhas em prol da Humanidade mais sofrida e mais oprimida em que "Sua Santidade" – até onde chega a demência de certos seres humanos que tratam outros seres humanos por "sua santidade" e que aceitam ser tratados por "sua santidade" por outros seres humanos!... - andou e anda efectivamente metido e pelas quais pessoalmente se arriscou e arrisca. Para lá do exótico da sua origem e da sua investidura como Dalai Lama, do exótico da sua figura de homem que vem de longínquas paragens, do exótico das suas vestes de monge tibetano, e da disparatada deslocação que fez ao santuário da deusa de Fátima, o que mais ficou, senhoras e senhores, da sua visita de cinco dias ao nosso país?! Quem se lembra?)

O problema é que, apesar de somarmos já dois mil anos de Cristianismo, ainda quase ninguém tem consciência – a culpa maior só pode ser, evidentemente, das próprias Igrejas – de que a contribuição mais essencial e mais decisiva do Acontecimento definitivamente revelador que é Jesus de Nazaré, o Cristo, nomeadamente a sua Morte na cruz, por decisão dos principais chefes das nações e dos principais líderes das Religiões de então, é ele ter desmascarado, duma vez por todas, o Sistema que continua aí a servir de base e de cúpula à Ordem Económica, Política e Religiosa Mundial, intrinsecamente perversa em que ainda hoje somos forçados a viver. Em concreto, ter posto a nu que o Sistema, ao contrário do que sempre tem pretendido fazer crer, é um Sistema cruel que se faz abençoar e canonizar por um Deus à sua imagem e semelhança, ou seja, um Deus nos antípodas do Deus totalmente Outro revelado em Jesus de Nazaré, e que é um Deus cruel que só se compraz no sacrifício de vítimas humanas; que come criancinhas inocentes a todas as horas do dia e da noite, juntamente, com outros milhões de pessoas mais crescidas, mas ainda ingénuas, que lhe entregam o seu dinheiro, até aquele que faz falta ao desenvolvimento delas próprias e dos seus filhos e filhas; que se sente honrado, por se ver rodeado e servido por populações ignorantes, subdesenvolvidas, incultas, acríticas, sempre de joelhos e de mãos postas, a peregrinar de santuário em santuário, cheias de medo do presente e do futuro e até do que lhes possa vir a suceder depois de morrerem, por sinal, quase sempre antes do tempo; que está cegamente empenhado na manutenção, contra ventos e marés, da presente Ordem Económica, Política e Religiosa Mundial intrinsecamente perversa, na qual a Verdade continua estruturalmente cativa na injustiça e, por isso, só pode ser uma Ordem imposta pela violência das armas que as elites poderosas e ricas do mundo fabricam, traficam e utilizam com toda a crueldade, a pretexto de que estão a defender a Paz e a extirpar o "terrorismo internacional" da face da terra - como se, alguma vez, fosse possível existir no planeta outro eficaz terrorismo que não o terrorismo dessas mesmas elites ricas e poderosas do mundo!...

Quando a generalidade das Igrejas cristãs, em lugar de viverem dentro do Sistema e da sua Ordem Económica, Política e Religiosa mundial, mas sem jamais serem do Sistema e da sua Ordem Económica, Política e Religiosa mundial, depressa desistiram de tão nobre e fecunda missão, e passaram a ser, por arrastamento dos seus principais líderes, Igrejas do Sistema e da sua Ordem Económica, Política e Religiosa mundial, sob o estatuto oficial de Religiões, elas cometeram a mais grave traição à sua missão histórica e voltaram a fazer com Jesus, agora Ressuscitado, e com o seu Projecto radicalmente libertador, o mesmo que tinham feito outrora os principais líderes da Sinagoga e do Templo de Jerusalém com o histórico Jesus de Nazaré: aprisionaram-no e entregaram-no aos principais chefes das nações, para que eles todos os dias o crucifiquem. Ao mesmo tempo, transferiram o projecto Reino/Reinado de Deus/Nova Ordem Mundial que ele anunciou já misteriosamente presente entre nós como semente a crescer na História, para o após-morte e o após-História, num céu habitado por almas, que ninguém sabe onde fica nem para que serve, muito menos que raio de consolação é que poderá trazer aos milhões e milhões de desgraçados do nosso hoje e aqui, que não têm onde cair mortos.

É aqui que estamos, como Humanidade, neste início do terceiro milénio. Na condição de escravizados, num mundo convertido em casa de opressão. Mas é daqui que temos de sair. Sem mais adiamentos. Num êxodo libertador sem regresso e sem sequer olhar para trás.

Mas atenção! Não podemos contar com os principais chefes das nações nem com os principais líderes das Religiões. Uns e outros são inimigos da Humanidade. São lobos que havemos de neutralizar e dos quais temos de nos precaver. Todas as suas decisões económicas, políticas e morais são assassinas e genocidas. São Mentira que enlouquece e aliena quem as acatar e puser em prática.

Temos, por isso, o dever moral de lhes resistir. E ousar criar, à revelia deles, uma Nova Ordem Económica e Política mundial não religiosa, mas fecundamente espiritual, que nos liberte a todos, pessoas e povos, de todas as alienações e de todas as opressões e nos proporcione uma vida comunitária, de abundância e de qualidade. Em que os dirigentes se comportem sempre como pastores dos povos. Nunca mais como mercenários, menos ainda como lobos.

Vosso irmão, Mário, presbítero.

Entrevista conduzida por Cecília Costa

O Nobel L. Boff

No passado dia 3 de dezembro de 2001, o nosso queridíssimo amigo e companheiro, Leonardo Boff, recebeu, em Estocolmo, no Parlamento sueco, o Prémio Right Livelihood (= Correcto Modo de Vida), um Nobel alternativo. Foi em 1980 que um rico filatelista, Jakob von Uexkull, decepcionado com o desvio do Prémio Nobel do seu papel humanístico, resolveu criar o seu próprio prémio, no valor de US$ 187 mil, que este ano foi concedido a quatro intelectuais. Um deles é Leonardo Boff, "por unir em sua vida espiritualidade, justiça social e protecção do meio ambiente". Divulgamos, a seguir, uma entrevista com o famoso teólogo e escritor brasileiro, conduzida por Cecília Costa, que nos foi enviada por e-mail, directamente do Brasil. E que muito agradecemos.

P - O coração bateu forte ao ganhar o Prémio Nobel alternativo?

L. Boff: Mais do que honrar uma pessoa, este prémio consagra uma causa. E a causa dos meus últimos 20 anos foi tentar unir o grito dos pobres, de onde nasceu a Teologia da Libertação, ao grito da Terra, de onde nasceu o discurso ecológico. O que os une é a opção pelos pobres, ser contra a pobreza e a favor da vida. Entre os pobres está o grande pobre, que é o planeta Terra, explorado, pilhado pela voracidade do processo industrialista moderno. Todos nós somos reféns de um modelo de civilização que explora as pessoas, as classes, as nações e extenua os recursos escassos da Terra. Precisamos de uma ecologia da libertação. Meu livro Ecologia, grito da terra, grito dos pobres acolheu este desafio, ao unir ecologia, física quântica, o discurso teológico e a espiritualidade.

P - Este livro, ao qual você atribui o prémio, foi escrito em 1995?

L. Boff: Ele foi editado em 1995 e saiu praticamente ao mesmo tempo na Alemanha, na Espanha, nos EUA, na Itália, tendo feito um bom caminho dentro da discussão ecológica. Há editoras estrangeiras que sistematicamente publicam minhas obras. Elas passaram a editar o que eu escrevo em função do discurso da Teologia da Libertação, que hoje é uma das tendências mais fortes do mundo cristão e ecuménico. E que nasceu aqui.

P - Foi a Teologia da Libertação que causou a sua ruptura com a Igreja?

L. Boff: Em 1984 tive a honra de me sentar na cadeirinha de Galileu
Galilei, no Santo Ofício, em Roma, que hoje se chama Congregação da Doutrina da Fé, num edifício à esquerda das colunatas do Vaticano. Estive naquela salinha onde, depois de serem torturadas, as vítimas da Inquisição eram interrogadas. Passei na frente de uma grade enorme cheia de espinhos de ferro para fora e perguntei ao meu inquisidor: é aqui a sala da tortura? E ele deu-me uma cotovelada...

P - E aí se deu a sua separação da Igreja?

L. Boff: Em 1984 foi o interrogatório, em 1985 veio a punição, o silêncio obsequioso, a deposição da cátedra, não podia falar nem escrever. Um ano depois, o Papa, pressionado pela Igreja do Brasil, tirou a suspensão, eu pude falar, mas mantiveram o controlo.

P - Até quando?

L. Boff: Até 1992, durante a ECO. Em 1992, eles pediram-me novamente para guardar silêncio, não viajar, não dar aula, e aí eu disse: Não, na Igreja devem valer os direitos humanos; o teólogo só tem uma arma, que é a palavra escrita e falada. E como eles não cederam eu tive que tomar a decisão de me afastar, mas continuei como teólogo, escrevo, dou cursos. Agora mesmo, dei um curso de um semestre na Universidade de Heidelberg.

P - Então até 1992, enquanto você aceitava o controlo, não havia rompido com a Igreja?

L. Boff: Eu não rompi em termos da comunidade de fé. Eu rompi como padre. Até 1992 ainda era padre franciscano. Roma gostaria que eu me tornasse director da Coca-Cola em Bangu, mas eu continuei como teólogo. Eles não gostam que quando um teólogo sai, continue teólogo. Quem é que vai querer viver de teologia? Só a Igreja mesmo. Ao ser colocado fora da Igreja, você tem que ser outra coisa. Mas eu recebi logo uma carta da Uerj, em julho de 1992, e fiz concurso, tornei-me professor. Continuei fazendo teologia, ética, dando cursos no exterior, escrevendo livros. Não sou mais padre, me autopromovi a leigo, mas continuei com a mesma função de teólogo de antes.

P - É como teólogo que defende suas ideias?

L. Boff: Teólogo, mas de uma forma interdisciplinar, ecuménica. Quem sabe só teologia não sabe nem sequer teologia. A teologia é um discurso de articulação. Você tem que discutir a teologia com a física quântica, com a ética, com a globalização, com os direitos humanos. Dialogar com a contemporaneidade. É isso que dá força aos meus textos...

P - Você diz em seus livros que a ecologia não é do meio ambiente, é do ambiente inteiro...

L. Boff: Tento trabalhar os quatro ramos fundamentais da ecologia: o meio ambiente, que eu nem chamo mais de meio ambiente, falo em comunidade de vida. Trato também da ecologia social - discuto a questão da pobreza, a nível mundial, que é uma questão da ecologia, pois afecta o ser humano que é parte da natureza. Trabalho a ecologia mental, aqueles preconceitos e estruturas mentais que levam às guerras, à violência, à discriminação, e o quarto, que é a ecologia integral, a Terra como parte de um todo, que é o cosmos, que é o sistema solar, galáctico. E daí vem toda uma reflexão a partir da nova cosmologia, que vê o processo revolucionário como processo único, e contraditório, que tem caos e cosmos, e quanto mais ele se expande mais complexo fica e quanto mais complexo mais carregado de consciência, até chegar à consciência do ser humano, e a vida como auto-organização da matéria. Nós, seres humanos, vivemos porque há uma inter-relação de todos com todos, entre todas as energias do Universo. A ecologia integral deve incluir a totalidade do ser, e não ficar só na dimensão antropocêntrica ou terracêntrica.

P - O homem, a terra, o cosmos... Por aí passa o seu conceito de Deus?

L. Boff: É verdade. Mas o que eu acho que é a grande novidade, o que torna meu trabalho consequente em termos de paradigma novo, visão nova da Terra, é a visão que os astronautas têm da Terra. Quando eles vêem a Terra lá de fora, eles dizem que não há distinção entre Humanidade e Terra, tudo é uma unidade só. O ser humano é a própria Terra que no momento de sua evolução começou a sentir, a pensar, a amar. Nós somos Terra, nós não estamos sobre o planeta Terra, somos a própria Terra, que pensa, que ama... Homem vem de húmus, de terra fértil. E a gente esquece que Adão vem de adama, e adama é terra fértil. Há mitos sobre isso criados pelos indígenas, mitos de criação. Nós somos Terra. E a Terra é a grande mãe. Somos filhos da Terra. A Terra tem o comportamento de um superorganismo vivo. O oxigénio da terra, milhões e milhões de anos, sempre a 21%. Se tivesse a 22%, um raio queimaria todo o oxigénio. Todos os elementos físicos e químicos têm uma calibragem ultra-sofisticada, um equilíbrio próprio dos organismos vivos. Tudo é vida. É a teoria de Gaia [= terra viva]. Eu incorporo isso. Tento pensar primeiro sobre dados científicos, com mediação filosófica, para permitir um discurso teológico. E debato, dentro de um discurso espiritual-cultural, que mudanças poderíamos fazer para salvar este planeta que podemos destruir de 25 maneiras diferentes. Acho muito pouco cair um avião sobre o Pentágono. Deviam cair 25 aviões.

P - Vinte e cinco aviões sobre o Pentágono?

L. Boff: É preciso destruir o Pentágono todo. No Pentágono estão todas as estratégias de destruição da vida e do planeta. Lembra-se de Carl Sagan, que orientou a viagem dos americanos à Lua? Se quiser ter uma grande experiência espiritual, cósmica, leia Pálido ponto azul, o livro dele. A última foto que um satélite americano fez antes de deixar o sistema solar - um satélite que circulará ao redor da galáxia por biliões, triliões de anos, carregando mensagens num disco de ouro, fórmulas matemáticas, um choro de criança, mil línguas humanas - foi a de um pálido ponto azul, num fundo preto... Sagan escreveu este livro e dois anos depois morreu. É o testamento dele. A nossa cultura criou o princípio da autodestruição. Com as armas atómicas e biológicas, podemos destruir a terra com 25 formas diferentes. Temos muito poder e nenhuma sabedoria. Temos que desenvolver o princípio de corresponsabilidade. Em nome disso eu participei da elaboração da Carta da Terra, feita pela Comissão da Terra, um grupo de 23 pessoas coordenado por Gorbachov e Maurice Strong, que organizou a ECO-92. Nós propusemo-nos descrever os direitos da Terra. Trabalhámos oito anos sobre isso até que, no ano passado, ela foi aceita na Unesco. Entrará no ano 2002 na agenda da ONU. Se for aprovada, terá o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos. E em nome dela será possível prender os Pinochets ecológicos. Há uma consciência de que o destino da Terra e da Humanidade está sob grave ameaça. Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou morremos todos.

P - Esta carta é ambientalista ou também une o grito dos pobres com o da Terra?

L. Boff: Batalhei muito para que entrasse neste documento esta dimensão espiritual, social. Os grandes capítulos são: respeitar e cuidar da comunidade de vida; integridade ecológica de todos os seres, não só seres humanos; justiça social e económica, e o quarto, democracia, não-violência e paz. Tudo isso como ecologia. E eles pediram-me que escrevesse um gran finale . Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência diante da vida, por um compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça, pela paz e pela alegre celebração da vida...

P - Mas estamos vivendo o contrário, medo, desespero e guerra. Mantém a esperança de que conseguiremos um dia salvar a Terra?

L. Boff: Acho que estamos no coração de uma crise civilizacional. Nossa civilização globalizada não tem mais recursos internos para oferecer um horizonte de esperança para a Humanidade. Ela só se consegue manter com emprego maciço de violência. Violência física ou económica, que acaba com as economias regionais, vitima empresas, cria uma acumulação fantástica.
Segundo Noam Chomsky, 230 famílias detêm 80% da riqueza mundial. Nunca conhecemos tanta exclusão como agora. O desemprego é estrutural.

P - Viviane Forrester fala que acabarão criando campos de concentração para os desempregados, os marginais...

L. Boff: Os níveis de pobreza, de conflito, são insuportáveis para uma consciência ética mínima. Estamos no coração de uma crise. Para mim, o atentado nos Estados Unidos tem um carácter simbólico. Este sistema sustenta-se sobre três pilares fundamentais: sobre o sistema económico, altamente competitivo e nada cooperativo, derrubado nas duas torres. Ele é defendido pelo aparelho militar, e o Pentágono foi atingido. É articulado pela política da Casa Branca, sobre a qual ia cair um avião, derrubado antes. Simbolicamente as três pilastras foram atingidas em seu significado central. Os ícones do sistema. Isso significa que a Humanidade está perplexa, porque no fundo a lição que a história nos dá é dizer: por aqui não há caminho. Ou mudamos, ou vamos ao encontro do pior. Vivemos uma crise de travessia. Isto é, não é o fim do mundo, mas o fim deste tipo de mundo.


Dois textos de Frei Betto (Brasil)

1. Laços de família

Prescott Bush integrava, em 1918, a associação estudantil Skull & Bones (Crânio e Osso). Desafiado pelos colegas, invadiu um cemitério apache e roubou o escalpo do lendário cacique Jerónimo.
Deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Prescott Bush, sócio de uma companhia de petróleo do Texas, recebeu punição do governo dos EUA, por negociar combustível com a empresa nazista Luftwaffe. O tribunal admitiu que ele violara o Trading with Enemy Act.
Esperto, após a guerra, Prescott aproximou-se dos homens do poder, de modo a usufruir de imunidade e impunidade. Tornou-se íntimo dos irmãos Allen e John Foster Dulles. Este último comandava a CIA, por ocasião do assassinato de John Kennedy, em 1963. Convenceu o velho Bush a fazer um gesto magnânimo e devolver aos apaches o escalpo de Jerónimo. Bush atendeu-o, mas não levou muito tempo para os indígenas descobrirem que a relíquia restituída era falsa...
A amizade com Dulles garantiu ao filho mais velho de Prescott, George H. Bush, executivo da indústria petrolífera, o emprego de agente da CIA. George destacou-se, a ponto de em 1961 coordenar a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, para derrubar o regime implantado pela guerrilha de Sierra Maestra.
Fiel às suas raízes texanas, George baptizou as embarcações que conduziram os mercenários até a ilha de Fidel, de Zapata (nome da sua empresa petrolífera), Bárbara (nome da sua mulher) e Houston. A invasão fracassou, 1.500 mercenários foram presos e, mais tarde, libertados em troca de 10 milhões de dólares em alimentos e remédios para crianças. (Malgrado a derrota, George H. Bush tornou-se director da CIA em 1976).
Triste com o mau desempenho de seu primogénito como 007, Prescott Bush consolava-se com o êxito dele nos negócios de petróleo. E aplaudiu a amplitude de visão do filho, quando George, em meados dos anos 60, se tornou amigo de um empreiteiro árabe que viajava com frequência ao Texas, introduzindo-se aos poucos na sociedade local: Muhammad Bin Laden. Em 1968, ao sobrevoar os poços de petróleo de Bush, M. Bin Laden morreu em acidente aéreo no Texas. Os laços de família, no entanto, estavam criados.
George Bush não chorou a morte do amigo. Andava mais preocupado com as dificuldades escolares de seu filho George W. Bush, que só obtinha média C. A guerra do Vietname acirrou-se e, para evitar que o filho fosse convocado, George tratou de alistá-lo na força aérea da Guarda Nacional. A bebida, entretanto, impediu que o neto de Prescott se tornasse um bom piloto.
Papá George incentivou, então, o filho a fundar, em meados dos anos 70, a sua própria empresa petrolífera, a Arbusto (bush, em inglês) Energy. Graças aos contactos internacionais que o pai mantinha desde os tempos da CIA, George Bush filho buscou os investimentos de Khaled Bin Mafouz e Salem Bin Laden, o mais velho dos 52 filhos gerados pelo falecido Muhammad. Mafouz era banqueiro da família real saudita e casara com uma das irmãs de Salem. Esses vínculos familiares permitiram que Mafouz se tornasse o presidente da Blessed Relief, a ONG árabe na qual trabalhava um dos irmãos de Salem, Osama Bin Laden.
A Arbusto pediu concordata e renasceu com o nome de Bush Exploration e, mais tarde, Spectrum 7. Tais mudanças foram suficientes para impedir que a bancarrota ameaçasse o jovem George W. Bush. Salem Bin Laden, fiel aos laços de família, veio em socorro do amigo, comprando 600 mil dólares em acções da Herken Energy, que assumiu o controlo da Spectrum 7. E firmou um contrato de importação de petróleo no valor de 120 mil dólares anuais. As coisas melhoraram para o neto do velho Prescott, que logo embolsou 1 milhão de dólares e obteve um contrato com o emirado de Bahrein, que deixou a Esso morrendo de inveja.
Em dezembro de 1979, George W. Bush viajou a Paris para um encontro entre republicanos e partidários moderados de Khomeini, no qual trataram da libertação dos 64 reféns estadunidenses sequestrados, em novembro, na embaixada dos EUA, em Teerão. Buscava-se evitar que o presidente Jimmy Carter se valesse do episódio, a ponto de prejudicar as pretensões presidenciais de Ronald Reagan. Papá George fez o percurso até à capital francesa a bordo do jatinho de Salem Bin Laden, que lhe facilitava o contacto com o mundo islâmico. (Em 1988, Salem faleceu, como o pai, num desastre de avião).
Naquele mesmo ano, os soviéticos invadiram o Afeganistão. Papá George, que coordenava operações da CIA, recorreu a Osama, um dos irmãos de Salem, que aceitou infiltrar-se no Afeganistão para, monitorado pela Agência de Inteligência, fortalecer a resistência afegã contra os invasores comunistas.
Os dados acima são do analista italiano Francesco Piccioni. Mais detalhes no livro A fortunate son: George W. Bush and the making of na American President, de Steve Hatfield. Tão sintomática quanto a actual censura consentida aos media nos EUA, é a omissão na imprensa da história de como a CIA criou o general Noriega, do Panamá; Saddam Hussein, do Iraque; e Osama Bin Laden, do circuito Arábia Saudita/Afeganistão.
Agora, o neto de Prescott Bush demonstra a sua fidelidade à índole do avô: invade o Afeganistão para obter, ainda que a custo do sacrifício da população civil, a prisão de Osama Bin Laden.

2. A lógica do Poder

A lógica analítica predomina nos EUA. Percebe folhas e galhos, mas não a árvore e, muito menos, a floresta. Ao contrário da lógica dialéctica, ela encara o texto fora do contexto e rege, por exemplo, as políticas monetaristas do FMI, insensíveis aos problemas sociais.

Por isso, não surpreende que a lógica analítica acredite que John Kennedy foi assassinado pela loucura de Lee Oswald; as 168 vítimas da explosão de um prédio em Oklahoma, mortas pelo terror ianque de McVeigh; e os atentados de 11 de setembro de 2001 fruto da mente ensandecida do Osama Bin Laden.

A lógica analítica é tão contraditória quanto a chuva de bombas e alimentos que desabou sobre o Afeganistão. Petardos e pães; morte e vida. Desde as tentações de Jesus no deserto da Judeia, nas proximidades de Jericó, que Deus e o diabo não andavam tão próximos.

Só nos dois primeiros dias de guerra, os EUA gastaram 22 mil milhões de dólares em munições. O que equivale ao PIB [Produto Interno Bruto] do Afeganistão. Um míssil Tomahawk custa um milhão de dólares. Para os jovens soldados, que atiram como confetis o que vale muito mais do que o que eles hão-de acumular em todos os anos de trabalho, a morte possui cotação superior à da vida. E o inimigo é virtual, já que os soldados não vêem vítimas nem alvos atingidos.

No Ocidente, poucos viram as fotos e os vídeos retratando a morte de 150 mil iraquianos atingidos pelos mísseis de 1991. Do ponto de vista psicológico, o síndroma da guerra asséptica induz ex-combatentes a descarregarem seus fuzis na lanchonete da esquina, numa compensação paranóica de quem, enfim, se depara com corpos e sangue!

Do colonialismo renascentista à Guerra Fria, a geopolítica das nações metropolitanas raciocinava em termos de conquistas territoriais. No século XVI, a Península Ibérica apropriou-se das terras descobertas por Colombo e Cabral. No século XIX, os EUA anexaram ao seu território metade do México e todo o Porto Rico. No século XX, a Rússia enfeixou, na União Soviética, dezenas de países, e o nazifascismo subjugou todo o continente europeu, das fronteiras da Inglaterra às da Rússia, com excepção da Suíça.

Agora, a globocolonização já não raciocina em termos de expansão territorial, mas de controlo total através da tecnologia virtual. A psicopolítica sucede à geopolítica, pois importa mais a sujeição de corações e mentes que a anexação de áreas físicas. Os EUA não solicitam à ONU licença para atacar outros países que, supostamente, abrigam terroristas. Apenas comunicam que o farão, relegando a ONU à categoria de um clube de retórica.

A Casa Branca é, hoje, o governo do mundo. Suas decisões independem de leis e aprovações formais. O direito internacional reduz-se à lei de talião que, como constava num cartaz pacifista exibido há tempos pela TV, na guerra do olho por olho, todos acabam cegos.

Os terroristas de 11 de setembro entregaram ao Tio Sam, com seus voos camicases, as asas que o império americano precisava para submeter todo o planeta à sua soberana vontade. Quem acredita que a Corte Internacional de Haia haverá de punir eventuais crimes de guerra cometidos pelos EUA no Afeganistão? Ficarão impunes como Robert Hayes, agente terrorista da CIA no Brasil, que em 1976 recebeu instruções para colocar bombas em três alvos paulistanos, de modo a culpar as organizações de esquerda: um teatro, a catedral da Sé e o consulado americano. Essa mesma lógica do terror de Estado fez explodir bombas, no Rio, na Editora Civilização Brasileira, na OAB e no Riocentro. Tudo em nome da democracia e da liberdade. Graças ao heroísmo do capitão Sérgio Macaco, do Parasar, o Gasómetro não foi pelos ares.

Como se explica que, com tanta disposição e recursos para combater o terrorismo, a Máfia e o narcotráfico continuem a actuar nos EUA, a ponto de roubarem sucata dos escombros do WTC? A lógica analítica parece não se dar conta de que a globalização da violência só será vencida pela globalização da solidariedade. Enquanto a humanidade não estabelecer as premissas básicas de uma macroética, capaz de regular a convivência internacional, falcões de sequestradores e falcões da política continuarão a matar a pomba da paz.


Porfírio Borges (Porto)

Pela boca morre o peixe

Dada a minha condição de reformado, acontece que, para passar o tempo, vou algumas vezes até à beira do Rio. Enquanto me limito a olhar, muitos outros que vivem a mesma condição de desnecessários para a sociedade, pegam nas suas canas, lançam a isca e "fazem" que estão a pescar. Depois, de longe a longe, acontece um esticão na cana e, embora na maioria das vezes, seja o lixo que se agarrou, de quando em quando lá vem um «peixito» a estrebuchar.

Evidentemente que quem está naquele passatempo não lhe passa pela cabeça que o seu entretenimento só é possível porque o peixe precisa de comer e ignora que está a ser alvo de uma armadilha.

Um dia, acabando de fazer esta descoberta que, aliás, não tem nada de brilhante, dei comigo a pensar que afinal isto é assim em todos os sectores da sociedade. Os mais habilidosos enganam os mais simples e os mais poderosos vencem os mais fracos. Então lembrei-me de muitos casos de vida em que isto acontece, mas sobretudo, relacionei a pesca com a prostituição.

Causas da prostituição

A vida da prostituição (estou a referir-me só à feminina) com as "as raparigas e as mulheres da vida" é um sistema de exploração em que os exploradores mais directos estão bem identificados: os donos de alguns cafés, das pensões que recebem as «visitas», as amas que tomam conta dos filhos, as donas dos quartos e até as parteiras que, quando necessário, provocam os abortos.

Sendo isto tão evidente por que é que «elas» se deixam apanhar por este anzol? Naturalmente que a resposta a esta questão será diferente para cada uma. No entanto, generalizando um pouco, é fácil encontrarmos os seguintes aspectos mais abrangentes e, como tal, mais comuns: as raparigas têm um grau de escolaridade muito baixo, são raríssimas as que têm um grau de ensino médio, em crianças tiveram dificuldades económicas, problemas de habitação e viveram em condições de promiscuidade. Depois, em resultado da sua pouca instrução, têm dificuldades em arranjar um emprego que lhes garanta a sua subsistência e a dos filhos. Juntando tudo isto não é de estranhar que são particularmente as menos «qualificadas» as maiores vítimas desta situação.

Apesar disto ser uma realidade, não podemos ignorar que para outras haverá motivos bem diferentes, como por exemplo o querer a «qualquer preço» ganhar mais para ter mais. Todavia, como para mim, estes casos são excepção e bem mais de ordem moral que social, por hoje ficam sem comentário. Entretanto, é bom não esquecer que a prostituição existe, porque se na pesca há o homem/pescador, aqui há o homem/cliente e os que fazem desta actividade um comércio dependente da oferta e da procura.

As semelhanças

- O peixe porque precisa de comer deixa-se atrair pela isca, mesmo com o risco da própria vida. A mulher, na generalidade dos casos, recorre à prostituição, também à procura da sua subsistência.

- O peixe quando é apanhado resiste, tenta libertar-se e luta enquanto pode. A mulher não vai para esta vida de ânimo leve: pensa nas consequências futuras, resiste à tentação, luta também enquanto pode e só acaba vencida após muita luta interior.

- O peixe acaba por morrer, porque foi retirado do seu habitat e não pode viver fora da água. A mulher morre para a sua dignidade e por isso marginaliza-se, esconde a sua vida dos mais íntimos, cria as suas defesas porque sabe que a sociedade é rápida a condenar e demasiado lenta a encontrar soluções.

- O pescador precisa de sentir-se realizado portanto para ele "tudo o que vem à rede é peixe": não se importa de apanhar peixe miúdo, «criança» que ainda não cresceu, nem teve tempo para viver; em consciência este «peixito» deveria ser devolvido à água, ao seu mundo para crescer livremente. O cliente também aproveita sem escrúpulos as crianças que entram neste mundo, muito antes de terem discernimento para tomarem as suas opções; e também não tem a coragem de as devolver à água, isto é, ao seu meio, para crescerem e viverem felizes, como aliás é o seu direito.

Conclusão

Aqui estão duas realidades tão diferentes que acabam infelizmente por terem um denominador comum: o peixe cai na armadilha porque não é um ser pensante; a mulher, acontece-lhe o mesmo, porque apesar da sua inteligência, não tem condições de vida que lhe permitam pensar.

É bem provável que, chegados aqui, alguém esteja a comentar que estou a comparar realidades que não são comparáveis. Talvez até tenham razão, mas a verdade é que desta forma atingi os meus objectivos: interessava-me levantar, mais uma vez, as causas e consequências da prostituição; recordar que ela não se pratica como no passado em bairros determinados, mas à luz do dia nas ruas, avenidas, parques e nos acessos às auto-estradas; lembrar que hoje abrange não só as mulheres, mas cada vez mais um maior número de raparigas.

Importa, por isso, dizer alto e bom som

Manuel Pedro Cardoso (Pastor da Igreja Evangélica Presbiteriana. Figueira da Foz)

O pior dos ódios

O ódio é sempre um mal. Mas o mais temível dos ódios é, muitos o afirmam, o ódio nascido entre pessoas tendo por causa convicções religiosas diferentes. É tão perigoso esse ódio que até o referem em latim, odium theologicum, como que a exorcizá-lo. Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 nos EUA são exemplos gritantes dos efeitos que um tal ódio pode produzir. Muitos rejeitam relacionar aqueles actos com religião, mas o que se tem dito e escrito depois desse dia torna bem claro o peso que o ódio aos chamados «inimigos de Deus» tem neste drama. Aqueles que, padres, pastores, e outros que vivemos no mundo das «religiões» e testemunhamos os efeitos em muitos espíritos de uma certa maneira de entender a religião, não teremos dificuldade em associar uma coisa com a outra. Os efeitos das nossas experiências podem ser apenas caluniazinhas de pequena monta, mas são prenúncios de golpes mais fortes que poderiam surgir. O próprio Bin Laden subentendeu esse ódio teológico no discurso difundido no dia do começo dos ataques ao Afeganistão, quando disse, referindo-se à tragédia anterior, a 11 de Setembro: "Eis a América atingida por Alá no seu ponto mais vulnerável, destruindo, graças a Deus, os seus edifícios mais prestigiosos. Eis a América dominada pelo terror, de norte a sul e de ocidente a oriente. Deus dirigiu os passos de um grupo de muçulmanos que destruíram a América e nós imploramos a Alá que eleve o seu estatuto e os admita no Paraíso". Sem a mínima piedade por mais de cinco mil civis assassinados, entre os quais crianças. Reconhecemos que os povos destas regiões têm fortes razões contra o Ocidente, e devemos todos repudiar a exploração de que têm sido vítimas, mas nesta hora impõe-se também denunciar esse ódio religioso assassino. O que não implica ver na religião de Bin Laden o Islamismo verdadeiro, que prega a compaixão, nem implica deixar de apontar o mal que os Estados Unidos e todo o Ocidente têm feito aos povos que hoje estão contra nós. De resto, se do lado ocidental não se fala em nome de outra religião, não deixa de haver aqui também um ódio irracional e dogmático, como se percebeu num determinado momento após o ataque terrorista, quando Bush disse que o que ia haver era uma "guerra do Bem contra o Mal". Como se o Mal não fosse a marca primeira desta nossa desastrosa civilização!

Quando a religião ou outro sistema de pensamento alcança numa pessoa o estágio do fanatismo, pode-se falar em psicopatologia, e tal pessoa torna-se potencialmente um perigo público. As sementes do ódio contra quem não comunga das suas ideias, se a oportunidade surgir, farão dele um malfeitor. A Inquisição católica era a expressão desse fanatismo. Por mais dolorosa que fosse a morte do herege, o «bom» inquisidor sabia que essa morte evitaria a perdição de outras almas, as daqueles que o medo mantivesse na «ortodoxia». O reformador protestante João Calvino não ficou imune da insensibilidade que o pretenso saber do Bem e do Mal provoca, quando não se opôs à execução de Miguel Servet, cujo pecado fora duvidar da doutrina da Trindade. E o papa Gregório XIII foi ainda mais longe: mandou rezar um Te Deum e cunhar uma moeda comemorativa pela chacina feita pelos católicos em França de entre cinco mil a dez mil protestantes, na noite de 23-24 de Agosto de 1572, a célebre noite de São Bartolomeu!

Com isto não se advoga a substituição da religião pelo ateísmo, porque há formas de ateísmo dogmático que acabam por ter carácter religioso e que causam tantos massacres como a mais obscurantista religião. Um ateísmo como o de Pol Pot, por exemplo, não foi nada menos assassino do que a religião de um Torquemada. Nem se propõe a substituição da religião pelo agnosticismo, porque o agnosticismo é a indiferença ou neutralidade, e nesta problemática central da vida a neutralidade é a morte: "Porque não és quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca", diz o livro de Apocalipse. O que pode substituir com vantagem o fanatismo é a fé, que não é um saber, mas a aceitação de uma proposta. É por isso que se pode falar da "utopia do Reino de Deus": porque não se trata de uma realidade segura de que eu possa falar como falo da província do Algarve, mas de um projecto a que me dou, um alvo para o qual caminho na esperança e não pelos olhos, como diz a Bíblia.

O Cristianismo tem de ser também um radicalismo, mas de outra natureza. É o radicalismo evangélico, o do amor que, como disse Paulo, "não faz mal ao próximo" (Romanos 13, 10). Um radicalismo como o de Francisco de Assis, ou como o de Luther King.

Muitos chamam ao Cristianismo uma "religião do Livro", fazendo da Bíblia uma espécie de código onde está revelada a Verdade doutrinária e moral para uso dos crentes. Mas se a Bíblia tem um papel importante na vida do cristão, o que ela é fundamentalmente é testemunho de Jesus Cristo. A Verdade que as Escrituras revelam é Jesus Cristo que a si mesmo se apresentou assim,: "Eu sou a Verdade" (João 14, 6). A Verdade é uma Pessoa, o outro /Outro. O que o Cristianismo é, essencialmente, é "uma religião do Espírito". É pelo Espírito de Cristo que o cristão se orienta.

Por isso é que Karl Barth dizia que a revelação de Deus em Jesus Cristo é a abolição (Aufehebung) da religião. Jesus não veio criar mais uma religião, que religiões já o mundo tinha com fartura: veio mostrar um novo caminho, uma forma nova de entender a relação com Deus, que é ao mesmo tempo relação com o outro.

Enquanto companheiro ou companheira de Cristo ninguém poderia chegar ao ódio teológico, porque exactamente logo que a pretensa relação com Deus se manifesta em ódio ao próximo já não se está no caminho aberto por Cristo. "Aquele que diz: «eu amo a Deus», e detesta seu irmão, esse tal é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus a quem não viu?" (1 João 4, 20).

Toda essa triste história das guerras religiosas, travadas dentro das Igrejas ou entre as Igrejas ou do Cristianismo contra outras religiões, nada têm a ver com Cristo. As Cruzadas são uma mancha na história do Cristianismo.. As guerras entre católicos e protestantes são uma vergonha. Deve-se lutar por aquilo que se crê ser o melhor para a comunidade, principalmente aquilo que beneficie os pobres, os mais vulneráveis, e crie condições para a fraternidade, mas lutar como seres superiores que somos, dando prioridade à palavra, à persuasão, à explicação das nossas razões.

Na Primeira Epístola de Pedro (3, 15), os cristãos são exortados assim: "Estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós". Não temos que partir em cruzada contra os infiéis: temos apenas de estar preparados para responder, verbalmente, com mansidão e temor a quem quiser ser informado. Não se exclui a missão, o que se exclui é a arrogância que leva ao desprezo das outras religiões, ou, pior, à tentativa de as abolir pela força.

Se há uma obra boa a fazer é trabalhar para pôr fim a todos os ódios, especialmente o pior deles, o ódio religioso. É por isso que se impõe o diálogo, o esforço por descobrir e realçar aquilo em que estamos de acordo e aquilo que podemos fazer juntos, ainda que com diversidade de pensamento.

Outras Cartas

"Cuidado com tantas certezas"

Braga. Pe. Alberto Azevedo: "O perigo mais grave, talvez, que temos de enfrentar é o dia-a-dia. É a rotina que esfria o coração. É o caffard, o mal das trincheiras. É a acedia, o mal dos mosteiros. É o spleen, o mal dos poetas. É a repetição que seca a inspiração". (Alceu Amoroso Lima).

Meu caro amigo pe. Mário

Um abraço e – cuidado com tantas certezas e supostas descobertas...

Estou a ler a tua última obra literária [Que fazer com esta Igreja?]. Acerca, quero dizer-te:

1. Com o poder que tens de tentar dizer o Indizível, mas acabas por não conseguires – que pena;

2. O teu comentário a João 2, 1-12 peca por azedume e – ignorância relativamente ao vers. 4. A frase, se existiu de início, é outra e sem quebra de falta de cortesia. Afinal, tantas linhas escreves para significar que João fala da teologia dos sinais. Mudar a água em vinho é igual a passar do velho para o novo. Jesus seria e é a Novidade. Missa, Eucaristia – a Festa da Vida;

3. Aconselho-te a leres – por exemplo, o 3º vol. do Comentário Bíblico, ediç. Loyola;

4. A pág. 341 do teu livro – "Ousemos avançar por esta via, com alegria e espírito de combate, e dispostos a recorrer apenas às armas da Ternura e da Verdade (sublinhado meu) – não segues o que exortas;

5. Quanto a Fátima: lamento decepcionar-te, dizendo que com milhões de crentes é «uma explosão do sobrenatural». Afirmá-lo, é apenas um acto de inteligência e bom senso. E felicito-te por ainda acreditares em pecado mortal – pág. 11 do teu livro aqui referido.

Outro abraço, ou abração do teu sempre amigo, Pe. Azevedo. P. S. Se quiseres, podes dar a conhecer estas linhas redigidas pelo coração ainda que magoado.

N. D.

Caro Companheiro, Pe. Alberto Azevedo: A tua carta surpreendeu-me. Pela negativa. Bem sei que não sou o Alceu Amoroso Lima, teu mestre. Mas podias ter encontrado no meu último livro, logo a começar pelo título - Que fazer com esta Igreja?, alguma coisa de jeito, que tivesse sido motivo de alegria para ti. Pelos vistos, em todas as suas 350 páginas, só há disparates (se calhar, exagero. Talvez tenhas encontrado alguma coisa de jeito. Mas, tão pouco, que não o mencionas). Coisas!... Creio que o teu amigo Alceu não seria tão radical, como tu. A julgar pela citação com que abre cada uma das duas folhas que me enviaste!... Não é verdade que "é a rotina que esfria o coração"? E o que são as missas que por aí se fazem/vendem todos os dias senão rotina? Infelizmente, são muito mais do que isso. São negócio. E escândalo!

Fátima – "explosão do sobrenatural"? Deixa-me rir! Essa é de cabo de esquadra! A ser assim, corre já a exigir que o fatimista João Paulo II, apoiado na sua infalibilidade (queres alguém com mais certezas do que este homem?) declare Fátima e a sua cruel senhora, como parte integrante do Credo!... Essa não, Pe. Alberto! Temo que, por este andar, ainda não tenhas passado do Paganismo para a Fé cristã. Como podes conciliar Jesus, o Libertador de todas as alienações, e a senhora de Fátima, a rainha-mãe de todas as alienações?

Com toda a ternura, deixo-te o meu abraço!

Costa Rica. Pablo Richard: Querido Mário: Sou um leitor entusiasta de Fraternizar, mas nunca vos escrevi a dar a minha opinião. Parece-me excelente ter passado de revista mensal a trimestral. Nunca tinha tempo para ler tudo. É bom mudar a quantidade pela qualidade. Aproveito para te dizer que a tua revista me agrada muito e me orienta muito. Aqui sofremos demasiado com o movimento conservador na nossa querida Igreja. Somos muitíssimos aqui, na América Latina, muitos bispos incluídos, que nos mantemos fiéis ao Vaticano II, Medellín, Puebla e Santo Domingo; mantemos também a nossa fidelidade à Teologia da Libertação. Mas temos que ser muito cautelosos, pois, embora já não haja uma perseguição como até há poucos anos atrás, o perigo agora é a marginalização. A nossa estratégia é desde há muito esta: "Evitar a confrontação e crescer lá onde está a nossa força". Ou como nos ensinam muitos indígenas: "Avançar sem fazer barulho". Por cá, concentramo-nos no trabalho de base, sobretudo na formação de leigos e leigas. Pessoalmente, dedico-me cem por cento à Leitura Popular da Bíblia, que tem muito êxito. Trata-se de colocar a Bíblia nas mãos, no coração e na mente do Povo, para que o Povo decida por si próprio, com autoridade, legitimidade, autonomia e segurança, qual é a vontade de Deus. Cada ano tenho mais de três mil alunos em cursos espalhados por toda a América Latina. Isto dará fruto a médio prazo. Porém, não podemos gritar contra os conservadores. Eliminam-nos! Por isso, estou contente por vós, na Europa, poderdes gritar, denunciar e fazer análise em voz alta. Isto anima-nos muito e por isso leio a revista Fraternizar com muita esperança. Sigam em frente. Aqui na América Latina têm um público silencioso, mas entusiasta, que vos acompanha. Um abraço fraterno, como esses abraços que Jesus dava.

E-mail. Fernanda Loureiro: Padre Mário, antes de tudo quero pedir-lhe desculpa de ainda não ter enviado o cheque para pagamento anual do jornal, pois tenho andado bastante ocupada. Brevemente enviarei um cheque para liquidar o ano em curso, bem como o do próximo ano.

Li na Nota da Direcção, que o reitor do "Santuário de Fátima" está muito preocupado em dar a conhecer aos assinantes do seu jornal, as Memórias da Irmã Lúcia. Fico à espera. Prometo prestar atenção ao conteúdo das mesmas. Com toda a certeza que será uma oportunidade para questioná-lo sobre Maria de Nazaré, a Mulher que tão bem soube acolher a Mensagem de seu filho Jesus de Nazaré.

Como pode a humanidade caminhar livremente, se a Igreja continua a viver uma vida separada do mundo?

Como podemos ter paz, se "os representantes de Jesus" vivem uma vida faustosa e nos querem conduzir para uma vida autenticamente materialista, ou seja vivermos uma vida de alienação, pois querem fomentar o medo, a infantilidade, o orgulho, etc.

Padre tenho uma grande admiração por si, pela sua força e frontalidade. As suas palavras tão cheias de fé, dão-me força, levam-me à presença de Maria e seu Filho. Um abraço fraterno.

Coimbra. José J. Lucas: Envio junto... para pagamento da minha assinatura do Fraternizar. Felicito-vos pela coerência de posições e pela persistência na denúncia de algumas das alienações que, infelizmente, continuam a comandar a vida de muita gente boa, as quais têm sido consciente e sistematicamente alimentadas por redutos e redes de gente bem instalada, cheia de cumplicidades com interesses e estratégias que pouco ou nada têm a ver com a gente humilde que trabalha e sofre. Um exemplo dessa denúncia é o comentário ao livro de A. Teixeira Fernandes (n.º 142).

É claro que as marcas de ruptura, visíveis em muitos escritos do Jornal, poderão levantar dúvidas, discordâncias ou até revoltas, inclusivamente entre os seus leitores mais fiéis. Creio que isso não é grave, se se mantiverem e alargarem as práticas de promoção de debate nas páginas do Jornal e se todos partirem do princípio de que para os novos problemas - ou para a maior visibilização dos antigos - será necessario encontrar novas soluções e, sobretudo, exercitar uma profunda coerência de pensamento e de vida, na sua procura.

Quero louvar ainda a abertura do Fraternizar a contributos muito valiosos provindos de gente empenhada em vários lugares deste mundo em que, sendo os contextos diferentes, as lutas contra as tiranias materiais e mentais e pela dignificação das pessoas são convergentes.

Um abraço e bom trabalho, apesar da «quebra» do porte pago.

Porto. Virgílio Mascarenhas: Há cerca de ano e meio foi-me enviado pela primeira vez o seu Fraternizar. Desorganizado como sou, fui adiando os meus agradecimentos e o pagamento dos números já enviados. Acompanhando um cheque de... correspondente a um ano de apoio, permita-me manifestar-lhe a minha inteira concordância com a linha seguida pelo seu Jornal e felicitar, especialmente pelo seu corajoso Editorial 1, do n.º 143, o irmão Mário, presbítero.

E-mail. Júlia: Padre Mário: Interessei-me por si a partir de um encontro com o Padre jesuíta González Faus que me falou do seu Jornal/Revista Fraternizar.

Acabo de descobrir a sua pág. Web. Dei-me conta que dinamiza o Projecto Comunidades Cristãs de Base. Uma alegria quando me dei conta de que também existiam afinal em Portugal... Gostaria de vir a conhecê-lo mais de perto. Continuo interessada em ler as suas páginas.

Sou uma portuguesa que pertenço à Igreja Bracarense, estou por uns meses a viver em Roma. Sou uma pessoa inquieta e sintonizo com o fundo de tudo quanto diz...

Parabéns pela sua coragem profética...

Espero vir a conhecê-lo pessoalmente. Com um abraço.

N.D.

Querida Júlia: González Faus faz o favor de ser meu amigo, o que me deixa quase sem palavras. Pelos vistos, foi ele o "anjo" que a conduziu até mim. Quando nos vamos encontrar cara a cara? De encontros vivemos e nos alimentamos, para provocar novos encontros. Até ao Encontro de todas as pessoas e de todos os Povos, numa única família universal, com tanta diversidade quantas as pessoas e os povos que a integrem.

Se tem visitado a minha página-net, já terá visto que acaba de sair mais um livro meu, QUE FAZER COM ESTA IGREJA?. Creio que é um livro ainda mais polémico do que FÁTIMA NUNCA MAIS e do que NEM ADÃO E EVA NEM PECADO ORIGINAL. Já o conhece? E que vai fazer com ele?

Quanto às Comunidades cristãs de base, já foi maior o volume de pessoas que vão por aí. Como os nossos bispos continuam a apostar exclusivamente no modelo paroquial de Igreja, a vida das pequenas comunidades cristãs de base tem mais dificuldade em afirmar-se. Mas não é o número que conta. Conta o sinal. E esse existe e anuncia que só haverá Igreja neste novo milénio, se ousarmos ir por aí e, sobretudo, se continuarmos a desbravar caminhos ainda não andados. O modelo paroquial de Igreja já não serve. Melhor, nunca serviu. Deu-nos a vivência duma Igreja de opressão, clerical, autocrática, desgraçada, fomentadora de ateísmo.

Estou ansioso pelo primeiro encontro. Até lá, continue a comunicar via e-mail. Um beijo.

E-mail. Paula Nina: Obrigado Pe. Mário de Oliveira pela sua tão pronta resposta , espero então que conte com mais uma leitora do Fraternizar e em relação á maneira como a Igreja o tem tratado continue o seu caminho, porque a Igreja sempre desconsiderou as pessoas que mais temia, aquelas que alguma vez ameaçaram o seu império, como Jesus Cristo, que tudo fizeram para o desacreditar e conseguiram. E acredito que se Jesus tornar a vir á Terra acontecerá precisamente a mesma coisa, continuamos sempre a ter exemplos todos os dias daquilo que a Igreja é capaz de fazer e dizer para não perder fiéis, por isso o importante é nós mantermos sempre as nossas convicções, defendermos aquilo em que acreditamos e tentar passar essa palavra ao maior número possivel de pessoas. Coragem. Um beijo.

E-mail. Paulo Brandão: Estimado Padre Mário: Muito obrigado pela sua resposta. Certamente serei um fiel e interessado leitor do Jornal Fraternizar.

Julgo que no jornal virá uma indicação para contribuir monetariamente, no entanto através da net existe o vosso endereço e certamente irei enviar a minha contribuição. Estou neste momento a ler o vosso livro Que fazer com esta igreja? É sempre um encanto e um desafio ler o vosso depoimento.

Por agora é tudo. Que Deus esteja convosco.


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