Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 147, de Outubro/Dezembro 2002

Destaque 1

Alexandrina de Balasar

Santa? De que Deus?

Antes que a chamada Congregação para as Causas dos Santos a declarasse "venerável", em 1996, já os muitos devotos, sobretudo, as muitas devotas, se lhe referiam como "a santinha de Balasar". Nas passadas décadas de quarenta e de cinquenta, ficaram tristemente famosas as "audiências" em grupo que a "doentinha" Alexandrina Maria da Costa concedia às pessoas que em "peregrinação" rumavam para Balasar, com a mesma cegueira e a mesma falta de Fé cristã com que então rumavam e ainda hoje continuam a rumar para Fátima, para Lourdes, ou para outro santuário de nomeada, onde está exposta ao culto público alguma das múltiplas imagens da grande Deusa virgem e mãe, provenientes dos míticos cultos politeístas do Paganismo, hoje, habilmente apresentadas pela Igreja católica sob a descarada mentira de que se trata de estátuas de Maria, a mãe de Jesus. Como se esta, alguma vez, pudesse prestar-se, simbolicamente que fosse, a semelhante mentira e aceitasse ser adorada/idolatrada por mulheres e homens seus irmãos e suas irmãs, ainda agora mergulhados em aflições de toda a ordem e completamente tolhidos por ancestrais medos, de que nunca se libertaram nem libertarão, enquanto, ingenuamente, persistirem na doentia e alienante busca de milagres e na desumana prática de promessas e de peregrinações, a pé ou de carro, aos santuários onde as imagens da mítica Deusa continuam a ser cultuadas.

Nunca o Jornal Fraternizar pensou em escrever sobre a "santinha de Balasar", apesar do culto de mau gosto, agora ao seu cadáver, prosseguir naquela paróquia da Arquidiocese de Braga. Mas um conhecido padre daquela Arquidiocese, amigo do Jornal, fez questão de nos enviar vários livros sobre ela, todos escritos por padres católicos, com o explícito desafio de que estudássemos o caso e escrevêssemos sobre ele. É o que aqui avançamos, agora, nesta edição, mas num tom teologicamente crítico que o padre em causa de certeza não esperaria.

Nem o facto de a Congregação para as causas dos santos já a ter declarado "venerável" nos convence. Muito pelo contrário. Os termos em que o faz mais nos convencem de que Alexandrina Maria da Costa foi mais uma – as duas crianças de Fátima já beatificadas, são outras duas mais – das muitas vítimas de um certo tipo de Catolicismo romano, misto de Paganismo e de Cristianismo, a tresandar de deísmo sacrificialista, muito do agrado da Cúria vaticana e da generalidade de frades e de freiras que são levados a auto-condenar-se a viver até à morte sob o castrador regime dos chamados votos de pobreza, de obediência e de castidade. Mas que, por mais que custe aos seus fervorosos cultores, é um tipo de Catolicismo nitidamente nos antípodas da via libertadora de Jesus de Nazaré, o Cristo.

Atentem, por exemplo, neste naco de prosa do "Decreto" vaticano que declara "venerável" Alexandrina de Balasar, como é hoje mais conhecida: "Consta, no caso presente e para o efeito de que se trata, que a Serva de Deus, Alexandrina Maria da Costa, Virgem secular, Membro da Associação dos Cooperadores S. D. B (= Salesianos), praticou em grau heróico as virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, tanto para com Deus como para com o próximo; bem como as virtudes cardeais, Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança e as que lhes são anexas."

Dirão as pessoas: Mas o que tem de negativo uma tal formulação? É aqui que é preciso muita sabedoria cristã! Porque viver este conjunto de virtudes, mesmo em grau heróico, também os pagãos o podem fazer (cf. Mt 5, 47; 6, 7-32-33). Nem se pense que ao menos as chamadas virtudes teologais são, por si mesmas, jesuánicas e cristãs. Também elas podem ser pagãs. Não é verdade que o Paganismo também tem os seus deuses, míticos e inventados, sem dúvida, mas deuses? Não é verdade que o Paganismo também cultiva as virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, ou seja, virtudes referidas em última instância aos seus deuses, geralmente, deuses-vampiros que se alimentam e embebedam de sangue de vítimas humanas, e quanto mais inocentes melhor? E não é um destes deuses-vampiros do Paganismo que está subjacente a todo o viver/sofrer de Alexandrina de Balasar? Não é um Deus assim que ela conheceu através da catequese dos eclesiásticos católicos que a rodearam e do próprio médico que a acompanhou nos últimos anos da sua vida, uma catequese sado-masoquista que, inclusivamente, chegou a moldar para quotidiano uso dela um Cristo/Sofredor, precisamente nos antípodas do verdadeiro Cristo/Libertador do sofrimento que é Jesus de Nazaré? Não é verdade que só um Deus assim, vampiro, pode sentir-se honrado com tanto sofrimento como aquele a que Alexandrina de Balasar se votou e que, reiterada e doentiamente, pedia que Ele lhe desse cada vez mais, até acabar por a destruir por completo? Não é verdade que só um Deus assim, nos antípodas do Deus que Jesus de Nazaré nos revelou, como a mais surpreendente e feliz Boa Notícia, pode aceitar uma Teologia que sistematicamente se lhe refere como um Deus que exige sangue, muito sangue, sofrimento, muito sofrimento, por parte de vítimas inocentes, para assim, finalmente, poder perdoar aos pecadores e acabar por barrar os caminhos que levam os pecadores ao inferno? Um Deus assim não é o mesmo que subjaz, também, à cruel mensagem atribuída à Senhora ou Deusa de Fátima? Nem admira! Porque, bem vistas as coisas, os pregadores da paróquia dos pastoritos e das paróquias em redor frequentaram a mesma escola teológica do deísmo que alimenta e faz correr o Paganismo/Catolicismo romano. Por isso, o resultado só podia ser idêntico, em Balasar e em Fátima.

De resto, ainda hoje há uma certa "guerra santa", mais ou menos desconhecida do grande público, entre Balasar e Fátima, que pretende saber qual das duas "santas" – Alexandrina, ou Irmã Lúcia – foi a que levou o papa Paio XII a fazer a chamada consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.

É claro que as devotas de Alexandrina, bem como os dois padres que sucessivamente lhe serviram de director espiritual, o jesuíta Mariano Pinho, primeiro, e depois o salesiano Humberto Pasquale, defendem que foi a "santinha de Balasar" quem protagonizou essa proeza.

Aliás, a própria Alexandrina escreveu (ou outros escreveram por ela, já que ela, infelizmente, nunca terá passado da primeira classe da escola primária e viveu toda a vida completamente à mercê de certos clérigos, aos quais, como a Irmã Lúcia de Fátima, sempre obedeceu cegamente!), em Setembro de 1936, uma carta ao seu primeiro director espiritual, o Pe. Mariano Pinho, para lhe dar a conhecer um daqueles múltiplos "recados", manifestamente pueris e disparatados, que ela, pelos jeitos, estava convencida que Jesus lhe ditava com frequência no quarto onde jazia dia e noite.

O recado diz expressamente (atentem, por favor, no caricato de tudo isto!): "Manda, filhinha, já dizer ao teu pai espiritual que espalhe já, que faça chegar aos confins do mundo que este flagelo [a revolução comunista em Espanha – anotou o próprio Pe. Pinho] é um castigo... Eu vou dizer-te como será feita a consagração do mundo à Mãe dos homens [as mulheres, pelos vistos, não contam para ela, apesar de serem elas as mais devotas em todos os santuários do mundo que lhe são consagrados!...] e minha Mãe Santíssima. Amo-A tanto! Será em Roma, pelo Santo Padre, consagrando a Ela o mundo inteiro e depois os Padres em todas as igrejas do mundo, sob o título de Rainha do Céu e da terra, Senhora da Vitória. Se o mundo corrompido se converter e arrepiar caminho, Ela reinará e a vitória por Ela será ganha. Vai, minha filha, não haja receios que os meus desejos sejam cumpridos".

Desconhecia Alexandrina e, pelos vistos, também o seu director espiritual, Pe. Pinho, que um recado destes nunca poderia vir directamente de Jesus, o Cristo. Só mesmo da imaginação delirante de Alexandrina! Os próprios títulos "Rainha do Céu e da Terra" e "Senhora da Vitória" não são títulos atribuíveis a Maria, mãe de Jesus. São outros tantos títulos históricos da mítica Deusa virgem e mãe, dos cultos politeístas do Paganismo, por sinal, já conhecidos e combatidos, como cultos idolátricos, por exemplo, pelo profeta Jeremias, sete/seis séculos antes de Maria de Nazaré ter nascido!

Por outro lado, quem, senão anticomunistas primários como eram todos os eclesiásticos católicos de então, poderia classificar de "flagelo" o comunismo e ver nele um "castigo" de Deus, sem entretanto dizer uma palavra sequer contra o capitalismo selvagem que, já então, flagelava o mundo e castigava a maioria da Humanidade à miséria imerecida mais hedionda?!

Mas o surpreendente é que o próprio Episcopado português, com o cardeal Cerejeira à frente, acabou também por embarcar neste delírio da "doentinha de Balasar" e do seu director espiritual. Durante o retiro que, em 1938, foi convidado a pregar aos Bispos de Portugal, em Fátima, o Pe. Mariano Pinho não perdeu a oportunidade de lhes falar de Alexandrina e dos "recados" que Jesus frequentemente lhe ditava. Com tanta convicção o fez, que eles, no final, dirigiram um pedido colectivo oficial ao Papa Pio XI, para obterem dele a consagração do mundo a Nossa Senhora!...

Pio XI morreu sem chegar a atender o pedido. De modo que seria o seu sucessor, Pio XII, a fazê-lo em 1942.

Em Maio desse mesmo ano, Alexandrina recebe outro "recado" de "Nosso Senhor". Diz textualmente: "Glória, glória, glória a Jesus! [mas que vaidoso e narcisista, este Jesus da Alexandrina nos saiu...] Honra, honra e glória a Maria! O coração do Papa, o coração de oiro está resolvido a consagrar o mundo ao Coração de Maria! Que grande dia e alegria para o mundo, pertencer mais que nunca à Mãe de Jesus! Todo o Mundo pertence ao Coração Divino de Jesus; vai pertencer todo ao Coração Imaculado de Maria!".

A tonta consagração ocorreu no dia 31 de Outubro desse mesmo ano. Mas, para que Alexandrina de Balasar pudesse saber do sucedido, em cima da hora, foi preciso que o próprio Pe. Mariano Pinho, presente fisicamente em Roma, nessa altura, lhe enviasse um telegrama. Desta vez, os recados de Jesus não funcionaram para a sua fiel e crucificada "esposa"!... (Mas que querem? Os deuses são assim, caprichosos e nunca sabemos de que humor estão para com aquelas/aqueles que os criaram e imaginaram!...)

Mas, afinal, quem foi Alexandrina de Balasar, até chegar a ser declarada "venerável" e, muito provavelmente, proclamada "beata" e, finalmente, "santa", se, entretanto, a fábrica de fazer beatos e santos que o actual Papa João Paulo II abriu no Estado do Vaticano não fechar, logo após o termo do seu pontificado?

(Oxalá feche, porque o que este Papa tem feito, neste campo, é um dos maiores atentados contra a Teologia cristã e contra a Humanidade não católica romana; destrói por dentro a Fé cristã; expõe o Cristianismo ao ridículo; promove o ateísmo, dado que ninguém de bom senso pode aceitar um Deus como o do Vaticano que opera milagres à lista, só para satisfazer os caprichos dos cardeais da Congregação para as causas dos santos da Cúria romana. Na verdade, são estes purpurados católicos que, para alguém poder vir a ser proclamado beato ou santo pelo Papa, exigem que Deus, antes, faça pelo menos um milagre de arromba!...).

Mas querem mesmo saber mais sobre Alexandrina de Balasar? Então leiam o trabalho que se segue e ficarão ainda mais esclarecidos. Ao mesmo tempo, ficarão a ver por onde tem andado a nossa Igreja católica romana e os seus responsáveis maiores! É mesmo uma dor de alma!... O pior é que ainda não há sinais claros de se querer arrepiar caminho e regressar de novo ao Evangelho, a Jesus Cristo e ao Espírito Santo. E à sã e libertadora Teologia cristã.


Quem é a "santinha" de Balasar?

Vejam o que fizeram dela!

Alexandrina Maria da Costa nasceu no dia 30 de Março de 1904 e morreu no dia 13 de Outubro de 1955. É filha de mãe solteira, tal como a sua irmã mais velha, Deolinda (que certamente nunca chegará a ser declarada "venerável", nem "beata", apesar de ter sido, ao que dizem os clérigos biógrafos da "santinha", um monumento de dedicação à irmã, durante os anos em que ela esteve acamada até à morte).

Este pormenor da vida da mãe terá marcado decisivamente, e de forma negativa, a consciência de Alexandrina, que nunca mais desistiu de ser "santa", certamente até para fazer esquecer o "pecado" da progenitora. Mal sabia ela que esta ideia de pecado, atribuída a uma mulher na condição da sua mãe, é uma ideia retintamente moralista católica, farisaica, que há-de ser moralmente combatida, porque ela, sim, e não o facto em si, é que constitui um verdadeiro pecado!

Mas até os biógrafos de Alexandrina, moralistas quanto baste, tentam, pudicamente, encobrir o facto e um deles, o Pe. Gabriele Amorth, chega a referir-se a Alexandrina como "órfã de pai", só porque este, de nome António Gonçalves Xavier, embora prometesse casamento à mãe dela, acabou por casar com outra. Aliás, a mãe de Alexandrina, Maria Ana da Costa, ao ver-se finalmente trocada por outra mulher e com duas filhinhas dele nos braços, vestiu-se de luto pesado e assumiu-se como viúva até ao fim dos seus dias!...

Num ambiente moralista destes, ao nível familiar, o que era de esperar que viessem a ser as duas filhas que nasceram sem pai assumido? Para cúmulo, este ambiente não era só familiar. Também a paróquia de Balasar e a sociedade em geral eram assim. Tanto que Alexandrina, aos 9 anos de idade, já teve que fazer uma confissão geral!... (É mesmo de bradar aos céus!)

Não é, pois, de estranhar que, quando aos 14 anos, juntamente com a irmã, de 17 anos, e uma outra companheira, se sentiu ameaçada na sua "pureza" adolescente, por três homens que se aproximaram da casa onde as três estavam a costurar, Alexandrina se mostrasse a mais encarniçada – chegou a chamar-lhes "cães"! – e, no paroxismo da histeria causada pelo medo, saltou mesmo da janela da casa, para que nenhum deles lhe fizesse mal! Ficou a queixar-se, na altura, mas, algum tempo depois, voltou a fazer a sua vida do dia a dia. Até que, quatro anos mais tarde, voltou a sentir-se muito mal e foi observada por um conceituado médico do Porto, o dr. Abel Pacheco, que concluiu que Alexandrina nunca mais teria cura. E em 1925, sete anos depois da queda, cai de cama e assim fica até à morte.

"Nevrose", foi o mal que o Dr. Abel Pacheco diagnosticou em Alexandrina. O diagnóstico viria a surpreender tudo e todos. E quem, na Arquidiocese de Braga, pretendia fazer de Alexandrina uma santa viu o seu sonho escapar-se-lhe como água por entre os dedos. Com uma nevrose, até os fenómenos mais pretensamente místicos, e sobretudo esses, em que Alexandrina, a fazer fé nos seus directores espirituais, veio, mais tarde, a bater todos os recordes em Portugal, nunca poderiam ser tomados a sério. E, por isso, essas mesmas pessoas só descansaram, quando, cerca de vinte anos depois, em 1941 – já a doentinha de Balasar gozava de fama de santidade, junto das muitas devotas que lá se deslocavam, com regularidade – encontraram um outro médico, o dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, com tanto de competente como de católico e de amigo da Igreja bracarense, que diagnosticou, em lugar da nevrose, outro tipo de doença, perfeitamente compatível com a candidatura de Alexandrina a santa. Qual? "Mielite medular comprimida".

Certamente, em compensação deste favor, "Nosso Senhor – escreve o biógrafo Pe. Gabriele Amorth – chamava-lhe [ao médico em causa] «o seu Cireneu» porque de facto ajudou a Alexandrina a levar a cruz, mesmo quando lhe foram retirados todos os outros auxílios humanos."

A partir de então, tornou-se o médico pessoal de Alexandrina e acompanhou-a até à morte, sempre em grande entendimento de pontos de vista com os dois padres que foram os seus directores espirituais, sobretudo com o último, precisamente, o que mais se bateu pela canonização da sua dirigida. E até fez questão de depor no processo diocesano informativo para a sua beatificação. Os termos em que o fez não podem ser mais abonatórios e como a sugerir uma espécie de "mártir da pureza", em tudo idêntica à famosa adolescente italiana Maria Goretti, depressa canonizada: "A causa principal da mielite tinha sido o salto da janela".

Entretanto, depois que acamou, Alexandrina não quis logo ser santa, custasse o que custasse. "Fez uma série de promessas para obter a cura; a mãe, a irmã e as primas também as fizeram". Inclusive, quis integrar, em 1928, uma peregrinação que a Arquidiocese organizou a Fátima, na qual a paróquia de Balasar se incorporou. "Ela queria participar com a esperança de se curar. Mas tanto o médico como o pároco a proibiram de o fazer, devido ao seu estado de saúde".

"Em contrapartida – continua a escrever o biógrafo Pe. Gabriele Amorth – prometeram-lhe que todos os peregrinos de Balasar rezariam por ela e a acompanhariam depois a Fátima, para agradecer, se ficasse curada. Procuraram fazê-la participar espiritualmente na peregrinação. Deram-lhe o «Manual do Peregrino», uma medalhinha de Fátima, um Terço; prescreveram-lhe as orações que devia rezar todos os dias e deram-lhe a água de Fátima para beber todas as manhãs [estão a ver o tipo de Catolicismo/Paganismo que as paróquias católicas promoviam e alimentavam?!]; Alexandrina seguiu os conselhos com todo o rigor, com toda a sua fé. Pensava mesmo que obteria a graça e já tinha decidido: «Tão depressa fique curada, far-me-ei Irmã Missionária».

Só que não se curou. O desejado milagre não aconteceu (mas agora para a poder beatificar, a Igreja exige que haja um milagre, conseguido por intercessão dela! Ou seja, ela que, em vida nem para ela conseguiu um milagre, tem, agora, se quiser passar de "venerável" a "beata", de conseguir de Deus um irrefutável milagre a favor de alguma outra doente, vítima de mais ou menos histerismo!...). Confirmava-se, assim, o veredicto do médico que havia anunciado que Alexandrina sofria duma doença incurável!

É então que ela, sem mais nenhuma esperança de cura, toma uma decisão irrevogável: seria uma doente acamada que havia de atrair a si o máximo sofrimento possível, para, através dele, barrar as portas do inferno aos pecadores e assim impedir que Deus os pudesse condenar àquele tormento, como ela imaginava que Ele fazia aos que ela considerava pecadores e nos quais, é claro, nem ela nem os seus directores espirituais se incluíam (ou seja, nesta visão das coisas, Alexandrina consegue ser ainda um pouco melhor e mais misericordiosa para com os pecadores do que Deus!...). O mais surpreendente é que nem assim ela foge desse seu Deus/demónio. Pelo contrário, entrega-se-lhe por inteiro até se auto-imolar/destruir sob as formas mais perversas, pelo menos, a fazer fé nos seus clérigos biógrafos.

Deolinda, que também havia fugido dos três homens que as assediaram sem resultado, mas que, ao contrário de Alexandrina, não precisou de se lançar da janela, por não ter tido na altura nenhum ataque de histerismo, acatou a decisão da sua irmã mais nova e tornou-se para ela – no dizer do Pe. Gabriele Amorth – "a enfermeira, a assistente, a secretária [senhoras/senhores, Deolinda tinha apenas a terceira classe do ensino primário e sem quaisquer hábitos de escrita e de leitura!...], a confidente, enquanto a mãe trabalhava fora de casa para ganhar o pão de cada dia. Assisti-la-á até à morte e será ela a transcrever tudo [ficava tudo em família!] o que a Alexandrina dizia nos êxtases [o biógrafo não tem dúvidas, eram êxtases, como consta de certas biografias de muitos outros santos e santas oficiais, protagonistas de outras tantas manifestações estranhas e anormais!], ou quanto ditava ao longo do dia, segundo as disposições dos seus directores espirituais [estão a ver aqui as mãozinhas deles, dos clérigos do Deus vampiro do Catolicismo/Paganismo, com fome e sede de sangue humano inocente, a preparar as coisas para poderem contar com uma "santa" no seu curriculum?!].

"Hoje – chegou a dizer Alexandrina, quando concluiu que não haveria nunca mais qualquer milagre que a curasse – não trocaria o sofrimento por tudo quanto há no mundo". E, como antes havia pedido ao seu Deus e à sua Deusa o milagre da cura, agora passa a pedir ao seu Deus e à sua Deusa, a quem ela chama "Mãezinha", o sofrimento! E o sofrimento não se fez rogado.

"Para além dos sofrimentos físicos e espirituais – escreve com convicção o mesmo biógrafo – a Alexandrina tornou-se o alvo de Satanás, que tentava impedir a obra de Deus naquela alma. Houve assaltos violentos também externos, tendo-se chegado a autêntica possessão diabólica"!

E o clérigo biógrafo apressa-se com uma explicação, a propósito do disparate teológico que acaba de afirmar, uma explicação que só ele e outros como ele são capazes de dar, em nome de um certo Deus vampiro: "É uma prova que Deus permitiu também a vários santos e que não nos deve espantar". Assim mesmo! Biógrafo disse, está dito. E que tipo de ataques violentos eram esses?

"O «cochino», como a Alexandrina chamava ao demónio, encarniçou-se particularmente contra a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria. Deitava-a da cama abaixo, tanto de dia como de noite, perante o espanto de quem a assistia. No início, ninguém se dava conta da realidade da situação, mas notavam-se no corpo da enferma marcas e mordeduras". E mais adiante: "Uma noite o demónio pôs-se a atirar a infeliz contra todos os cantos do quarto, sem que a irmã conseguisse segurá-la e interromper aquele suplício".

As coisas não se ficam por aqui. "Os assaltos do maligno tornaram-se cada vez mais fortes e mais regulares: duas vezes ao dia, durante uma hora de cada vez. Naqueles momentos, a Alexandrina não tolerava que lhe falassem de Nosso Senhor ou de Nossa Senhora, cuspia sobre as imagens sagradas, insultava o seu director espiritual com uma raiva capaz de o matar. Invectivava-o com blasfémias, palavras obscenas, frases das quais nem sequer conhecia o significado. O padre Mariano presenciou alguns destes assaltos. Por vezes, a Alexandrina tentava morder-se, despedaçar-se contra os ferros da cama com uma tal violência que nem quatro pessoas conseguiam segurá-la. E, no entanto, estava exausta de forças e pesava apenas 33 quilos. Certo dia, o P. Pinho ordenou-lhe em latim (língua que a Alexandrina evidentemente desconhecia): «Em nome de Jesus, diz-me quem és». A resposta foi imediata: «Sou Satanás e odeio-te». Nesses momentos era evidente a verdadeira possessão diabólica e foi necessário recorrer aos exorcismos. Somente estes lhe davam alívio, se bem que lhe fossem administrados sem que ela de tal se apercebesse. A Deolinda foi instruída sobre o modo de usar a água benta e várias vezes bloqueou, deste modo, os assaltos do maligno" [!!!].

O médico especialista do Porto bem tinha diagnosticado uma nevrose incurável. Mas os clérigos que acompanhavam Alexandrina de perto queriam a todo o custo que ela fosse uma santa. E para o conseguirem, nem se importam de a acusar de possessa do diabo, em vez de reconhecerem em todos estes estranhos fenómenos outras tantas manifestações da doença!

Vão mais longe os directores espirituais. Depois da "possessão diabólica" de que a acusam, deram uma volta de 180 graus e virão dizer, mais tarde, que Alexandrina sofrerá, durante longos 17 anos, "a Paixão de Cristo, a dor dos estigmas, a tremenda aridez espiritual". Isto, com base numas palavras que, segundo o Pe. Mariano Pinho, ela teria escutado directamente do Senhor (qual? Jesus ressuscitado não será, de certeza!).

Ei-las tal e qual: "Dá-me as tuas mãos, que as quero cravar comigo; dá-me os teus pés, que os quero cravar comigo; dá-me a tua cabeça, que a quero coroar de espinhos, como me fizeram a Mim; dá-me o teu coração, que o quero trespassar com a lança, como Me trespassaram a Mim; consagra-me todo o teu corpo, oferece-te toda a Mim, que te quero possuir por completo".

O "espectáculo" da "Paixão de Cristo", agora, protagonizado por Alexandrina no seu quarto, podia ser presenciado por clérigos e outros curiosos mais próximos da família. Até fotografado. Nenhum deles, porém, foi capaz de perceber que Alexandrina queria tanto sofrer, que a sua mente doente produzia todo aquele sofrimento. E como a sua consciência estava (de)formada pela catequese do Catolicismo/Paganismo, que, estupidamente, exalta o sofrimento de vítimas humanas inocentes, inclusive, exalta, como salvador e redentor, o sofrimento intolerável que veio a ser a Paixão de Jesus, ao qual até atribui a redenção da Humanidade, é então natural que o sofrimento maior que ela podia produzir era precisamente o que ela imaginava que teria sido o sofrimento de Jesus, nas horas da sua Paixão. E é esse que ela faz questão de sofrer. Masoquisticamente!

"Os sofrimentos – escreve o biógrafo – tinham início na Quinta-Feira, aumentavam durante a noite e manhã seguintes e culminavam durante três horas, desde as 12 até às 15 horas. Trevas, noite assustadora, uma tristeza infinita, um medo de causar calafrios, até reviver os vários tormentos que acompanharam a paixão e morte de Jesus". Tudo sucede conforme a perturbada mente de Alexandrina produz. Até consegue andar a pé pelo quarto, quando depois, acabados estes momentos, volta a ficar totalmente imobilizada no seu leito!

Para os directores espirituais e para os clérigos biógrafos, trata-se duma "graça". Na sua cegueira deísta, são incapazes de ver que se trata dum produto da mente perturbada de Alexandrina. Por isso, uma verdadeira desgraça. Mas uma desgraça que ela própria deseja, porque foi levada a pensar que é uma graça, e que por isso a deseja, pois pensa que, desse modo, se assemelha àquele Jesus sofredor que a catequese deísta católica-pagã lhe apresentou, desde a infância.

O azar de Alexandrina – e de tantas outras pessoas que frequentam ambientes religiosos – foi ter tido uma catequese sacrificialista católica/pagã, em lugar duma catequese exaltadora da vida, como é, felizmente, o Evangelho de Jesus Cristo, o Ressuscitado; foi ter tido uma catequese que exalta, como valor redentor, o sofrimento humano e quanto mais cruel melhor, em lugar de exaltar, como valor redentor/libertador, a luta encarniçada contra o sofrimento, uma luta que, como aconteceu com Jesus, chega a ser capaz de passar até pelo sofrimento (Páscoa), não porque o valorize, mas porque só assim o pode destruir por dentro e duma vez por todas!

Tivesse sido outra a catequese que Alexandrina recebeu, bem na linha do Deus Vivo e Criador de vida e de Jesus de Nazaré, o Libertador por antonomásia, e outra teria sido também a sua vida. Provavelmente, nem sequer teria saltado da janela, naquele dia, para "defender" a sua pureza, uma vez que teria percebido que a vida de qualidade vale mais do que a "pureza", concebida como um ídolo. Em lugar de se atirar pela janela, teria sido capaz de enfrentar, com as outras duas, os três homens e encontrado maneira de os dissuadir dos desonestos propósitos que os moviam.

O drama é que os próprios clérigos que a rodearam, em lugar de a ajudarem a controlar a nevrose, desenvolveram-na ainda mais, com as catequeses moralistas e farisaicas que lhe meteram na cabeça. E, depois, quando a doença se desenvolveu e deu inequívocos sinais de a empurrar para a autodestruição, sob a forma sacrificial católica/pagã de auto-imolação pelos pecadores, em lugar de a ajudarem a dominar esse "demónio", alimentaram-lho, com alusões ao sofrimento de Jesus e à sua Paixão, como se o sofrimento em si fosse um valor redentor, e não um mal, aliás, o mal por antonomásia!

Pobre Alexandrina de Balasar! Acabou por ter a mesma sorte das duas crianças – Jacinta e Francisco – que os clérigos de Ourém criminosamente envolveram com as inventadas aparições da senhora de Fátima. Mas muito para pior. Porque no caso dela, o atroz sofrimento prolongou-se por muitos mais anos! Do que é capaz o Poder religioso/clerical!

É este mesmo Poder que continua aí impunemente a fazer das suas. As multidões continuam a correr para Balasar, como correm para Fátima e outros santuários, onde deixam "couro e cabelo" e a dignidade. Infelizmente, há sempre clero católico, do mais graúdo em hierarquia, que aparece para as abençoar. Fazem-no abusivamente, em nome de Jesus, esquecidos de que o Jesus histórico, ao contrário deles, chegou a pegar em cordas e fez um chicote para, com ele, expulsar do templo de Jerusalém quantos lá vendiam e compravam. Não só quantos vendiam (os sacerdotes e seus ajudantes), mas também quantos compravam (o povo humilde que se deixava "comer" pelos sacerdotes e suas mentiras).

Só mesmo pessoas ainda não ilustradas e ainda não evangelizadas podem continuar a frequentar locais como Balasar, Fátima e outros semelhantes. São as catequeses deístas e sacrificialistas do Catolicismo/Paganismo romano que a isso as levam.

Mas, ao verem na Alexandrina de Balasar e nos pastoritos de Fátima o mal que essas catequeses fazem em quem ainda vai por elas, ganhem coragem e fujam desses ambientes. Acreditem: se o fizerem, dão uma grande a alegria a Deus. Ao Deus vivo e criador que tudo faz para que vivamos em abundância e em plenitude!


Destaque 2

Mulheres e homens ao jeito de Jesus

Antes das férias, o pe. Mário foi convidado a animar um debate, em Lisboa, a propósito dos seus mais recentes livros: Que fazer com esta Igreja? e Em memória delas – Livro de Mulheres. O texto que começou por proferrir é uma reflexão saudavelmente provocadora. Aqui a oferecemos como Destaque 2. Em lugar de se escandalizarem com ela, deixem-se "fazer" por ela. E partilhem-na com outras e outros. Com alegria! Eis.

Apetece-me trazer para esta nossa conversa duas estórias entrelaçadas uma na outra, contadas pelos três Evangelhos Sinópticos (cf. Mc 5, 21-43; Mt 9, 18-26; Lc 8, 41-56). Ambas falam de mulheres. Ambas podem e devem desencadear neste nosso tempo um processo revolucionário de libertação das mulheres e dos homens.

Mas antes é preciso libertar as duas estórias das homilias bafientas, milagreiras e moralistas dos padres católicos e dos pastores das novas Igrejas que hoje nos colonizam religiosamente e não só, e nos oprimem, tudo com uma desfaçatez incrível, e sem que ninguém lhes vá à mão, nem a polícia, nem os intelectuais – ateus e crentes – da nossa praça, nem os cidadãos, mulheres e homens, com dois dedos de testa e um pingo de dignidade! Só porque tudo é feito a coberto da chamada liberdade religiosa. Resultado: é um fartar vilanagem!...

Neste particular, ainda somos muito pré-modernos. Ainda não aprendemos nada nem com os grandes profetas bíblicos, nem com K. Marx, Lenine e Freud, nem com Jesus de Nazaré. Para todos estes, a religião é o ópio do povo, a perversão das perversões, a mentira. Ou os deuses que as populações adoram e idolatram, não fossem pura invenção sua! Pelo que não há nada de Deus dentro dos santuários. Todos eles – uns mais, outros menos – são casas de opressão e de exploração. "Covil de ladrões", chamou-lhes Jeremias, primeiro, e Jesus, depois. Casas onde tudo é mentira e roubo, locais doentios e alimentadores de doença.

Escandalizo-vos? Mas será que não temos olhos de ver e ouvidos de ouvir? Será que não vemos que, agora, até as novas religiões que por aí se vendem são uma espécie de senhora de Fátima protestante, uma senhora de Fátima reciclada, onde a imagem é substituída pelo mítico demónio que, no mentiroso dizer dos pastores, possui as pessoas e que é preciso expulsar, e também pela Bíblia que eles, de olho na carteira e na conta bancária dos clientes que têm o azar de lá entrar e de aderir àquilo, habilmente manipulam?

Liberdade religiosa? Ou liberdade de enganar as populações em aflição, em desespero de causa? Mas então para quando um movimento cívico no país, na Europa e no mundo, contra esta indignidade, cometida a coberto da liberdade religiosa?

Às vezes, até me custa recorrer ao Evangelho e à Bíblia em geral, tal é o mau uso que dele e dela têm feito eclesiásticos católicos e pastores protestantes, com destaque para os pastores das novas Igrejas e suas interpretações milagreiras, moralistas, castradoras e terroristas, que perfazem verdadeiros crimes de lesa-Verdade.

As próprias pessoas que já se afastaram de toda e qualquer Igreja chegam a ter a impressão de que do Evangelho, da Bíblia e de Deus, não vem nada de bom. Ora, nada mais falso. Basta ver, por exemplo, como as duas estórias que me apeteceu trazer para esta nossa conversa descrevem/retratam a sociedade do tempo e país de Jesus. E também a sociedade do nosso tempo e país.

Ambas as estórias têm como protagonistas duas mulheres: uma menina de doze anos que está a morrer e morre, e uma mulher já madura que há doze anos sofre duma doença que a torna legalmente impura e por isso a condena à marginalização total. A menina é filha de um conhecido chefe de sinagoga. A mulher sofre de fluxos de sangue (menstrual), não está a morrer, mas devido ao seu estado de impureza legal, tem de viver longe de tudo e de todos, é uma espécie de fantasma, de mulher não existente.

De comum entre ambas, para além da cifra "doze anos", há o mesmo homem, Jesus de Nazaré, de quem todo o Evangelho testemunha como o paradigma de ser humano, com quem todos os seres humanos que se prezem se hão-de parecer. Nasce de mulher, como todos os outros seres humanos, mas não se parece com homem nenhum dos que por aí costumamos ver como paradigmas, em lugares de destaque, de privilégio, bem visíveis uns, invisíveis outros, dos quais parece que dependem os destinos do mundo e dos povos. É por isso que se diz que ele é filho de Deus, mas de um Deus muito estranho que está no mundo mas não é do mundo, isto é, não é norte-americano nem israelita nem europeu, apenas é o Deus das vítimas, sejam elas de que nação/continente/língua forem; um Deus que nunca ninguém viu, ninguém conhece bastante, ninguém consegue manipular, nem mesmo os chefes das religiões e das Igrejas.

Será até por ele não se parecer nada com nenhum dos chefes e dos grandes que mandam no mundo, pelo contrário, ter tudo a ver com um Deus que nunca ninguém viu nem consegue manipular, e a quem ele chama Abbá (Paizinho), que Jesus acabou como acabou: morto na cruz como um maldito, com o aval e a cumplicidade de todos os grandes da sua época, a começar pelos chefes da religião oficial do seu país, tida então como a única verdadeira.

Este facto histórico constituiu-se entretanto no acontecimento maior que é também a revelação maior que alguma vez ocorreu na História da Humanidade, pois serviu para tirar duma vez por todas o véu à História e mostrou aos olhos de toda a gente como os grandes do mundo o são também em mentira, em crimes, pois todos eles existem só para matar, roubar e destruir.

Eis, pois, as duas estórias (versão de Mc) que trouxe para esta nossa conversa. Para melhor as entendermos, metamo-nos na pele da menina de doze anos que está a morrer e na da mulher com fluxos de sangue que há doze anos anda pelos médicos (= pelos pastores / pelas Igrejas / pelos santuários / por Fátima), a gastar fortunas – tudo o que tem(os) – e sem quaisquer resultados.

Jesus estava à beira-mar. Veio então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Vendo Jesus, caiu-lhe aos pés e suplicou insistentemente: Minha filhinha está a morrer. Vem, impõe as mãos sobre ela para que fique curada e viva. Jesus foi com ele. Uma grande multidão o acompanhava e o apertava de todos os lados.

Estava aí uma mulher que havia doze anos sofria de hemorragias e tinha padecido muito nas mãos de muitos médicos; tinha gasto tudo o que possuía e em vez de melhorar, piorava cada vez mais. Tendo ouvido falar de Jesus, aproximou-se na multidão por detrás e tocou na sua roupa. Ela dizia: Se eu conseguir tocar a roupa dele, ficarei curada. Imediatamente a hemorragia estancou e a mulher sentiu dentro de si que estava curada da doença. Jesus logo percebeu que uma força tinha saído dele e, voltando-se para a multidão, perguntou: Quem tocou na minha roupa? Os discípulos disseram: Olha a multidão que te aperta e ainda perguntas: Quem me tocou? Ele olhava ao redor para ver quem o havia tocado. A mulher, tremendo de medo ao saber o que lhe havia acontecido, veio, caiu-lhe aos pés e contou toda a verdade. Jesus então disse à mulher: Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença.

Enquanto ainda estava a falar, chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga, dizendo: Tua filha morreu. Por que ainda incomodas o mestre? Jesus ouviu a notícia e disse ao chefe da sinagoga: Não tenhas medo, somente crê. E não permitiu que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e seu irmão João. Quando chegaram à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu a agitação, pois choravam e lamuriavam-se muito. Entrando na casa, ele perguntou: Por quê esta agitação e por que chorais? A menina não morreu, dorme. E começaram a zombar dele. Afastando a multidão, levou consigo o pai e a mãe da menina e os discípulos que o acompanhavam. Entrou no lugar onde estava a menina. Pegou a menina pela mão e disse-lhe: Talitá cum! (que quer dizer: Menina, eu te digo, levanta-te). A menina logo se levantou e começou a andar – já tinha doze anos de idade. Ficaram extasiados de tanta admiração. Jesus recomendou com insistência que ninguém soubesse do caso e falou que dessem de comer à menina.

Nestas duas estórias (não são dois milagres, como sempre nos têm mentirosamente ensinado), Marcos retrata a sociedade do seu tempo e país. É uma sociedade totalmente dominada pela sinagoga e pela sua ideologia moralista que atrofia as pessoas que nela nascem e crescem. É uma sociedade dominada pela Lei de Moisés e pelo Deus de Moisés interpretados, uma e outro, pelos fariseus que declaram impura toda a mulher, pelo facto de ciclicamente perder sangue menstrual, ou por ocasião dos partos. É uma sociedade que, tal como a filha de Jairo, está a morrer e morre mesmo, precisamente, quando deveria começar a viver autonomamente (aos doze anos, as meninas podiam ficar noivas e tornar-se independentes dos pais). A doutrina oficial (de Deus) com que eram alimentadas as pessoas daquela sociedade, adoecia-as e matava-as, em vez de as fazer viver. Infelicidade nascer mulher ou homem numa sociedade assim, ou numa sociedade como a nossa, hoje, ainda tão dominada pelas religiões e seus chefes, por uma certa ideia de Deus e por catequeses terroristas que infantilizam e discriminam, adoecem e fazem morrer as pessoas. No tempo de Jesus, por influência da sinagoga e do Templo de Jerusalém. No nosso tempo, por influência da Igreja católica e outras que, em lugar de serem discípulas de Jesus, têm sido continuadoras da sinagoga, e em lugar do Evangelho da libertação que é Jesus, prosseguem com a Lei de Moisés, agora travestida de Código de Direito Canónico e de perversos Moralismos.

Mas as duas estórias apresentam também Jesus a intervir. Jesus não é chefe da sinagoga. Nem sacerdote. Nem pertence à Ordem estabelecida. Jesus é o Homem! É o ser humano integral, definitivo, tal como Deus Pai/Mãe o gerou: livre, indomável, insubmisso, dissidente, criador, libertador, ressuscitador, irmão universal. E que acontece, quando o ser humano assim está presente na sociedade e intervém?

Só pode acontecer a libertação radical. Portanto, a subversão da Ordem estabelecida. E porquê? Porque Jesus atreve-se a não ter respeito por uma Ordem nacional e mundial que não tem respeito pelas pessoas e por isso as oprime, explora, marginaliza, discrimina, excomunga, condena à não-existência e mata. Atreve-se a não ter respeito pelos chefes dessa mesma Ordem, por mais poderosos e divinos que eles se julguem e se façam passar aos olhos dos demais. Tão pouco tem respeito por um certo tipo de Deus que sanciona e canoniza essa mesma Ordem nacional e mundial. E faz ainda mais Jesus: desperta as pessoas que vivem subjugadas, para que elas percam de vez o medo e ousem ser/viver como ele, ou seja, percam também o respeito por uma Ordem nacional e mundial que as não respeita a elas, bem como pelos seus líderes e até pelo seu Deus, e ousem organizar a sociedade e o mundo em moldes totalmente outros, nos quais a vida em abundância e de qualidade seja tudo em todos.

Pois bem, numa sociedade como a nossa que tem vivido sob o jugo das Igrejas, de uma certa concepção de Deus, das toscas imagens de santos e de santas, da senhora de Fátima e de outras múltiplas senhoras, todas cegas surdas e mudas, do moralismo milagreiro, das perversas religiões, dos pastores, dos párocos, dos hierarcas católicos, do papa, da cúria romana, e também dos políticos que nos enganam, mentem, querem pensar e decidir por nós, como se fôssemos crianças, como havemos de ser/viver?

Atrevam-se a ser mulheres/homens ao jeito de Jesus. Não sejam lesmas! Não sejam infantis. Não sejam resignados. Não sejam meros funcionários. Súbditos. Ingénuos. Cegos. Coxos. Surdos. Mudos. Mortos. Sejam mulheres e homens ao jeito de Jesus. Como ele, percam o respeito por uma Ordem nacional e mundial que não nos respeita a nós. Percam o respeito por dirigentes, por Igrejas, por religiões, por párocos, por pastores que não nos respeitam, que nos enganam, nos mentem, nos exploram com dízimos e outros processos mafiosos e depois, para cúmulo, ainda pretendem decidir sobre o nosso futuro. Não digo que os ataquem! Digo que não os respeitem, tal como Jesus não os respeitou. Ou seja: Não acatem as suas leis, as suas normas, o seu moralismo, as suas doutrinas sem verdade, as suas políticas sem justiça, as suas decisões discriminatórias. Fujam dos seus espaços de influência. Deixem desertas as suas casas e às moscas os seus templos. Enquanto eles forem o que têm sido, homens sem misericórdia, mais prontos a condenar que a acolher, mais prontos a oprimir que a libertar, mais prontos a submeter que a promover protagonismos, fujam deles. E defendam os vossos filhos e netos da falsa doutrina que eles ensinam, das suas catequeses feitas de mentira, dos seus ritos religiosos sem sentido, dos seus baptismos e crismas sem Espírito Santo, das suas comunhões solenes sem comunhão, dos seus sacramentos de matrimónio sem Projecto libertador e solidário. Fujam das missas-negócio, por almas supostamente a penar em purgatórios que não existem e que são mero pretexto para eles ganharem muito dinheiro fácil.

Mas façam mais. Como Jesus, resistam à Ordem Económica mundial neoliberal que hoje se apresenta aí como caída do céu, tão natural como o sol e o mar e como se tivesse Deus por Pai, quando a verdade é que tem por pai o Diabo e, só por isso, é uma Ordem Económica mentirosa e opressora, assassina e genocida. Sejam mulheres e homens ao jeito de Jesus. Não apenas como o Jesus de há dois mil anos, mas como o Jesus deste século XXI e do terceiro milénio.

Saibam que isto é possível, porque Jesus de Nazaré foi/é suficientemente rebelde e insubmisso e por isso não se resignou a ficar no túmulo. Aí ficou só o seu cadáver, não ele, que desde então é para sempre ressuscitado/insurrecto, e está fecundamente presente e actuante em todas as insurreições/revoluções da História, em todos os levantamentos das vítimas deste mundo.

Em memória dele e em comunhão com ele, experimentem congregar-se em pequeninos grupos ou comunidades de duas ou três pessoas (cf. Mateus 18, 20). Conversem e comam juntos, mas sempre como quem resiste e como quem conspira. Partilhem a Palavra e o Pão com simplicidade, mas como quem se alimenta para ser cada vez mais livre e protagonista no mundo. Ao princípio, na clandestinidade, como foi recomendado ao grupo que interveio no levantamento da menina de doze anos. Mas quando já se sentirem adultos na Fé, bem às claras, como Jesus quis que a mulher dos fluxos de sangue fizesse, a partir do momento em que se libertou da opressão da Lei de Moisés e da mentirosa interpretação que a sinagoga fazia dessa Lei.


Editorial

Resistir e constituir-se em alternativa

Tal como há dois mil anos, e já desde há muitos séculos antes, também hoje o nosso mundo continua a ser dominado/governado por três grandes Poderes, a saber: o Poder religioso, o Poder político e o Poder financeiro, cujos respectivos representantes oficiais, em cada tempo e lugar, têm tanto de privilégio como de demência política e até de esquizofrenia. Só que há dois mil anos, houve um Homem que viu a catástrofe universal que um tal facto inevitavelmente desencadeia na vida dos indivíduos e dos povos, e ousou enunciar, em alternativa àqueles três Poderes, três revolucionários princípios teológico-políticos que se forem acatados/vividos, dessacralizam de raiz a História e libertam/salvam de raiz a Humanidade: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (cf. Mc 12, 17). "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Mt 6, 24). "Misericórdia quero, não Religião" (Mt 9, 13).

A simples enunciação destes três princípios e uma prática de vida assumida em coerente conformidade com eles, valeram a Jesus de Nazaré a morte violenta na cruz, na sequência de um processo sumaríssimo que se tornou paradigmático e em que se envolveram os representantes maiores dos três grandes Poderes que, então, dominavam e governavam a Palestina e o mundo.

Só que essa exemplar morte na cruz fez com que Jesus nazareno passasse definitivamente de réu maldito e assassinado, a universal e ressuscitado Juiz dos vivos e dos mortos (cf. At 10, 42). Ou seja, a partir de então, quando quisermos ajuizar, em cada tempo e lugar, quem é autêntico ser humano para os demais e para o próprio Universo, basta-nos ver em que medida a prática quotidiana de cada uma/de cada um de nós se aproxima da do Crucificado nazareno, e em que medida ela está em conformidade com aqueles famosos princípios teológico-políticos que ele enunciou e viveu até ao fim.

Infelizmente, o Evangelho libertador de Deus, que é para sempre Jesus Crucificado/Ressuscitado, continua, dois mil anos depois, sem ser ouvido/acolhido/praticado pela generalidade dos indivíduos e dos povos, atordoados e subjugados que vivem sob a nefasta influência/propaganda dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo.

Apenas uma minoria de discípulas e de discípulos do Crucificado nazareno chegou a reconhecer, algum tempo depois da sua morte na cruz, que ele, e não os privilegiados representantes dos três grandes Poderes que o mataram, é que tem razão e está certo. Deram-lhe então a sua entusiástica adesão, ao ponto de fazerem sua e prosseguirem, nas suas vidas quotidianas, a mesma via de libertação e de salvação em que ele para sempre se constituiu, relativamente a todo homem/mulher que vem a este mundo.

Mas depressa a perseguição dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo se abateu sobre essas mulheres e esses homens, a quem os demais começaram a chamar cristãs e cristãos (At 11, 26). O jeito de ser/viver delas e deles, bem na peugada do jeito de ser/viver do seu mestre Jesus de Nazaré, continuamente acusava e acusa de demência política e até de esquizofrenia a velha e mentirosa pretensão deles, de que são escolhidos por Deus para protagonizarem, ao longo da História, o papel de dominadores e de governadores dos povos, sob o pretexto de que se assim não fosse, o mundo cairia no caos e na autodestruição!...

A perseguição deles foi e continua a ser medonha e feroz. Maior, porém, começou por ser a firmeza e a resistência das cristãs e dos cristãos. O que só fez crescer ainda mais a raiva e a fúria dos seus perseguidores. Para estes continua a ser mais do que manifesto que se não apagarem de vez da consciência da Humanidade a Memória subversiva e perigosa daquele Crucificado nazareno, mais o Evangelho ou a Boa Notícia da sua prática radicalmente libertadora e salvadora, um Novo Mundo estará em imparável gestação no ventre da História. E nesse Novo Mundo eles e outros como eles não terão mais lugar, uma vez que ninguém mais será dono de ninguém, ninguém mais será dono da riqueza produzida por todos, ninguém mais será uma espécie de Deus para ninguém, ninguém mais se poderá arrogar o direito de ser senhor de ninguém nem de nenhum povo. É manifesto igualmente que num mundo assim, nem sequer haverá lugar para a simples existência de César, com esse nome ou com outro mais moderno. E até Deus só fará sentido, enquanto misteriosa e gratuita Presença potenciadora, no mais íntimo de cada ser humano, para que todos cheguemos a ser irmãos e irmãs uns dos outros, companheiros e iguais, numa comunhão universal que não deixará ninguém de fora, qualquer que seja a cor da pele, a língua, a cultura, a idade, o sexo, o grau de desenvolvimento e de capacidade pessoal.

A persistência persecutória dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo nunca deixou de ser eficaz. Sobretudo, a partir do momento em que eles, habilmente, despiram a roupa de lobos que ostentaram durante os dois/três primeiros séculos do Cristianismo e passaram a apresentar-se vestidos de benfeitores da Igreja de Jesus, especialmente, da minoria eclesiástica que entretanto e abusivamente se constituiu como hierarquia sobre as comunidades cristãs propriamente ditas.

Esta minoria eclesiástica, onde se incluem bispos/clérigos, monges/frades e teólogos-do-regime, começou por aceitar o suculento prato de lentilhas com que César de Roma lhe acenou, e depressa esqueceu os três revolucionários e libertadores princípios teológico-políticos enunciados pelo Crucificado nazareno. Em seu lugar, adoptou outras tantas versões deístas e idólatras, próprias do Paganismo, a saber:

1. Quem está com César está com Deus, e quem está com Deus está com César!

2. Quem mais é de Deus mais dinheiro tem, e quem mais dinheiro tem mais é de Deus!

3. Quem mais religioso é mais é de Deus, e quem mais é de Deus mais religioso é!

Aquela mudança de comportamento, relativamente à Igreja de Jesus, por parte dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo, foi uma cartada de mestre. Não, evidentemente, de mestre da Verdade, mas de mestre da Mentira. De resto, é uma cartada que está inteiramente conforme à natureza deles, os quais – como revelou o Crucificado nazareno – têm por pai o Diabo e, como ele, são todos mentirosos e assassinos desde o princípio (cf. Jo 8, 44), e só existem para matar, roubar e destruir a Humanidade e a Natureza (cf. Jo 10, 8-10).

É por isso que também a Ordem mundial por eles gerada e mantida a ferro e fogo militar e policial e a ferro e fogo ideológico – para o que contam, neste último caso, com poderosos media que nos bombardeiam ininterruptamente, 24 horas sobre 24, com mentiras e com estórias/novelas tontas e sem substância – não passa, afinal, duma Ordem necrófila, de cemitério, geradora de morte em massa, de exclusão social em massa, de pobreza e miséria em massa, de insegurança e de terror em massa. Para que os indivíduos e os povos não ousem nunca levantar a cabeça, não se atrevam nunca a abrir os olhos, e nem sequer ousem alguma vez pensar que as coisas podem ser diferentes do que hoje são.

É ainda aqui que hoje estamos, um ano depois do 11 de Setembro de 2001. As Igrejas cristãs, a começar pelas múltiplas Igrejas locais que "fazem" a Igreja católica e a acabar nas novas Igrejas ou "seitas" – as excepções só confirmam a regra! – em lugar de resistirem às seduções dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo, reconhecem-nos, aliam-se a eles e até aceitam integrar um desses três grandes Poderes – o Poder religioso. Os seus líderes assumem-se como poderosos sacerdotes e pastores, como se alguma vez a Memória subversiva e perigosa do Crucificado nazareno fosse compatível com o Poder religioso! Não é. E como haveria ser, se quem mais liderou o processo sumaríssimo contra Jesus de Nazaré que culminou na sua morte na cruz, foram precisamente os chefes dos sacerdotes da Religião oficial do seu tempo e país?

Em lugar de resistirem até ao sangue aos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo, e à demência política e à esquizofrenia dos seus respectivos representantes maiores, em cada tempo e lugar; e em lugar de ousarem ser fiéis ao Deus Criador de filhas e de filhos, o mesmo é dizer, de irmãs e de irmãos numa Terra chamada a ser casa comum para todos os seres humanos e demais seres criados que connosco constituem o ecossistema da vida em todas as suas vertentes e em todas as suas variedades, os líderes das Igrejas persistem, quase todos, em assumir-se eles próprios como os sacerdotes e os pastores da Religião, lobos disfarçados de cordeiros, cheios de privilégios, sem se perturbarem nada por estarem a dar o seu aval a uma Ordem mundial que retém a verdade cativa na injustiça (cf. Rom 1, 18) e, por isso, é causa de desgraça em massa, fabrica vítimas humanas e outras em série, ao mesmo tempo que nos mata o futuro e mata o futuro ao próprio planeta Terra!

"Fazei isto em Memória de mim"! (cf. Lc 22, 19) "Ide por todo o mundo, anunciai o Evangelho (a Boa Notícia) a toda a criatura" (cf. Mc 16, 15). São solenes palavras de ordem do Crucificado nazareno a quantos se atrevam a ser suas discípulas e discípulos, em qualquer tempo e lugar. Como quem diz: Tende constantemente diante da vossa consciência a Verdade que saltou para todo o sempre do meu ser/viver, quando os representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo me condenaram à morte e me crucificaram, no termo de um sumaríssimo processo.

Com esse hediondo crime, eles puseram a nu toda a crueldade de que são capazes e mostraram quanto são lobos vorazes, por mais que, agora, se paramentem de cordeiros, de hierarquia religiosa e eclesiástica, de papa, de chefes de governo, de ministros de estado, de chefes de estado e de ricos benfeitores. Mais. Tende constantemente diante da vossa consciência, que se eles procederam assim comigo, também procederão assim convosco, se permanecerdes fiéis à via radicalmente libertadora e salvadora que a minha prática de vida e a minha palavra abriram na História (cf. Jo 15, 18-21).

Não os temais, porém! Mesmo que vos matem no corpo, não podem matar-vos na alma! (cf. Mt 10, 28) Permanecei fiéis à minha subversiva e perigosa Memória de Crucificado nazareno e proclamai incansavelmente a todos os povos esta Boa Notícia que eu sou, para que pelo menos alguns de entre eles ousem prosseguir a mesma via libertadora e salvadora em que eu me constituí para sempre; em lugar de persistirem na via dos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo, a qual só pode ser a via da dominação, da opressão, da mentira, do assassínio, da exploração, numa palavra, do empobrecimento generalizado, do genocídio e do ecocídio!

É por isso que, a esta luz, a mim, presbítero ostracizado da Igreja católica, só me resta partilhar convosco, como palavra de salvação, a seguinte: se, hoje, os líderes das Igrejas cristãs, em lugar de corajosamente assumirem o martirial serviço especificamente jesuánico e eclesial de Evangelizar os Pobres (cf. Lc 4, 18), persistirem em integrar um dos três Poderes que dominam e governam o mundo – concretamente, o Poder religioso – em aliança com os chefes das nações e com os ricos das multinacionais que financiam uns e outros, só nos resta a nós, indivíduos e povos do mundo, resistir-lhes e mantermo-nos longe deles, como sempre havemos de resistir e mantermo-nos distantes dos chefes das nações e dos ricos das multinacionais. Depois, até para evitar acabarmos absorvidos e triturados pelo anti-Evangelho que todos eles seguem e ininterruptamente difundem através dos seus potentes media, ousemos dar um passo mais e organizemo-nos em pequenas comunidades cristãs jesuánicas de resistência e de insubmissão. E com regularidade, partilhemos uns com os outros/umas com as outras, em Memória do Crucificado nazareno, comidas fraternas/sororais em redor duma mesa comum, durante as quais a Palavra se solte de todas as bocas, até se fazer missão consciencializadora e libertadora junto dos demais. Ao mesmo tempo, ousemos viver todos os dias a alegria, própria de quem tem consciência de que está a protagonizar, nos seus frágeis corpos e nas suas vidas, feitas de simplicidade e de serviço libertador e gratuito, uma alternativa à necrófila Ordem mundial, gerada pelos representantes maiores dos três grandes Poderes que dominam e governam o mundo e que têm tanto de privilégio como de demência política, e até de esquizofrenia!

Vosso irmão e companheiro,

Mário, presbítero.


Espaço Aberto

Subversão ou Evangelho?

Por Manuel Sérgio (Lisboa)

Ouvi falar, pela primeira vez, do Padre Mário de Oliveira, em já difusos e incontáveis dias. Se não estou em erro, há trinta e um anos, através do livro Subversão ou Evangelho? do dr. José da Silva e onde se apresentava o processo do Padre Mário, pároco de Macieira de Lixa, preso e pronunciado provisoriamente, por imposição da Direcção-Geral de Segurança (DGS). Era o tempo da guerra do Ultramar; era o tempo da ditadura "estadonovista"; era o tempo enfim em que os agentes da DGS rondavam, como feras famintas, as vidas dos portugueses e os levavam ao calabouço, por tempo indefinido, se acaso manifestassem desacordo, ou não pautassem as suas vidas pelo pensamento único governamental.

Recordo neste momento o dr. Raul Rego, de quem fui contemporâneo na Assembleia da República, relatando-me, com perturbante minúcia, as torturas que sofreu no Aljube e em Caxias, por se afirmar publicamente republicano e laico e, como tal, oposicionista de um regime imensamente compreensivo de todos os fascismos e recusando qualquer assomo de liberdade e democracia. Ao preitear a orientação política e moral do dr. Raul Rego e de outros antifascistas, leva-me hoje a relembrar também o Padre Mário Pais de Oliveira, honesto sacerdote da Igreja Católica e por isso dando a conhecer aos seus paroquianos que a mensagem de Jesus não quadrava com a ideologia belicista de Salazar e o canto inebriante de sereia do Cardeal Cerejeira.

No livro Subversão ou Evangelho?, o dr. José da Silva (advogado e deputado da ala liberal, na Assembleia Nacional) escrevia: "Mas não será o Evangelho subversivo? O Evangelho autêntico é". E assim o Padre Mário apontou caminhos novos, num estilo preciso e claro e portanto defendeu, como ninguém na Igreja em Portugal, naqueles anos, a autodeterminação absoluta para as colónias portuguesas; afirmou-se frontalmente contra a política então vigente; acentuou que a sociedade portuguesa se dividia em ricos e pobres, de modo bem mais nítida do que em esquerda e direita e não vacilou em hostilizar verbalmente alguns patrões que exploravam sem escrúpulos os seus empregados, condenados a um vegetar fisiológico. Passam os anos e o Padre Mário não se mostra descrente dos seus ideais de há trinta e um anos atrás, não está prestes a transigir e bandear-se com o campo oposto. Continua o profeta que não lisonjeia o poder, seja ele qual for; que não esmorece no seu inconformismo, pois que o serviço de Deus é o serviço dos homens, designadamente daqueles que não usufruem as regalias dos grandes senhores deste pequeno mundo; que não esconde que é falso o humanismo que se estadeia, em flores de retórica, por muitas igrejas e muitos congressos internacionais. O luxo dos bispos e do Vaticano; a hipocrisia de alguns políticos ditos de esquerda que vivem na opulência e no fausto; um relativismo político que se confunde com o relativismo ético, dado que há uma exigência de absoluto no respeito devido a todos, todos os seres humanos – denunciar tudo isto é imitar Jesus ou até João Baptista, a voz que clama no deserto.

Quando perguntavam a João Baptista: "és tu o Messias que esperamos?". Ele respondia: "Eu sou a voz que clama no deserto e cuja missão é preparar o caminho do Senhor". Depois dele, outros foram e serão os anunciadores. Outros foram e serão os que tornam possíveis todas as esperanças humanas renascidas do sofrimento e da coragem para transformá-lo em compreensão e solidariedade. Outros foram e serão os que apontam e combatem sem sofismas a hipocrisia dos formalistas da Lei que exigem ao povo crente as virtudes em que não acreditam. Outros foram e serão os que politizam sem partidarizar, porque no reino de Deus não se descortina a dialéctica senhor-servo, nem o conformismo ou a bajulação ou a falsidade. Outros foram e serão os que pedem de beber à samaritana e nela à mãe, à mulher, à amante, à amiga. E quando uma samaritana nos ama é a vida a desejar-nos! A imposição do celibato obriga os padres e as freiras, como diria José Gomes Ferreira, a "amar ninguém em toda a gente". É o ensaio geral de uma vida de solidão! Jesus, quando Maria Madalena lhe ungiu com perfume os cabelos e os pés, avisou os apóstolos: "Onde quer que o Evangelho for pregado, em todo o Mundo, também será referido o que esta mulher acaba de fazer". O Evangelho é a restauração do amor. Não há nele o medo da sexualidade que a Igreja teimosamente manifesta.

Considero o Padre Mário de Oliveira um profeta! Não, não estou diante dele submetido e aquietado, num puro acto de idolatria. Mas que posso eu dizer de alguém que sempre se bateu, com destemor, por valores que o Futuro acolheu e a que deu razão?

O último livro do Padre Mário de Oliveira, Em memória delas – livro de mulheres, será futuro também. Terá sido por mero acaso que foi a três mulheres (entre as quais, a inevitável Maria Madalena) que os anjos anunciaram a ressurreição de Jesus e foi por elas que Pedro soube da assombrosa notícia?! Terá sido por mero acaso que Jesus escolhe Maria Madalena, que por Ele chorava copiosamente para lhe confidenciar a sós que de facto ressuscitara e que fosse ela a anunciar o que vira aos discípulos?

Na vida de Jesus as mulheres assumem um papel de primacial importância. Mário de Oliveira que escreve os seus livros, como diria um autor espanhol "con la sangre del alma" e que procura imitar o Jesus histórico e concreto, sabe isto mesmo e é com fervor e comoção que se refere às mulheres nesta sua obra. Não se toca num livro destes (inevitavelmente subversivo), para apresentá-lo simplificado aos olhos do público, sem a sensação de desfolhar, mais ou menos o seu encanto e oportuna mensagem. No entanto, julgo dever fazê-lo, em prosa corrente e fácil porque não são pelo Padre Mário as grandes centrais de manipulação da opinião pública. Em memória delas, lê-se, com gosto e deleite, designadamente todos aqueles que não aceitam os consensos hegemónicos que o Vaticano promove, recusando libertar e libertar-se das fortes reminiscências gnósticas e maniqueias em que fundamenta o descrédito da mulher e da sexualidade.

Segundo Mário de Oliveira, as mulheres nas várias igrejas e religiões são reduzidas a súbditas do clero e de outros múltiplos chefes religiosos "geralmente todos machos e autoritários". Ora, bem é que elas "se tornem discípulas de Jesus de Nazaré, o Cristo Crucificado/ Ressuscitado". Tal acontecimento terá "a força de um Novo Começo. De uma Nova Criação. De um Novo Génesis. As mulheres deixarão de ser, como sempre foram ao longo dos séculos, as submissas e degradadas filhas de Eva – uma mítica mulher que nunca existiu na história – para se assumirem definitivamente, como irmãs e companheiras de Maria de Nazaré, a discípula exemplar e paradigmática de Jesus, o Cristo, e que assim se tornou, algum tempo depois de lhe terem assassinado na cruz do Calvário o filho das suas entranhas".

A partir da página 25, Mário de Oliveira dá-nos a conhecer o rosto, ou seja, a alma (não é o rosto o espelho da alma?) de algumas mulheres admiráveis, que deveriam considerar-se glórias imorredoiras da Igreja Católica. Vivi, na contemplação destas Mulheres–Igreja, momentos em que passei em pensamento da necessidade à liberdade, do lugar à utopia, do sono ao desejo. Poderia agora escrever do que senti palavras sobre palavras, como se a verdade pudesse aparecer na palavra seguinte. Prefiro terminar assim: o Padre Mário de Oliveira continua subversivo, isto é, de acordo com o Evangelho. De facto, neste seu livro, como nos restantes, é indestrinçável o texto da vida e a vida do Padre Mário da vida do próprio Cristo. É preciso vincar a urgência da leitura deste livro, no interior da rotina e do quotidiano.

Obrigado, Padre Mário!


Educação para a paz

Por Manuel Pedro Cardoso (Pastor da Igreja Evangélica Presbiteriana)

Pode ser, infelizmente, que nem mesmo muitas das Igrejas membros do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) dêem a mínima atenção ao projecto, mas é indubitável que a proposta dessa organização de se fazer uma década (2000-2010) mundial de recusa da violência e de educação para a paz merece todo o apoio. O CMI, que também é referido como Conselho Ecuménico das Igrejas, com sede em Genebra, Suíça, é composto por mais de 300 Igrejas nacionais, protestantes e ortodoxas, e representa 500 milhões de cristãos. O seu secretário-geral não tem a autoridade de um papa, nem o seu Comitê Central a da Cúria Romana, mesmo porque o CMI não é uma "Igreja", mas uma organização onde as Igrejas estão juntas para realizar livremente projectos em favor do mundo, mas a década proposta merece ser levada a sério.

Há anos, o CMI propôs uma "Década de Solidariedade das Igrejas com as Mulheres" e não se pode dizer que tenha sido apenas um gesto simbólico, pois foi um excelente pretexto para por todo o mundo se discutir a situação da mulher, nas suas diversas componentes, despertando muitas consciências. Em Portugal, como sempre, quase nada se fez, tendo eu próprio traduzido e publicado um desdobrável sobre o assunto e tentado em vão que as pessoas discutissem o tema. Agora, estando fora das estruturas, a pequena cooperação voluntária que estou a dar a esta década que propõe o fim da violência são os meus modestos artigos, correndo o risco de me repetir, por realçar este tema. Mas não são a guerra e toda a violência temas contra os quais devemos clamar até que nos doa a garganta?

Creio que todas as pessoas de boa vontade têm de se esforçar para que a humanidade interiorize a ideia de que a violência não resolve os problemas e a paz é um bem para o qual temos de trabalhar. Mas a violência não aparece por acaso: ela surge como resultado do espírito de intolerância e de suposta superioridade; do fanatismo religioso ou político; da exacerbação nacionalista e do desespero daqueles que são vítimas de injustiças e dos que se sentem ameaçados na sua própria sobrevivência. O pacifismo, defendido a todo o custo por grupos religiosos que as Igrejas orgulhosamente chamaram "seitas" ou "heresias", acaba por ser a maior interpelação que é feita ao nosso tempo. Esse pacifismo não é passividade, não é cobardia nem fuga para a carapaça da indiferença, mas, pelo contrário, é corajosa denúncia dos focos de violência, apresentem-se eles com justificações de esquerda ou de direita, revolucionárias ou reaccionárias.

O que era ingénuo no pacifismo tradicional era não reconhecer aos Estados democráticos o direito de se defenderem e de fazerem cumprir inclusive pela força as leis democraticamente criadas. Alguma dessa ingenuidade tem sido manifestada por uma esquerda idealista que desvaloriza as forças armadas e policiais, desdenhando do "espírito militarista". Compreende-se tal atitude como contraponto ao gosto neo-nazi por fardas e marchas militares, mas o anti-militarismo tem de ser abandonado no reconhecimento da necessidade que temos das forças armadas e da verdade elementar que a instituição militar pode ser eminentemente democrática. Dizer isto é dizer o evidente, principalmente para os portugueses gratos ao 25 de Abril de 1974. A decisão de substituir o serviço militar obrigatório por forças militares profissionalizadas não parece de bom augúrio: espreita o perigo de as fileiras ficarem cheias dos tais rapazes que gostam de fardas e de marchas, mas odeiam a liberdade e a paz. Com o regime de serviço militar obrigatório sempre haverá nas fileiras os que têm consciência de serem filhos do povo provisoriamente fardados e armados. Esperemos que os partidos portugueses que se reclamam da esquerda possam usar da oportunidade que ainda existe de manter o serviço militar obrigatório.

A educação para a paz implica uma reflexão séria sobre os métodos a usar para a emergência de uma sociedade solidária, de justiça e fraternidade. Os fins não justificam os meios – mas os meios determinam os fins. Com violência e com mentira ter-se-ão resultados em que a violência e a mentira continuarão, mesmo que com novas roupagens. Se os falcões vencerem em Israel, Israel terá um futuro de violência e opressão; se o Hamas se impuser na Palestina, a Palestina será terra de violência e opressão. Com terrorismo não se formam estados democráticos. Para fins nobres, meios nobres. Para que a verdade se imponha usemos de verdade. Não se trata apenas de uma questão de ética, mas tem a ver também com a eficácia. Uma política, um projecto que escolha o caminho do engano e da incoerência acabará por colher resultados opostos aos bons que talvez com sinceridade se propôs no seu início. Como diz a Bíblia: "Tudo o que o homem semear, isso também ceifará" (Gálatas 6, 7). Ora o homem pode semear também a utopia, para poder colher o fruto da utopia. A utopia verdadeira, já o sabemos, não é a fantasia nem a quimera: é o projecto possível que está por realizar. O que não pode é, enquanto quer concretizar a utopia, actuar com valores que a renegam. Não se pode esmagar o inimigo, enquanto se trabalha para um mundo de fraternidade: se se semeia o ódio, colhe-se o ódio: esmagando o inimigo, esmaga-se o futuro fraterno. É preciso gritar que o ódio e a violência não são fatais. Pelo menos numa perspectiva de Jesus Cristo, de quem Garaudy um dia disse que veio "desfatalizar a história".

Creio que a proposta do Conselho Mundial de Igrejas merece o nosso apoio e a nossa cooperação, onde vivemos e agimos, segundo os nossos dons e as nossas oportunidades.


A vida é sempre bela

Por Porfírio Borges (Porto)

Durante as férias, como o tempo de que se dispõe é apelativo à contemplação e reflexão, tive a oportunidade para reparar nas várias semelhanças existentes entre a nossa vida e uma simples "viagem" ou excursão em que resolvamos participar. Ambas têm princípio, meio e fim; e quando atingem o seu ponto mais alto que, por exemplo, pode ser ou o destino do passeio ou a entrada na reforma, imediatamente iniciam o regresso às origens, à eternidade, ou ao local da partida.

Na excursão, quando termina, não restará mais do que uma boa recordação. Na vida é bem mais do que isso, pois que após atingida a idade adulta, mesmo que não seja logo o fim, todos sabemos que com mais ou menos bons momentos, mais ou menos sofrimento vamo-nos encaminhar para a eternidade.

Na "viagem" o seu êxito está praticamente garantido, desde que ao prepará-la não esqueçamos que não se trata de um acto isolado, mas que devemos ter em conta que a vamos partilhar com um determinado número de pessoas que desejam igualmente divertir-se, conviver, encontrar pontos comuns, apreciar a beleza da natureza, bem como as dos monumentos que os homens criaram. Na vida real, como se sabe, as semelhanças são muitas e até como em qualquer "viagem" que se queira levar a bom termo, exige uma boa preparação. Por isso logo que nascemos os nossos pais começam a pensar no nosso futuro, para que venhamos a ter uma vida feliz. Iniciámos por isso o nosso percurso: vamos para a escola, começámos a trabalhar, constituímos família, temos filhos e atingimos a nossa realização humana e profissional.

Há até alguns de nós que pretenderam contribuir para um mundo melhor, com melhores paisagens e deram um sentido mais profundo à sua existência, assumindo compromissos com a sociedade, dedicando-se a obras de caridade, defendendo a justiça e a igualdade e uma sociedade mais justa e fraterna.

Vencida a primeira etapa e uma vez que o nosso verdadeiro destino não é o local final escolhido para o passeio, nem mesmo este mundo, há que de imediato pensar no regresso. Só então notamos que afinal esta excursão, a nossa vida, tão desejada foi demasiado curta e que ainda assim, durante ela, perdemos muitos amigos que connosco a haviam começado e não tiveram tempo para realizar o seu sonho.

Contudo, creio que é consensual que qualquer percurso (seja uma viagem ou a nossa própria vida) só nos dará felicidade quando construído, vivido, usufruído e partilhado com os que fazem parte dos nossos projectos, preocupações e alegrias. Naturalmente que muitos deles não conseguem acompanhar-nos até ao fim, pois que desaparecem demasiado cedo. Esta situação, não podemos escamotear, deixa-nos um vazio enorme e uma tristeza imensa.

Em cada um deles vai uma parte da nossa vida, da nossa história, recordações, passado e aspirações e não é agradável a ninguém ver partir alguém que percorreu em conjunto uma parte da sua vida. A manifestação deste sentimento não nos deve envergonhar, porque é perfeitamente legítima, desde que não nos desvie da preocupação de continuar a descobrir a beleza que a vida contém.

Importa realçar que o mundo não acabou. Eles saíram mas outros mais novos foram entrando nas diversas paragens efectuadas. Além de que nós, os que reconhecemos que a vida é uma dádiva, continuamos no autocarro, esperançados em levarmos ao fim a nossa missão. Aceitamos, portanto, fazer como os "os estafetas que nas provas de atletismo passam o testemunho ao atleta que se segue". De facto, neste desporto, uns começam a prova, outros terminam-na, mas todos são imprescindíveis.

Assim foi, é e será sempre a vida real. Cada uma das gerações é um elo que se cumprir a sua missão, contribui para a felicidade da humanidade garantindo assim, desde logo, uma boa "viagem". Se cada um cumprir o seu dever, não precisa de esquecer a "partida" de muitos dos seus íntimos, para poder afirmar que apesar disso a vida é bela e que vale a pena ser vivida até aos últimos momentos.

Aos mais novos, às novas gerações com quem, em substituição dos do meu tempo, passei a lidar quero-lhes garantir que não dei por terminada a minha missão. Entrem mesmo em movimento, no autocarro, em que ainda continuo a minha "viagem", vivam a vida com prazer, isto é, façam a vossa "viagem" e também o favor de serem felizes.


Talibã e Talibush

Por L. Boff (Brasil)

Se fizermos um balanço sumário, há um ano, da Terça-Feira Triste de 11 de Setembro de 2001, devemos concluir: eles venceram. Sim, os Talibãs venceram, porque ocuparam as mentes dos EUA com o medo generalizado, beirando a paranóia colectiva, de novos atentados.

Mais que derrubar as duas Torres Gémeas, símbolo do poderio económico globalizado, derrubaram outras duas torres, símbolo da utopia norte-americana: a democracia e a legalidade.

Com o derrube das Torres, os terroristas humilharam materialmente os EUA na sua invulnerabilidade. Com o derrube das outras duas torres, humilharam moralmente a cultura política norte-americana diante de si mesma e de todos nós que teimamos em acreditar na democracia e nos direitos humanos.

Mostrou-se que é frágil a tão decantada democracia e a legalidade norte-americanas. Resistem mal às crises. E foi em razão de "uma moralidade mais alta" e em nome das liberdades e dos direitos humanos contra a "barbárie" dos terroristas que se moveu uma guerra tecnológica desproporcional contra um povo já arruinado por anos ininterruptos de conflitos.

Sobre essa guerra até hoje pouco sabemos devido à censura das informações. Mesmo assim veio à luz o que Prof. Marc Harold da Universidade de New Hamshire denunciou: até o dia 10 de dezembro de 2001, portanto, um mês após o início da guerra, haviam sido mortos, no Afeganistão, 3.767 civis, mais que os desaparecidos sob as duas Torres. Desses inocentes não se choram as mortes. Como se não fossem da mesma família humana, cujas vidas não tivessem igual valor sagrado.

O mais grave, porém, foi que, em nome do combate aos terroristas, se sacrificaram os princípios do Estado de direito e da democracia, fundamento do legítimo orgulho norte-americano. Foi o que denunciou, há dias, Jimmy Carter. O que era evidente já não o é mais. Um suspeito pode ser preso por tempo indeterminado sem que ninguém seja avisado, o que equivale a um sequestro. Um terrorista pode ser julgado, secretamente, por tribunais militares, em qualquer parte do mundo, numa caverna do Afeganistão ou sobre um navio do Pacífico, sem que tenha direito a um advogado. Pode ser condenado à morte se dois ou três oficiais-juizes o acharem culpado, sem qualquer apelação. Não vale o princípio da igualdade diante da lei nem da dúvida em favor do réu.

O Presidente Bush que tudo aprovou transformou-se num Talibush e o ministro da Justiça, o reaccionário, John Aschcroft, introduziu uma variante da Scharia muçulmana, transformando-se num Mullah.

Com as poucas luzes que tem, Bush impôs a geopolítica da vingança implacável, legitimando o ataque preventivo e a admissão do uso "de todas as armas". Aqui se inova. Até agora, o constrangimento obrigava dizer que todas as armas, biológicas, químicas e nucleares eram só de dissuasão. Agora são de agressão. Não sabemos quem é mais demente: se aqueles que jogaram aviões contra as Torres ou aqueles que propõem usar "todas as armas". Tal acto implicaria genocídio monstruoso de civis, um terrorismo pior do que aquele dos terroristas, além de contrariar os valores em nome dos quais movem guerra ao terrorismo.

Nem os Talibãs nem os Talibushs hão-de determinar os destinos da humanidade. Se nos faltarem outros meios, sempre nos restam os de Gandhi, inspirados no pregador ambulante Jesuah de Nazaré: a oração, o jejum e a penitência.


O rato de Assis

Por Violeta Teixeira (Leiria)

Aqui, sobre o passeio cheio

De ervas verdes, junto do muro

De um convento, jaz morto

Há três noites de nevoeiro,

Um rato enorme, com pelo

De um brilho cinzento

Esbranquiçado, como se,

Cansado, tivesse caído,

Docemente, num sono de Assis.

Aqui, me detenho e vejo o rato

Com aquele mesmo ar do santo.

Estranho! Digo-me, em voz alta.

Ninguém se terá dado conta

Da sua cândida presença, naquela

Posição de que, não tarda, acorda.

Medito sobre a matéria, sobre a

Inexistência da alma, sobre o nada

Se cria, nada se perde, tudo se transforma.

E, ali, fico a filosofar, em frente

Daquele corpo morto, há três noites,

Sem ser removido para o não sei onde.

De súbito, crente tão-só na matéria,

Não quero acreditar no que acontece.

Da boca do rato, soltam-se duas asas

Cetinosas de um pássaro azul, que, leves

E ágeis, poisam no ramo de uma árvore.

Sigo o meu percurso da escrita,

Embaraçada nos fios das frioleiras

Da filosofia, e na existência poética

De uma alma, sob a forma

Metafórica de uma ave.


Outras Cartas

E-mail. Miguel Ângelo Pereira: Caro padre Oliveira: muito me custa escrever para repreender um sacerdote(?)... Na sua cabeça apenas reside um nome: Leonardo Boff. Ele e as tretas da teologia da libertação às quais renego profundamente, critico, condeno e combato. Aquilo que proclama o senhor, é completamente anátema, visto que, vai contra os dogmas da santa madre igreja. Sabe de uma coisa? Eu não acredito no ecumenismo, porque bem se viu no que é que isso tem dado. No massacre de Jenine, foram lá bispos católicos, e os judeus mandaram-nos ir dar uma volta mais o seu ecumenismo. Sou um ex-seminarista, fui expulso do seminário por seguir uma teologia e seguir à letra o concilio de Trento. Deus é eterno e imutável, e aquilo que provém dele também o é. A liturgia sagrada é divina e não humana, como tal, também é imutável. Se não acredita nas aparições DA MÃE DE DEUS, o que é que apareceu em Zeitun, na Nova Argélia? Um OVNI, com diria a doutora Fina d'Armada? Eu vou deixar-lhe o endereço do site: www.zeitun.org. Espero que não escreva também um livro a dizer: "Zeitun, nunca mais". Interessante também será dizer que não é permitido a um sacerdote tradicionalista celebrar o santo sacrifício, mas é permitido aos carismáticos fazerem aquelas palhaçadas todas modernistas. Os erros condenados anteriormente pelos santos padres, são agora aplaudidos...basta estudar um pouco. Bem, despeço-me e espero que compreenda a minha revolta. Rezarei à santíssima virgem por si.

ND

Meu caro Miguel Ângelo Pereira: Não percebo lá muito bem porque há-de rezar à "santíssima Virgem" por mim. Se se tratar de Maria, a mãe de Jesus, tenho de lhe recordar que ela é uma mulher histórica como a sua e a minha mãe. Uma criatura de Deus, como a sua e a minha mãe. Sem dúvida, uma mulher e uma criatura que Deus ama, mas como ama a sua e a minha mãe. Porque lhe há-de rezar por mim? E se se tratar, como me parece, da mítica deusa Virgem e Mãe, dos cultos politeístas do Paganismo, também não vejo que interesse tenha em rezar-lhe por mim. Pela simples razão de que essa deusa não existe, a não ser como projecção das populações mais oprimidas e mais empobrecidas de todos os tempos e lugares. Como tal, é obra das mãos humanas e ainda pode menos do que nós. Veja lá que até para os seus santuários se conservarem limpos e asseados, é preciso que algumas pessoas se encarreguem dessa tarefa, porque a deusa nem por ela própria nem pelo seu santuário é capaz de zelar! E se alguém lá entrar para roubar as "ofertas" que possíveis devotos lá tenham deixado, ela não se defende nem dá o alarme, pela simples razão de que não passa duma imagem mais ou menos tosca que um santeiro com imaginação criou e que outros depois colocaram à adoração de possíveis devotos e devotas.

Meu caro Miguel Ângelo: Lamento que o tenham expulsado do seminário pelos motivos que refere. Embora não me reveja na sua teologia, que acho mais deísta que jesuánica, nem me reveja no seu modelo de Igreja trindetina que, felizmente, já foi ultrapassado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, nem me reveja na sua concepção de liturgia que também não tem nada a ver com Jesus, o Cristo crucificado pelos chefes dos sacerdotes que oficiavam liturgicamente no Templo de Jerusalém, de modo algum posso concordar com métodos excludentes como esses que, pelos vistos, usaram consigo. Entendo que na Igreja de Jesus deve haver lugar para todas e todos quantos confessamos Jesus como o Senhor e nos aceitamos como irmãs e irmãos, por mais diferentes que possamos ser uns dos outros. Se a si lhe agrada mais a missa em latim e aos carismáticos agrada mais cantar e dançar em plena celebração, nem os que preferem a missa em latim excomunguem os carismáticos, nem estes excomunguem aqueles. Prossigamos unidos no amor uns aos outros, como Jesus nos mandou (veja que só nos deixou um mandamento e este foi que nos amemos uns aos outros como ele nos amou!) e multipliquemos os momentos de diálogo e de debate teológico, na certeza de que o resto virá por acréscimo. Excomungar, é que nunca.

Quanto a Fátima e à sua senhora, bem como quanto a todas as outras senhoras que por aí abundam onde infelizmente também abundam a ignorância e o obscurantismo e onde o Evangelho libertador de Jesus ainda não foi anunciado a sério, muito menos, acolhido e feito via de libertação e salvação dos povos, só tenho a dizer que não vou com nenhuma delas. Todas são a mesma coisa, sob nomes diferentes. Todas são imagens de deusas míticas e não têm nada a ver com Maria, a mãe de Jesus. Por isso, assim como afirmo sem hesitar "Fátima nunca mais", também direi "Zeitun nunca mais". E afirmo-o, ainda e sempre, por amor a Maria, a mãe de Jesus, por amor à Igreja de que sou presbítero com a missão primeira de Evangelizar os pobres, e também por fidelidade ao essencial da Fé cristã que proclama que Jesus é o Senhor e que Deus Criador é o Pai/a Mãe de todas as mulheres e de todos os homens, assim como de todos os povos, incluídos aqueles a quem o Evangelho ou Boa Notícia de Jesus ainda não chegou.

Fico na comunhão consigo, meu caro Miguel Ângelo, apesar das notórias diferenças que nos separam. Por maiores que estas sejam, é sempre maior a comunhão que me une a si, meu irmão de caminhada. O Espírito Santo, que faz falar todas as línguas, é que nos pôs em contacto, via internet, e por isso bendigo o Deus que nos criou e fez de nós e dos demais seres humanos filhos seus e filhas suas. Um abraço, sempre.

Santa Maria da Feira. Victor: Apesar de a vida poder parecer mais agradável enfeitada com a garantia de um final feliz, nunca me convenceram os filmes que assim terminam; são muito pouco credíveis. A felicidade é uma obsessão colectiva, é um bem de consumo que cada um pretende ter a qualquer preço; pode acontecer, por mera coincidência, que o preço seja fazer alguma coisa pelos outros como defender os pobres e os fracos, denunciar o primado do Ter contra o Ser, combater pela dignificação do ser humano e pelos seus direitos inteiros. A questão é isso só acontecer porque nos traz felicidade fazê-lo, parecendo que ninguém quer perceber que o simples facto de termos nascido nos traz a responsabilidade de ter de saber o que fazer com o tempo que aqui andamos. Será que precisamos de um deus ou da promessa de vida eterna para ganharmos consciência das nossas obrigações? Se assim é cabe muito aqui, para uns, a hipocrisia da sua bondade e, para outros, a dependência psicológica de que já te falei.

A vida é feita de obrigações e de alguns prazeres. A felicidade é uma treta inventada pelos alienados para justificarem a sua veneração aos alienantes.

Mas, relativamente ao cristianismo e aos seus fundamentos, as coisas são ainda mais incongruentes. Jesus nunca pretendeu fundar uma nova religião. Os evangelhos são peremptórios sobre este assunto. Mais, Jesus opôs-se a que a sua mensagem fosse divulgada fora da sociedade judaica, junto dos "gentios". Foi Paulo, muito mais universalista do que o seu suposto mestre que, contrariando e traindo a vontade deste, pretendeu – e conseguiu – fundar uma religião com a finalidade de impor um deus único à humanidade, o que fez muito jeito ao imperador Constantino. Portanto, ou Jesus nunca foi o que se diz dele mas antes um sujeito cheio de preconceitos xenófobos, passando Paulo a ser o verdadeiro "messias" universal e aceitamos a igreja que Paulo impôs ao mundo, ou acreditamos na missão "messiânica" de Jesus e acabamos com o cristianismo. Não resta outra alternativa historicamente séria. Depois, como é que alguém pode acreditar numa religião regulamentada e oficializada por um imperador que a promoveu por mero interesse político?

E o que acontecerá a tudo aquilo em que acreditámos durante milhares de anos? Para mim essas coisas fazem parte da história social, fazem parte do folclore, fazem parte da cultura que nos fez o que somos durante esse tempo. Mais nada.

Não há motivos sérios para acreditar no quer que seja do velho e novo testamentos, pois as contradições – sem falarmos das alterações introduzidas pelos "apostólicos romanos" nas suas "traduções" da bíblia – de que padecem os diferentes textos não podem reservar outra conclusão. Como é possível, por exemplo, que o "messias" nascido há dois mil anos seja filho de David como impõe o testamento mais velho se, segundo o testamento mais novo, Jesus nasceu de Maria sem qualquer intervenção do marido José que, este sim, era descendente de David? Hoje é sabido que naquele tempo, qualquer mulher que engravidasse fora do casamento tinha uma de duas hipóteses: ser morta à pedrada ou ser reconhecida como mãe de "filho-de-deus". Sabe-se ainda que este tipo de ficção não era então tão invulgar como poderá hoje parecer, o que quer dizer que o "espírito santo" andava muito ocupado naqueles tempos.

Estive inclinado a acreditar em Paulo e na universalidade da sua mensagem – ainda que reportada a Jesus – mas ele é um dos principais culpados, juntamente com Constantino, da existência da Igreja católica que por aí anda e tal como ela é.

Assim, se a mensagem é falsa, como poderemos acreditar no mensageiro? E ela ou é falsa quando escrita por uns ou quando escrita por outros, porque é demasiadas vezes contraditória.

Fazer evoluir o cristianismo – diria melhor, o paulinismo – de religião para filosofia de vida, depois de expurgado dos seus mitos e mentiras, dos seus dogmas irracionais, dos seus líderes que fedem de hipocrisia e cinismo, da sua escandalosa ostentação, da sua vergonha dos pobres e dos fracos, da sua demagogia e alienação é o que me parece mais concordante com a mensagem global dos evangelhos e uma tarefa que te compete a ti e a todos quantos insistem, da mesma maneira que tu o fazes, na existência de um deus.

Se calhar, não seria nenhum drama concluir-se que coisas como celebrações continuem a realizar-se. Se fazem parte do quotidiano do povo, se fazem parte da sua cultura e da sua história social, que mal tem que continuem a acontecer? A minha posição relativamente a este assunto pode parecer-te um paradoxo, mas não é. Não o é porque as enquadro no folclore – sem qualquer intenção depreciativa, para qualquer das partes – que, de uma maneira ou de outra, enche a nossa vida social. Se somos capazes de ser respeitosos ou, pelo menos, condescendentes para com quem o faz no meio da Amazónia ou da selva africana, por que não o devemos ser para com quem o faz paredes meias com a nossa? Com um esforço que venho diminuindo com o tempo, eu faço-o, insistindo sempre que é o folclore que eu respeito e nada mais.

Apesar de tudo, o ser humano.

Um abraço.

ND

Meu caro Victor:

1. Não. Não precisamos de um Deus, nem da promessa de vida eterna para sermos o que havemos de ser. Deus não é necessário. Pela simples razão de que nunca fará parte dos Sistemas que criarmos, nem mesmo dos sistemas religiosos/eclesiásticos. Mas não é indiferente para a Humanidade que Deus exista ou não. Como não é indiferente a existência ou não de música na nossa vida. Com música, a vida é outra coisa! Deus não entra na nossa vida pela porta da necessidade. Apenas pela porta da Graça. Do Dom. Do Excesso. Do Mistério. Do Sentido. A vida pode (deve?!) ser programada, aqui e agora, sem Deus. Aliás, a Revelação bíblica é a primeira a exigir que não invoquemos nunca o santo Nome de Deus em vão (bastava este mandamento, para justificar a validade e a oportunidade do Antigo Testamento. Só que este mandamento, infelizmente, nunca foi respeitado por nenhuma religião, nem por nenhum dos grandes líderes religiosos. A começar pelos líderes religiosos e políticos do próprio Judaísmo e a acabar nos líderes maiores da Igreja católica. Sem esquecer, evidentemente, os fundadores/pastores das novas Igrejas/Religiões, sobretudo, da Igreja Universal do Reino de Deus e das Testemunhas de Jeová, que invocam o santo nome de Deus em vão, até no próprio nome que escolheram para designar as respectivas instituições!). E digo mais: quando as minorias privilegiadas insistem em nomear Deus, nos seus demagógicos discursos – e todas o fazem, sejam católicos ou não, sejam crentes ou ateus – as maiorias oprimidas e empobrecidas do mundo que se cuidem, porque, com essa retórica política o que as minorias privilegiadas pretendem é justificar e manter o Sistema dominante que as favorece a elas. É manifesto que há aí um Deus que faz parte do Sistema dominante. Só que se trata de um deus-Demónio, com tudo de ídolo, que os sacerdotes do Sistema cultuam e as religiões que o Sistema reconhece e promove tudo fazem para que os povos se lhe submetam. Mas é manifesto também que a este deus-Demónio é preciso resistir até ao sangue. Mais: é preciso denunciá-lo/desmascará-lo/combatê-lo. Porque ele é pura invenção/projecção nossa. Não é esse o Deus de quem nos fala/testemunha Jesus de Nazaré, o Cristo: – puro Dom, pura graça, puro amor e que está totalmente empenhado em estabelecer connosco relações de comunhão, para que sejamos plena e definitivamente humanos, por isso, rebeldes, insubmissos, criativos, autónomos, livres, irrepetíveis, insubornáveis, como o próprio Jesus de Nazaré, o Homem por antonomásia. Este é o Deus que nos potencia a dimensões inimagináveis. Só que para entrar na nossa vida, sempre utiliza a porta da graça, não a da necessidade. É o puro Dom, não é imposição. É a pura Surpresa, não é pedra onde tropecemos: "Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20). Pois bem, é com este Deus pura Graça, que respiramos a plenos pulmões e somos em plenitude, mesmo quando não nos suportam e nos votam ao ostracismo. Já com o Deus do Sistema, jamais sairemos da condição de escravos, seja na condição de miserável oprimido, seja na de privilegiado opressor.

2. Quanto ao resto da tua carta, meu caro Victor, creio que ainda anda bastante confusão na tua cabeça. No fundo, aceitas acriticamente uma certa tese sobre Jesus e sobre o movimento ou via que ele desencadeou (não confundir com a religião católica que o imperador Constantino criou no século IV e que contou com o aval da hierarquia da Igreja, a troco do suculento prato de lentilhas com que o Império demoniacamente lhe acenou!) e que tem feito algum sucesso entre certa "inteligência" ilustrada, mas não muito, e que não corresponde de todo à verdade histórica. Não, Victor. Paulo de Tarso não é o fundador do cristianismo. Ele foi decisivo na sua difusão, mas não é o seu inspirador e fundador. Paulo é discípulo de Jesus Crucificado/Ressuscitado, o Libertador de toda a Criação, não apenas dos seres humanos, (mas primeiro, teve de "cair abaixo do cavalo" e deixar que lhe caíssem as "escamas" dos olhos!). O génio do discípulo Paulo foi ter conseguido apresentar Jesus, o Cristo, e o Cristianismo numa linguagem greco-romana, expurgada das categorias culturais judaicas, essas sim demasiado regionalizadas e xenófobas. Mas Paulo não foi o único a fazê-lo. Lê, por exemplo, o Evangelho de Marcos (escrito dez-quinze anos depois do assassinato de Jesus) e verás que aí Jesus é apresentado como Messias (= Libertador), Filho de Deus (não filho de David). Estes títulos indicam, só por si, que o jeito de ser/viver de Jesus interessa não só aos judeus, mas a toda a Humanidade. De resto, é também este Evangelho, inequivocamente mais próximo do Jesus histórico, que não hesita em apresentá-lo a ir reiteradamente ao território pagão, mesmo contra o parecer dos seus próprios discípulos de origem judaica (os "Doze").

3. Concordo contigo com o que referes como "folclore", na vida das sociedades. Mas já não fico tão sossegado perante o fenómeno, como tu pareces ficar. É que quase sempre isso a que chamas o "folclore" na vida das sociedades acaba a ser tratado e vivido pelas pessoas e pelos povos como se fosse o "essencial" das suas vidas e, nessa altura, está o caldo entornado. Nessa altura, as pessoas e os povos alienam-se, perdem-se no secundário, como se estivesse em jogo o "essencial" das suas vidas. E não está. Consequentemente, caem na desgraça e dificilmente reagem, mesmo quando certas vozes lhes gritam – Alerta! e as chamam à indispensável mudança de postura. As pessoas e os povos tornam-se, então, carne para canhão, sem sequer darem por isso. Para grande gáudio e grande proveito de todos os "Paulo Portas", de todos os "Bush" e quejandos, que os há por aí aos montes, em todos os lugares do mundo onde consentimos que medrem hierarquias, quando apenas deveriam medrar a igualdade, a fraternidade/sororidade e, claro, a liberdade para todas e todos!

E-mail. José Vieira: Há algum tempo enviei-lhe algumas linhas sobre a minha visão sobre Maria, a Mãe de Jesus e nossa Mãe (minha porque me revejo nela, pois na verdade é de Inácio Larrañaga, Franciscano, do livro "O silêncio de Maria", das Edições Paulistas). O livro é muito interessante, tem muito de bom e se ainda o não leu, aconselho-o a fazê-lo. Aqui vão, novamente, alguns extractos do livro/reflexão de Inácio Larrañaga (pág. 212):

Maria não é soberana, mas servidora. Não é meta mas caminho. Não é semideusa mas a pobre de Deus. Não é toda-poderosa mas intercessora. Acima de tudo, é a Mãe que continua dando à luz Jesus Cristo em cada um de nós!

Há algum tempo li alguns artigos sobre a teologia Mariana, publicados em Fátima, em que se cai verdadeiramente no ridículo, no absurdo e até na heresia, na minha humilde opinião. Agora para o melhor e pior já existe uma Teologia Mariana a par da Teologia de Deus Trindade Santíssima, do Evangelho e das Sagradas Escrituras! A par de Deus, Maria é Santíssima, quando nós Cristãos proclamamos em espírito e em verdade que só DEUS é SANTO! E tão intima de Deus, que já faz parte da Trindade por assim dizer!... etc... Em Medjugorge, "Maria" exige que "lhe chamem Imaculada pureza e que cunhem uma milagrosa medalha e promete mundos e fundos a quem o fizer, etc...", e todos os dias aparece em Medjugorge a deixar mensagens aos "videntes", repetitivas até ao vómito, num autêntico diálogo esquizofrénico e pior, anunciando o fim do Mundo!

Para quando, um livro seu sobre Maria, a mãe de Jesus? A verdadeira e não a semideusa? A pobre e serva de Deus e não a Soberana Rainha, a quem Jesus "obedece"(!!!!!!!) por ser Sua mãe? Etc... Já por mais do que uma vez, escreveu que fez uma reflexão Mariana com a Comunidade Cristã de Base da Lixa. Para quando a sua publicação em livro para podermos partilhar da sua reflexão?

Não quero chateá-lo tentando interferir na sua vida, longe disso! Sou apenas um Cristão que ama Maria a Mãe de Jesus e de todo o Povo de Deus, e gostaria MUITO de ver publicado um livrinho que fosse, com a verdadeira imagem de Maria, a pobre de Deus, a Libertadora, a amiga, a simples e pobre, a serva fiel e escrava do Senhor Deus (segundo as suas próprias palavras) e não "esta" Maria que nos querem impingir, como semideusa!...

Um grande abraço de comunhão fraterna daqui da Amadora.

N.D.

Meu caro José Vieira:

1. Quando fui pároco de Macieira da Lixa, na década de setenta, publiquei o livro "Maria de Nazaré. Um pequeno povo de pobres reconhece-a como a companheira ideal no esforço a desenvolver para a libertação de todos" (edição da Afrontamento). Mas é um livro datado. Hoje, já não diria certas coisas que lá figuram.

2. Sobre Maria, revejo-me totalmente no texto teológico que faz parte do livro 4, no volume EM MEMÓRIA DELAS. LIVRO DE MULHERES, o último livro que publiquei na Campo das Letras. Tem por título: "O que nunca ninguém disse sobre Maria, mãe de Jesus". Ainda não conhece?

3. Por mim, não gosto de falar de "Teologia Mariana". Como se pode falar em teologia (reflexão sobre Deus), se Maria não é uma deusa, mas uma criatura de Deus?

4. Do pequeno texto que transcreve de um livro sobre Maria, escrito por Larrañaga, acho realmente interessantes algumas das suas afirmações. E congratulo-me com elas. Mas já não gosto que ele diga, por exemplo, que Maria é "intercessora". A que propósito? Então Deus precisa que lhe peçam por nós? Não é Ele quem nos pede a nós? E não é Ele quem toma a iniciativa de nos amar, por pura graça? Como saberíamos dEle, se Ele não nos amasse primeiro? Maria intercessora? Mas será que para chegarmos a Deus carecemos das "cunhas" de Maria ou de santos e de santas? Admiti-lo, não será imaginar Deus como um príncipe todo poderoso e inacessível, em tudo igual aos grandes deste mundo? Um Deus assim só pode ser fonte e causa de ateísmo!

E que dizer dessa outra afirmação de que Maria é "a mãe que continua a dar à luz Jesus Cristo em cada um de nós"?!... Mas então essa não é a missão do Espírito Santo? Não foi o Espírito Santo que deu à luz Jesus Cristo em Maria? E que trabalha continuamente para dar à luz Jesus Cristo em cada um/cada uma de nós? O que o Espírito Santo fez em Maria, não é o que quer fazer em cada uma/cada um de nós também, assim a gente consinta como ela consentiu?

Um abraço, sempre.

Fermedo (Arouca). Margarida Paiva: Venho através do Fraternizar, órgão da comunicação social da Igreja de Base, questionar o papel da Igreja na sociedade. É lamentável neste pleno século XXI em que o Espírito "sopra no feminino", a Igreja na sua hierarquia eclesiástica continua fechada indiferente aos clamores da Igreja que sofre.

Questiono-me: dentro da Igreja os cristãos são catalogados como produtos prontos a consumir com as diversas marcas, mas se essas marcas não representam os padrões estabelecidos, os "desperdícios" transformam-se em saldo. A Igreja continua com métodos da "Santa Inquisição". Exemplo, o Tribunal Eclesiástico. Porquê um(a) divorciado(a) não pode casar de novo pela Igreja? Porquê um(a) divorciado(a) não pode ser padrinho/madrinha de uma criança? Porquê um(a) divorciado(a) não pode ser ministro (a) da comunhão, sacerdote, só pode em ministérios menores? Os divorciados com muito "cacau" podem recorrer ao Tribunal Eclesiástico para anular o casamento. Com que direito o Tribunal pode julgar as pessoas envolvidas?

Os argumentos da Igreja "o que Deus uniu o homem não pode separar" – Deus não interfere na relação afectiva e sexual do homem e da mulher. Jesus não deixou leis. Apenas convidou os "disponíveis": amai os outros como a vós mesmos.

Quantos "sepulcros caiados" de branco, abençoados no santo matrimónio! Quanta violência doméstica educada na cultura judaico-cristã! Quantos abusos sexuais às crianças praticados por altos funcionários da Igreja, perdoados pelo Vaticano! Quanta mentalidade farisaica pelas sacristias!... Urge lutar para que todos possam partilhar o mesmo Reino da utopia.

E-mail. Margarida Bogalho: Foi com imensa alegria que recebi das mãos de um grande amigo uma prenda, Em memória delas, autografado por si em Leiria. Obrigada pelo carinho. Ainda não tive tempo para ler tudo, mas o bastante para o felicitar pela sua dedicação á causa dos/das mais "pobres e marginalizadas" na Igreja Católica. Quando eu era muito jovem e pertencia a um grupo da J.A.R.C. (isso foi na época do 25 de abril), também tive oportunidade de ler outros livros seus que muito marcaram a minha juventude. Continue sempre alerta e sem medo e sem vaidades.

O Senhor é um HOMEM sem medo. Parabéns.

E-mail. Jaime Miguel Soares: Julguei que ia ter uma grande guerra para conseguir chegar até si. Felizmente que ainda há gente, "conhecida" com disponibilidade para os "anónimos" que por aí andam!!! Desde já obrigado, pela rápida resposta e disponibilidade.

Não conhecia o seu trabalho. Após ter visto o programa "Gregos e Troianos" é que tomei conhecimento de algumas das suas ideias.

Depois disso consultei algumas coisas na Internet, inclusivé a sua página.

Apesar de não ser católico e não ser crente em Deus, gostei muitissimo de o ouvir, pelo menos o pouco que foi possivel, no programa televisivo. Considero-me, no entanto, Cristão, mas só e apenas no sentido de admirar o Homem que Ele foi.

Tenho apenas o 12º ano, mas gosto de aprender e admiro, francamente, quem vive de mente aberta ao conhecimento e quem não tem medo de abanar os alicerces do conhecimento, seus e dos outros. Foi com essa ideia que fiquei das suas intervenções e com a sensação de que realmente é alguém que não tem medo de conhecer e dizer o que pensa, mesmo que isso torne a vida menos simples. Além de que, me pareceu a única pessoa, naquele debate, com vasto conhecimento da História e dos factos que acompanharam a evolução da Humanidade relativamente ao Catolicismo. Todos os outros limitaram-se a citar factos das suas vidas e inclusive pessoas com a veleidade de achar que Deus estaria preocupado com o seu Pé-de-Atleta. Enfim, deveras hilariante. Faço apenas uma ressalva ao Exmo. Sr. Padre Carreira das Neves, que sei ser uma pessoa informada e com algum conhecimento na área científica. Que apesar de tudo, naquele debate parece se ter esquecido um pouco disso!

Para mim o debate de ideias é fascinante e penso que é uma pena vivermos numa sociedade em que as pessoas se fecham nos dogmas das Religiões e nos seus próprios.

Tenho tido um diálogo muito engraçado, com um conhecido, o Sousa, um verdadeiro devoto da Igreja Católica. Este diálogo começou após eu ter assistido ao programa e ter referido o seu nome à mesa. O Sousa é empregado no restaurante, onde almoço diariamente há aproximadamente 8-9 anos. Temos portanto bastante confiança um com o outro. O rapaz tem uma aversão a ouvir, sequer, o seu nome que não pode imaginar. Sendo como sou, de imediato prometi-lhe que arranjaria forma de entrar em contacto consigo e que, caso o aceitasse, eu teria todo o gosto em convidá-lo para um almoço.

Assim sendo, a promessa está cumprida, o convite está feito. Seria um enorme prazer conhecê-lo pessoalmente, sendo esta promessa que fiz ao Sousa um excelente pretexto para ter a coragem de lhe enviar esta mensagem. Compreendo que não aceite, uma vez que não me conhece de lado nenhum. Para que, pelo menos possa ter alguma ideia de quem sou: tenho 33 anos, faço 34 no próximo dia 15, nasci em Lisboa, freguesia do Beato (passe a ironia), trabalho em informática, administro um sistema numa empresa, tenho 2 filhos gémeos e adoro conversar e aprender com quem sabe.

Peço desculpa pelo enorme mail, mas mesmo assim fartei-me de apagar coisas que já tinha escrito!

Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com os melhores cumprimentos.


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