Textos do
Jornal Fraternizar |
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Edição nº 150, de Julho/Setembro 2003 | ||||||||||||||||||||||
Destaque 1 Terço do rosário: reza para alienar analfabetos? |
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DESTAQUE 2 Até à próxima Páscoa... pagã Quando chega a Primavera e, com ela, a chamada festa da Páscoa, nem mesmo as Igrejas resistem a celebrá-la com pompa e circunstância. E sem olhar às horas. Todas elas, com destaque para a nossa Igreja católica, vestem de tristeza, durante os 40 dias da quaresma e as duas semanas que se lhe seguem, numa prolongada preparação que mete jejuns, abstinências, múltiplas orações, confissões e comunhões de desobriga, penitências, privação voluntária de coisas boas e legítimas que se têm como proibidas, durante esse longo período. Até as ruas de certas cidades vestem de roxo e no chamado domingo da Paixão, saem procissões dos passos, cujo andor principal exibe a imagem de um deus-homem de dores que haverá de se encontrar com um outro andor que exibe a imagem duma deusa-mulher de dores, e que é suposto ser a mãe do deus-homem de dores. (Sabiam que cinco séculos antes do nascimento de Jesus, já se faziam procissões destas no Egipto, a representar a “Paixão de Osíris”, que incluía a representação da morte e da ressurreição desse deus?) Na última semana antes do dia de Páscoa, chamada semana maior ou semana santa, a vida dos cristãos mais cumpridores das tradições, mais mulheres do que homens, quase pára durante os três dias que antecedem o grande domingo, pelo menos, naquelas zonas onde o turismo religioso é rei. As noites de 5.ª e 6.ª feiras são pesadas, negras de luto, com procissões do Ecce Homo e do enterro do senhor. No interior dos templos, há também uma estranha e sádica cerimónia de adoração da cruz (que tem a ver com a lenda da visão da cruz pelo imperador Constantino “neste sinal vencerás!” e não com a crucifixão de Jesus), para lá de um conjunto de outras cerimónias litúrgicas muito demoradas, feitas de longas orações, recitação de salmos, leituras bíblicas a falar de sofrimento e de dor, de pecados e de penitência. Multiplicam-se preces ritualizadas com pedidos de perdão a Deus, ouvem-se sermões de sacerdotes e pastores, simulam-se propósitos de emenda de vida e chora-se com pena do deus-homem de dores que acaba crucificado, morto e sepultado, ao mesmo tempo que se olha para a sua imagem com compungido reconhecimento, uma vez que se crê que ele foi condenado em nossa vez e em reparação dos nosos pecados. Mas, no início da madrugada do domingo de Páscoa, em plena noite, tocam-se campainhas e sinos, acendem-se todas as luzes, estrelejam foguetes no ar, enquanto os sacerdotes anunciam que o deus-homem de dores, morto e sepultado, saiu do túmulo, ressuscitou. (Pelos vistos, só até à próxima Páscoa, daí a um ano, onde ele voltará a ser morto e sepultado e voltará a ser proclamada a sua ressurreição, e assim sucessivamente, enquanto durar a História) Então, todos os que viveram tristes e penitentes, desde o início da chamada quaresma, voltam a alegrar-se, festejam, cantam, saudam-se e desejam-se boa páscoa, santa páscoa, passam outra vez a comer em abundância, devoram muitos doces e recebem nas suas casas cuidadosamente limpas o compasso ou visita pascal, onde a cruz com a imagem do deus-homem crucificado, devidamente enfeitada, é transportada por um homem real, geralmente, homem de dinheiro, que sempre os há em todas as terras, pequenas aldeias que sejam, o qual faz questão de a dar a beijar aos residentes, por entre repetidas saudações de aleluía e boas festas, ao mesmo tempo que olha para a mesa à procura do envelope com a oferta ou folar para o senhor abade que assim junta muitos milhares de euros só para ele, totalmente isentos de impostos ao Estado! (Vejam só a pequena-grande fortuna que o senhor abade junta, sem esforço nenhum, se a respectiva paróquia é grande em número de famílias católicas e se ele é também o pároco de mais uma, duas, três, ou mesmo mais paróquias ao mesmo tempo...) Mas é assim a Páscoa todos os anos. E não é que toda a gente, a começar pelos sacerdotes das Igrejas e a acabar nos “media” grandes ou pequenos, pensa e diz à boca cheia que está a celebrar a festa da Páscoa de Jesus de Nazaré? Mas não está! O que as Igrejas estão a celebrar, com destaque para a nossa Igreja católica, é a festa da Páscoa do mítico deus-homem das religiões dos Mistérios do Paganismo, que todos os anos, ainda antes de Jesus ter nascido, já ritualmente nascia (e pelos vistos continua ainda a nascer) no início do Inverno, por volta de 25 de Dezembro, e já ritualmente morria/ressuscitava (e pelos vistos continua ainda a morrer/ressuscitar) no início da primavera, por volta de 25 de março! Pode-se por isso dizer que as Igrejas, ao teimarem na celebração ritual da Páscoa, todos os anos, depois de uns meses antes terem feito também a celebração ritual do natal, praticamente mais não fazem do que prosseguir os cultos das velhas religiões dos mistérios do Paganismo, apenas com uma diferença, por sinal, nada substancial: ao mítico deus-homem das religiões dos Mistérios já não chamam mais Átis, ou Mitra, ou Dionísio, ou Adónis, ou Osíris, ou Baco. Agora, chamam-lhe Cristo. Também lhe chamam Jesus, mas muito menos vezes, e, quando o fazem, não atribuem a este nome qualquer corporeidade física e qualquer intervenção histórica, de modo que até esse continua a ser para elas mais um nome do mítico deus-homem das religiões dos mistérios do Paganismo. Na verdade, o homem judeu, Jesus de Nazaré, que nasceu por volta do ano 5 antes da era cristã, na província da Galileia, que abriu os olhos da consciência de muitas e de muitos do seu povo e fez andar, falar e levantar muitas e muitos do seu povo, que enfrentou e desmascarou todos os representantes do poder do seu tempo, tanto os dos judeus, como os dos romanos, que inclusive destruiu simbolicamente o Templo de Jerusalém, e que foi crucificado, morto e sepultado na Judeia, por volta do ano 30, na sequência dum julgamento no tribunal judaico e no tribunal do Império romano, não interessa nada às Igrejas, nem às populações em geral, nem aos grandes da Ordem Mundial. Ele apresenta-se, ontem, hoje e sempre, com uma teologia ou visão de Deus demasiado misericordiosa e libertadora que não coincide em nada com a cruel teologia dos sacerdotes e dos teólogos oficiais do Templo de Jerusalém e do Império romano, nem com a teologia deísta dos sacerdotes e pastores de todos os templos e de todos os impérios. Isto, para além dele próprio ser um Homem demasiado perigoso politicamente que, para cúmulo, nunca quis ser rei, muito menos, Deus! Às Igrejas, só pode mesmo interessar o mítico deus-homem das religiões dos Mistérios do Paganismo que, ao nascer e morrer ritualmente todos os anos pelos nossos pecados, garante às cúpulas de todas elas, que se têm na conta de suas intermediárias, grandes receitas em dinheiro, muito poder e prestígio e não poucos privilégios. Às populações em geral, também só mesmo este mítico deus-homem é que lhes interessa, e não o Homem de carne e osso, Jesus de Nazaré, nem o seu projecto de libertação e de emancipação da Humanidade. E porquê? Porque só esse mítico deus-homem as dispensa do dever de crescerem em responsabilidade pessoal e colectiva e do dever de se tornarem sujeitos das suas próprias vidas e verdadeiros protagonistas na História. Com ele, para elas pensarem que se salvam eternamente, basta que não deixem de pagar reverentemente aos sacerdotes e aos pastores das Igrejas o que estes autoritariamente lhes exigem, e que frequentem com mais ou menos regularidade os cultos públicos em locais e dias certos, onde eles sempre pontificam sem qualquer contestação, como se o próprio mítico deus-homem os tivesse investido nessas funções de intermediários entre ele e elas. Igualmente,os grandes deste mundo que o são em tudo, até nos hediondos crimes estruturais que impunemente cometem pensem em Bush, por exemplo podem também continuar a dormir descansados, porque a simples manutenção destes cultos rituais em honra do mítico deus-homem que todos os anos nasce, morre e ressuscita, mais a ideologia religiosa que lhes está subjacente, deixam nos indivíduos e nos povos a falsa convicção e essa é a Mentira maior que mantém a Verdade cativa na injustiça de que a presente Ordem Mundial, onde eles, mai-los sacerdotes das Igrejas, os pastores das religiões e todos os ricos são olhados como senhores quase divinos e como benfeitores do género humano, é uma Ordem Mundial boa e justa que ninguém, nem mesmo os milhares de milhões de vítimas humanas que ela continuamente fabrica, pode, alguma vez, ousar pôr em causa. Coisa que Jesus de Nazaré, como se sabe, não só ousou fazer, como de facto fez. E por isso é que logo o mataram como o maldito, o blasfemo, o endemoninhado, o subversivo, o terrorista, o ateu. Para que nunca ninguém mais lhe seguisse as pisadas. Mas ao constatarem, algum tempo depois, que, mesmo assim, havia quem persistisse em fazer memória dele, isto é, quem persistisse em tê-lo como referência última e como o paradigma do ser humano integral e definitivo, com quem todas as mulheres e todos os homens nos haveremos de parecer, os grandes do mundo levaram ainda mais longe a sua mentira e guindaram Jesus à condição de mítico deus-homem das religiões dos mistérios do Paganismo, sob o título de Cristo, um título que servia às mil maravilhas para cativar o interesse tanto de judeus (para eles, Cristo quer dizer Messias), como de gregos e dos pagãos em geral (para estes, Cristo quer dizer deus-homem). Alguns anos mais tarde, esses mesmos grandes do mundo levaram ao extremo a sua mentira e decretaram que Cristo, e só Cristo, é credor de culto público em toda a terra, precisamente, o mesmo culto público que anteriormente era tributado ao mítico deus-homem, sob a designação de múltiplos outros nomes. Desde então para cá, Cristo (sempre nos têm feito crer que Cristo e Jesus são a mesma realidade, mas não são. E a verdade é que o nome Jesus quase já não aparece nas cartas autênticas de Paulo ver, por exemplo, todo o capítulo 15 da 1.ª Coríntios e, quando aparece é quase como uma espécie de adjectivo de Cristo) transformou-se no grande nome canonizador da Ordem Mundial dominante, como anteriormente sempre o haviam sido os outros nomes sob os quais o mítico deus-homem era cultuado pelos múltiplos povos do mundo. E canonizadoras da Ordem Mundial dominante tornaram-se também as duas grandes festas rituais anuais em sua honra: a do natal, na qual é anunciado que ele nasce, como deus-homem, e a da páscoa, na qual é anunciado que ele morre e ressuscita. |
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EDITORIAL Nome de Deus fora do projecto de Constituição da União Europeia |
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Espaço Aberto Leonardo Boff (Brasil): Auto-limitação: virtude ecológica O pavor suscitado pelo lançamento de bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, foi tão devastador que mudou o estado de consciência da humanidade. Introduziu-se a perspectiva de destruição em massa, acrescida posteriormente com a fabricação de armas químicas e biológicas, capazes de ameaçar a biosfera e o futuro da espécie humana. Antes, os seres humanos podiam fazer guerras convencionais, explorar os recursos naturais, desmatar, lançar lixo nos rios e gases na atmosfera e não havia grandes modificações ambientais. A consciência tranquila assegurava que a Terra era inesgotável e invulnerável e que a vida continuaria a mesma e para sempre em direção ao futuro. Esse pressuposto não existe mais. Mais e mais nos damos conta daquilo que a Carta da Terra atesta: “Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida. Esse documento, já assumido pela UNESCO, representa a nova perspectiva planetária, ética e ecológica da humanidade. Os factos que sustentam o alarme são irrecusáveis: só temos essa Casa Comum para habitar; seus recursos são limitados, muitos não renováveis; a água doce é o bem mais escasso da natureza (só 0,7 é acessível ao uso humano); a energia fóssil, motor do desenvolvimento moderno, tem os dias contados; e o crescimento demográfico é ameaçador. Ultrapassamos já em 20% a capacidade de suporte e reposição da biosfera. Querer generalizar para toda a humanidade o tipo de desenvolvimento hoje imperante, exigiria outros três planetas iguais ao nosso. A grande maioria não pensa em tais coisas, pois parece-lhe insuportável lidar com os limites e eventualmente com o desastre colectivo, possível ainda na nossa geração. Esses problemas são graves. Mas há ainda um maior: a lógica do sistema mundial de produção e a cultura consumista que ele gerou. Ele diz: devemos produzir mais e mais, sem impor limites ao crescimento, para podermos consumir mais e mais, sem limites ao cabaz de ofertas. A consequência imediata desta opção é uma dupla injustiça: a ecológica com a depredação da natureza; e a social, com a gestação de desigualdades entre aqueles que comem à tripa forra e os que comem insuficientemente, caindo na marginalidade ou na exclusão. Se quisermos garantir um futuro comum, da Terra e da humanidade, impõem-se duas virtudes: a auto-limitação e a justa medida, ambas expressões da cultura do cuidado. Mas como postular essas virtudes, se todo o sistema está montado na sua negação? Desta vez, porém, não há escolha: ou mudamos e nos pautamos pelo cuidado, auto-limitando-nos na nossa voracidade e vivendo a justa medida em todas as coisas, ou enfrentaremos uma tragédia colectiva. A auto-limitação significa um sacrifício necessário que salvaguarda o Planeta, tutela interesses colectivos e funda uma cultura da simplicidade voluntária. Não se trata de não consumir, mas de consumir de forma responsável e solidária para com os seres vivos de hoje e que virão depois de nós. Eles também têm direito à Terra e a uma vida com qualidade. |
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Porfírio Borges (Porto): Viver hoje Não haverá concerteza quem não tenha presente o Evangelho de S. Marcos que nos fala da multiplicação dos pães.De acordo com a passagem relatada em 6, 34-44, Jesus com cinco pães e dois peixes deu de comer a cinco mil pessoas. Perante este facto, a multidão entusiasmada, porque não entendeu que a verdadeira razão desta multiplicação não tinha em conta simplesmente o alimento, mas sobretudo a oportunidade para nos explicar o que é a partilha, logo o quis fazer rei. No entanto, os milagres não acontecem para resolver os problemas de ordem material, mas sobretudo para nos levarem a viver para os outros e a amar o próximo como a nós mesmos. O milagre está em aceitar que os evangelhos não se confinam a relatar “coisas” do passado, mas que são apelo ao nosso compromisso actual. O milagre, de verdade, não está propriamente no acto da multiplicação, mas no aprender a partilhar a vida, o tempo, os conhecimentos e afectos e a reconhecer que a alegria de dar é muito superior à de receber. É bom não esquecer que a fome não é só de pão, mas é igualmente a falta de habitação, trabalho, ordenado e de uma amizade na hora certa. Sem uma aderência a compromissos com as realidades da vida, jamais haverá solução para os povos que continuam só a sentir a fome do pão dos homens e não a do pão da vida. Só a nossa solidariedade com os que sofrem, moral e espiritualmente, partilhando com eles aquilo que temos e somos, poderá contribuir para eliminar as barreiras das desigualdades existentes. Acreditamos que, embora haja muito para fazer, o pouco que cada uma/cada um vai fazendo ajuda a transformar o mundo, no qual o importante não é o comprar para acumular, o vender a preços exorbitantes e o possuir só para si. O mundo que desejamos tem de ter espaço para a ajuda mútua, para partilharmos as nossas ideias e capacidades e para que se faça tudo para ajudar os outros. É um sonho? Talvez. Todavia, temos que acreditar que este mundo já começou. Há com efeito muitos cristãos que já entenderam que a partilha não acontece só na eucaristia, o que seria demasiado simples, mas também na vida, pois acreditam que o alimento, o trabalho, a dignidade, a possibilidade de aprender, a liberdade de falar, de se deslocar e sonhar estão intimamente unidos. Importa assim continuar a desenvolver as condições que permitam que todos possam ter a alegria de conhecer a Deus e de o poder celebrar em todos os acontecimentos. Como a verdadeira mensagem que o Evangelho da “multiplicação dos pães” ainda está longe de se cumprir, devemos responder positivamente ao apelo de Deus: - Amigos, vinde todos, pois que o Evangelho é para ser vivido hoje e sempre! N. D. Novo livro do Porfírio: Casos da Vida. Novas páginas do Evangelho Com o título "CASOS DA VIDA. Novas páginas do Evangelho", o nosso amigo e companheiro Porfírio Borges acaba de publicar mais um livro de crónicas, bastantes das quais, viram a luz primeira nas páginas do Jornal Fraternizar. O livro, de 231 páginas, é editado pelas conhecidas Edições Salesianas (Rua Dr. Alves da Veiga 124, Apartado 5281, 4022-001 Porto; Tel. 22 536 57 50; Fax 22 536 58 00; E-mail: edisal@telepac.pt). As crónicas apresentam-se agrupadas por temáticas e cobrem um período de mais de trinta anos. Lê-las é fazer uma viagem no tempo, deixar-se surpreender pela reflexão oportuna e lúcida de um homem assumidamente cristão católico, militante activo e dinâmico da Acção Católica, particularmente, na JOC e na LOC. Como o próprio Porfírio gosta de sublinhar, é um homem sem "canudos" universitários que, mesmo assim, se "atreve" a escrever, a intervir, a tomar partido. Fá-lo com a autoridade do testemunho pessoal, do militante comprometido, do homem que não consegue fazer como o sacerdote e o levita da parábola lucana do Samaritano, que sempre preferem passar ao lado de quantas e quantos estão caídos na valeta da vida, não por uma fatalidade qualquer, mas porque outros, de profissão ladrões e salteadores, assim os deixam. Neste livro, o Porfírio está inteiro, homem de causas e com causas, pelas quais se bate até ao fim, numa coerência que faz arrepiar a muitos e muitas. Jornal Fraternizar congratula-se com este lançamento e associa-se à alegria do Porfírio e da sua casa, ao mesmo tempo que recomenda a leitura atenta do livro. (Se quiserem, dêem uma palavrinha ao Porfírio. Eis o telefone: 22 536 28 58. |
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Frei Betto (Brasil) 1. Avanços do ‘Programa Fome Zero’ Guaribas, no Piauí, tem pouco menos de 5 mil habitantes e é um dos mais pobres municípios do Brasil. Ali começou o Programa Fome Zero. Na verdade, imprescindível era o Programa Sede Zero. Para obter água, há 50 anos a população percorria 4 km até uma serra, onde uma gruta abriga pequena nascente. Mulheres e crianças cobriam, diariamente, os 8 km carregando baldes na cabeça. Graças ao Fome Zero, um conjunto de caixas d'água bombeia a água barrenta de uma lagoa situada no perímetro urbano e, através de um chafariz, entrega à população água potável. Em outubro, 5 mil metros de rede de distribuição chegarão às casas. Dona Lídia Dias, 36 anos, contava como é bom ter água perto de casa, quando seu marido, Salvador Alves, 43, interveio: “Essa água está uma beleza. A gente só fazia filho de dia, pois minha mulher saía à 1h da tarde para buscar água e só voltava às 6h da manhã.” Marleide Alves Duarte, 20 anos, disse que antes do chafariz ela costumava chegar à fonte da gruta à 1h da madrugada e sair dali às 7h da manhã: “As mulheres faziam coivaras para aquecer os corpos. Ninguém suportava o cheiro do marido, porque ele voltava do trabalho e não podia banhar-se. Agora, esses anos de sofrimento acabaram.” Além de favorecer a vida sexual dos casais, o Fome Zero procura saciar a fome de pão e de beleza. Guaribas colheu neste ano 160 toneladas de feijão. Pela primeira vez, ninguém negociou directamente com os atravessadores, que ofereceram R$ 22,00 por saca. A comunidade organizada decidiu vender colectivamente através de leilão. A saca foi vendida a preços que variaram entre R$ 50,00 e R$ 70,00. O Fome Zero é um conjunto de políticas públicas. Menos importante no programa é distribuir alimentos. Mais importante é propiciar renda, emprego, resgate da auto-estima e da cidadania. Em Acauã (PI), outro município piloto, uma senhora de 73 anos, alfabetizada em três meses, pediu ao agente de segurança alimentar: “Quero ir ao sindicato rural mudar minha carteira de aposentada.” Ele não entendeu a razão. Ela acrescentou: “Lá tem o meu dedo. Agora quero botar minha assinatura.” No Piauí, o programa já se estendeu a 84 municípios. Em breve, serão 108. Até o fim do ano, mil em todo o semi-árido nordestino, incluindo o Vale do Jequitinhonha, em Minas. A meta no Piauí era implantar, em 180 dias, dois comitês gestores. Em 120 dias são 24. Documentação completa, de certidão de nascimento a CPF, já foi entregue a 337 pessoas. Feiras municipais funcionam em Guaribas e Acauã, onde estão sendo construídos mercados públicos. A electrificação levou luz a quatro povoados rurais de Guaribas. A previsão de assegurar, em 180 dias, a posse do cartão-alimentação a mil famílias foi significativamente superada: em 120 dias, 13.307 famílias de 24 municípios piauienses já podiam retirar mensalmente R$ 50,00 nas agências da Caixa Económica Federal. Estão sendo construídas em Guaribas, Acauã, Alta e Vila Irmã Dulce, em Teresina, 1.500 moradias, todas com sete cómodos. Estavam previstas 430 fossas sépticas nos primeiros seis meses. Foram abertas 1.500 em 4 meses. Nos dois municípios-piloto, o Analfabetismo Zero já favoreceu 600 adultos. Os alfabetizadores - estudantes e professores da região - ganham no final do curso, que dura três meses, R$ 100,00 por aluno alfabetizado, ou seja, cerca de R$ 1.900,00 pelos três meses de trabalho. E cada alfabetizado recebe, com o diploma, R$ 200,00, mais R$ 100,00 pela carta enviada ao presidente Lula e mais R$ 100,00 pela carta remetida ao governador Welllington Dias. Assim, a fome de letras reactiva a economia local, saciando também a de pão. Em fevereiro último, o programa “Fantástico”, da TV Globo, mostrou a favela Piratininga, em Osasco (SP), onde vivem emigrantes de Guaribas. Risonaldo Ferreira Alves, 23 anos, vivia ali e trabalhava como ajudante de pedreiro. Atraído pelas boas notícias do Fome Zero, retornou ao município: “Voltei porque estão ocorrendo mudanças. Guaribas não tinha nada. Não tinha calçamento, não tinha empregos. Não dava para sobreviver.” Agora, ele será empregado pela Cohab (Cooperativa Habitacional) do Piauí na construção de casas. Aderismar de Andrade Dias, 20 anos, também retornou a Guaribas, abandonando em São Paulo o trabalho com moldura de gesso, pelo qual recebia R$ 250,00 mensais. Agora, presta serviço à construção de casas, dirigindo o camião do pai, e ganha, em média, R$ 30,00 por dia no transporte de material. No final do mês, Aderismar vai ganhar mais do que em São Paulo. “E com a vantagem, diz ele, de morar com meus pais, não ter medo da violência e não viver em favela.” A população de Guaribas reivindica também uma rádio comunitária. Além de informação, ela quer expressar a sua palavra. Palavra é sinónimo de Deus, Verbo que se fez carne. Esse resgate de cidadania propiciado pelo Fome Zero é, sem dúvida, o seu maior mérito, que o define como um combate não apenas da fome, mas sobretudo da exclusão social. Como alertava S. Tomás de Aquino: “Não se pode exigir a prática das virtudes de quem passa fome.” Oito séculos depois deste alerta, pelo menos o governo brasileiro entendeu que sem pão não há paz. Esta, como bradou o profeta Isaías há quase três mil anos, deve necessariamente ser filha da justiça. Nesse sentido, o Programa Fome Zero lança também as sementes da Violência Zero. 2. Conexões A mecânica de Newton e a física clássica enfrentaram o desafio de construir novos modelos de explicação do mundo sem falar de Deus e do nosso eu. A física quântica rompe com essa tradição. As ciências experimentais são manejadas por homens e mulheres que, hoje, não se contentam em descrever e explicar a natureza. Eles sabem que há uma interacção entre nós e a natureza. O nosso corpo e o nosso pretensioso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre você, eu e o Universo. Quanto a Deus, ele não pode ser encontrado por equações integrais, mas, agora, vemo-nos livres do mecanicismo e do determinismo que nos impediam de contemplar a natureza com um pouco mais de sabedoria. A poesia também extrapola os conceitos. Ainda que a hipótese cosmológica do Big Bang venha a ser rigorosamente “provada”, nem por isso a crença criacionista deve considerar-se premiada. Não concerne à ciência comprovar a existência ou a inexistência de Deus. Para Isaac Newton, os “princípios matemáticos da filosofia natural” teriam demonstrado definitivamente a existência de Deus na verdade, um deus-tapa-buracos. Ora, a própria ciência deve tapar os seus buracos. São falsos os deuses das convicções científicas. E débil a fé que busca apoiar-se em dados da ciência. Estaríamos no limiar de uma nova Renascença? Acredito que, pelo menos, estamos no limiar de uma nova ontologia e de uma nova epistemologia. Ou de uma holoepistemologia, como sugere Roberto Crema, que integraria e, ao mesmo tempo, superaria a epistemologia cartesiana e o método dialéctico. O que haveria para re-nascer? Assim como a fé bíblica vai em busca de suas origens para assegurar sua natureza amorosa e consistência histórica “a fé de Abraão, Isaac e Jacob” também o marxismo considera a infra-estrutura da sociedade fundamental na explicação de seu conjunto, bem como a psicologia busca resgatar o passado do paciente para melhor entender o seu presente. Não é mera coincidência. Marx e Freud são tributários de suas raízes judaicas. Portanto, teríamos a resgatar na história da humanidade a vitalidade original das grandes tradições religiosas, a interacção entre o ser humano e a natureza, a mística como transcendência da razão e plenificação da inteligência, os mega-relatos como âncoras de paradigmas, a comunidade como espaço de humanização, personalização e socialização. Disto não tenho a menor dúvida: estamos mergulhados em plena crise da modernidade. Já não há um determinado lugar que nos propicie a inteligibilidade do todo. Nem uma razão que nos sirva de belvedere [= terraço, mirante] para apreciarmos o panorama geral. A indeterminação e o aleatório escapam à razão, quais peixes furtivos nadando através dos buracos da rede. Talvez, agora, intuição e emoção se tornem actrizes de destaque no palco de nossa inteligência. 3. O espírito capitalista O sistema capitalista que deita raízes na quebra da sociedade feudal e no advento da manufactura, alavancou-se com a revolução industrial, no século 19. Expandiu-se, acelerou a pesquisa científica e o progresso técnico. Aumentou a produção e agravou a desigualdade na distribuição. De seu ventre contraditório surgiu o socialismo que aprimorou a distribuição sem conseguir desenvolver a produção. A onda neoliberal derrubou o socialismo europeu qual castelo de areia. Hoje, o capitalismo é vitorioso para as nações da União Europeia e da América do Norte (excluindo o México). No resto do mundo, deixa um lastro de miséria e pobreza, conflitos e mortes, salvando-se as elites que, em seus respectivos países, gerenciam os negócios segundo o velho receituário colonial, agora prescrito pelo FMI: tudo para benefício da metrópole. Em plena globocolonização, o capitalismo é também vitorioso em corações e mentes. Nem em todos. Há ricos, remediados e pobres que não possuem espírito capitalista. São pessoas generosas, altruístas, capazes de se debruçar frente ao sofrimento alheio e de estender a mão em solidariedade a causas coletivas. Porém, a tendência do espírito capitalista é aguçar o nosso egoísmo; dilatar nossas ambições de consumo; activar nossas energias narcísicas; tornar-nos competitivos e sedentos de lucro. Criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais, indiferentes à miséria, alheias ao drama de índios e negros, distantes de iniciativas que visam defender os direitos dos pobres. Moldar esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social; assume a cultura da glamourização do fútil; diverte-se com entretenimentos que ridicularizam os pobres e a mulher, como são exemplos os programas de humor na TV. O capitalismo promove, em nossa consciência, tamanha inversão de valores, que defeitos qualificados pelo cristianismo de “pecados capitais” são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça. O capitalismo é irmão gémeo do individualismo. Ao exaltar como valores a competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses, interioriza em muitos ambições que os afastam do esforço colectivo de conquista de direitos, para mergulhá-los na ilusão pessoal de que, um dia, também eles, como alpinistas sociais, galgarão o pico da fortuna e do sucesso. A magia capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo o conceito gregário, como nação ou povo. O que há são indivíduos atomizados, premiados pela loteria biológica por não terem nascido entre os pobres, ou pela roda da fortuna, que os fez ascender miraculosamente para o universo em que os sofrimentos morais são camuflados sob o brilho da opulência. O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na empregada doméstica, no camponês e no motorista de táxi. E a ricos, remediados e pobres induz à apropriação privada, não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos: oro para alívio dos meus problemas e a cura de minhas doenças; voto no candidato que melhor corresponde às minhas ambições; adopto um comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio. Esse espectro de ser humano não conhece a cooperação e a gratuidade; considera a generosidade uma humilhação; encara a pobreza insubmissa como caso de polícia; faz da função de mando uma segunda pele; trata os subalternos com desdém. O mundo centra-se no seu umbigo. Ainda que não tape as orelhas ao ouvir falar em “amor ao próximo”, do outro ele se faz próximo quando estão em jogo seus interesses e ambições. Mas prefere distância, se o outro sofre, decai socialmente ou mergulha em fracasso. O seu espelho é o da bruxa que indaga: “Há alguém tão bem-sucedido quanto eu?” Se a resposta é positiva, então quer conhecê-lo, adulálo, idolatrá-lo, tocá-lo, como a um ícone religioso do qual se espera graças e proveitos. Capitalista não é apenas o banqueiro, o tio Patinhas. É também o Donald, que o inveja e se submete aos seus caprichos. O mundo é para ele um jogo de espelhos, no qual se vê projectado nas mais variadas dimensões. Ele inveja os que estão acima dele e nutre ódio por quem o ameaça como concorrente. Quando se faz religioso, é para ganhar o Céu, já que a Terra lhe pertence. Dá esmolas, jamais direitos; acende velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da sociedade; é capaz de reconhecer Cristo na eucaristia, nunca no rosto de quem padece fome, é sem-terra ou sem teto. Horroriza-nos pensar que, outrora, a sociedade praticou o canibalismo. Quem sabe se alimentar-se com a carne do semelhante, em vez de entregá-la ao repasto dos vermes, não será mais saudável e ético do que, hoje, excluí-lo do direito de simplesmente ser humano. |
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Manuel Reis (Guimarães): “Ser de Esquerda”. Contra o simplismo do director do ‘Expresso’ Publicamos aqui, quase como aperitivo, apenas as três primeiras páginas A4 de um trabalho que se estende por mais quatorze. Ao autor, o querido Amigo e Companheiro, Dr. Manuel Reis, pedimos desculpa e apelamos à sua compreensão. Mas razões de espaço a isso nos obrigam. Somos um pequeno jornal e, agora, com periocidade trimestral. Quem, entretanto, estiver deveras interessado em conhecer o texto integral, pode manifestar-se nesse sentido. E, ou o Autor, ou o Fraternizar providenciarão para que esse desejo seja satisfeito. Na rubrica Política à Portuguesa (Expresso, 18 de Abril de 2003), José António Saraiva (JAS), no artigo titulado “Ser de esquerda”, porfia hodiernamente em defender a tese simplista/simplória de que “a atitude perante a igualdade é o que distingue a esquerda da direita”. A tese é induzida a partir dos três epónimos aí referenciados: Saddam, Otelo e Fidel. Não se trata, expressamente, do Editorial do periódico citado; mas, procedendo da pena do Director do Jornal semanário e dentro da moldura de uma rubrica consagrada, é forçoso considerar o texto de JAS como um super-editorial. Daí, a sua responsabilidade maior... O texto constitui o paradigma das mais gritantes e confrangedoras superficialidades, na análise e abordagem da temática, nas conclusões e nos postulados (ideológicos...) que pretende organizar e epitomar em doutrina oficial (Consensus de Washington obriga!...) e difundir como cartilha do Império. Como é tão fácil o curto-circuito mental, em pessoas supostamente inteligentes e sensíveis!... A tolerância é devida aos Indivíduos-Pessoas. Quanto às ideias, se as consideramos certas, integrá-las-emos; se as achamos duvidosas ou erradas, discutimo-las e combatemo-las. JAS fez-me transbordar a taça da compreensão e da paciência mental. Não vou seguir a via do atalho, que deixaria a minha resposta anónima, no meio das cartas anódinas que são recebidas no jornal, transitadas pelo crivo da selecção e, depois, publicadas ou não. Esse é o caminho habitual da submissão ao Poder estabelecido, da submissão à “Law and Order”. Preferimos tomar o caso de JAS como paradigma dos turiferários do discurso oficial, segundo a cartilha da Ideologia dominante e do pensamento único, tão típicos do contemporâneo capitalismo neoliberalista de ambição imperial-planetária. Porque, na verdade, ele é-o, de facto. Pese embora a rubrica em causa chamar-se “Política à Portuguesa”, temos o direito e fazemos essa justiça a JAS de não o assumir como palhaço num jogo de robertos, onde nem sequer existiria uma linha de água separadora entre a crítica e a aceitação submissa da realidade. A ironia (a sábia e santa ironia) carece de condições situacionais de inteligibilidade para tomar corpo e fazer o seu caminho. E aqui, não se vê na moldura e no texto, quaisquer revérberos que a evoquem ou invoquem!... No texto em análise, JAS parte deste contraponto dogmático: a esquerda procura construir uma sociedade que tenha por objectivo a igualdade entre todos os cidadãos; a direita rejeita um tal projecto de sociedade, “argumentando que as sociedades progridem não pela procura da igualdade mas pela valorização das diferenças”. Entretanto, “ao pretender uma sociedade igualitária, a esquerda mostra uma face mais humana e um superior sentido de justiça. Sucede que o problema é outro. O problema é que sendo as pessoas diferentes, a igualdade só se consegue através da repressão. [Haverá hebetismo mais estúpido?!...] Da limitação de direitos. Do condicionamento da liberdade. Uma sociedade igualitária supõe um poder forte e autoritário, exercido por uma força política organizada, chefiada por um líder carismático”. Transitando do plano crítico para o plano propositivo, continua JAS o seu discurso como segue: “Para a esquerda ultrapassar este problema, tem de repensar a questão da igualdade. No fundo, tem de abdicar dessa ideia. Tem de aceitar que os indivíduos são diferentes. Tem de perceber que o “socialismo em liberdade” é uma utopia, porque socialismo e liberdade são incompatíveis. [Haverá hebetismo mais estúpido?!...] O socialismo, como sistema tendencialmente igualitário, só pode ser imposto pela força. Quanto à liberdade, conduzirá sempre não ao socialismo mas ao liberalismo, à sociedade de mercado, onde a iniciativa é valorizada e os seres humanos revelam as suas diferenças”. “Tal pai, tal filho”?! Não... Quão diferente (no pior sentido das confusões e dos abastardamentos...) é o autor do texto em apreço, em confronto com aquel’outro Autor inteligente e sensível (António José Saraiva), que sempre foi um exemplo de integridade e insubmissão, tanto em textos sócio-políticos, como o livro “Maio e a Crise da Civilização Burguesa” (1969), que são mensagens fundadamente programáticas, como nas bem pronunciadas divergências críticas concernentes à “Realpolitique” (desde logo em debates com A. Cunhal sobre os rumos da política soviética, no caso da “Primavera de Praga”/1968, liderada por A. Dubcek, chefe do Partido Comunista checoslovaco, e logo esmagada pelo Exército Vermelho), a qual tomou corpo e fez caminho entre os “Dois Blocos”, durante o chamado “período da guerra fria”. Deve aqui advertir-se que, tendo sido agraciado, em 1982, com o Grau Oficial da Instrução Pública, António José Saraiva não o recebeu por, nos seus próprios termos, sempre haver considerado como “incoerentes com o Estado Democrático as distinções honoríficas, que equivalem à intenção de criar uma nobreza entre cidadãos e que implicam que esse Estado tenha competência na esfera moral”. Em suma, podemos ver, em tal posição, a cordura e a honestidade democráticas levadas até ao fim; o exemplo paradigmático da Fé na Democracia, ou, por outras palavras mais precisas, da Fé sócio-antropológica nas Pessoas/Cidadãos, a tal ponto que elas não se podem constituir cabalmente, enquanto Seres Humanos, senão em verdadeiro e autêntico Regime Democrático. Quer isso dizer que nos achamos nos antípodas daquela concepção democrático-liberalista da democracia, a qual, v.g. segundo Churchill, seria apenas o menos mau dos regimes políticos!... A avaliar pelo texto acima referenciado e pelos parágrafos transcritos, JAS configura-se sem dúvida como um bom altifalante da contemporânea Ideologia dominante, hoje mais do que nunca estigmatizada pelo “pensamento único” e por uma cartilha de Decisões/Vontades concentracionariamente unificada. Nunca é demais confrontá-lo com o pai, que se situa, a este respeito, num quadrante diametralmente oposto. O filho, na verdade, continua a queimar incenso à “Realpolitique” (fustigada pelo pai): seja ela a que tomou corpo, em diapasão expressamente político, no período da chamada “guerra fria” entre os “Dois Blocos”; seja ela a que, desde há um quarto de século, se foi modelando a partir do império absoluto do economicismo e das multi-transnacionais, arregimentado pela Tecnociência de Aparelho e pelo fascismo soft, em vias de generalização à escala do Planeta. Com efeito, a “Realpolitique” tem o condão de reduzir, primeiro, e, depois, inibir definitivamente os conflitos entre os interesses e os princípios; adoptando a solução estratégica de transformar os princípios em interesses de segunda ordem, confiando aqueles a uma irredutível função meramente pragmatista. No limite, já não há princípios; há apenas interesses, que se subordinam uns aos outros, segundo a “lei do mais forte”. Os primeiros acabaram por ser completamente abandonados, por já não terem funções identitárias a cumprir. Consideremos, a título de exemplo, o caso da cedência, com pompa e circunstância, da base das Lajes, nos Açores, por parte do actual Governo. A esse propósito, a dialéctica entre interesses e princípios foi muito bem esquadrinhada por Viriato Soromenho-Marques (in JL, 16.4.03, p. 40). Nesse artigo, estabelece ele duas teses centrais, que importa destacar: A) “Os EUA perceberam que era do seu interesse apoiar os princípios da ONU quando foi criada, mesmo que muitas vezes, o seu interesse nacional directo levasse a colocar temporariamente esses princípios entre parêntesis”. B) “o projecto de uma Europa de princípios está hoje em causa. E não se acuse Paris ou Berlim de terem atirado a primeira pedra. Talvez sem o saber, este Governo pode ter contribuído para dar realidade à mais sombria interpretação da Jangada de Pedra de Saramago. Torná-la no argumento de um efectivo e patético destino nacional”. |
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Outras Cartas LIBERTE-SE DO DEMÓNIO! Coimbra. António Correia: Fechei agora a televisão. É 1h da tarde. Acabo de ver a transmissão de Fátima. E acabo (acabou-se a caneta e começo a escrever com o lápis!) de rezar uma Avé-Maria por si. E isto porque tenho aqui na minha frente o seu Jornal Fraternizar, com o “13 de Maio alternativo”. Perante o que acabo de ver na televisão e o que acabo de ler no seu jornal, só lhe posso dizer: “liberte-se, Pe. e quanto antes... Olhe que amanhã pode ser tarde! “Não vê que o dia vai já adiantado e que a noite se aproxima”? Não vê e não sente?... Que felicidade para si sobretudo para a hora da sua morte o reencontro com Maria, a mãe de Jesus e também a sua mãe. Peça-lhe perdão já! Liberte-se Pe., liberte-se do demónio! Cumprimentos. ND Também eu vi parte da transmissão televisiva do “13 de Maio”. Havia sido previamente anunciado em grandes parangonas que, este ano, eram esperadas umas setecentas mil pessoas em Fátima! (Quem terá sido o inventor de semelhante facto católico-fatimista? Os responsáveis do referido santuário?) Afinal, o número real de “peregrinos” não terá chegado aos duzentos mil, segundo alguns jornais, o que é manifestamente insignificante, para uma peregrinação internacional, num universo de mais de seis mil milhões de pessoas, que tantas são as que povoam hoje o nosso planeta. Do que me foi dado ver e ouvir, concluí, mais uma vez, que aquilo que ciclicamente ali acontece não tem nada a ver com Maria, mãe de Jesus. Só pode ser um insulto ao seu nome e à sua memória. Como é um insulto à nossa inteligência, à nossa liberdade e à nossa dignidade de seres humanos. Tudo aquilo é puro paganismo religioso, disfarçado sob nomes e referências evangélicas e cristãs. Tem tudo a ver com os cultos às imagens de deusas e de deuses, que as comunidades cristãs primitivas conheceram e combateram no seu tempo, como alienação e idolatria. Entre este culto à deusa/senhora do santuário de Fátima e o culto à deusa Ártemis do santuário de Éfeso, por exemplo, que S. Paulo tanto combateu e por causa do que foi ferozmente perseguido, não há diferenças substanciais. Compreendo que as forças vivas do país, nomeadamente turísticas, e a hierarquia da Igreja católica não queiram perder, por nada deste mundo, aquela galinha de ovos de oiro, mas não posso identificar aquilo com Maria mãe de Jesus, muito menos, com o próprio Jesus, o Cristo. Nem me venham dizer que a procissão das velas e a procisão do adeus são momentos de rara de beleza. Rituais de opressão de massas é o que são. Aliás, a pior opressão é aquela que se faz com a conivência e a adesão das próprias vítimas. Não há “13 de Maio” que se preze, que não tenha a sua procissão de velas e a procissão do adeus, com o espectáculo de milhares de velas acesas e de milhares de lenços brancos a acenar nas mãos de pessoas, em cujos rostos está bem impresso todo o alfabeto da pobreza, do analfabetismo, da doença, da resignação, do sofrimento e da subserviência aos deuses e às deusas da terra e do céu. E tudo sob a faustosa presidência do alto e do baixo clero católico, todos eles homens burlescamente vestidos de mulher e estupidamente impedidos de amar mulher, por isso, inconscientemente inclinados a concentrar na imagem feminina da “virgem” todo o seu afecto reprimido, e muito é. Os muitos milhares de figurantes populares prestam-se também ao seu papel, como no guião de um filme. Comovem-se e choram. E, na intensidade daquele delírio colectivo, imaginam que o céu está ali e mais se comovem e choram. É um verdadeiro sel-service colectivo de ópio, em que todas as religiões sempre foram e continuam a ser hábeis. Chamar a estas manifestações momentos de rara beleza, é de bradar aos céus. Mas há quem o faça e vá lá de propósito apreciar. Inclusive, algumas pessoas que eu tinha por lúcidas, também neste campo fatimista-católico e que, agora, parecem recém-convertidas ao fenómeno. No tempo da Inquisição, as execuções dos condenados às fogueiras também se faziam em largos recintos e com as massas a assistir e a aplaudir. Havia quem considerasse aquilo um espectáculo exemplar! E tudo se fazia em nome de Deus, da Ordem, da Lei, da Ortodoxia, do Dogma católico. Mas pode lá haver perversão maior que classificar de belo e de artístico o espectáculo ritual que cega as multidões carenciadas e oprimidas e lhes rouba a consciência crítica e as converte em figurantes mais ou menos robotizados da sua própria alienação e opressão? Alguém é capaz de imaginar Maria, a mãe de Jesus, ou o próprio Jesus, entre estes figurantes? E àquela imagem da “virgem” que passa entre os figurantes (para isso ser possível é preciso que uns quantos fanáticos se ofereçam para a carregar aos ombros, uma vez que ela não anda, não vê, não fala, não sente, não acena, não sorri, não passa de um ídolo de mau gosto feito por um artesão que os sacerdotes aclamam e fazem aclamar como uma deusa!), quem há aí que possa dizer, sem mentir com quantos dentes tem na boca, que é Maria, a mãe de Jesus, ou, ao menos, que representa Maria, a mãe de Jesus? Finalmente, ao meu caro leitor António Correia, quero dizer que só mesmo um Deus como o da senhora de Fátima, que tem tudo de mentira e de homicida, é que o pode levar a dizer-me o que ele me diz na sua carta. Saiba, meu irmão, que não só não creio nesse Deus, como vivamente o repudio e combato. Com Jesus, o Cristo, aprendi, como, aliás, Maria sua mãe também acabou por aprender, que Deus é a nossa Salvação e a nossa plena realização. De modo que, por mais pecador que eu seja, nem por isso deixo de viver em todos os instantes com o coração aos pulos de alegria, e mais ainda à medida que se aproxima o momento em que, por pura graça dEle, finalmente nos veremos face a face. Eu sei, por Jesus, que nesse instante, me (nos) espera, não um severo juiz pronto a condenar-me (nos), mas o Deus Mãe/Pai que me (nos) acolhe e salva. ESTULTÍCIA Caldas de S. Jorge. Pinto da Silva: É muito contra o meu feitio entrar em polémica, até porque não tem sido meu interesse defender o que quer que seja, o mesmo que dizer atacar o que ou quem quer que seja. Mas a propósito do que escreveste em N. D. a comentar a minha carta no nº. 149, permitir-me-ás que considere estultícia imaginares que o actual Presidente da República tenha alterado a sua postura política em relação ao Governo por influência do que apareceu num jornal, por reflexo do que publicaste em editorial. E muito mau seria se assim fosse. Sobretudo tratando-se de um tablóide que não é, nem de perto nem de longe, um jornal de referência e, sobretudo ainda, tratando-se de Jorge Sampaio. Aproveitarei, caro Mário, para, com a frontalidade que gosto de pôr nas coisas, te dizer que, em minha opinião, alguns jornais, alguns jornalistas e mesmo alguns programas de TV te dão certa audição, não propriamente pelo que dizes, mas e só porque dizendo-te SACERDOTE CATÓLICO, o que dizes tem um sentido de escândalo. Fico em absoluto com a convicção de que és usado, e te deixas sê-lo, para benefício de alguma audiência, para benefício daquilo que tu, nas tuas prédicas, afirmas contrariar. A desinformação, a deformação e o lucro via alguma audiência. Não achas? Tens muito mais experiência do que eu (que não tenho de todo) no combate político e religioso, mas, mesmo assim e pelo que te considero, sinto-me com força para te dizer, e até acho que já te disse há muitos anos, que a mesma coisa pode ser dita de milhentas maneiras e até pode atingir objectivos idênticos, sem ferir os ouvidos e olhos de quem te ouve ou lê. Mas tu falas mais para chocar do que para convencer ou converter. Colhes os tablóides, mas perdes os de referência. No aspecto religioso, ouso recordar-te o que sofreu, e ainda sofre, o Salman Rushdy pelo que disse do profeta Mahomé nos Versículos Satânicos. E a propósito das movimentações de massas populares por arrastamento de fé, para Fátima ou outro santuário em Portugal ou no mundo, não me recordo de ter lido qualquer nota tua titulando de alienante a corrida de milhões para Meca, para Najaf ou para o Ganges. E quanto a sacrifícios corporais, nunca imaginei que pudesse ocorrer o que vi (pela TV) no Iraque. E não era propriamente uma manifestação contra os americanos. Eu nunca fui a Fátima nos dias tradicionais de peregrinação. Não incito a que se vá como não tenho coragem para criticar e menos ridicularizar quem vai, seja mais ou menos (in)culto, mais ou menos “opiável”. Com amizade. CULTURA DE VERDADE Porto. Manuel Pinheiro: Seguem ... euros para o pagamento do Jornal, e o resto é para o Barracão de Cultura, em Macieira da Lixa. Cultura, que toda a gente precisa. Até o Papa, sem santidade, lhe falta cultura de verdade. Mais uma vez fui a Fátima. Na ida, colocaram um CD que falava só de obscenidades. Consegui pará-lo. No regresso, tentaram novamente exibir só palavrões de fazer corar. Com a coragem e diferença que um cristão afirmativo deve mostrar, novamente consegui que não fosse sequer colocado na televisão, dizendo: Nunca mais venho nesta excursão! Em Fátima, falei a um grupo de estudantes, da vontade de Jesus que é amar-nos uns aos outros. Eles até me bateram palmas. Fui junto do povo escravizado (a andar de joelhos) e disse que ninguém quer tal sacrifício. Fui junto do local de venda de velas e também chamei a atenção para um letreiro que diz: “Deite aqui o valor das velas que é para os pobres”. (Há tempos, visitei um grande pavilhão, do santuário, onde vi centenas de objectos de ouro e muito mais coisas valiosas. É crime. Tem razão, quando lhe chama covil de ladrões). PAISAGENS QUE NOS DELICIAM Melides. Manuel Araújo: Acabo de receber mais um Fraternizar e mais uma vez reforço aqui a preciosa qualidade do seu conteúdo. Costumo dizer que o Fraternizar é um jornal onde as palavras são paisagens que nos deliciam pela sua beleza, clareza e nitidez de imagem. Tal como alguns amigos nossos, também eu sou de opinião de que é pena o jornal ter passado a trimestral, mas é um facto que está associado a uma frase que às vezes te ouvimos “Não há milagres!”. E é tudo por hoje, junto envio o cheque... para pagamento da minha assinatura do nosso Fraternizar. Recebe um grande abraço. E votos para que Deus te dê saúde para continuares a ser o nosso padre Mário. DEVEMOS PARAR COM A ORAÇÃO? Porto. António A. Veiga: Recebi ontem e terminei hoje a leitura do n.º 149, do Fraternizar. É a vantagem de estar (temporariamente) imobilizado. A dificuldade que ainda tenho em escrever leva-me a abordar só um assunto: “Rezaram tanto pela paz e veio a guerra”. Houve tantas manifestações (algumas trouxeram sofrimento físico aos manifestantes) contra a guerra e ela veio. O Fraternizar não conseguiu melhor resultado. Será inútil a oração? Serão inúteis o protesto e a acção? Jesus de Nazaré o Cristo orou e aceitou a vontade do Pai que permitiu a violência, protestou e actuou e morreu como o grão de trigo. Só depois começou a germinação que continua num processo imparável. Devemos nós parar com tudo? Ou só com alguma coisa, por exemplo, a oração? Permite-me aproveitar esta carta para publicitar a minha alegria e gratidão pelas visitas que me fizeste no hospital. Um abração. ND O mais chocante é vermos o nome de Deus invocado em vão. Como se a resolução dos problemas deste mundo, concretamente, o problema da paz, dependesse de Deus, nomeadamente, da multiplicidade de terços, de missas, e de outras orações mais ou menos papagueadas, que as pessoas fazem por sua iniciativa, ou são levadas a fazer por pressão de certas campanhas promovidas pelo papa, pelos bispos, pelos párocos ou pelos pastores. Como se a paz fosse fruto de determinada quantidade de orações. As manifestações de rua contra a guerra e pela paz têm uma vantagem sobre este tipo de orações pela paz. Não invocam o santo Nome de Deus em vão! E ainda outra: quem se manifesta nas ruas contra a guerra mostra já ter consciência de que a paz tem a ver connosco, seres humanos, mais do que com Deus. Mostra que o problema da falta de paz é coisa que nos diz respeito, não coisa de Deus. Mostra que ainda não nos dispusemos a acolher a Paz, dom de Deus à Humanidade. A oração também é fundamental, mas se for o Espírito a orar em nós, não se formos nós a orar a Deus, como quem tenta converter Deus, convencer Deus, arrancar Deus do seu imobilismo, da sua distracção, do seu sono, da sua indiferença. Quando é o Espírito a orar em nós, somos nós que nos deixamos converter por Deus e Ele pode finalmente fazer de nós mulheres-paz e homens-paz, como Jesus. Somos Paz em acção. E nem que nos crucifiquem, sempre recusaremos fazer a vontade assassina e dominadora do Império e seus lacaios ou vassalos. Muito concretamente, recusaremos pegar em armas para ir fazer a guerra que o Império, na sua fome de domínio total concebeu e decidiu pôr em marcha. Com o amen dos seus lacaios e vassalos. ESPEREI UMA SAÍDA À S. FRANCISCO, MAS NICLES Brandoa. Manuel Natividade: Que a Paz esteja consigo e com todos os companheiros desta viagem. Desculpe só agora lhe enviar o meu modesto contributo, vai-se adiando, cada dia dos meus 69 anos mais sofridos, porque os tempos vão batendo na rocha da esperança e causando mossa. Das manhãs a florescer, das bandeiras a tremular, resta um enorme cortejo de vencidos da e pela vida. Não basta o refúgio na espiritualidade, porque a altura vai má para retiros meditativos, os sinos dobram por toda a humanidade em recessão... Sabemos que pode ser o alvorecer de uma outra Era, mas somos dia a dia confrontados pela barbárie e àqueles que como eu sentiam o suporte da utopia versus URSS, Maoismo, etc, mais custa, porque nos sentimos órfãos desarmados. Quantos embustes, quantas coisas de balofo sobre o sangue, esse real, de milhões de seres... Sempre pensei que o velho Bispo de Roma, no fim do caminho, tivesse uma saída à S. Francisco e fosse para Bagdade como penitente, dar o corpo à ferocidade neo-saxónica. Sempre seria uma nobre acção capaz de ganhar o paraíso. Com ele, cardeais e outros colaterais, mas nicles... Não importa falar do Satã americano, só quem esconde a cabeça na areia é que não conhece esse inferno terrestre, desde os seus primórdios. Mas é triste a impotência face à canalhice que vem até às praias portuguesas via falências, desemprego e miséria. Custa pois olhar o próximo e chamá-lo irmão. Alienaram os povos, intoxicam-nos de todas as maneiras sem ser necessário usar gases tóxicos, aliás, já se está acostumado à poluição que o consumismo produz, daí meu desassossego. Não se trata do medo face à mortalha, eu acredito na vida para além da vida, mas pelos que ficam neste vale de lágrimas, filhos, netos, etc. Sem outro assunto de momento, envio vale de... e força na sua luta, mesmo que não se concorde aqui ou ali, o conjunto é de grande valia e de respeito merecido e justo. Um sincero abraço. DEUS NÃO EXISTE Porto. Valentim Jerónimo Rodrigues: Eu sou um comprador e consumidor dos seus livros. Faz bem, como dizia Camilo, aplicar a marreta de ferro nesta Igreja hipócrita. Mas quando o sr. entrou para ela já sabia que se tratava de uma Igreja de ricos, de loucos e de prepotentes! Quando o sr. escreveu o livro FÁTIMA NUNCA MAIS, tive discussões com várias pessoas a seu favor. Aquele bloco de cimento do muro de Berlim que levaram para Fátima causa náuseas. Permita-me uma crítica: O sr. não se liberta definitivamente da Igreja católica. Afirma que Deus não vive em templos. Eu digo-lhe que nem em templos, nem em parte alguma. Deus não existe. Cristo não é filho de Deus. Nada tem de divino. Nunca voltou à vida, depois de ter morrido. Ainda fala em pecado, demónio, Espírito Santo. Isso não faz sentido. Repugna à Ciência e à Razão! Devia tratar exclusivamente da figura de Cristo, no sentido humano, como homem portador de uma mensagem de paz e de uma conduta de vida exemplar, o que já é muito. Penso que se eliminasse isso dos seus livros ainda tinham mais venda. Não devemos agradar a gregos e a troianos. Não fiz a primeira comunhão. Quando a catequista me disse que Deus está em toda a parte e não ocupa lugar, achei absurdo e fui-me embora. Tinha sete anos! Mais tarde, no Liceu Alexandre Herculano, o professor de Física ensinava que onde estivese um prato não podia estar um copo, a não ser uma coisa em cima da outra. Portanto, tudo ocupa espaço e lugar. Nasci em 1938. Vivo no Porto há muitos anos. As origens estão em Lamego. Estive sempre atento às injustiças da Igreja e dos governos. Desculpe a ousadia de lhe ter escrito. Não o conheço pessoalmente. Aprecio muitas partes dos seus livros e os debates na televisão. Com os melhores cumprimentos. ND Pois é, meu querido companheiro, mas a verdade é que nem esse seu professor de Física de outros tempos pode negar que o mais essencial da vida e do real é invisível aos olhos e não ocupa espaço físico. Tal como Deus-Amor. Tal como a Ternura. E, no entanto, também eu posso dizer com você que Deus não existe. Pela simples razão de que Deus não faz parte do Sistema, nem é uma peça da engrenagem. Posso até dizer-lhe de forma ainda mais radical: Deus não serve para nada. E, no entanto, como a vida é diferente e tem outro paladar, quando, finalmente, damos pela sua Presença totalmente gratuita, puro dom à Humanidade!... Deus anda sempre a bater à porta da nossa consciência e da nossa liberdade. Também à sua. Quer sentar-se connosco à mesa, ser mais íntimo a nós do que nós próprios. Quer ter-nos como suas interlocutoras/seus interlocutores. Para que cada uma de nós/cada um de nós se veja como nunca se viu e cresça até à estatura de Jesus, o Cristo. E o nosso viver seja uma Eucaristia ou Acção de Graças ininterrupta, uma dança sem fim. É assim que este Deus, pura graça, me faz ser-viver todos os dias. De porta sempre aberta para Ele e com Ele à mesa. É Ele que me faz passar da religião para a Fé. Da Lei para a Graça. Do dever para a Liberdade. Da servidão para o Serviço. Do seguidismo para a Dissidência. Do unaninismo para a Diferença. Da rotina para a Criatividade. É Ele que me faz homem-para-os-demais. Em comunhão com todos os outros homens e mulheres, a começar pelos últimos, teimosamente aberto à Verdade que nos faz livres. Jesus não é filho de Deus? Nunca voltou à vida depois de ter morrido? Até essas suas afirmações eu posso subscrever também. E a prova mais irrefutável de que Jesus não é filho de Deus é que ele foi crucificado, em nome de Deus, o Deus do Templo e dos chefes dos sacerdotes que se coligou com o filho de Deus da altura, nada mais nada menos que o imperador de Roma. Ele é o maldito por excelência. Mas é assim que ele ainda hoje atrai a si todos os malditos, também a mim. E é experimentado por nós como a pedra angular duma humanidade outra,tão outra, que só pode ser a de um Deus também outro, exactamente, Deus-entre-nós-e-connosco, que não vive em templos nem carece de sacerdotes, como o Deus em nome do qual ele foi crucificado, mas vive no mais íntimo de cada uma e de cada um de nós, para nos fazer à sua imagem e semelhança, seres humanos outros, livres quanto Jesus, dissidentes quanto Jesus, humanos quanto Jesus, lúcidos quanto Jesus, numa palavra, malditos quanto Jesus. E, por isso, vivos e viventes quanto Jesus, sem mais necessidade de voltarmos à vida depois de morrer, porque, para os vivos e viventes como Jesus, até o morrer é ressuscitar! |
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© Página criada 6 Julho de 2003 |
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