Textos do
Jornal Fraternizar |
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Edição nº 151, de Outubro/Dezembro 2003 | ||||||||||||||||||||
1.ª página E OS PECADOS DOS BISPOS? |
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DESTAQUE Em finais de Agosto último em Macieira da Lixa sob a presidência do pe. Mário Um funeral como boa notícia Ela própria disse, alguns meses antes que queria o pe. Mário, da Comunidade cristã de base, a presidir ao funeral do seu cadáver. E assim aconteceu. Em consequência, os sinos da torre paroquial de Macieira da Lixa não tocaram a defunto. O pároco não foi contactado. O templo paroquial foi dispensado. O ritual dos defuntos não foi utilizado. Nenhum rito religioso foi realizado. O próprio pe. Mário apareceu como qualquer outro, com a sua roupa de todos os dias, mas disposto a fazer daquele funeral, não um acto de rotina mais, sim um acontecimento revelador e proclamador da salvação gratuita de Deus. E como o fez? Palavras do pe. Mário Não nos deixes agarrados ao teu cadáver. Vamos entregá-lo à terra, organismo vivo, para que ela o transforme à medida que se transforma, até se tornar toda ela corpo cósmico de Cristo. |
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A “reportagem” sobre Lázaro, inserida no Evangelho de João, capítulo 11, não é jornalística mas teológica e, por isso, não trata da reanimação do cadáver |
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Se é daquelas/daqueles que ainda tem medo de morrer, leia esta meditação teológica que o Jornal Fraternizar preparou para si Não nascemos para morrer. Nascemos para ressuscitar Do rio que morre no mar, ninguém diz: Que pena! O rio, quando nasce, já nasce com o instinto do mar. É para lá que corre dia e noite, sem cessar. Entre o nascer na fonte e o morrer no mar, fica o tempo das lides e canseiras, dos obstáculos a vencer, das fecundidades a implementar, dos peixes a alimentar, enfim, de toda uma vida a viver. É com tudo isso que o rio é rio e consegue alcançar o mar. Mas é no mar que o rio alcança a sua última e definitiva razão de ser. É no mar que o rio é. Curiosamente, é quando ele aceita tornar-se invisível, no mar, que o rio mais afirma a sua identidade e alcança a sua plenitude. É assim também deveria ser assim com os seres humanos. Só que estes, ao contrário do rio, ainda não integraram o acto de morrer como o momento mais alto da sua vida individual, aquele em que a vida de cada uma e de cada um de nós atinge a sua plenitude. Continuamos por isso com medo de morrer. E acerca de quem morre, dizemos: Que pena! E choramos, convulsivamente, quando mais deveríamos experimentar uma serena festa e uma imensa paz. E uma intensa e fecunda comunhão. O mar onde todos os seres humanos desaguamos é a Ressurreição, que é outro dos nomes de Deus. Ninguém nasce para morrer. Todos nascemos para ressuscitar. A vida que um dia misteriosamente aconteceu em nós e se fez rosto e história em cada uma e cada um de nós nunca mais acaba. Apenas se transforma para ser em plenitude. O momento de morrer é o da nossa chegada ao nosso mar, isto é, a Deus, para quem, afinal, mesmo sem disso termos consciência, sempre estivemos a correr, enquanto fomos e fizemos História. E de quem, mesmo sem disso termos consciência, sempre tivemos saudades. A quem por isso, ateus e ateias que sejamos, sempre buscamos em tudo o que buscamos. Todo o acto de morrer é uma Páscoa, uma Passagem, um novo Parto. “Nas tuas mãos, Pai/Deus, entrego o meu espírito”, o meu sopro, o meu ser/viver, diz Jesus, do alto cruz a que foi condenado pelos representantes oficiais desse mesmo Deus no país, só porque ousou resistir-hes activamente, ou seja, porque ousou amá-los activamente até ao extremo de lhes dar/entregar a própria vida, em lugar de lhes tirar a deles, o que constitui a única postura verdadeiramente humana e com força bastante para humanizar quem um dia se deixou seduzir pela outra via, a da opressão e do ódio institucionalizados, e enveredou por ela. Como o rio ao morrer se entrega o mar, para finalmente ser, assim também nós, seres humanos, nos entregamos a Deus, à Ressurreição, para finalmente sermos/vivermos em plenitude. O acto de morrer é, por isso, o momento cume para sermos/vivermos em plenitude. É o momento da nossa última explosão, aquela que nos faz ser/viver em plenitude. Esta visão das coisas pode aparecer aos olhos de muitas e de muitos como surpreendente e atrevida, porventura, utópica, mas é a única plenamente compatível com a Fé cristã em Deus. Não tem sido proclamada pelas catequeses eclesiásticas, tanto católicas como protestantes e religiosas em geral? Tanto pior. E a culpa nem sequer é da Fé cristã em Deus, em si mesma sempre boa notícia ou evangelho para a Humanidade, ou ela não fosse o cume a que o intelecto humano e o coração humano se podem guindar, enquanto vivemos dentro da História. A culpa só pode ser lançada às catequeses eclesiásticas, sobretudo, aos seus principais mentores, geralmente homens de privilégios e de poder, por isso mesmo, totalmente incapazes, como as autoridades oficiais do tempo e do país de Jesus, de entenderem estas coisas do ser e do viver, sensíveis que são apenas ao seu próprio umbigo, aos seus próprios privilégios e ao poder de que desfrutam, sem chegarem a perceber ironia das ironias! que assim se tornam nos mais infelizes dos homens e nos mais frustrados, causadores por isso de desgraças sobre desgraças para os demais, verdadeiros criadores de infernos onde sadicamente torturam quem lhes resiste e se recusa a ir pelo seu estúpido jeito de ser/viver, e responsavelmente decide enveredar pelo único jeito que humaniza quem vai por ele: o jeito de ser/viver-em-relação-fraternal-sororal-com-os-demais-seres, mulheres e homens, animais, toda a Natureza e o próprio universo. Nunca deu para perceber como é que foi possível que a nossa Igreja católica, que continua a aceitar ter como referência última Jesus, o Senhor, e o Evangelho ou boa Notícia que ele é e anunciou ao mundo, tivesse convertido, a dada altura, nomeadamente, na Idade Média, o acto de morrer no terror mais cruel, de tal modo que ainda hoje esse terror permanece no inconsciente colectivo dos indivíduos e dos povos. E como o fez? Bastou associar ao natural acto de morrer, o acto de um julgamento de Deus que, segundo as catequeses terroristas católicas, ainda hoje oficialmente ensinadas pelo respectivo Catecismo em vigor, aconteceria imediatamente a seguir ao nosso último suspiro. A que acrescentou mais este pormenor de requintado terrorismo espiritual, o pior dos terrorismos: que a esse julgamento, presidido por Deus, apresentado como o juiz dos juízes que tudo vê e conhece e a quem, por isso, ninguém consegue enganar nem subornar, seguirse-ia inevitavelmente é o que ela ensinou e ensina com sádica convicção o inferno ou o paraíso, conforme os casos: o inferno, se o viver da pessoa entre o nascer e o morrer tivesse sido feito de pecados, e sem as indispensáveis e sucessivas confissões deles ao padre para que ele os perdoasse; o paraíso, se o viver da pessoa tivesse sido feito de pecados, mas, ao contrário do anterior, tivesse também sido feito de sucessivas confissões ao padre e de muitas missas ouvidas, em vida, e de muitas outras a mandar celebrar por sua alma depois de morrer. A introdução deste julgamento de Deus, a acontecer no instante da morte do indivíduo e a repetir, de forma mais solene e às escâncaras perante toda a Criação, no “fim do mundo”, foi o toque “demoníaco” que faltava para fazer do acto de morrer o momento de maior terror para os seres humanos. E hoje, mesmo que muitos deles já vivam habitualmente de costas voltadas para estes eclesiásticos, porventura, muito piedosos e devotos da senhora de Fátima, mas como ela, portadores duma catequese sem entranhas de misericórdia e cruel, a verdade é que ainda continuam com dificuldade em encarar o momento de morrer como o cume do seu ser/viver. Mas a verdade é que o nosso momento de morrer é também o momento do nosso desaguar em Deus, ou na Ressurreição, tal como o rio desagua no mar. Esta é a espantosa boa notícia ou evangelho que a Fé cristã, que vê o invisível, há-de proclamar ao mundo. Para que ele progressivamente se abra a ela e interiorize que o ser/viver de cada ser humano e dos demais seres não vai nunca desaguar no nada, mas na plenitude do Ser/Viver. Vai desaguar na plenitude da Misericórdia-em-acção, do Amor-em-acção, da Vida-em-acção, que é Deus Criador, o nosso único Pai/Mãe a valer. Deus, no ver/dizer da Fé cristã, não é o juiz-que-tudo-vê-e-condena, mas o Pai/Mãe-que-tudo-vê-e-perdoa, por isso, recria, faz novas todas as coisas, recupera até o que estava estragado, encontra o que estava perdido, integra o que estava excluído, levanta o que estava caído, chama à vida o que estava morto. Mas então perguntarão os que ainda permanecem marcados pelas catequeses terroristas eclesiásticas de outrora e de agora o que vai ser feito dos pecados que tivermos cometido? E nós, que os cometemos, não vamos ser muito justamente castigados por isso? Nem sequer seremos submetidos a uma acção de purificação ou purgatório, para assim podermos conviver com Deus sem que lhe causemos náusea e repulsa? As perguntas revelam toda a dimensão do terror das antigas e novas catequeses eclesiásticas. Sim, também das novas catequeses eclesiásticas. Estas podem já não ser feitas com sermões e visões do inferno, do género dos sermões e das visões que os padres da Santa Missão, no início do século XX, promoveram em tudo quanto era aldeia do interior do nosso país e que tanto impressionaram e aterrorizarm as três crianças de Fátima, pelo menos, no testemunhar atribuído à sobrevivente Lúcia, desde então, completamente manipulada por eclesiásticos na esteira dos da Santa Missão, mas nem por isso deixam de ser catequeses menos eficazes. Quando, por exemplo, os eclesiásticos continuam aí a aceitar rezar missas por pessoas que já passaram pelo acto de morrer (ainda por cima, como se sabe, fazem-se pagar bem por isso, o que empresta ao acto todos os ingredientes de verdadeiro sacrilégio), que outra coisa estão a fazer senão a insistir na velha catequese terrorista do passado, com recurso a uma prática pastoral que é completamente pagã, dá de Deus uma imagem que é um verdadeiro insulto ao seu Nome e só pode ser geradora de um saudável ateísmo? A boa notícia que a Fé cristã tem para anunciar, fundada na prática e no dizer/testemunhar de Jesus de Nazaré, o Senhor, é que os pecados que nós, seres humanos, possamos ter cometido entre o acto de nascer e o acto de morrer, não nos acompanham no acto de morrer/ressuscitar. São obra exclusivamente nossa e, como tal, só duram enquanto durar a História. Os efeitos negativos que deles resultam afectam, sem dúvida, a História, a Criação e as pessoas/os povos, mas não nos acompanham no acto de morrer. E serão todos destruídos, à medida que os seres humanos nos abrirmos ao amor e nos tornarmos seres-em-relação-universalmente-fraternal/sororal, como Jesus, o Homem plenamente humano. Quando, no acto de morrer, desaguamos em Deus que resssuscita os mortos, como o rio desagua no mar, o encontro tem para cada uma e cada um de nós a força duma Nova Criação, e a nossa identidade inidividual alcança então todo o seu esplendor. De seres com Deus dentro, passamos a seres em Deus, seres dentro de Deus, como o rio dentro do mar. E isto, não por força dos nossos méritos, das boas obras que possamos ter realizado entre o acto de nascer e o acto de morrer. Mas por pura Graça. Porque Aquele que nos criou de graça e por amor leva finalmente ao seu termo a obra que havia iniciado. Ama-nos e, por isso, salva-nos. Criar é já salvar. E quanto mais perdido alguém tenha andado entre o acto de nascer e o acto de morrer, mais amado se experimentará no acto de morrer, mais reabilitado, mais encontrado. Nem sequer havemos de passar por um período de purificação. Deus, em quem desaguamos como o rio no mar, é o fecundo abraço que nos recria, que nos faz finalmente filhas suas/filhos seus, homens e mulheres do mesmo jeito de Jesus, o Filho e o Homem por antonomásia. O que tivermos feito entre o acto de nascer e o acto de morrer tem a ver com a História. E não é indiferente o que tivermos feito ou viermos a fazer. Nem para nós, nem para os demais, nem para toda a Criação. Se fizermos o bem, como Jesus, o Homem, ajudamos a fazer deste mundo um paraíso; se fizermos o mal, como Bush, o anti-homem, contribuímos para fazer deste mundo um inferno. Mas a salvação/humanização definitiva de cada uma/cada um de nós, também de Bush, evidentemente, não é obra nossa. É pura graça de Deus. E acontecerá, de forma plena e definitiva, no nosso acto de morrer, que é simultaneamente o nosso acto de resssucitar. O nosso acto de morrer é, pois, o mais surpreendente mergulho em Deus; é o abraço de Deus-Amor, de Deus Pai/Mãe, por isso, infinitamente mais fecundo e reabilitador que o daquele pai da parábola de Lucas (capítulo 15) ao seu filho mais novo, quando ele regressou a casa, depois de tudo ter espatifado e de ter batido no fundo da degradação humana, abaixo até dos próprios porcos. Só mesmo este fecundo e criador abraço de Deus é que faz de todas e de todos nós, seres humanos definitivamente à sua imagem e semelhança. Outros Jesus, o Homem, em quem Deus plenamente habita e actua. Acordem, Igrejas! No primeiro de Novembro, os cemitérios costumam encher-se de pessoas e de flores. O pagão culto dos mortos continua assim a resistir a dois mil anos de cristianismo. Sinal de que este se paganizou, em lugar de cristianizar/libertar/humanizar o mundo que encontrou caído no paganismo e no medo dos deuses e deusas.A Igreja converteu-se em religião católica. Integrou no seu seio os cultos pagãos e o medo dos deuses e das deusas, agora, travestidas de nossas senhoras disto e daquilo.Em lugar de apóstolos ou enviados ao mundo, a anunciar o Evangelho libertador a toda a criatura, multiplicaram-se os sacerdotes clérigos cheios de privilégios à frente dos templos e altares. Hoje, já em vias de extinção, o que há-de ser motivo de alegria, não de preocupação. E se os templos ainda são frequentados, é por força do culto dos mortos e do medo dos deuses e das deusas. Só graças a um e a outro é que se continua a mandar rezar tantas missas, por sinal, bem pagas, por “alma” de familiares falecidos. Foi para libertar as pessoas e os povos destes medos ancestrais e destes cultos sem sentido que aconteceu Jesus, o Senhor, como a Boa Notícia de Deus entre nós e connosco. Acordem, Igrejas! Deixem de negociar em nome de Jesus. Tenham a audácia e a alegria de viver o Evangelho e proclamem-no como a Boa Notícia de Deus a todas as criaturas. |
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Editorial “Eu vim abrir um processo contra esta Ordem mundial” “Eu vim abrir um processo contra esta Ordem Mundial. Assim os que não vêem, verão; e os que vêem, ficarão cegos. Quem não entra pela porta no recinto das ovelhas, mas trepa por outro lado, é ladrão e bandido. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. Eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos vieram antes de mim, são ladrões e bandidos, mas as ovelhas não os reconheceram. O ladrão vem só para roubar, matar/sacrificar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Eu sou o modelo de pastor/dirigente. O pastor/dirigente modelo dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, quando vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge, e o lobo arrabata-as e dispersa-as, porque ao mercenário não lhe interessam as ovelhas.” O quarto Evangelho (Jo 9, 39-10, 13) coloca estas subversivas e revolucionárias palavras políticas na boca de Jesus. Os dirigentes do seu país que o eram na dupla qualidade de dirigentes religiosos e políticos, ao mesmo tempo, dado que aquele integrava um regime teocrático, não hesitavam em continuar a expulsar o povo da sinagoga (Jo 9, 34) o equivalente a uma condenação simbólica ao ostracismo e à morte à medida que ele abria os olhos da consciência, isto é, passava de povo de consciência ingénua e infantil ou de menoridade, a povo de consciência crítica e de maioridade; de povo-tipo-rebanho-de-ovelhas que eles podiam manipular a seu bel-prazer, a povo liberto e autónomo que se sabe conduzir pela própria cabeça, sem mais doentias dependências de chefes religiosos ou políticos, com tanto de cruéis como de benfeitores. E mesmo a ele, que se ocupava sem descanso no trabalho teológico-político de abrir os olhos àquele imenso sector do povo que continuava ainda oprimido e explorado por eles, tinham-lhe um ódio de morte, ao ponto de estarem determinados a eliminá-lo fisicamente, na primeira oportunidade, o que efectivamente veio a acontecer. Foi ao constatar esta realidade social, estruturalmente injusta e cruel, legitimada por uma Ordem que se julgava querida por Deus, que Jesus decidiu dar mais um passo na sua militância teológica-política, e declarou guerra total à Ordem Mundial então imperante: “Eu vim abrir um processo contra esta Ordem Mundial”. Fá-lo, não em abstracto, mas muito em concreto, na pessoa dos cruéis dirigentes do seu país. Para que tanto a Ordem Mundial como os respectivos dirigentes caiam em total descrédito perante o povo. E para que pelo menos alguns dos membros do seu povo passem a organizar as suas vidas segundo os valores da vida e vida em abundância para todos, o que faria deles uma espécie de sacramento/fermento de uma Ordem Mundial alternativa, verdadeiramente humana. Jesus bem sabia que os dirigentes ou pastores do seu país se tinham na conta de autoridades legítimas, uma vez que então se pensava que todos eles haviam sido escolhidos pelo próprio Deus, para ocuparem aqueles lugares, tal como hoje, em países enquadrados por um regime democrático, os respectivos dirigentes sempre tentam fundamentar a legitimidade de todas as suas decisões e leis, mesmo as mais perversas e cruéis, na autoridade que, segundo eles, lhes vem directamente do voto popular nas urnas, em eleições oficialmente livres. Era, porém, manifesto que os dirigentes religiosos e políticos contemporâneos de Jesus tinham comportamentos inumanos e cruéis. Operavam sistematicamente como ladrões e bandidos. Roubavam, matavam, destruíam. Viviam cercados de privilégios, os mais chocantes e escandalosos. Constituíam uma elite que, ligada a outras elites, nacionais e estrangeiras, haviam transformado o país (e o mundo) numa casa de opressão, em tudo semelhante ao Egipto dos faraós, onde, em tempos idos, os antepassados haviam sofrido e gemido, e de onde haviam conseguido libertar-se, sob o comando de um dirigente que a tradição mitificara como dirigente exemplar, Moisés, de seu nome (cf. Êxodo). Entre esta elite dirigente e o povo havia um abismo intransponível, de modo que nem os da elite se podiam passar para o povo, nem os do povo se podiam passar para a elite (Lc 16, 26). Jesus olha para tudo isto e reflecte: Como é que o nome de Deus pode andar associado a tais comportamentos dos dirigentes ou pastores, tanto sacerdotes como reis e imperadores? Como pode vir do Deus criador de vida e de humanidade um poder que rouba e sacrifica/mata o povo, através de economias e de políticas que buscam o lucro e os privilégios corporativos como principal prioridade, e que ainda por cima degradam e destroem o próprio planeta? Deverão ser acatadas as suas leis e as suas decisões? Ou, pelo contrário, há que desmascarar os seus comportamentos, virar-lhes as costas, ignorá-los e deixá-los para aí a falar sozinhos? Hoje, em regimes ditos democráticos, o povo pode teoricamente derrubar a elite dirigente com o seu voto. Escrevi “teoricamente”, porque, como todas e todos sabemos, o povo é vilmente manipulado a toda a hora pelos grandes Meios de Comunicação Social ao serviço da elite dirigente que não está disposta a perder o poder, nem os privilégios que ele garante (a alternância no poder é sempre entre grupos da mesma elite, e nunca consente que o povo chegue ao poder). E mesmo quando alguns dessa elite parecem comportar-se como amigos do povo, como é o caso de certos dirigentes dos partidos de esquerda (que me perdoem os meus amigos de esquerda esta minha frontalidade), não passam, bem vistas as coisas, de hábeis benfeitores que pedem votos ao povo, para terem mais poder e mais privilégios e serem, porventura, ainda mais benfeitores. Em regimes teocráticos, as coisas não eram nem são assim, nem sequer teoricamente. A Deus nunca ninguém o viu nem verá. O que sempre se vê são os dirigentes religiosos e políticos que se arrogam a prerrogativa de serem na terra os seus representantes, mesmo quando se permitem comportamentos cruéis contra o povo. Há, é certo, nesses regimes, o recurso à violência armada, para derrubar a elite que está no poder, mas Jesus sempre recusou ir por aí. Por isso, decidiu impulsionar mais e mais a sua acção militante junto do povo, para assim conseguir que um número cada vez maior abrisse os olhos da consciência e se afastasse das decisões dos dirigentes todo-poderosos, tivesse a audácia de lhes resistir activamente e de se organizar em pequenas comunidades de iguais e de partilha, quase utópicas, que apontavam e apontam para uma Nova Ordem Mundial já presente nelas, mas ainda e sempre em edificação na História, enquanto esta durar. Jesus, porém, não se ficou por aqui. A dada altura desta sua incansável actividade teológico-política, deu-se conta de que, sob esta Ordem Mundial cruel e injusta contra a qual ele abriu um processo que ainda hoje está em curso, só há uma autoridade verdadeiramente legítima: é a autoridade das suas inúmeras vítimas humanas, que o são igualmente dos seus privilegiados dirigentes religiosos e políticos, bem como das suas inumanas e cruéis decisões económicas e políticas, cada vez mais globais. A partir desse momento, ficou então claro para Jesus que só esta autoridade das vítimas pode e deve ser acatada e obedecida. E não mais a autoridade dos dirigentes religiosos e políticos que as fabricam. Ficou igualmente claro para Jesus que só esta autoridade das vítimas vem directamente de Deus, esse mesmo Deus que Jesus conhecia na intimidade e que a tradição profética apresentava como o defensor dos pobres, dos órfãos e das viúvas. E não mais a autoridade dos dirigentes religiosos e políticos que as fabricam. Finalmente, ficou claro para Jesus que só este Deus das vítimas é verdadeiro Deus, pois é o criador de vida e de humanidade, é pai/mãe de misericórdia, não faz acepção de pessoas, nem de sexos, nem de tendências sexuais, nem de povos, por isso, nem sequer do seu próprio povo, Israel. Conclui, então, Jesus que o Deus invocado pelos dirigentes religiosos e políticos do seu país e do mundo, como legitimador do seu poder e dos seus privilégios, só podia ser um Deus de mentira, um ídolo, fonte de perversão, assassino e pai de assassinos, que haveria e haverá que ser desmascarado sem descanso, evitado a todo o custo e combatido com coragem martirial e duélica. E é isso que ele faz até ao martírio. Exactamente como hoje havemos de concluir que é mentira o regime democrático que os dirigentes religiosos e políticos e demais elite privilegiada do país e do mundo sempre invocam para, com isso, justificarem a perpetuação da actual Ordem Mundial injusta e cruel que mantém na miséria e na pobreza bem mais de metade da população do mundo e que, na sua febre de mais e mais riqueza e domínio, vai à extrema loucura de destruir o próprio planeta, sem o qual, nem mesmo ela poderá subsistir! Trata-se, efectivamente, de uma Ordem Mundial de mentira. Assassina. Mãe/pai de assassinos. Que dá cobertura e legitimidade a dirigentes religiosos e políticos que se fazem passar por pastores ou dirigentes modelo, mas na verdade são mercenários que não só fogem quando vêem vir o lobo, como são até eles próprios os primeiros a abrir as portas de par em par ao lobo para que ele possa fazer das dele contra os povos, em total segurança. O que temos visto acontecer, no decorrer deste ano, tanto no nosso país como no mundo em geral, desde a mediática Cimeira na Base das Lajes, nos Açores, que desencadeou a criminosa guerra no Iraque, aos fogos florestais que este verão devoraram quase todo o nosso património florestal, sem que ninguém seja politicamente responsabilizado e sequer "chamuscado", revela que os dirigentes que estão à frente dos destinos do país e do mundo, para lá de escandalosamente incompetentes e mentirosos, são ladrões e bandidos, porventura, muito activos, mas só para roubar, matar/sacrificar populações e povos e para destruir o planeta. Têm-se por muito lúcidos, por pessoas que vêem, mas na verdade são cegos que estão a conduzir o país e o mundo para o abismo. É, pois, hora de os povos do mundo, que os respectivos dirigentes têm por cegos, acordarem de vez do sono de séculos em que eles habilmente os mantêm. É hora de abrirem bem os olhos da sua dignidade e de assumirem o mundo e a vida nas próprias mãos. Portugal pode muito bem ser o primeiro a fazê-lo. Ou será que vamos suportar indefinidamente o cinismo e o infantilismo de um tal Durão Barroso, PM, a crueldade duma tal Manuela, ministra das finanças, o ódio de um tal Paulo Portas, MD, e a total incompetência e irresponsabilidade de um tal Governo, no seu todo?! |
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Espaço Aberto José M.ª Castillo (Espanha) Pecado ou sofrimento? O texto do padre José M.ª Castillo, jesuíta ibérico, que aqui reproduzimos é uma tradução da nossa responsabilidade, feita a partir da Revista “Tiempo de hablar / Tiempo de actuar”, n.º 93, relativa ao 2.º trimestre de 2003, editada pelo Moceop-Movimento Celibato Opcional (www.moceop.net), de Espanha. É uma preciosidade teológica que desfaz duma penada séculos de falsa teologia com pretensões de teologia cristã. Escrito em linguagem que toda a gente entende, ninguém deixe de o ler/reflectir/debater. Sem pressas. E, sobretudo, ninguém deixe de se conformar o seu pensar e o seu viver com esta teologia cristã e jesuánica. É por textos como este e por livros com teologia como a que aqui se apresenta, que José M.ª Castillo não é suportado pela Cúria do Vaticano, sobretudo, pelo cardeal Ratzinger. Mas será que a Cúria do Vaticano poderia suportar Jesus, o de Nazaré, se tivesse sido sua contemporânea? 1 O que mais preocupa a Igreja e a sua teologia é o tema do pecado. O que mais preocupa o comum dos mortais é o problema do sofrimento. Nisto, como em tudo, há excepções. Porém, são excepções que confirmam a regra. Por outro lado, o tema do pecado preocupou (e preocupa) tanto a Igreja que, para evitar pecados, os “homens da Igreja” não duvidaram (nem duvidam) em causar enormes sofrimentos. Desde as matanças de infiéis, herejes e bruxas, nos tempos passados, até à recente excomunhão contra os pais da menina de nove anos que foi violada e ficou grávida e teve que abortar para salvar a sua vida. A Igreja deu sempre provas abundantes de que o centro das suas preocupações não está no sofrimento, mas na ofensa divina que é o pecado. 2 Quer isto dizer que os interesses da Igreja não coincidem com os interesses do ser humano. E não só não coincidem, como, com frequência, toda a gente vê que são interesses contrapostos, contraditórios, em conflito uns com os outros. Com isso, a Igreja torna-se para uns inaceitável; para outros, odiosa. E o pior é o motivo por que isso acontece: porque desta maneira a Igreja dá a entender que crê num Deus a quem interessa mais a sua honra, a sua dignidade, a sua autoridade, que a dor do mundo. A partir do momento em que a Igreja coloca o tema do pecado no centro, a partir de então deixa de crer no Pai que Jesus pregou. Sem dúvida, o Deus de Jesus não é como o Deus que a Igreja apresenta na sua pregação centrada na salvação do pecado e nas consequências do pecado. Em tais condições, ninguém tem que estranhar que a teologia e o discurso religioso em geral interessem cada vez menos às pessoas. 3 Ao proceder desta maneira, a Igreja é mais discípula de João Baptista do que de Jesus. Na verdade, o central na pregação e no ministério de João Baptista, foi o tema do pecado. Por isso ela pregava “um baptismo de penitência para o perdão dos pecados” (Mc 1, 4; Lc 3, 3). E os que acorriam a João “eram baptizados... confessando os seus pecados” (Mt 3, 6). Portanto a missão de João estava pensada e organizada em função do pecado. Daí que os sermões de João eram uma constante acusação contra os pecadores, aos quais chama “raça de víboras” (Mt 3, 7; Lc 3, 7). E ameaça-os com a “ira iminente”. Por isso, “o machado está posto à raiz das árvores”. E a árvore que não dê fruto “é cortada e lançada ao fogo” (Mt 3, 10; Lc 3, 9). Isto explica que para João Baptista, Jesus é o “cordeiro que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Ou seja, segundo o Baptista, Jesus era a “vítima” que sofre e morre pelo “pecado”. O Deus do Baptista era um Deus zangado e ofendi-do por causa do pecado. Um Deus irado contra os pecadores. E portanto um Deus ameaçador e castigador. Donde resulta que, no pensar do Baptista, a razão de ser de Jesus e do seu destino era cumprir a função de “vítima”. Isto é, a missão de Jesus não era uma missão profética, para mudar este mundo, mas uma missão propiciatória, para mudar Deus. 4 Jesus também pregava a “conversão”. Porém, não uma conversão dos “pecados”, mas uma conversão em função do “Reino de Deus” (Mc 1, 14-15). Jesus anunciava o Reino, “curando toda a espécie de sofrimento e de doença do povo” (Mt 4, 23). Por isso, quando envia os “doze apóstolos” (Mt 10, 2) a pregar o Reino, dá-lhes “autoridade” para “curar toda a espécie de sofrimnento e de doença” (Mt 10, 1).De modo que o anúncio da chegada iminente do Reino concretiza-se em “curar doentes, ressuscitar mortos, limpar leprosos, expulsar demónios“ (Mt 10, 7-8). Jesus tinha esta convicção tão gravada no seu espírito, que a essa actividade se dedicou de maneira que antepunha a cura de doentes à observância dos preceitos religiosos. Por isso curou doentes, quebrando o preceito do sábado (Mc 3, 1-6; Lc 13, 10-17; Jo 5, 1-18; 9, 1-39). De modo que, por agir assim, pôs em risco a sua vida (Mc 3, 6; Jo 5, 18). De facto, a decisão oficial de matar Jesus foi tomada quando ele devolveu a vida a Lázaro (Jo 11, 45-57). O facto histórico (não a interpretação teológica posterior) é que Jesus morreu violentamente, não porque lutou contra o pecado, mas contra o sofrimento. E para Jesus, o critério determinante de salvação ou perdição não é a atitude perante o pecado, nem sequer perante a religião, perante a fé ou perante Deus, mas a sensibilidade ou insensibilidade que cada qual tem perante o sofrimento (Mt 25, 31-46; Lc 10, 31-32; 16, 19-31). Por outra parte, sabemos que Jesus se fez amigo de pecadores e publicanos (Mc 2, 13-17; Mt 9, 9-13; Lc 5, 27-32; 15, 1-2). E apresenta como modelo o hereje samaritano (Lc 10, 30-35). Convém recordar também que as palavras de Jesus sobre o “pecado” (Mc 2, 5; Lc 7, 48; Jo 5, 14; 8, 11) hão-de ser entendidas a partir da relação entre “pecado” e “sofrimento”, própria da tradição judaica. Ao eliminar o pecado, o que Jesus pretende é eliminar o sofrimento. 5 Este comportamento de Jesus desconcertou inclusivamente o próprio João Baptista. Daí o envio dos discípulos de João a perguntar a Jesus se era ele o que havia de vir, ou se tinham que esperar outro (Mt 11, 2-4). Esta pergunta tinha a sua lógica. Porque o Messias, lutador contra o pecado, que João tinha anunciado, não dava com o que Jesus fazia, com “as obras do Messias” (Mt 11, 2). A resposta de Jesus é clara. Nela, Jesus não apela ao tema do pecado. Limita-se a fazer uma lista das situações de sofrimento que ele remediava (Mt 11, 5). E conclui com uma advertência: “Feliz de quem não se escandalizar comigo” (Mt 11, 6). Um “profeta”, um “homem de Deus” que não luta contra o pecado, que se torna amigo de pecadores e que enfrenta o problema do sofrimento, violando inclusive as normas estabelecidas, é uma pessoa que provoca escândalos e escandaliza os piedosos e observantes. Por outro lado, no Evangelho de Lucas, a missão profética de Jesus é descrita igualmente como remédio de situações de sofrimento (Lc 4, 18-21) 6 A Igreja - e a sua teologia - já no Novo Testamento, “interpretou” a missão e a morte de Cristo em função do pecado, “para a redenção dos nossos pecados”. Para tanto, a teologia recorreu a três conceitos-chave: sacrifício, expiação, satisfação. O “sacrifício” (Ef 5, 2; 1Cor 10, 14-22); 11, 24-25; Heb 9, 11-12) e a “expiação” (Rom 3, 25; 1Jo 2, 22; Heb 2, 17) são conceitos que a tradião cristã foi buscar à teologia do Antigo Testamento. Por que é que o facto histórico do assassinato de um defensor dos que sofrem foi “interpretado” como a realização do “plano de Deus”, enquanto “sacrifício” pelos “pecados”? Porque naquela cultura, um “crucificado” era não só o ser mais desprezível humanamente falando, mas também um “maldito” de Deus (Dt 21, 22-23; Gál 3, 13). Por isso, quando os cristãos começaram a dizer que acreditavam num “Deus crucificado”, eram olhados como “ateus”. Era pois necessário dar uma explicação. Então a morte na cruz foi justificada como o “sacrifício” e a “expiação”, nos quais se realizou o “plano de Deus” para salvar o mundo. Mais tarde, a partir do século III, foi introduzida a ideia de “satisfação” (Tertuliano), desenvolvida no século XI por Anselmo de Canterbury. Deste modo, o central do cristianismo deixou de ser a luta contra o sofrimento. Passou a ser a luta contra o pecado. Mais. A coisa foi levada até ao extremo de que o remédio contra o pecado é precisamente o sofrimento na sua expressão suprema, a morte cruel de um crucificado. Assim, o central do cristianismo deslocou-se: a luta pela dignidade e pela honra do ser humano foi substituída pela tarefa em prol da dignidade e da honra de Deus. Porém, aqui é preciso ter em conta que já o Novo Testamento modifica radicalmente o conceito de “sacrifício”. Segundo Hebreus 13, 16 os sacrifícios que agradam a Deus são a “solidariedade” e “fazer o bem”. Em última instância, o que está em jogo é o conceito de “pecado”. Tomás de Aquino pergunta se o ser humano pode ofender a Deus. E responde: “Deus não se sente ofendido por nós, mas porque agimos contra o nosso próprio bem” (Sum contra gent III, 122). O que ofende a Deus é o sofrimento que nos causamos uns aos outros. Por isso o que afasta do Reino definitivo é virar costas ao sofrimento humano (Mt 25, 45). 7 À medida que a estrutura hierárquica e “sacramental” da Igreja se foi configurando como uma organização “jurídica” de poder, a teologia não teve mais remédio que acentuar o argumento do “pecado” e, por isso mesmo, marginalizar o projecto “sofrimento”. Por uma razão muito clara: o tema do “pecado” é gerido a partir do poder, enquanto que o problema do “sofrimento” tem que ser gerido a partir da solidariedade. Contra o sofrimento humano não se luta a partir de cima, mas a partir da igualdade, da debilidade e da fusão com o que sofre. A Carta aos Hebreus diz: “Por isso teve que fazer-se semelhante em tudo aos seus irmãos... pois por ter passado também pela provação do sofrimento, pode valer aos que agora estão a passar por ela” ( Heb 2, 17-18). Até Deus, para livrar do sofrimento, teve que fazer-se igual, sofrer como sofrem os demais e passar pelo que passam os que mais sofrem. O sofrimento humano não tem oura solução. Daí que Jesus, que tomou a sério este projecto, acabou no supremo sofrimento. E só assim deu vida e felicidade. Uma organização jurídica exige “submissão”, ao passo que uma estrutura sacramental traduz-se em “comunhão”. Mas hoje na Igreja é mais determinante o jurídico e a obediência (que só aceita a “uniformidade”), que o sacramental e a comunhão (que se traduz em “pluralismo”). É outra consequência do predomínio do tema do “pecado” sobre o problema do “sofrimento”. 8 Temos que pensar noutra Igreja. Não aceitamos uma Igreja para o pecado, portanto, em função do poder. Aceitamos uma Igreja para a felicidade, portanto, que luta contra o sofrimento. Não podemos aceitar que ela se “organize” como uma “monarquia absoluta” (cânones 331; 333, 3; 1404; 1372), isto é, como uma instituição “anacrónica” e “anti-evangélica”, que não resolve o problema teológico de saber quem é o sujeito de suprema autoridade (LG 22), nem como tem que ser exercida teologicamente e evangelicamente essa suprema autoridade. Daí a inadmissível situação em que nos encontramos e que consiste em que a Cúria, cujo estatuto teológico não está clarificado, se sobreponha ao Colégio dos Bispos, cujo estatuto teológico é de fé. Trata-se, pois, duma organização de poder que teologicamente só pode gerir eficazmente o problema do pecado. O problema do sofrimento fica à mercê da generosidade dos fiéis. Ou inclusive é visto como elemento perturbador e que gera suspeita, coisa que foi posta em evidência no comportamento da Cúria e de muitos bispos em relação à Teologia da Libertação, a primeira teologia que se centrou de verdade no problema dos que sofrem e que foi desqualificada, ao mesmo tempo que os homens da Cúria não descansaram enquanto não a marginalizaram como “o maior perigo” para a Igreja. 9 Temos que pensar noutra moral. Isto tem que se formular em dois sentidos fundamentais: 1) Não estruturar a moral sobre o eixo do bem e do mal, mas sobre o eixo da felicidade e do sofrimento. Porque o “bem” e o “mal” são sempre e inevitavelmente conceitos subjectivos. Em nome do bem, fizeram-se guerras, perseguiu-se, torturou-se, matou-se, causou-se demasiado sofrimento. Outro tanto tem que se dizer dos conceitos de “bom” e de “mau”, inclusive, do “intrinsecamente mau”. Pelo contrário, a felicidade e o sofrimento são factos objectivos. As pessoas sentem-se felizes ou sofrem. Outra coisa é harmonizar o “feliz” com o culturalmente “razoável”. Não é a mesma coisa “felicidade” e “diversão”. Por outro lado, a felicidade inclui sempre o “sentido da vida”, aquilo que dá sentido e esperança à vida das pessoas. Em todo o caso, o que torna felizes os seres humanos e não atropela nem a sua dignidade nem os seus direitos é o moralmente bom e correcto. 2) Não estruturar a moral a partir do dever, mas a partir da necessidade. Trata-se duma moral que responde não só às necessidades próprias, mas às necessidades dos seres humanos, de todos os seres humanos. Isto é o que fez Jesus quando curou os doentes e foi tido por pecador, um escandaloso, um subversivo. Por satisfazer necessidades alheias, Jesus faltou aos próprios deveres e pôs em risco a sua imagem pública. 10 Temos que pensar noutra espiritualidade. Ensinaram-nos uma ascética e uma espiritualidade nas quais implicitamente nos era apresentado Deus como um Pai que gosta de nós. Mas que gosta de nós de tal maneira que, ao mesmo tempo, gosta que sacrifiquemos os instintos naturais que ele mesmo colocou na nossa vida. Além disso, esse Deus satisfaz-se mediante o sofrimento do seu Filho e dos seus filhos. Um Pai a quem temos que pedir perdão obsessivamente todos os dias. Um Pai que encontra a devida “satisfação” no sofrimento e na morte. É um Deus que o que mais detesta é o pecado, mas que parodoxalmente é do pecado que Ele mais precisa, para que os seus filhos sejam os culpados e Ele seja considerado inocente de tanto mal e de tanto sofrimento. Por isso a primeira vítima do pecado é Deus. A segunda vítima é Jesus, que fica reduzido a uma “vítima programada” para satisfazer pelos pecados. A terceira vítima é a Igreja, que se torna odiosa pela sua obsessão pelo pecado. A quarta vítima é o ser humano, responsável do pecado, acto de maldade infinita e que merece um castigo infinito. Daí que a espiritualidade cristã tem que centrar-se na luta contra o sofrimento no mundo e na luta por fazer felizes as pessoas que nos rodeiam. As renúncias que isso exige (que são muitas) são o caminho para Deus. Então a vida tem sentido. O mundo humaniza-se. Eis o mais urgente neste momento. E o que quis e quer Jesus, o Senhor. |
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Ernesto Cardenal (Nicarágua) Perguntas sobre Cuba Quem pode negar que existe em Cuba um grande número de presos, condenados às mais rigorosas condições carcerárias do mundo de hoje? Para eles não há nem dia nem noite, porque são mantidos de olhos vendados em completa escuridão. Taparam-lhes também os ouvidos, e mantêm-nos sujeitos a perpétuo silêncio. E estão privados de toda a sensação táctil, porque têm as mãos forradas com uma espécie de luvas de pele. São centenas de presos, cujos nomes ninguém conhece, e ninguém sabe de que são acusados, e não foram julgados, muito menos condenados, e não têm advogado, e estão a cumprir uma sentença infinita, porque não lhe foi posto um limite no tempo. Estes são presos em Cuba, mas que não estão presos por ordem de Fidel Castro. São os presos do presidente Bush, em Guantánamo. Estão em jaulas individuais, e vestidos com roupas vermelhas que todos vimos, no início, mas deles nunca mais se soube nada. Como são presos de Bush e não de Fidel Castro, a comunicação social norteamericana não diz nada deles. E eu pergunto se a União Europeia terá protestado por estes prisioneiros em Cuba. Exigiu peremptoriamente aos Estados Unidos que os ponha em liberdade, como exigiu a Cuba a liberdade imediata para 75 presos? Outra pergunta que faço é se em Cuba se protege o terrorismo; e respondo: claro que sim. Em Cuba o terrorismo é protegido pelo presidente Bush, através duma lei chamada "Ajuste cubano": uma lei que não é cubana mas norte-americana e que é aplicada apenas a Cuba e a mais nenhum outro país do mundo. Segundo esta lei, quem sequestre um avião ou um navio em Cuba e fuja com ele para os Estados Unidos, tem direito ipso facto a residência e garante-se-lhe trabalho de imediato. Normalmente, não se concede o visto aos cubanos para entrarem nos Estados Unidos, mas se entrarem lá ilegalmente, concede-se-lhes esse prémio. Não é isto promover o terrorismo em Cuba? Embora não seja Fidel que o promove, mas Bush. E quem emigra para os Estados Unidos, a partir de qualquer país do mundo, chama-se-lhe, naturalmente, imigrante, mas se emigrarem de Cuba para os Estados Unidos chamam-lhes exilados. Não existem imigrantes cubanos nos Estados Unidos. Todos os cubanos que emigraram e vivem nos Estados Unidos são exilados. Uma prática muito vulgar do poder norte-americano é falsear a linguagem. É falsificar as palavras, mudando uns nomes por outros. De facto, isto é mentir descaradamente. Assim, por exemplo, em vez da palavra “conquistar”, usam a palavra “libertar”. Acabam agora de recorrer a uma palavrita nova para a aplicar a Cuba: “dissidentes”. Etimologicamente, o significado desta palavra é dissentir, não estar de acordo, pensar de outro modo. Mas os Estados Unidos aplicam esta palavra aos que conspiram, promovem a subversão e procuram o derrube do regime cubano. “Promover a transição”, é outra maneira que eles têm para dizer o mesmo. E eu pergunto: Quem protesta, quando num outro país qualquer (que não seja Cuba) se prendem os que pretendem derrubar o regime? Li recentemente uma crítica que se fez a Cuba, porque dois parlamentares chilenos quiseram visitar oficialmente aquele país para se encontrarem lá com “dissidentes”. Foi-lhes dito que podiam fazê-lo, mas na condição de turistas, não na de visita oficial. E eu pergunto: Nos Estados Unidos concederiam o visto a alguém que o solicitasse explicitamente para ir lá encontrar-se com subversivos? Li também que a um destes 75 “dissidentes” que estão presos em Cuba, o presidente Bush escreveu uma carta a felicitá-lo pelos seus heróicos feitos. Não é isto uma confirmação do delito de subversão imputado ao réu cubano, quando este é felicitado pelo maior inimigo de Cuba, ocupado como estava em plena guerra contra o Iraque? Outra coisa insólita neste caso foi que o presidente norte-americano declarou ao referido réu cubano que ele e sua esposa o tinham presente nas suas orações. “Laura e eu continuamos a rezar por você”, disse-lhe. Eu pergunto como seriam vistas as coisas se Fidel Castro escrevesse a alguém de outro país, preso por conspiração, para lhe dizer que estava a rezar por ele. O meu comentário pessoal é que, tratando-se de oração, pelo menos eu teria mais confiança nas orações de Fidel Castro do que nas de Bush!... Quanto ao problema ético da pena de morte, a minha primeira observação é a seguinte: é certo que na Bíblia está escrito o mandamento Não matarás. Mas também é certo que no mesmo livro da Bíblia onde consta este mandamento, se explica ao pormenor como deve ser aplicada a pena de morte àquele que quebrar este mandamento de não matar. Eu sou dos que estão contra a pena de morte, melhor, sou dos que preferem que esta pena não seja aplicada a ninguém. E Fidel é também dos que pensam assim, como ele próprio o disse no seu discurso de 25 de Abril deste ano, no qual explica as razões pelas quais, de forma excepcional, esta pena havia sido aplicada agora em Cuba a três pessoas. E outra pergunta que eu faço é a seguinte: Se alguém, inclusive, um intelectual honesto da União Europeia, protesta contra a execução de três pessoas em Cuba que tentavam consumar um sequestro, não deveria protestar ainda mais pelas 165 execuções realizadas no Texas, enquanto Bush era governador desse estado? É ético que se proteste tão veementemente quando se trata de Cuba e simplesmente não se proteste quando se trata dos Estados Unidos? Com a agravante, para os Estados Unidos, de que aqui os executados são na sua grande maioria negros e em muitos casos menores de idade e doentes mentais. Há pouco vi no jornal a notícia da condenação à morte de seis pessoas na Guatemala. A notícia era quase invisível, de tão pequena. E depois que esta notícia saiu, não vi nenhum protesto nem nesse jornal nem em nenhum outro. Outra das minhas perguntas é a seguinte: até que ponto é certo que se está contra a pena de morte, se quando são fusiladas seis pessoas na Guatemala, ninguém diz nada, e quando fusilam três pessoas em Cuba há um escândalo mundial de incríveis proporções? Não será que a imprensa mundial se mobiliza, não contra a pena de morte, mas contra Cuba e Fidel de Castro? E os intelectuais, ao menos eles, que deveriam ser algo inteligentes, não se dão conta disto? Segundo a Amnistia Internacional houve, no ano passado, 1.560 condenações à morte no mundo. Nenhuma dessas execuções foi em Cuba! E quantos protestos houve contra essas 1.560 execuções? Como é que agora, que houve três em Cuba, houve este coro de protestos? Os intelectuais que foram utilizados pela campanha anti-cubana não se aperceberam? As três execuções em Cuba e a prisão de 75 pessoas ocorreram em circunstâncias muito especiais e os que são honestos não as podem ignorar. Trata-se de um país que está em risco de ser invadido. O governo de Bush, na altura em que estava envolvido na guerra do Iraque, declarou que Cuba estava na lista de objectivos militares susceptíveis de invasão e de destruição massiva. E os cubanos anti-castristas que residem nos Estados Unidos lançaram logo o grito de guerra “Iraque hoje, Cuba amanhã”. Fidel no discurso explicou amplamente ao povo de Cuba e ao mundo a situação de perigo por que Cuba estava a passar e quais as razões porque se viram obrigados a tomar medidas drásticas, como foi o caso da prisão de 75 conspiradores a soldo da representação diplomática dos Estados Unidos em Habana, e a execução de três sequestradores que tinham sido estimulados pela lei que lhes garante acolhimento nos Estados Unidos. Fiz questão de ouvir esse discurso em Manágua, porque ainda ignorava os motivos pelos quais Cuba tinha recorrido a medidas tão drásticas. Mas não pude ouvi-lo, porque o discurso transmitido via satélite de Habana foi interceptado. Podemos duvidar sobre qual o governo que interceptou esta transmissão via satélite? E não é condenável que a uma pessoa que está a ser acusada mundialmente não se lhe permita defender-se na rádio internacional? Isto, para além de ser uma violação ao direito de informação que todos os povos da terra temos. Só isto deveria ser suficiente para que aqueles que honestamente se pronunciaram contra Cuba se tivessem dado conta de que a opinião pública foi mais uma vez manipulada neste caso, e pelos mesmos que há décadas a têm manipulado contra Cuba, Isto não foi senão um episódio mais. Fidel Castro explica no seu discurso internacionalmente censurado que não é partidário da aplicação da pena capital, e que há três anos em Cuba ela não se aplicava, e que desta vez a aplicaram devido às ameaças de guerra que Cuba está a ter. Os mesmos que condenam Cuba pela falta de liberdade de expressão são, afinal, os que impediram a difusão via satélite de um discurso de um chefe de estado. E os mesmos que acusavam Cuba de violação dos direitos humanos, eram também os que, por esses dias, estavam a cometer a maior violação dos direitos humanos que jamais se viu no mundo desde os tempos de Hitler. E os que condenavam Cuba por três fusilamentos estavam a realizar em Bagdad uma destruição que essa cidade já não conhecia desde o século XIII, aquando da invasão dos mongóis. E declaravam-se dispostos a fazer o mesmo noutros países, inclusive em Cuba. Nota final: As minhas perguntas são simplesmente as de um leitor de jornais. |
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Leonardo Boff (Brasil) Paradigma-Conquista No conjunto dos seres da natureza, o ser humano ocupa um lugar singular. Por um lado, é parte da natureza por seu enraizamento cósmico e biológico. É fruto da evolução que produziu a vida da qual ele é expressão consciente e inteligente. Por outro, sobreeleva-se à natureza e intervém nela, criando cultura e coisas que a evolução sem ele jamais criaria como uma cidade, um avião e um quadro de Portinari. Por sua natureza, é um ser biologicamente carente (Mangelwesen), pois, ao contrário dos animais, não possui nenhum órgão especializado que lhe garanta a subsistência. Por isso, vê-se obrigado a conquistar o seu sustento, modificando o meio, criando assim o seu habitat. Desde cedo no processo de hominização surgiu, portanto, o paradigma da conquista. Saiu de África de onde irrompeu como “homo erectus”, há sete milhões de anos, pôs-se a conquistar o espaço, começando pela Eurásia e terminando na Oceania. Com o crescimento de seu crânio, evoluiu para “homo habilis”, inventando, por volta de 2,4 milhões de anos atrás, o instrumento que lhe permitiu alargar ainda mais a sua capacidade de conquista. Por comparecer como um ser inteiro mas inacabado (não é defeito mas marca) e tendo que conquistar sua vida, o paradigma da conquista pertence à auto-comprensão do ser humano e da sua história. Praticamente tudo está sob o signo da conquista: a Terra inteira, os oceanos e os recantos mais inóspitos. Conquitar povos e “dilatar a fé e o império” foi o sonho dos colonizadores. Conquistar os espaços extraterrestres e chegar às estrelas é a utopia dos modernos. Conquistar o segredo da vida e manipular os genes. Conquistar mercados e altas taxas de crescimento, conquistar mais e mais clientes e consumidores. Conquistar o poder de Estado e outros poderes, como o religioso, o profético e o político. Conquistar e controlar os anjos e demónios que nos habitam. Conquistar o coração da pessoa amada, conquistar as bênçãos de Deus e conquistar a salvação eterna. Tudo é objeto de conquista. O que ainda nos falta conquistar? Insaciável é a vontade de conquista do ser humano. Por isso o paradigma-conquista tem como arquétipos referenciais Alexandre Magno, Hernan Cortês e Napoleão Bonaparte, os conquistadores que não conheciam nem aceitavam limites. Depois de milénios, o paradigma-conquista entrou, em nossos dias, em grave crise. Chega de conquistas, senão destruiremos tudo. Já conquistamos 83% da Terra e nesse afã a devastamos de tal forma que ela ultrapassou em 20% sua capacidade de suporte e regeneração. Chagas se abriram e talvez nunca mais se fecharão. Precisamos de conquistar aquilo que nunca havíamos conquistado antes, porque pensávamos que era contraditório: conquistar a auto-limitação, a austeridade compartilhada, o consumo solidário e o cuidado para com todas as coisas para que continuem a existir. A sobrevivência depende destas anti-conquistas. Ao arquétipo Alexandre Magno, Hernan Cortês e Napoleão Bonaparte, da conquista, há que se contrapor o arquétipo Francisco de Assis, Gandhi, Madre Teresa e Irmã Dulce, do cuidado essencial. Não há tempo a perder. Devemos começar connosco, com as revoluções moleculares. Por elas garantiremos as novas virtudes que nos salvarão a todos. |
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Frei Betto (Brasil) Mitologia do corpo O cristianismo platónico cindiu, com a faca maniqueísta, corpo e alma. Apropriou-se a Igreja da alma e entregou o corpo aos cuidados do braço secular. Inimigo da carne, o espírito julgou-se tanto mais próximo de Deus quanto menos encarnado. Assim, o matrimónio, um saramento, chegou a ser considerado pela teologia agostiniana, “estado de pecado consentido”, e o sexo, portal de Satanás. Por sua vez, o braço secular instituições públicas e privadas traficava corpos de escravos e prostitutas, e entregava à tortura inquisitorial o corpo cuja língua não professasse que a verdade é filha da autoridade eclesiástica. Agora, o corpo recusa-se a ser refém do espírito. Da esquizofrenia da alma sobrepondo-se à carne, passamos à carne sobreposta ao espírito. Modelado pela erotização do mercado, o corpo adquire valor proporcional à sua adequação aos critérios de beleza estimuladores de consumo. Num país de famintos e corpos esquálidos, a glamourização das formas induz um punhado de homens e mulheres a submeterem-se a regimes e tratamentos cruéis. Despendem tempo e fortuna com os requintes da vaidade física, como a aranha que tece a sua própria teia narcísica, da qual se torna prisioneira. Não há academias especializadas em malhação do espírito e ainda não se inventou a transfusão de conhecimentos e valores de uma pessoa a outra ou do computador à mente, de modo a fazer coincidir a estética da aparência com a beleza da essência. Da ascética mortificadora do corpo, passamos agora à sua exaltação pagã. No desporto, exigem-se dele desempenhos cada vez mais excepcionais, sobretudo em agilidade (ginastas e jogadres) e velocidade (corredores e nadadores). No trabalho, impõe-se-lhe uma carga estressante, seja na actividade física, mal remunerada, seja no esforço mental. Em casa, ele é entupido de medicamentos, para dormir ou despertar, reduzir a melancolia ou aprimorar seus contornos. Enquanto isso, o avanço tecnológico desapropria-nos do corpo. O que fazer com ele, se já não produz? E a libido é socialmente controlada como valor comercial. É o que Marcuse chamou de “dessublimação repressiva” da sexualidade. O corpo esculpido segundo o modelo grego nu, sadio, forte e belo é a criação mitológica mais recente, ainda que desprovido de alteridade. A libertação descentra-se da luta de classes para centrar-se no corpo, já que o neoliberalismo tenta suprimir a pergunta sobre o sentido da existência. Para ele, basta desfrutá-la. Merleau-Ponty enfatizava que temos um corpo e somos o nosso corpo. Investimos na sua preservação (práticas higiénicas e culinárias), na sua apresentação (cosméticos e vestuário) e nas suas expressões afectivas (sinais emocionais). Tais expressões são o nosso calcanhar de Aquiles, sobretudo se o nosso corpo é um poço de mágoas, ressentimentos, invejas, e faz da língua uma faca afiada que retalha, em tiras de desafecto, o respeito ao outro. Em Jesus, Deus assume o corpo humano. “O Verbo fez-se carne”, proclama o Evangelho de João. A prática de Jesus caracterizou-se pelo resgate do corpo: se doente, é curado; se oprimido, libertado; se condenado, perdoado; se excluído, acolhido. E sempre amado. Jesus deixou que tocassem o seu corpo, a ponto de uma prostituta lavar-lhe os pés e enxugá-los com os cabelos, beijá-los e ungilos com perfume (Lucas 7, 36-50). E fez de dois recursos indispensáveis à sobrevivência do corpo a comida e a bebida, pão e vinho sacramento, no qual o seu corpo eucarístico nos é dado como alimento para a vida eterna, desde que, agora, saibamos, no amor, testemunhar que a vida é terna. Creio que o Universo é o ventre divino no qual estamos a ser gerados para a vida onde toda a dor estará erradicada pela soberania do amor. |
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Porfírio Borges (Porto) Ver para além do olhar Nos últimos tempos tornou-se de bom-tom, ou então de muito interesse comercial, comemorar-se com pompa e circunstância, o dia ou o ano dedicado a qualquer evento. Assim, creio não ser injusto se disser que, na minha opinião, o “O ano europeu da pessoa com deficiência”, que estamos a comemorar, não se afasta muito das perspectivas que acabo de referir. Como é assim que penso, confesso que se em qualquer outra comemoração fico indiferente, neste caso não consigo disfarçar a minha irritação. 1º. Não suporto a ideia de ver tantos oradores a falarem com tanta “experiência” de assuntos que não podem sentir, porque nunca os viveram. É tempo de entender que o deficiente não é sinónimo de inválido, pelo que lhe assiste o direito de se pronunciar sobre o que é bom ou não para si. 2º. Porque o deficiente, se o é, não é só no dia ou ano que lhe pretendem dedicar. Por isso, dispensam-se as reflexões com data programada e reclamam-se obras em todo o ano. A este respeito já Santo António dizia: “A linguagem é viva quando falam as obras. Cessem, pois, as palavras e falem as obras.” Embora só com uma ligeira esperança de que esta reflexão será lida por aqueles a quem pretendo atingir, insisto em a fazer, porque sei que a água mole (intervenções como esta) em pedra dura (legisladores e detentores do poder), tanto bate até que fura. A minha discordância e irritação começa, desde logo, pelo facto de os interessados não serem ouvidos para a feitura das leis e ainda porque estas não se cumprem, nem se fazem cumprir, por falta de vontade política ou, o que é bem pior, pela falta de civismo de uma boa parte da população. Assim, condeno a falta de vontade politica, mas lamento sobretudo, a falta de civismo: Eu já vi gente que, para conseguir um lugar no autocarro, me ultrapassou na respectiva bicha. Quantas vezes, entramos nos transportes públicos e os lugares destinados aos deficientes estão indevidamente ocupados e quem lá está finge que vai distraído? Mas há outras insensibilidades que importa denunciar. Não há ainda muito tempo, cheguei no meu carro junto de umas placas de um parque de estacionamento para deficientes, exactamente quando outro condutor pretendia estacionar. Antes que o fizesse, chamei-o à atenção para o facto de o lugar ser reservado a quem tem dificuldades em se deslocar. Apesar disso, estacionou como se nada fosse com ele e foi à sua vida. E os automóveis, mecos, candeeiros, placas e cabines telefónicas em cima dos passeios a dificultarem a circulação dos cegos? E para quando o cumprimento da lei que manda anular as barreiras arquitectónicas? Há dias tive que ir a uma Escola secundária para falar com uma professora. Na entrada, deparei-me com um bom lanço de escadas sem qualquer corrimão. Resultado, só consegui os meus objectivos, pedindo que me ajudassem a vencer aquela barreira. Note-se que se trata de um edifício público que pode ser frequentado por alunos e professores portadores de deficiências. Como se vê, se há casos em que a lei não se cumpre por falta de civismo da população, muitos outros é da total responsabilidade dos governos. A este propósito volto a citar Santo António: “Estamos cheios de palavras (leis) mas vazios de obras”. Confirma-se, então, que é preciso ver para além do olhar. Não basta olhar e depois não ver o deficiente e passá-lo à frente na bicha, não ver as placas que reservam os parques de estacionamento e ocupar o lugar indevidamente, não ver que os passeios devem estar desimpedidos para que os cegos possam circular sem perigo. Não basta ver que é preciso fazer leis para acabar com as barreiras arquitectónicas, e depois não as porem em prática. Não basta ver o deficiente em datas especiais, e não perceber que ele não é um “coitadinho” e que dispensa a comiseração. Assuma-se de uma vez por todas que todos somos diferentes; uns mais ricos, outros mais pobres, uns mais inteligentes, outros mais saudáveis e ainda outros deficientes, mas todos iguais perante a lei. Quando pensarem em novas datas comemorativas para tratarem destes problemas, não o façam sem ouvir os interessados. Se assim fizerem, ficam a saber que eles só pretendem que os tratem com delicadeza e lhes proporcionem as condições necessárias, para que possam assumir, em plenitude, a sua cidadania. |
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Risoleta Pinto Pedro (risoletapedro@netcabo.pt) Um dia destes fui a Fátima Um dia destes fui a Fátima. Praticamente nunca lá tinha estado, a não ser pontualmente por uma outra razão que não aquela em que logo se pensa quando se fala em Fátima. Em criança nunca tive que acompanhar nenhum adulto, em adulta sempre me recusei a ir, mesmo numa situação em que a maioria teria cedido à tentação de entrar num negócio com a divindade. Mas como nunca tive muito jeito para negócios desconfiei sempre de negócios com desconhecidos, daí a minha recusa em lá ir. Apesar dos incentivos e algumas pressões. Mas no outro dia fui a Fátima. Por razão alheia, mas lá fui. Respeito os sentidos dos outros, e se são seres que amo não só os respeito como os apoio e tento compreender, o que só me pode fazer bem. Não havia praticamente ninguém no santuário, pelo que pude andar, observar e respirar sem grandes obstáculos. E o que vi foi o seguinte: - uma basílica que arquitectonicamente é uma coisa de fugir. - uma oliveira que, sorte a dela, está ali naquele sítio, porque se estivesse sob a tutela de certos autarcas de quem tenho ouvido falar já tinha sido arrancada e substituída, sabe-se lá porquê, eventualmente por um campo de golfe, por ser muito velha. Há políticos que acham que as árvores velhas não têm direito à vida. E enquanto forem só com as árvores... Mas adiante, vi também as obrigatórias, incontornáveis velas das promessas, o normal, uns quantos peregrinos em devoção, o esperado. E o inesperado. Confesso que não previra que isso pudesse acontecer, Fátima era, aliás, o último sítio onde esperava que tal me sucedesse, mais facilmente o esperaria em cima de uma ETAR, em plena Rua da Voz do Operário em noite de santos populares ou num aterro desses que levam as pessoas aos telejornais, mas a verdade é que aconteceu ali em Fátima, no meio do santuário e do meu preconceito: e foi uma imensa e escandalosa paz, um sentimento de estar tudo certo, uma cadência musical de silêncio, uma sensação de centro, uma espécie de estranha chegada a casa. Contra todas as evidências, lógicas e convicções. Contra todo o civilizadamente correcto. Com toda a auto-crítica o confesso. É que este sentimento tão íntimo e tão forte depois não bate certo com o folclore dos pastorinhos e toda a parafernália comercial e toda a indústria turística e com uma Nossa Senhora em campanha partidária a falar de Rússia e de Comunismo como se estivesse no Parlamento numa bancada de centro direita ou mesmo de direita, etc, etc, etc. Isto da Nossa Senhora a meter-se em política foi coisa que sempre digeri muito mal. De facto, não bate certo, mas o certo é que algo me bateu no centro do peito e me enterneceu. Tenho a certeza que não foram os pastorinhos, nem uma Nossa Senhora comprometida com os poderes, nem nada do que estava à vista. O que foi, foi muito oculto, esteve para além disto tudo. Uma Nossa Senhora manipuladora ideológica de criancinhas analfabetas, é a terrível bruxa em que o poder da altura tentou transformar Ísis, esse extraordinário arquétipo do princípio feminino que atravessa todas as religiões de todos os tempos, Ísis, a Lua, o princípio feminino, fonte mágica de toda a fecundidade e de toda a transformação. No Cristianismo assume a forma da Virgem, e é uma figura de tal modo grandiosa que se revela absolutamente incompatível com tão baixa política. No antigo Egipto acreditava-se que cada ser humano era uma gota do sangue de Ísis. No Médio Oriente, na Grécia, em Roma e na bacia mediterrânea, Ísis foi adorada como a deusa suprema e universal. É um arquétipo suficientemente, excessivamente grandioso para transcender a pequena moldura em que quiseram aprisioná-la. Talvez seja isso o que sem o saberem explicar, sentem todos os corações sensíveis a um espaço durante tantos anos alimentado por milhares de seres em adoração a um princípio que sem saberem, afinal, transportam consigo, porque lhe são parte. |
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© Página criada 2 Outubro de 2003 |
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