Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 154, de Julho/Setembro 2004

PRIMEIRA PÁGINA

Bem-aventuranças do poder

Bem-aventurados os que governam para que todos tenham pão, paz e prazer, e transmutam antigas estruturas na multiplicação da fartura;

Bem-aventurados os que governam com o coração, livres de maquiavelismos e macabras intenções, servidores públicos de anseios, direitos e utopias;

Bem-aventurados os que governam sob a arte de saber ouvir e assinam decretos e decisões sem tingir o papel de sangue;

Bem-aventurados os que governam conspirando a favor da maioria, sonegando aos poderosos privilégios e honrarias;

Bem-aventurados os que governam para o bem comum, indiferentes à própria imagem e felizes com a ira dos inimigos do povo;

Bem-aventurados os que governam em equipa e fazem da política um grande mutirão democrático;

Bem-aventurados os que governam deixando-se governar pela população, inabaláveis diante das pressões dos oligopólios e das corporações da ganância;

Bem-aventurados os que governam em favor da vida, coibindo violências e reduzindo desigualdades;

Bem-aventurados os que governam impregnados dos princípios evangélicos, boca e actos num único beijo;

Bem-aventurados os que governam em prol dos direitos humanos, destituídos da lógica perversa que traz o dinheiro público num cofre, cujo segredo os pobres jamais descobrem;

Bem-aventurados os que governam sem apego ao poder, fazendo da própria vida sacramento do serviço ao próximo, sobretudo aos mais necessitados.

Eis que eles estarão salvos, nesta vida, do purgatório dos medíocres, do inferno dos corruptos e do céu daqueles que cobrem de louvores os assassinos do povo.

(Texto graciosamente enviado por Frei Betto para o Jornal Fraternizar e extraído do seu livro Típicos Tipos, Ed. A Girafa)


Destaque 1

Para acabar de vez com a pobreza

1. Está ainda para aparecer um go­verno politicamente decente que ouse ter como primeira medida do seu pro­grama acabar com a pobreza no res­pectivo país. E que consiga esse feito, no prazo máximo de um mandato. Pode dizer-se que esta é a prova de fogo de um qualquer governo que se preze. Porque se o governo de um país não é capaz de acabar com a pobreza, não é um governo politicamente decente. E deve ser destituído sem mais con­templações.

2. É intolerável que no século XXI, com todas as possibilidades reais de pro­dução efectiva de riqueza, ainda ha­ja quem passe fome e morra de fome no mundo. E hoje são já milhares de mi­­lhões! É um crime que brada aos céus, mas que se ergue aqui na terra. Contra todas as minorias dirigentes, sejam ou não do governo de cada país.

Neste particular, as Igrejas bem po­dem limpar as mãos à parede, se não conseguem despertar a consciência da Humani­dade para uma tal realidade e se não conseguem mobilizá-la para a correspondente e concertada acção política que se impõe.

Aliás, as Igrejas são, elas própri­as, as primeiras responsáveis históricas por esta calamidade mundial que é a ma­­nutenção da pobreza, uma vez que, du­rante todos estes séculos, sempre se bateram, não pelo fim da pobreza, mas pela caridadezinha que garanta aos pobres duma região e do mundo as mi­galhas que caem da mesa dos ricos. Como se alguma vez a simples exis­tência da pobreza pudesse ser com­patível com a dignidade do ser humano. Ou como se alguma vez se pudesse falar de humanidade a sério, enquanto a pobreza continuar a ser uma cons­tante sobre a terra.

3. E, no entanto, não é por falta de debates dos peritos sobre a pobre­za, que esta continua aí sem ser erra­di­cada da face da terra. Nos tempos que correm, sobram os debates sobre a pobreza e faltam as medidas e as ac­ções concretas e eficazes para a erra­dicar. Porque, basicamente, falta a vontade política para o fazer.

4. Enquanto não forem os próprios pobres a encabeçar o combate contra a pobreza, o mais a que se pode che­gar é a soluções do tipo caridadezinha, concretamente, bancos alimentares con­tra a fome, rendimentos mínimos ga­rantidos, assistência social à base de subsídios, cabazes de natal, em nú­mero cada vez maior. Tudo soluções indignas, tanto para os pobres que as aceitam, como para as minorias que as promovem. É que a pobreza tem cau­sas concretas, científicas. Querer combatê-la e erradicá-la sem acabar com essas causas concretas, científicas que a provocam é como querer apagar os fogos de verão com gasolina.

5. Não existe apenas a pobreza. Também existem os pobres! Melhor, empobrecidos, isto é, multidões de pes­soas e de povos vítimas de economias, cientificamente concebidas para os fa­bricarem, sem dó nem piedade.

Afirmar isto assim, sem mais, até parece uma verdade de La Palisse. E talvez seja. Mas é por aí que a luta con­tra a pobreza há-de começar. É por aí que o combate pela erradicação da pobreza tem que ser iniciado. Pelo re­conhecimento da existência dos po­bres – hoje, o maior exército, por en­quanto ainda desarmado, do mundo – e pela sua mobilização em massa con­tra a pobreza. Ou assim, ou essa luta não passa de demagogia e de poeira que se atira aos olhos e à inteligência das pessoas.

6. Até agora, nenhum governo se atreveu a ter em conta este dado. Tudo se faz como se os pobres fossem coi­sas, não seres humanos. Como se os pobres fossem meros objectos, não su­jeitos. Ora, enquanto os pobres não fo­rem chamados a conduzir os proces­sos históricos e científicos contra a po­breza que os ataca e os desumaniza, jamais esta será erradicada da face da terra.

Só que ousar avançar por aqui, com os pobres como sujeitos e protago­nistas, é considerado hoje, mais ainda do que ontem, politicamente incorrecto e até subversivo, pois é ir directamente à raiz do mal, meter o dedo na ferida e atrever-se a mexer com o sistema eco­nómico que actualmente produz cada vez mais pobreza e mais pobres em massa.

7. Infelizmente, até agora, nenhum governo do mundo tem tido a lucidez, o atrevimento e a audácia de avançar por aqui. Mesmo que veja que é esse o caminho, prefere meter-se pela via da caridadezinha, da esmola, do subsí­dio. Prefere apelar aos ricos que sejam menos cruéis e disponibilizem umas quantas migalhas das suas fartas me­sas, dos seus fartos orçamentos, para que ele possa subsidiar os pobres do país.

Mas a verdade é que nem isso os ricos estão hoje dispostos a fazer. Pelo menos, enquanto os próprios pobres os não obrigarem, nem que seja com acções que os ricos e os seus governos insistem em chamar “terroristas”. (Mas há lá terrorismo maior que o dos ricos que se apoderam impunemente da ri­queza produzida no mundo, como se não fosse próprio da natureza da rique­za produzida valer a todas as necessi­dades de todas as pessoas e de todos os povos?!)

8. Está visto que os governos pre­fe­rem insistir nas (falsas) soluções que as Igrejas sempre propuseram nas suas pastorais, mais ou menos in­gé­nuas e voluntaristas. Sem jamais se questionarem, como as Igrejas nunca se questionaram, porque é que há po­bres e pobreza. Na verdade, as Igrejas sempre se comportaram como se a existência de pobres e de pobreza no mundo fosse coisa natural, fatal, por­ventura, até querida pelo próprio Deus, precisamente, para incitar os ricos a serem bons para com os pobres, a se­rem benfeitores, portanto. O mesmo fa­zem hoje os governos, como se fossem igrejas mais ou menos deístas ou lai­cas.

Talvez, por isso, é que os gover­nan­tes, mesmo que sejam descarada­mente perversos nas suas opções eco­nómicas e financeiras e nas suas deci­sões e práticas políticas, não deixam de andar a toda a hora com o nome de Deus na boca. E pelam-se todos por manterem relações públicas de facha­da com os grandes das Igrejas, particu­larmente, com os grandes da Igreja católica, isto, evidentemente, no que res­peita aos governantes dos países do Ocidente.

9. Os próprios pobres, sistematica­mente reduzidos à condição de objecto e, por isso, sistematicamente impedi­dos de se assumirem na História como sujeitos dotados de consciência crítica, com facilidade perdoam aos governan­tes os sucessivos crimes políticos que estes cometem contra eles, particular­mente, quando os governantes lhes dão hipócritas mostras de crerem em Deus.

Mal sabem os pobres que não é por muito falarem em Deus, ou por irem à missa aos domingos, que os gover­nantes são bons. Só o são, se ousarem conduzir políticas que, antes de mais, ponham fim à pobreza e à existência de pobres em massa. Mesmo que se­jam governantes assumidamente ateus ou agnósticos, estarão mais próximos de Deus, se isto fizerem, do que os go­vernantes que falam muito em Deus, mas para, desse modo, melhor disfarça­rem a sua incompetência e mais facil­mente poderem manter os pobres sem refilar, apesar de amarrados à sua de­gradante condição de pobres.

10. Foi Jesus de Nazaré quem trou­xe esta boa notícia ou Evangelho de Deus à Humanidade, particularmente, aos pobres: A primeira medida política de Deus Criador na História é: erradi­car a pobreza da face da terra. É a primeira, na ordem das prioridades e também na da importância. Quer isto dizer que, enquanto a pobreza não tiver sido erradicada da face da terra, todas as outras medidas que vierem a ser tomadas por quem governa o mundo não têm qualquer sentido.

11. Para Deus Criador, a pobreza é o que há de mais perverso e de mais inumano sobre a terra. É, por isso, o que há de mais incompatível com a Fé nEle. Crer em Deus Criador e não estar na primeira linha do combate pela erra­dicação da pobreza é uma contradição. A Fé em Deus tem que ter como pri­meiro propósito e como primeira medi­da erradicar a pobreza no mundo. Quem não o faz e diz que crê em Deus é mentiroso. Na verdade não crê em Deus. Quando muito, crê num Deus que não é o Deus de Jesus. Crê num ídolo. Só os ídolos ou falsos deuses é que se agradam da existência de po­bres. E dão-se bem com a pobreza no mundo. Não o Deus Criador que só está em festa, quando houver uma terra de abundância para todas as pessoas e para todos os povos, sem qualquer discriminação.

12. Mas a boa notícia de Deus que Jesus trouxe à Humanidade, particular­mente aos pobres, vai ainda mais lon­ge. Diz aos pobres que é com eles que o Deus Criador conta para implementar na História a sua primeira medida polí­tica, que é, como se disse, acabar com a pobreza. É com os pobres que Deus conta. É por isso que Jesus os procla­ma “felizes”. E acrescenta logo a seguir qual o motivo para tão surpreendente proclamação: “Porque é vosso o Reino de Deus”. Nestes exactos termos: “Fe­lizes vós, os pobres, porque é vosso o Reino de Deus” (cf. Lc 6, 20).

Ora, se, por determinação de Deus, o Reino de Deus é deles, então os po­bres não podem mais continuar resi­gnados, como em todos estes séculos, ao papel histórico de simples objecto das políticas demagógicas e proposi­ta­da­mente incompetentes das minorias ricas. Têm que ousar assumir o papel his­tórico de sujeito de políticas cientí­ficas que erradiquem de vez a pobreza da face da terra, de maneira que a terra comece a ser, finalmente, Reino de Deus, e não mais este inferno em que as multinacionais e o império de turno nos têm condenado a viver.

13. Não são os ricos e os podero­sos que, alguma vez, erradicam a po­breza do mundo. E, se o fizerem, só se for pela sacrílega matança em mas­sa dos próprios pobres, como popula­ção excedentária! Nem são os grandes, sejam os do mundo, sejam os das Igre­jas. Os grandes sempre se protegem uns aos outros. Sempre pensam e agem de modo igual. Depressa, criam uma ideologia, uma moral e até uma teologia à sua medida, que lhes sirvam de guarda-chuva e de auto-justifica­ção. E tentam depois, por todos os meios – lábia para isso não lhes tem faltado – convencer os próprios pobres de que essa ideologia, essa moral e essa teologia vêm directamente de Deus. Mas só podem vir do ídolo ou falso Deus que eles habilmente criaram à sua imagem e semelhança, e com o qual sempre se têm defendido, ao lon­go dos séculos, não só da justa ira e da justa cólera dos pobres, mas tam­bém da indignação do próprio Deus Criador, que, assim, se vê sistematica­mente abafado e substituído pelo ídolo.

14. Basta ver como os ricos e os po­derosos se mostram sempre disponí­veis para financiar a construção de igre­jas, basílicas e espectaculares ac­ções litúrgicas, em honra do seu Deus ídolo, onde, entretanto, os pobres do mundo são reiteradamente anestesia­dos, adormecidos, desmobilizados. E como eles sempre gostam de aparecer ao lado dos maiores das Igrejas, a co­me­çar pelo papa de Roma. E como eles nunca deixam o poder cair na rua em nenhum dos países do mundo, pelo contrário, sempre se unem para o man­terem nas suas próprias mãos. (Aliás, se alguma vez acontece o ines­perado de um pobre chegar ao poder, por via eleitoral, é ver como logo os ricos e poderosos desse país e do resto do mundo tudo fazem para o desacre­ditar, inclusive, diante dos pobres e dos povos pobres. E só descansam, quando finalmente o derrubam, ou o matam. Como mataram Jesus, o de Nazaré!)

15. É por isso que a boa notícia de Deus que Jesus trouxe à Huma­nidade, particularmente aos pobres, inclui também, e como algo que lhe é essencial, este apelo inadiável aos po­bres de todo o mundo: Pobres de todo o mundo, uni-vos! Pobres de todo o mun­do, convertei-vos, isto é, deixai de seguir a ideologia, a moral e a teologia dos ricos e dos poderosos que crimino­samente vos mantêm na condição de pobres. Assumi, com humildade e au­dácia o vosso lugar de protagonistas da História. Governai vós o mundo, para que ele deixe de ser o inferno que hoje é e comece a ser o Reino de Deus que está chamado a ser desde o princípio. E o próprio Deus Criador, esse mesmo que gosta de Política, não de Religião, estará para sempre con­vos­co nesta tarefa histórica e política que é sobretudo dele.


Destaque 2

A senhora de Fátima voltou a atacar em força

Aconteceu mais um 13 de Maio, em Fátima. E, como de costume, algumas televisões não se fizeram rogadas. Inclusive, a televisão pública de um Estado laico, como é a do nosso país. A confirmar que uma coisa é a letra da Constituição da República, outra, muito diferente, são as orientações e as decisões concretas dos "homens de mão" do Governo que, de momento, está à frente dos destinos do país. Já que os ministros e secretários de estado não têm qualquer competência para enfrentar e resolver os graves problemas do país, os seus "homens de mão" na televisão do Estado laico fazem servir overdoses de senhora de Fátima e outras coisas pimba do género. Como analgésico. Desta vez, as populações do país e do mundo jogaram pelo seguro e primaram por significativa ausência, em comparação com os sucessivos 13 de Maio dos anos anteriores. Mesmo assim, ainda foram muitos milhares os que marcaram presença no espectáculo e ajudaram a compor o recinto, manifestamente mais acanhado, devido às obras de construção da nova basílica. Mas o espectáculo em directo voltou a ser confrangedor. A senhora de Fátima que se agrada destas coisas é mesmo cruel. Como cruéis são os seus sacerdotes que, em grande número, continuam a presidir a semelhantes sessões públicas de degradação humana. O "destaque" que aqui se apresenta remete-nos para um texto saudavelmente crítico com data de 14 de Maio de 2001. Concretamente, para o diário que o pe. Mário então mantinha na sua página na internet. Divulgamo-lo tal e qual. Leiam-no e tirem as vossas conclusões. Ao mesmo tempo, fiquem desde já a imaginar como irá ser o Documentário, em significativa parte inspirado nele, que um realizador residente no nosso país deverá apresentar ainda este ano, na Culturgest, durante a mostra "DocLisboa".

A senhora de Fátima voltou a atacar. Em força. Ontem e anteontem. Mas com fracos resultados. Que se saiba, nenhum doente, dos muitos que lá vão com a ilusória esperança de cura, foi curado. A bênção dos doentes, apesar da forte emoção colectiva que costuma provocar, não teve qualquer efeito prático. Nunca teve. Nem terá. Nem sequer foi capaz de suscitar uma su­gestão colectiva bastante, que fizesse andar quem está paralítico, ou fizesse ver quem está cego, por causas que podem estar relacionadas com traumas do foro psicológico, e não causas físi­cas, que estas, quando existem, não há sugestão por maior que seja, que faça paralíticos andar e cegos ver. A verdade é que, mais uma vez, e como de todas as outras vezes, nenhum mila­gre ocorreu em Fátima. A senhora ou deusa lá do sítio não está para aí vira­da. Nunca esteve. Nem jamais estará. Pela simples razão de que ela não existe, é pura mentira.

Já foi assim em 1917, o ano que a lenda histórica sobre Fátima refere como das aparições. Nessa altura, a ingénua e alucinada Lúcia, de 10/11 anos, foi posta a falar para a suposta aparição que ninguém mais via nem ouvia, e os respectivos inquiridores da época registam que a suposta senhora da suposta aparição já então se mos­trou insensível e cruel.

Embora o guião da dramatização teatral dissesse que era uma senhora que vinha do céu, a verdade é que ela não conseguiu fazer nada de jeito, a favor de certos doentes lá da terra, apesar da ingénua criança guardadora de rebanhos referir expressamente os nomes deles, na esperança de comover tão celestial personagem. Foi tudo em vão.

Com isso, ficou desde logo claro que, embora a suposta senhora disses­se que vinha do céu, sempre se mos­trou totalmente incapaz de fazer algo de bom por nós, seres humanos, que vivemos na terra. Nem sequer pelos muitos milhares e milhões de irmãs e de irmãos nossos que vivem na terra, como se esta fosse um vale de lágri­mas, onde têm estado condenadas, condenados a gemer e a chorar.

Até hoje, ao longo destes mais de oitenta anos, a senhora de Fátima não fez pelas pessoas que lá vão, a ponta de um corno. Muito pelo contrário, des­de a primeira hora, mostrou-se interes­sada em que as pessoas entregassem o seu dinheiro, para lá ser erguida uma capela em honra dela!...

(Com preocupações deste tipo, é bem de ver que era o clero católico que estava por trás de tudo. As capelas são, para o clero católico, locais de negócio, algumas bem rentáveis. Se, depois, à pequena capela inicial, se juntar uma basílica, e à basílica outra basílica de muitos milhões de contos, não terão mais conta os milhões e mi­lhões de contos que o negócio passa a render ao clero católico. E tudo é feito, oficialmente, em nome de Deus e por amor de Deus. O deus Dinheiro, evidentemente!).

Felizmente, os seres humanos, no­me­adamente, cientistas e investigado­res, médicos e engenheiros e tantos outros especialistas, mulheres e ho­mens, na sua condição de simples seres humanos, têm feito e continuam a fazer todos os dias muito mais pela Hu­manidade e pelo nosso bem-estar individual e colectivo, do que aquela senhora de Fátima, que, no dizer do guião da dramatização teatral de 1917, vinha do céu.

Aliás, se as pessoas pensarem bem, logo darão conta de que a senho­ra de Fátima não é senhora nenhuma. É pura mentira. Tanto assim é, que ela tem boca, mas não come, não fala, não ri. Tem ouvidos, mas não ouve. Tem olhos, mas não vê, nem chora. Tem corpo, mas não se comove, não mexe os braços, nem as mãos, e também não anda. Parece uma senhora, mas não é. É pura mentira. Não passa duma estátua de madeira. De muito mau gos­to artístico. É bem a imagem acaba­da e tosca, da inacção, da indiferença, da ausência, da frieza, da insolidarie­dade. Como são todas as imagens de todos os ídolos.

Basta ver que ela nem para as cri­anças que, em1917, caíram na asneira de dizer que a viram e que ela lhes falou, foi boa. Aos dois irmãos, Jacinta e Francisco, deixou-os morrer, na maior das aflições e no meio dos maiores tor­mentos, devorados pela pneumónica. E à prima deles, Lúcia, estragou-lhe para sempre a vida, pois, desde então, nunca mais ela soube o que é ter vida própria, liberdade individual, capacida­de para dispor de si. Sempre foi pau man­dado de certo clero graúdo, faná­tico, adorador de um deus que se ali­menta de criancinhas, tem inveja e ciú­me da felicidade dos seres humanos adultos e, por isso, tudo faz para os depenar, para lhes extorquir o que têm e o que não têm, para os castigar, os massacrar, os torturar até à morte. E, depois de tudo, ainda os obriga a dizer, com aquele cândido ar dos tontos, de que assim, a sofrer, é que são seres humanos felizes.

Mais uma vez, ontem e anteontem, ardeu muita cera no crematório do recinto de Fátima, erguido ali mesmo ao lado da chamada capelinha das aparições. O mau gosto de quem o ergueu naquele local não podia ter sido mais requintado. O crematório é bem a imagem do mítico inferno que povoou a torturada mente das três cri­anças vítimas de Fátima. E que Lúcia – só a Lúcia! – diz que a cruel senhora, que supostamente lhes apareceu, lhes mostrou e as deixou, desde então, a gemer de horror.

Segundo afirmações que são atri­buídas a Lúcia, nesse livro de horrores que são as suas “Memórias”, o inferno é algo semelhante a este crematório de Fátima, um lago de labaredas flutu­antes, com os condenados lá dentro a arder sem se consumirem (como se sabe, até o papa mais fanático de Fá­tima, João Paulo II, recentemente, veio ensinar que o inferno não tem chamas de fogo, é um estado em que se en­contram os “condenados”, o que con­tra­diz abertamente a senhora de Fátima que ele adora! Mesmo assim, as po­pulações sofredoras não querem saber e continuam a correr para ela, como, de resto, o próprio papa também faz, sempre que pode). E a cruel senhora de Fátima garantiu, a pés juntos e a mãos juntas – não é assim que ela se apresenta, dia e noite, aos seus des­gra­çados adoradores? ! - que essa era a tortura em que já se encontravam os “pobres pecadores” falecidos, precisa­men­te a mesma que está destinada a todos os demais pecadores do mundo, que vierem a falecer, a não ser que, an­tes de falecerem, todos eles se metam a rezar muitos terços!...

No crematório de Fátima, ardem velas de todos os tamanhos, feitios e pesos. Ou pedaços de cera com forma humana. Pernas avulsas. Pés. Braços. Mãos. Cabeças. Corpos inteiros sem sexo. Tudo é previamente comprado e pago a pronto, como em qualquer su­per­mercado, aos negociantes do san­tuário e a outros das redondezas, os quais não perdem uma peregrinação a Fátima e dizem cobras e lagartos contra aquele padre católico português, que insiste em afirmar publicamente que não acredita em nada do que se diz ter ocorrido em 1917, na Serra d’Aire.

Toda essa cera em estado sólido é atirada para aquela enorme pira, para se desfazer em cera líquida, que escorre para um reservatório, proprie­da­de do santuário, a fim de ser de novo convertida em velas de todos os tama­nhos e pesos, em cabeças, mãos e pés, etc, e ser vendida de novo às devotas e aos devotos da senhora.

Muitas foram também as pessoas que, ontem e anteontem, rastejaram ou andaram de joelhos, entre a Cruz Alta e a chamada capelinha das aparições, terço na mão, desgraçados pagadores de promessas, manifestamente posses­sos do demónio do medo, mas cujas aberrantes posturas, certos profissio­nais da comunicação social insistem em classificar como impressionantes mani­festações de fé. Como se a fé (cristã) fosse sinónimo de medo, de horror, de humilhação, de auto-flagelação, por par­te dos seres humanos.

Alguns milhares de pessoas foram a pé, quilómetros e quilómetros, até Fátima, como já é de tradição e de ro­tina. Pensam que o fazem por convicção pessoal. Não fazem. Fazem-no por for­ça da tradição e da rotina. Também por mimetismo, que é uma doença conta­giosa, estilo, “O meu vizinho prometeu ir a Fátima a pé, e toda a gente acha bem e o admira? Também eu vou fazer outro tanto”. E, se, depois, as televi­sões dão cobertura a estes gestos, sem qualquer sentido crítico, então, cada vez haverá mais gente a enveredar por esse caminho. Até para cumprir a pro­messa feita de ir lá a pé, nem que seja pelo seu clube de futebol ter ficado campeão!

À chegada a Fátima, estes que an­daram dias e dias a pé, apresentam-se com os pés abertos, cheios de bo­lhas, a sangrar, e os corpos a morrer de cansaço. Mas, se pressentem o mi­crofone duma rádio por perto, ou uma câmara de televisão, ou uma simples máquina fotográfica, logo ostentam a­quele ar pateta de pessoas felizes, as mais felizes do mundo. Como se a fe­licidade humana fosse sinónimo de so­frimento e de comportamentos irracio­nais, próprios de quem ainda vive to­lhido pelo medo dos deuses e das deusas, esses míticos seres criados/imaginados pelos povos primitivos, dos quais ingenuamente se diz que são terríveis na vingança, quando se lhes promete certas coisas e, depois, não se cumpre o prometido!

Os jornais de hoje referem tam­bém que, ontem, terão estado em Fátima qui­nhentas mil pessoas. Outros, mais ge­nerosos, falam em 600 mil. Ou mes­mo perto de um milhão. É à vontade do freguês. Como quer que seja, tenho de reconhecer que são números gor­dos, de encher o olho.

Tanta gente junta e com rostos vin­cadamente sofridos, prestam-se a grandes planos televisivos que fazem lembrar certos filmes norte-americanos com milhares e milhares de figurantes. E os “media” não perdem pitada num espectáculo assim. Do mesmo modo que não perdem um renhido jogo de fu­tebol entre os chamados “grandes” (são grandes em tudo, até nas dívidas ao fisco e, sobretudo, na habilidade de fa­zerem dinheiro, vá lá saber-se co­mo).

E que dizer desse momento final, em que toda aquela massa humana, de rosto sofrido, saca de um lenço bran­co que já leva no bolso preparado para o espectáculo, se desfaz em lágri­mas, e acena, acena, acena, até que o braço lhe doa?

Os fanáticos de Fátima gostam de repetir que, nesse momento, até os mais empedernidos ateus, se lá esti­vessem, não resistiriam a chorar de co­moção. Afirmam-no, como quem pensa que está a dizer uma grande coisa.

Não se dão conta de que o espe­ctáculo a que se referem, é simples­mente a nossa vergonha, é a degrada­ção da pessoa humana, é o ponto mais alto da degradação humana, precisa­mente, aquele em que já não há mais lucidez, nem capacidade crítica, nem racionalidade humana, tudo é pura alie­nação, alucinação, delírio, descontrolo, loucura colectiva, por isso, uma expe­riência humana nos antípodas da Fé cristã, dom de Deus, que é a plenitude da lucidez pessoal, da consciência pessoal, da responsabilidade pessoal, do auto-controlo pessoal, numa palavra, do bom senso e da dignidade do ser humano que se deixa habitar/dinamizar/fazer por ela.

Não nego que tanta gente junta em Fátima, por ocasião destes dias 13, de Maio a Outubro, faz pensar. Também a mim. Mas não no sentido em que cos­tuma fazer pensar os eclesiásticos que fazem de Fátima o nervo da sua Fé católica. Desde logo, porque é muita gente, sim senhor, mas gente que vai lá e lá permanece, por umas horas, sim­plesmente atraída por uma tosca imagem de madeira, em forma de mu­lher, que as pessoas tomam como ima­gem duma mítica deusa.

É notório que os eclesiásticos, que gerem o santuário desta imagem da deusa de Fátima - uma imagem que as populações carenciadas imaginam viva, mas que não passa de pura men­tira – mostram-se contentes e só não esfregam as mãos de satisfação, em público, devido a um certo pudor.

Mas, se calha de serem entrevista­dos por algum canal de televisão, logo aproveitam para realçar, não os cho­rudos lucros que a senhora de Fátima lhes garante – seria obsceno demais, se o fizessem – mas sim o que eles, mentirosamente, chamam de inequívo­ca manifestação de fé do nosso povo.

Tanto no que, então, dizem, como no tom em que o dizem, percebe-se de imediato que, também eles, estão a pensar no tal padre católico que não acredita em Fátima nem na sua senho­ra. O ar deles é de vencedores, como quem diz, Esse padre que ponha aqui os olhos e reconheça o poder de Fátima e da sua senhora.

Depois, com aquele ar de hipócrita piedade, em que sempre foram peritos os religiosos fariseus de todos os tem­pos, quase só lhes falta pedir publica­mente ao referido padre que se arre­pen­da do que tem dito e escrito e ve­nha, ele também, a Fátima; que eles lá estarão para o acolher, abraçar, per­doar e fazer a festa.

Mas não têm essa sorte. Nunca a terão, pelo menos, enquanto eu estiver no meu perfeito juízo (certamente, já tinham percebido que o padre católico a que me estava a referir, sou eu pró­prio). Porque o que se passou ontem e anteontem em Fátima, com todas essas centenas de milhar de pessoas, mais me confirma na minha convicção de que tudo aquilo é mentira. Portanto, diabólico. Tudo muito religioso, sim se­nhor, mas diabólico.

Como diabólica é, de resto, toda a religião que leva as pessoas a bus­car um Deus fora de nós, no céu, que as substitua e lhes valha nas aflições, que as mantenha no infantilismo e na ido­latria, que as dispense de serem res­ponsáveis perante a História, ou seja, que as dispense de tudo fazerem para mudar o rumo aos aconteci­men­tos, nomeadamente, tudo fazerem para mudarem a actual Ordem Económica Mundial das Multinacionais, que fabri­ca pobres e pobreza a granel, como se fosse uma inevitável fatalidade, quan­do é uma opção de minorias privi­legiadas que não cedem um milímetro nos seus privilégios, pelo contrário, lou­ca e perversamente, cada vez mais que­rem que eles cresçam até ao in­finito.

Tenho dito e aqui repito. Aquilo que ontem e anteontem se passou em Fátima não tem nenhuma marca de Deus, pelo menos, do Deus revelado em Jesus de Nazaré, o Crucificado/Res­sus­citado. Desafio, daqui, qualquer teó­logo cristão, qualquer bispo ou papa, a desmentir-me. Tem, isso sim, todas as marcas das míticas deusas e dos míticos deuses, cujos cultos públicos proliferaram no Império romano – ído­los que escravizam e humilham e su­gam as suas devotas e os seus devotos – e que, hoje, são os deuses das Multi­na­cionais e da sua perversa Ordem Económica Mundial.

Tem, portanto, todas as marcas da segunda “Besta” ao serviço da primeira “Besta” - o anti-Deus - de que fala o livro cristão Apocalipse, ou Revelação, à qual são atribuídos, mentirosamente, milagres espectaculares, sempre com o objectivo de enganar as populações mais carenciadas e mais sofredoras e, assim, as manter, resignadas, no seu mal (cf. Apocalipse 13).

Como essa segunda “Besta”, tam­bém a senhora de Fátima é pura menti­ra. Faz que anda, mas não sai do sítio. Faz que fala, mas não pronuncia uma palavra. Faz que ouve, mas não tem uma reacção. Faz que se compadece, mas permanece na mais completa indi­fe­rença. É bem a imagem da Mentira e da Ilusão. Uma imagem que os po­bres e carentes de todo o tipo, até de afecto e de realização sexual, olham fixamente e, de repente, como numa alucinada visão, parece-lhes que ela lhes fala, lhes sorri, os consola, e, so­bre­tudo, os incita a sofrer com paciên­cia e por amor dela, essa mesma que eles tratam, devotamente, como Nossa Senhora, isto é, Nossa Deusa.

(Não é por acaso que, em redor da imagem da senhora de Fátima, mui­to próximo dela, sempre se vêem, nes­tes dias de pública peregrinação, cente­nas e centenas de eclesiásticos celiba­tários, que a olham com enlevos de de­voção quase erótica, como inconsciente compensação pelo vazio de mulher, a que estão condenados, por força duma inumana lei de celibato obrigatório, que eles, entretanto, nem sequer se atre­vem a denunciar e a colocar fora de validade!).

Só que uma Deusa assim, como a senhora de Fátima, não tem nada a ver com o Deus revelado em Jesus de Na­zaré e em Maria, sua mãe carnal, por­que este não suporta o sofrimento de ninguém e sempre se sente honrado quando o sofrimento é combatido até desaparecer de todas as suas filhas e de todos os seus filhos.

Uma Deusa assim como a de Fáti­ma tem tudo a ver com a imagem da segunda “Besta”, denunciada pelo A­po­calipse cristão, a única que é capaz de se sentir honrada com multidões e multidões de seres humanos que ras­tejam, que andam de joelhos, que tortu­ram o seu próprio corpo, que se privam de alimentos, que gostam de sofrer, e arruínam a própria saúde!

Decididamente, não vou por aí. E entendo que a Igreja católica, da qual sou presbítero, também não deveria ir. Não me canso de o repetir. E que me perdoem aquelas e aqueles que dizem que eu falo demais sobre este assunto. Mas como é que falo demais, se os res­ponsáveis maiores da Igreja continuam a fazer orelhas moucas ao que eu digo e ao que dizem as Igrejas cristãs evan­gélicas, e não só não desistem de Fáti­ma, como até correm ainda mais para lá? O que é demais não é Fátima e não são todas aquelas aberrações reli­gio­sas que lá se praticam?

Se – e nisso, está toda a gente de acordo – Fátima não faz parte do Credo católico; e, se uma pessoa continua a ser católica, mesmo que não creia em nada de Fátima, então por que é que os responsáveis maiores da Igreja cató­lica, a começar pelos párocos e a aca­bar nos bispos e no papa de Roma, não abrem mão de Fátima? Por que in­sis­tem em manter-se lá? Por que con­ti­nuam a dar cobertura àquela desu­ma­ni­dade e àquela vergonha? Por que continuam a dar-lhe tanta importância? Por que fazem com que até venha lá o papa de Roma? Por que beatificaram as duas crianças que, para mal delas, têm, agora, o seu nome para sempre ligado àquela vergonha, quando o que deveriam ter feito era declarar solene­men­te que elas foram vítimas dum Ca­to­licismo deísta e idolátrico, muito em voga entre nós, nos começos do século XX, e que está nos antípodas do Cris­ti­anismo e da Fé cristã jesuánica? Por que continuam a incitar as pessoas a irem lá? Por que não evangelizam a sério as populações, para que elas, pro­gressivamente, deixem de correr para lá? Por que vão, eles próprios, para lá em tão grande número e até rea­lizam lá os seus principais encontros de trabalho e de reflexão? Como é que podem sentir-se bem num ambiente de tão cruel paganismo, nos antípodas da liberdade e da dignidade, que a Fé cristã desperta e promove?

Tanto interesse em Fátima, quando nada daquilo faz parte do Credo cató­lico, pelo contrário, até é a sua nega­ção, faz-me concluir que há grandes e inconfessados interesses eclesiásti­cos em jogo, de que a Igreja católica não quer abrir mão. Nomeadamente, interesses financeiros e ideológico-mo­ralistas.

Fátima é, para os responsáveis da Igreja católica – pelo menos, para al­guns, também para o Vaticano - uma mina inesgotável. Com Fátima a fun­cionar, a Igreja católica não precisa de possuir poços de petróleo, nem minas de diamantes. Ganha mais com ela, do que muitos Estados com os poços de petróleo ou as minas de diamantes. E tudo praticamente sem esforço. Nem sequer tem de passar recibos. Nem tem de pagar impostos ao Estado. É tudo lucro.

Mas não só. Com Fátima assim tão fre­quentada, a Igreja pode sempre di­zer ao Estado laico, que está aí para as curvas. Que os políticos e os gover­nos vejam bem no que se metem, quan­do se lhe referem, porque ela tem con­tra eles, sempre que for necessário, aquele altar da “Besta”, mentirosamen­te, toda poderosa, que pode acabar por derrubá-los, se não fizerem o jogo dela.

Não é, pois, por acaso que, à fren­te do santuário de Fátima, está um clérigo, com o título honorífico de mon­se­nhor, e com provas dadas de eficien­te empresário. E não qualquer empre­sário, desses de trazer por casa. Mas um empresário bem à altura da multi­na­cional religiosa que é hoje o san­tuário da senhora de Fátima.

Como tem sido eficiente, é inamo­vível. Pode mudar o bispo da Diocese, que ele mantém-se. Como funcionário fiel e eficaz. Provavelmente, ainda hão-de promover a sua beatificação e ca­no­nização, pouco tempo depois da sua morte. Tanto dinheiro deu a ganhar à Igreja, que bem merece essa distinção póstuma!

Termino esta página do Diário-net, com um apelo. Haja modos, se­nhores eclesiásticos católicos. Haja mo­dos, meus irmãos responsáveis maio­res da nossa Igreja. Acordem. Não se deixem impressionar pelos números de “peregrinos” que afluem a Fátima. Mais, muito mais, eram os peregrinos que a­flu­íam à cidade de Éfeso e ao santuário da respectiva deusa Ártemis, no tempo do Apóstolo Paulo, no século primeiro do Cristianismo (cf. Actos 19). E Paulo não se deixou impressionar nem sub­jugar. Muito menos, correu a prostrar-se diante da imagem idolatrada pelos efésios. Resistiu à idolatria e anunciou o Evangelho jesuánico da liberdade, da dignidade e da responsabilidade de cada pessoa humana. Foi persegui­do, mas é graças à sua fidelidade que hoje existimos como Igreja, e com a missão de anunciar e de viver esse mesmo Evangelho.

Em lugar de se impressionarem po­si­tivamente com tão elevado número de peregrinos em Fátima, aflijam-se. Porque tão elevado número é indicador seguro de que Fátima e a sua cruel se­nhora são, entre nós, não o Evange­lho de Deus, vivido e anunciado por Jesus de Nazaré, o Crucificado/Ressus­citado, ao qual até a sua mãe, Maria de Nazaré, acabou por aderir, mas sim a sua negação e perversão.

Reconheçam que a mítica senhora de Fátima é a anti-Maria de Nazaré, mulher histórica que Deus ressuscitou. Como tal, não anda, não pode andar, por aí a meter medo a criancinhas por­tu­guesas ou de outras nacionalidades.

Reconheçam que a senhora de Fá­tima é a imagem duma mítica deusa que, como todos os deuses que as populações em aflição imaginam e criam, devora quem, nessa situação de aflição, corre para o seu santuário.

O dinheiro que lá deixam e que vós recolheis e fazeis transportar para o Banco, em carros especiais de empre­sas de segurança, deveria queimar-vos nas mãos. Porque é sangue de popula­ções em aflição, como o daquela pobre viúva do Evangelho, que foi levada a deitar no tesouro do Templo de Jeru­sa­lém a última moedinha que tinha para comprar comida. O gesto dela não foi um gesto livre. Foi um gesto cruel. Ela foi levada a isso por influência da catequese feita de mentira, com que os sacerdotes do Templo e os doutores da Lei bombardeavam e tolhiam as po­pulações. Por isso, foi um gesto que, ao contrário do que vós tendes andado a ensinar, não colheu a aprovação de Jesus. O que fez foi despertar nele a ira e a indignação, ao ponto de o levar a fazer dumas cordas chicote e correr todos aqueles comerciantes do Templo para fora, ao mesmo tempo que promo­via a sua simbólica destruição.

Acordem, meus irmãos responsá­veis maiores da nossa Igreja católica. Sabem tão bem como eu que a via de Jesus de Nazaré - a via do Evangelho - é via de porta estreita, não de porta larga. Não é via para proporcionar grandes negociatas ao chamado turis­mo religioso, nem mesmo para adorme­cer e anestesiar populações cheias de carências de toda a ordem. É via para mulheres e homens dispostos a entre­garem-se, como Jesus de Nazaré, aos pobres e às suas causas, contra as Mul­tinacionais que os fabricam e contra a Ordem Económica Mundial que lhes dá cobertura e mentirosa legitimidade. É via para mulheres e homens determina­dos a amar o seu próximo, amar até dar a própria vida para que a vida, so­bretudo, a vida consciente e esclareci­da, cresça nas multidões que sofrem todo o tipo de carências.

Reconheçam, meus irmãos, que Fátima é o contrário da via de Jesus, e que Maria sua mãe, felizmente, aca­bou por fazer sua também. Fátima é a porta larga do Catolicismo paganizado e idolátrico, do turismo religioso, das imagens que as populações carencia­das de tudo, tomam como amuletos e como ídolos, na ilusão de que as livra dos males. Não livra. Ainda lhes traz males maiores.

Deixem, por isso, de mostrar ale­gria com o que se passa em Fátima. Preocupem-se com o que lá se passa e abram-se ao Espírito Santo, para, com Ele, descobrirem como havemos de pôr fim a este desastre, a esta vergonha, a este manifesto anti-Evangelho de Jesus, a este manifesto anti-Cristianismo jesuánico. É hora, meus irmãos.


Espaço Aberto

Editorial

“A porta estreita”

1. Felizmente, já há hoje em Portu­gal uma significativa parcela do nosso povo que não se deixou em­be­bedar pe­las intermináveis overdoses televisi­vas do Euro 2004 e que foi votar esma­ga­do­ramente esquerda nas eleições para o Parlamento Europeu (PE).

A mai­oria CDS-PP/PPD-PSD que, há dois anos, nos desgoverna e tem atira­do o país para a maior depressão na­ci­o­nal que ele alguma vez conheceu, nestes trinta anos de Abril, até ficou gaga e sem fala, perante tão grande e tão ver­go­nhosa derrota.

A mais elementar decência política mandaria que, em momentos apocalípti­cos (= reveladores) como este, o chefe do executivo nacional se apresentasse no dia se­guinte ao Presidente da Re­pú­blica e colocasse o seu cargo e todo o seu governo à disposição. Para que o Presidente ficasse de mãos livres e con­vocasse de imediato os dirigentes dos diversos Partidos Políticos e outras forças vivas da sociedade civil para com todos dialogar sobre o que fazer a seguir.

Mas Durão Barroso, refém, por um lado, da sua adolescentite política que faz dele um primeiro ministro politica­mente irres­pon­sá­vel, e, por outro lado, do seu mi­nis­tro de estado e da defesa, Dr. Paulo Portas e de todo o seu ódio político contra o PSD de Cava­co Silva (não é que, há dois anos, o “Paulinho das fei­ras”, como então gos­tava de ser conhe­ci­do, ficou completa­mente des­lum­bra­do com a possibili­da­de de ser ministro de Portugal e correu logo a pôr o disfarce de homem de estado, para, desse modo, qual cavalo de Trói­a, minar por dentro ainda mais todo o aparelho do PSD?), continuou a asso­biar cinicamente para o ar, como quem confirma pela ené­sima vez que não tem a mais pequena noção do que é ser primeiro minis­tro a sério (por vezes, fala-se em remo­delação do Governo. Mas quem remo­dela este primeiro ministro?). E a verdade é que, só muito a custo, ele lá acabou por aparecer nas televisões, já a noite da derrota ia adi­an­tada, para dizer ao país que perce­beu o “puxão de ore­lhas” que este lhe deu; mas logo aproveitou para acres­centar que de modo algum abdi­caria do cargo, determinado que está a ar­rast­ar-nos a todos para o de­sem­prego, para a falência e para a de­pres­são na­cio­nal mais completa.

Perante tamanho desaforo, como é que reagiu o país real? O país real, com­­ple­ta­­mente aturdido pelo ruído sem pre­ce­dentes que o Euro 2004 desen­ca­­deou, de norte a sul, nas regiões au­tó­nomas e nas comunidades de emi­grantes espalhadas pelo mundo, e to­lhi­do pelo medo do que um qualquer co­mando da Al-Qaeda ainda possa vir a fazer nalguma das cidades onde de­cor­rem os jogos do euro-futebol, nem tempo teve, nem forças, para sair às ruas a exigir a demissão imediata de um governo como este sem rumo e sem liderança, artificialmente apoiado por uma maioria no Parlamento nacional que, a partir destas eleições europeias, já não tem mais qualquer correspon­dên­cia com a maioria real da popula­ção que votou esmagadoramente es­querda para o PE. Todo o seu tempo e todas as suas energias têm sido pou­cos para marcar presença nos múltiplos estádios onde decorre o Euro 2004, ou junto de algum dos muitos ecrãs gi­gan­tes colocados em locais estrategica­mente seleccionados, ou, muito sim­ples­­mente, diante de algum dos apa­relhos de televisão que tem espalhados no interior das casas onde vive.

Perante tamanha apatia política, meticulosa e cientificamente consegui­da por acção e omissão dos grandes “media” nacionais e europeus, até pa­rece que o PE não tem nada a ver com o que se passa nos países dos estados membros. Mas, por favor, não venham, de novo, acusar as populações de vi­verem de costas voltadas para a Euro­pa.

Como podem exigir das popula­ções outra pos­tura, se, entretanto, nenhum dos go­vernos dos estados mem­bros da União Europeia que per­deram estas eleições – Espanha, aqui ao lado, foi a honrosa excepção – teve a hombri­dade de se demitir de fun­ções? Como podem ser consideradas importantes e decisivas as decisões do PE, por parte das po­pulações dos diferentes estados mem­bros, se nem os respectivos gover­nos se sentem afectados por resultados eleitorais tão manifestamente contra as suas políti­cas, as suas economias e as suas fi­nanças? É assim, com comporta­mentos destes, que os actuais dirigen­tes dos 25 estados membros pretendem fazer da Europa o continente da fra­ter­nidade dos povos, da solidariedade e da paz? Mas alguma vez a Europa da fraternida­de, da solidariedade e da paz pode cons­truir-se sem a Verdade como fun­damento de tudo o mais? Al­guma vez a hipocrisia e a mentira, o apego ao poder e aos privilégios, por parte dos dirigentes dos diversos esta­dos mem­bros, podem servir de alicerce à cons­trução duma Comunidade euro­peia com futuro? Pelo contrário, não nos con­duzem rapidamente para o abis­mo?

2. “Entrem pela porta estreita, por­que larga é a porta e espaçoso o ca­minho que conduz à perdição, e muitos são os que seguem por ele. E estreita é a porta e apertado o caminho que con­duz à vida, e poucos são os que o encontram” (cf. Mateus 7, 13-14).

Ao falar assim, Jesus perfila-se, ainda hoje, no meio de nós como o único líder político da História que não engana as pesso­as e os povos, pois não busca em pri­meiro lugar o seu bem-estar individual, muito menos um rol de privilégios pes­soais, familiares ou de partido.

Desde o primeiro momento da sua intervenção política, como militante n.º 1 do Reino de Deus, Jesus tem o cui­dado de deixar claro às pessoas e aos povos que a dignidade e a identidade que nos fazem distintos das coisas e dos animais que nos rodeiam têm um preço muito alto. Ou nos batemos todos os dias por elas, ou entramos num pro­cesso que nos arrasta para o abismo. Voltamos à natureza de onde saímos, pior, abaixo da natureza de onde saí­mos. Perdemos a identidade e a digni­dade e acabamos ainda abaixo das coisas e dos animais.

Infelizmente, os dirigentes dos povos da Europa vivem hoje cada vez mais de costas voltadas para Jesus, o Jesus histórico que, por volta do ano 30 da nossa era, foi crucificado como o líder político n.º 1 do Reino de Deus, por não pactuar nunca com a política de mentira dos chefes dos sacerdotes e do Sinédrio judaico, nem com a polí­tica fratricida do Império de Roma que então ocupava militarmente o seu pe­que­no país, tal como hoje as tropas do Império norte-americano e de outros países do Ocidente ocupam o Iraque.

Nem mesmo os dirigentes das Igre­jas que se reivindicam do seu nome pro­cedem melhor que esses dirigentes. São capazes de promover – e promo­vem – agressivas campanhas a recla­mar uma referência às raízes cristãs da Europa, no texto da Constituição eu­ropeia, mas, depois, mesmo elas, não querem saber para nada do Jesus his­tórico.

É sabido que as Igrejas ditas cris­tãs não descansaram, enquanto não fizeram de Jesus um Deus, o ídolo dos ídolos, para que, desse modo, a sua me­mória perigosa e subversiva de líder político n.º 1 do Reino de Deus nem se­quer seja lembrada, não vá ela pro­vocar o levantamento em massa, em sucessivas insurreições, dos milhares de milhões de vítimas humanas com o objectivo ex­presso de derrubarem os sistemas econó­mi­cos e políticos idolá­tricos que, hoje, mais ainda do que no pas­sado, nos es­tão a comer a identida­de e a vilipendiar a dignidade.

É urgente reagir a este estado de coisas. Ou nos tornamos, na Europa e no resto do mundo, povo de povos pron­­tos a resistir e a en­saiar/criar alter­nativas libertadoras aos impetuosos ventos demo­nía­cos dos grandes "me­dia" que estão aí apostados em devo­rar-nos a iden­ti­dade, mediante a impo­si­ção da ido­la­tria do deus Dinheiro men­tirosamente anunciada por todos eles como a sal­va­ção da Humanidade, ou aca­bamos todos redu­zidos à triste condição de coi­sas e de meros ani­mais de consumo, que já nem procriar con­se­guem. A porta para o a­bis­­mo é larga e o caminho, espaçoso. E con­tinuam a ser muitos os que se­guem por ele. A­cordemos! Mudemos de rumo. Entre­mos lucidamente pela porta estreita. A única que nos abre o caminho estreito da Europa da fraternidade dos povos, da solidari­e­da­de e da paz.

Vosso companheiro e irmão

Mário, presbítero.

NOTA da Direcção

Infelizmente, o apelo, na edição anterior, do companheiro Prof. Manuel Sérgio , para que se cons­tituísse um Grupo de cem amigos do Jornal Fraternizar que garantissem, cada um com cem euros por trimestre o seu regular aparecimento sem sobressaltos, não teve grande acolhimento entre as pessoas. Não chegaram sequer a dez as respostas. Como, por outro lado, a esmagadora maio­ria das pessoas que o recebem continua sem contri­buir com o mínimo sugerido na ficha técnica de 10 euros por ano, torna-se de todo ine­vitável que o Jornal Frater­nizar esteja a passar por momentos de grande sobressalto financeiro.

Tenho que dizer às pessoas que lerem esta edição, de Julho/Setembro de 2004, que, pela primeira vez na vida do Jornal, tivemos que ficar a dever à Tipografia; e o en­vio pelo cor­reio desta edição só foi possível, porque um companheiro da Associação pagou as respe­ctivas custas, na esperança de que o mau momento financeiro seja ultrapassado.

Porém, se tal não vier a acontecer, terei que inter­pretar a falta de partilha das pessoas como um sinal de que elas deixaram de estar interessadas na continuação do Fraternizar.

É isto que efectivamente queremos? Ou, pelo contrário, vamos todas/todos congregar esforços para vencermos este mau momento financeiro? Como director, não desejo outra coisa. Mas o que sou eu sem vocês?


Júlio Ribeiro (Moçambique)

O pequeno Maconde

O fim da segunda guerra mundial apanhou-me no último ano de Filosofia no Seminário dos Grilos, no alto da mar­­gem direita do rio Douro. Felizmen­te que, em Vilar, tinha tido outro pro­fessor, e assim, com essas bases, su­ponho ter suprido (ao menos em parte) as deficiências do ensino da Metafísica, que o actual professor quase ignorou ou reduziu talvez a uma simples gra­má­tica de termos – obsoletos, talvez... Indignei-me, mas dei graças a Deus pelo meu primeiro mestre – António Ferreira Gomes.

Naquele dia, os meus colegas es­tavam irrequietos e eufóricos, e escre­veram no quadro preto (aliás, verde, se não me engano) a palavra Vitória. Mais me enfureci: é claro que eu folga­va pelo fim da guerra, pela paz (se tal passasse a existir), mas nunca concor­dei com rendições incondicionais – como se todos os bons estivessem de um lado e todos os maus do outro. E recusei-me a assistir à aula, enquanto a palavra Vitória não fosse apagada.

Felizmente o professor – o tal da Metafísica que, se quis aprofundar, tive de o fazer por mim, – concordou, ou condescendeu, mandando apagar a palavra Vitória a quem a tinha escrito (salvo erro, o Ângelo). E a aula iniciou-se sem mais incidentes.

 É claro que eu era suspeito, por­que fora germanófilo, enquanto não soube toda a verdade sobre o nacio­nal-socialismo, mas já tinha dado pro­vas da minha isenção no Liceu Alexan­dre Herculano, quando exortei toda a camada juvenil a manter-se firme, nem de um lado nem do outro, mas a favor do nosso povo e sempre pela justiça.

Talvez uns dois anos depois, já casado, quando surgiu a febre de aco­lher crianças austríacas, enquanto os respectivos pais não aparecessem ou não tivessem condições de tomar de novo conta delas, a Maria Ester e eu, então residentes em Vila Real, não nos fizemos rogados e prontificamo-nos, bem dentro do ideal que nos havia uni­do, a tomar conta de alguma delas.

E recordo o sorriso snobe (mescla­do de condescendência) com que nos (des)acolheram... evidenciando que aquilo era só para elites, e nós, de cer­teza e felizmente, não pertencíamos a elas. Não chegara a nossa hora!

Mais tarde, já em África, rebentara a luta de libertação em Angola. En­quanto outros faziam as malas, mesmo em Moçambique, nós mandávamos vir da então metrópole, o resto do nosso espólio mobiliário e, assim, quisemos afirmar o nosso propósito de permane­cer com o povo moçambicano, ao qual, pelo menos os nossos filhos, pertenci­am.

Quatro anos depois, rebenta a re­volta no norte de Moçambique. Não nos colhe de surpresa (surpresa foi a sua demora!), porque há muito sabíamos ser justa e inevitável, embora talvez não exactamente como aconteceu.

Pela minha parte, de acordo com o meu bispo, continuei com reuniões, mato fora, procurando que os moçam­bicanos se consciencializassem dos momentos que se aproximavam e da necessidade de manterem os próprios valores (não os desvalores), e acolhe­rem os valores alheios (não os desva­lores, que sempre nos quiseram impin­gir), mas salvaguardando a própria iden­tidade e liberdade.

Infelizmente – por culpa minha – só o podia fazer junto de catequistas e professores que falavam o português.

O meu disfarce era a expansão do livro católico e a evangelização (falo em disfarce, porque a noção que os por­tugueses sempre tiveram de evan­ge­lização era, e não sei se ainda hoje é, muito diferente da que Cristo, não os papas, nos urgiu a realizar). Mas sei muito bem que isso nem sempre pegou...  em Nauela, por exemplo, o chefe de posto que me mandou vigiar recebeu a seguinte mensagem dos ci­pais: – Júlio / muitos filhos / muitos li­vros / IN. (In=inimigo, na codificação administrativa.)

Foi neste contexto que íamos sa­bendo de massacres colectivos e crimes individuais – ora cometidos pelo exér­cito português, ora pelos administrati­vos, ora pela PIDE/DGS. Foram tempos terríveis, porque, além de tudo, sofría­mos empaticamente (sabeis quanto isso custa?) e nos sentíamos impotentes na defesa da justiça e dos direitos hu­manos. Qualquer acção planeada tinha de ser habilmente executada, sob pe­na de deitarmos tudo a perder, sem nenhum resultado positivo ou até pio­rando a situação.

Uma das minhas maiores amigas, uma comunista que conhecera em Lou­renço Marques, dizia-me: – Temo muito por ti, Júlio, és cristão e podes ser ten­tado a ser mártir. Não é disso que pre­ci­samos. Luta, sim, mas de modo a nun­ca tocares as malhas. Só assim serás um verdadeiro revolucionário, só assim serás útil ao povo.

O marido, ainda hoje vivo e tam­bém meu amigo (como me sentia bem com este género de ateus!) confirmava-a. Foi dos casais que mais me ajudou, apesar de viver tão longe.

Um dia, uma outra amiga – essa vi­via em Quelimane e ajudava directa­mente na expansão do livro, na visita às palhotas e em todas as actividades em que nos metêssemos – chega à li­vraria ainda mais preocupada do que de costume.

Um capitão miliciano do exército português termina uma operação de limpeza no planalto de Mueda. Os seus soldados, pelo sim pelo não, veri­ficam se todos e cada um dos mortos estão, de facto, mortos. Limpeza é lim­peza, e basta escapar um para tal lim­peza ficar mal feita.

E não é que, debaixo do cadáver de um maconde, estava um filho, es­condido, talvez dos seus cinco anos? O soldado agarra-o e prepara-se para lhe dar a sorte de todos os outros (por que não?). No planalto, porém, ecoa um grito – uma ordem – do comandan­te: – Esse não!!! O soldado, estupefacto (ou talvez contente: quem sabe?), baixa a arma. E o pequenino maconde é sal­vo.

De regresso ao quartel, não sei se o coronel ou qualquer outro superior hierárquico, pergunta:  – Se matastes os outros, por que não esse?

Matar, no entanto, em campanha, era – para eles – uma coisa (muito le­gal pelos vistos), mas matar dentro do quartel, assim, sem motivo, e logo uma criança, era outra. Extraordinária moral esta! E o pequeno José Maria – assim lhe passam a chamar – vira mascote dos oficiais, come com eles na messe, todos o estimam.

Um dia, a mulher do capitão vem visitá-lo, trata o seu pupilo muito bem, mas vai-o avisando de que não o quer em Lisboa, na casa deles.

Assim são as mulheres! Ou certas mulheres? Eu não quero ser sexista, machista, ou seja lá o que for: eu acre­dito, continuo a acreditar que são só certas mulheres, até porque também certos homens não lhes ficam atrás.

E o pobre capitão fica a sofrer, ele que tão contente estava por ao menos ter podido salvar uma vida no meio do massacre que o obrigaram a fazer. Ele que até dera o próprio apelido àquele macondezinho. Ele que, certamente, já o estimava como filho.

Então, dirige-se às missões católi­cas, onde sempre existiam internatos com crianças daquela idade. Mas todos objectam: – Como acolher uma criança habituada ao nível de uma messe de oficiais e obrigá-la a viver no nível po­bre dos internatos? Seria impensável uma crueldade dessas.

E o pobre capitão não sabe que f­azer. Eu sei bem como pode ser de­sesperante uma situação dessas. Con­tra­riar a esposa, poderia comprometer para sempre uma relação, e o filho ado­ptivo seria sempre a maior vítima. Aban­donar esse filho seria despedaçar o pró­prio coração, além de injusto, tam­bém.

Nesta altura do relato da Constan­ça, passei eu a preocupar-me: – É pre­ciso evitar que este acontecimento resulte em jamais qualquer oficial por­tuguês se atrever a salvar a vida seja de quem for. Se as ordens forem de matar, é matar mesmo. E nada de com­pli­cações.

Agora já não é um projecto de vi­da: agora é uma emergência de guer­ra. Quem não compreenderá! E que di­fe­rença para uma casa como a nossa, com três ou quatro empregados domés­ticos (como sempre tive até as proximi­dades da independência), mais uma cri­ança no meio da nossa numerosa pro­le? Falo em casa no caso, com o meu habitual entusiasmo e certamente emo­ção, convicto de ser compreendido des­de os mais velhos até os mais novos. E, baseado na sentença de que quem cala consente, faço saber a esse oficial do exército português, por meio da pró­pria Constança, muito relacionada com as pessoas-bem da Zambézia, que a minha casa estava disponível para aco­lher o pequeno maconde, se outra so­lu­ção preferível não fosse encontrada.

E um dia – estava a Maria Ester em missão de serviço na Alta Zambézia, mais exactamente, no Gurúè, por aca­so com  os filhos que, assim, aprovei­ta­vam uma mudança de ares – surge-me o referido capitão com o pequeno José Maria.

Era a alegria de um novo filho. Num caso destes, todo aquele ideal que me unira à Maria Ester ou, melhor, todo aquele ideal que a Maria Ester me in­suflara não podia ser desmentido. A prova real não podia falhar. Como eu pen­sava que conhecia o coração de uma mulher! Pelo menos, o da minha mulher!

...Só que nem sempre os que ha­bitavam sob o mesmo tecto viam a guerra colonial do mesmo modo, nem sempre os que partilham a mesma cama vibram em uníssono...

Aquilo de que quis livrar o jovem oficial acabava de cair sobre mim, dentro e fora de casa. Até os criados queriam levar o macondezinho para a palhota... para que não ficasse na casa de alvenaria junto dos meninos bran­cos.

A minha firmeza só conseguiu evi­tar o pior, mas o mal-estar subsistia e, por vezes, vinha à tona, e a hostilidade social era notória. Os portugueses e as portuguesas da rectaguarda não eram melhores do que os da frente de batalha.

Excepção de uma ou outra amiga: quem sabe se, na verdade, só a Maria da Glória – antiga enfermeira psiquiá­trica e actual dona de uma pensão – foi, de facto, nesses tempos de aflição, o meu grande amparo! E também al­guns missionários, sempre a meu lado e eu ao lado deles, mas esses eram ita­lianos e os portugueses, mesmo os ditos católicos, apostólicos romanos, não se cansavam de os apelidar de es­trangeiros que não podiam compreen­der o patriotismo lusíada.

Como durante a semana não po­dia estar muito tempo com o José Ma­ria, à saída da missa, em Coalane, aca­rinhava-o, mas logo os outros rodea­vam a mãe para – só mais tarde o sou­be – demonstrarem que eu seria o pai do africaninho, mas eles eram os filhos da mãe. (A que soam, como soam e que significam estas palavras?...)

Às vezes, castiguei-o em particular para levá-lo a evitar conflitos com os que eu pensava poderem considerá-lo irmão. Mas eu sabia claramente a jus­teza da sua aparente altivez: no fundo, apenas dignidade. Nunca con­de­nei os meus filhos, porque não sabiam o que faziam (e até suspeito que alguns o estimavam), mas os adul­tos sabiam bem o que faziam e diziam.

Tive pena de não ter gozado por mais tempo da sua companhia, mas guardo uma cena bem significativa. Íamos todos a passear pelos palmares de Coalane e, a certo momento, passa um soldado fardado. Alguém se refere a ele – soldado – em termos elogiosos. José Maria não pára de brincar, mas exclamou, para quem o quis ouvir: – É bom matar?

Mais tarde, já em Portugal, soube que as recordações de guerra o terão voltado a atormentar, ao ouvir os mor­teiros do fogo de artifício.

José Maria: tenho pena de não ter feito mais por ti, mas a solução que me pareceu melhor foi conseguir que fosses acolhido pela aldeia S. O.  S. de Bicesse, há pouco construída. Cus­tou-me muito ter de recorrer a uma me­trópole que desencadeou a guerra que matou o teu pai, e parece que para sem­pre te separou da tua mãe, fugida ou morta talvez quando transportasse armas para os guerrilheiros da Liberta­ção Nacional. Ao teu pai e à tua mãe (e a tantos outros que deixaram  inu­me­rá­veis ór­fãos) devemos, também, a independência de Moçambique e o iní­cio da libertação do seu povo.

Ainda trocámos algumas cartas, que se encontram sob a guarda do AHM (Arquivo Histórico de Moçambi­que). O mesmo com a directora da ins­tituição que o acolheu. Visitei-o em 1974 e falei-lhe da nova situação em Mo­çambique. Percebi que alguém o pre­concebeu contra o dito comunismo. De passagem por Lisboa, anos depois, quis voltar a visitá-lo, mas o chefe da aldeia não me autorizou, dado o adian­tado da hora (apesar de, salvo erro, ter sido antes do anoitecer). Que fle­xibilidade será esta de uma instituição que deve assemelhar-se o mais possí­vel à família natural? – pensei eu. Ou será que o zeloso chefe da aldeia o quereria proteger contra o tal comu­nismo?

Mais tarde foi visitado pela Maria da Glória (atrás referida) e depois pelo Pe. Elias, também maconde, para o conhecer e saber se gostaria de reen­contrar a família e, eventualmente, vir ajudar na construção do Moçambique independente. Aliás parece que era essa a intenção da referida directora das Aldeias S. O. S. em Portugal, quan­do o acolheu. Mas todo o ambiente em que ele viveu, após o 25 de Abril de 1974, suponho ter sido hostil a isso – possivelmente pelo rumo pelo qual optamos enveredar a partir da inde­pendência.

Também me prontifiquei a encetar averiguações sobre o paradeiro da família – o que talvez se viesse a con­seguir com a ajuda das ONGs mais disponíveis nesse campo. Vendo que o desinteresse era total, apenas pedi, mais recentemente, que me dessem no­tícias do seu paradeiro, do curso que concluíra, da actividade que desempe­nha, do seu estado civil, enfim, do rumo que dera à sua vida.

Não me sinto credor de nada, por­que ainda que tivesse feito algo a mais do que o meu estrito dever (o que não acon­teceu), teria sido por pura gratui­dade.

Mas o encontro que, em determina­da circunstância, tivemos poderia até ocasionar um futuro relacionamento so­cial ou até de amizade.

Para com as Aldeias S. O. S., sinto-me, porém, devedor de tudo quanto fize­ram por mim (embora por ele e não por mim o tivessem feito) em momentos tão difíceis como aqueles em que, desespe­ra­damente, tomava consciên­cia de que, mais uma vez, o resultado da prova real não coincidia com o da prova dos nove.

 E que dizer da minha ingenui­dade de menino acabado de sair de um se­mi­nário diocesano?

É que, ainda hoje, nesta plenitu­de de setenta e sete anos – sete mais sete – se voltasse a ouvir da boca de uma mulher proposta de ideais tão belos para serem vividos, ainda hoje me teria deixado outra vez seduzir.

Acredito que, missionários ou não, há pessoas que devem manter-se ce­libatárias, porque a sua vocação de es­tado de vida será essa mesma.

Mas acredito também que, apesar de muitos possíveis falhanços (e os ce­libatários também os têm), o matri­mónio não é um empecilho, mas uma ajuda para se ser um bom missionário ou uma boa missionária.

A questão seria saber em que con­siste o matrimónio e em que casos ele, de facto, existe – tantos são os ca­sos em que não passam de rituais cum­pridos e/ou papeis assinados em cartó­rios civis, ou canónicos que sejam.


Prof. Manuel Sérgio (Lisboa)

Qual o sentido do desporto actual?

Não esqueço o princípio de L’Action de Maurice Blondel: ”Será que a nossa vida tem mesmo um sentido?”. E eu co­me­ço este artigo também a pergun­tar: ”Qual o sentido do desporto actual?”.

Quando o capitalismo, em finais do século XVIII, conheceu um dos seus gran­des momentos de progresso, com a primeira revolução industrial que a máquina a vapor apadrinhou, os seus teóricos, com relevo para Adam Smith, entraram de cantar loas às suas imensas virtualidades. Só Karl Marx teve a cora­gem para levantar esta questão: não se contesta que o capitalismo cria pro­gresso técnico e riqueza, mas não é ele também factor de desigualda­des, de exclusão, de miséria, incluin­do nos países mais abastados?

Bill Clinton chegou a reconhecer que nos USA um por cento da popu­lação açambarca setenta por cento da riqueza produzida e que oitenta por cento dos recursos do planeta são controlados e consumidos por vinte por cento dos seus habitantes. E daí: vinte e cinco milhões de mortos, pela fome, em todo o mundo. O equivalente a uma Hiroshima por dia! E a piorar o que vem de escrever-se: o cresci­men­to não cria mais empregos, pois que a uma produtividade crescente corresponde um maior desemprego, gerando-se assim “o exército de re­serva do capital”.

No neo-liberalismo a democracia mente e a liberdade oprime, porque a liberdade ilimitada do mercado não pode transformar-se no único regula­dor das relações entre as pessoas. Só que, na Europa, lutou-se contra o liberalismo, através do fascismo, do nazismo e do social-fascismo. Cria­ram-se portanto as condições  para se passar de um mal a outro mal e de tal forma que a degenerescência das revoluções abriu o caminho às con­tra-revoluções, como em Portugal, em Espanha, etc.

Surgiu então o desnorte, bem ex­pres­so nas filosofias do absurdo. Sartre, em L’Être et le Néant, escreve: «Aspiran­do o homem a ser Deus e não podendo lá chegar, a vida é uma paixão inútil”. E, após a leitura de Camus, poderia con­tinuar a perguntar-se: “Será mesmo a vida uma paixão inútil?”. Mas a deso­rientação está presente, também, quan­do, com a invenção do computador se gera o computantropo, o qual  pretende substituir o ser humano pelo computa­dor, na sociedade complexa. Só que de tanto se falar dos meios esquecem-se os fins. O computador é um maravilhoso instrumento, mas não é nele que en­con­tra­remos as respostas ao sentido da Vida e da História.

Por seu turno, a educação centra-se, sobre o mais, sobre a formação de técnicos, tendo em vista as exigências da sociedade de mercado. Ora, na es­co­lha entre o mercantil e o solidário ne­nhum computador (ou máquina) o po­derá fazer por nós e, na sociedade de mercado, este não é um tema primacial.

Passo agora a palavra a Roger Ga­rau­dy, no seu último livro, Avons-nous besoin de Dieu?: “A verdadeira História é a da Criação – da criação continuada do homem pelo homem (...). Jesus está no centro dessa vida poética, criadora e apaixonada, fora do tempo linear, ilusório e agressivo. Ele é a revelação, tanto nas nossas vidas pessoais, como na nossa história comum. Ele é a reve­lação da vida total, como a sua própria vida que foi amor e a sua própria mor­te que foi o coroamento da sua vida”. Em Jesus, de certo, não se escutaria: “Fora da Igreja, não há salvação!”. É que esta asserção levou a outra: “Fora do Ocidente, não há civilização!”. Sem­pre o mesmo povo eleito: o cristão e ocidental.

    E, consequentemente, o po­der acrescentar-se: fora do desporto ocidental, não há desporto educativo e saudável. Ora, isto é uma insuportá­vel mentira! Com efeito, a eficácia do desporto ocidental resulta de um siste­ma repressivo, com um método e uma organização inconfundíveis.

O método reproduz a “guerra de todos contra todos”, que é o cerne da nossa sociedade. E, daí, a competição em que se estruturam as actividades desportivas, incluindo o próprio des­por­to na escola. O treino para a compe­tição decorre, sob a dimensionalidade imposta de exercícios repetitivos  e com o apoio dos chamados “suplemen­tos vitamínicos” que, por vezes, não se sabe se se trata mesmo de vitami­nas, ou de uma ou outra substância dopante.

No entanto, para quem interiori­zou a categoria capitalista do rendi­mento, onde os vitoriosos são poucos e os derrotados são quase todos (não é o segundo classificado o primeiro dos últimos?); para quem faz sua a ra­cionalização da eficácia racionalista – aceita, sem problemas de consciên­cia, um mundo tão competitivo que conta, entre os seus produtos mais visíveis, o integrismo terrorista de vá­rias cores, ou seja, uma falsa e avil­tada mentalidade.

Um jogo de futebol profissional é a síntese desta cultura. Por isso, os seus intérpretes enodoam, com fre­quên­cia, a instantaneidade das joga­das, insultando os colegas de profissão e os próprios árbitros, simulando faltas, estimulando os adeptos a incontáveis distúrbios emocionais. E tudo isto sem referir o mandarinato de alguns treina­dores e dirigentes que são sempre um forte incentivo à agressividade vigente no futebol-espectáculo, através de uma retórica que é uma ofensa à moral co­mum.

E assim vão engrossando as hostes  que têm feito ruir as virtualidades higié­ni­cas e educativas da prática despor­tiva. Os grandes “craques” do futebol são heróis ambíguos, pois são tanto o símbolo de apaixonante e admirável forma de vida, como de supervalori­za­ção de um produto vitorioso da en­grenagem do lucro, obedecendo tão-só às regras do mercado e de uma convivência deteriorada.

Este rossio de transgressões tende a esfumar uma certa liturgia de compa­nheirismo que aparece, aqui e além. Es­pera-se a reacção salubre de uma juventude desiludida que sabe ser, actualmente, o futebol-espectáculo um dos abcessos de fixação onde se acu­mulam as toxinas de uma sociedade doente. E o desporto pode ser, quando quisermos, uma prática indispensável de entendimento e de generosidade.

É  que, hoje, a esmagadora maio­ria dos espectáculos desportivos, se são espectáculo, já não são desporto. Eles, digamo-lo sem receio, reprodu­zem e mul­tiplicam as taras da socie­da­de capi­ta­lista. Para pouco mais ser­vem do que para adormecer as pessoas à recusa da sociedade injusta estabele­cida. Estou a ser radical? De facto, es­tou a encaminhar-me para a raiz do pro­ble­ma!

N.D. Do mesmo autor,não percam o livro Para uma nova dimensão do Desporto,agora em 2.ª edição.


Porfírio Borges (Porto)

Direito ao trabalho

Da minha janela vi os mecânicos de uma oficina de reparações de automóveis, dias seguidos na rua, em frente ao portão da garagem. Procurei saber o que se passava e soube: O pa­trão, um dia, sem qualquer explica­ção, não apareceu para abrir as insta­lações.

Surpreendeu-me, porque era uma oficina em que o patrão e os mecânicos mantinham no seu dia a dia um ambi­ente bastante familiar. Além de que sem­pre vi entrar carros, o que me leva a pensar não ter havido falta de traba­lho. No entanto os trabalhadores, pos­te­rior­mente, vieram a saber que esta decisão já deveria estar programada, pois que alguns clientes que, entretan­to, ainda vieram por desconhecerem a situação, lhes disseram que o “Chefe” lhes entregara cartões de uma outra garagem.

    Será que é lá que ele se en­con­tra, enquanto os mecânicos ficaram sem emprego?

 É preciso muito desaforo para con­ti­nuar a contactar normalmente com os seus trabalhadores, quando ao mes­mo tempo se preparava para os atraiçoar.

Este caso, afinal, trata-se de um simples copo de água, se comparado com as noticias que vemos e ouvimos diariamente nos noticiários televisivos. Recordemos, em especial, os encerra­mentos constantes de empresas estran­geiras que, alheias aos compromissos assumidos com a sociedade portugue­sa, as transferem para países, onde lhes é possível explorar ainda mais.

Mas não fiquemos por aqui, pois que agora são também os próprios em­presários portugueses que “patriotica­men­te”, fecham as suas fábricas, para as transferirem sobretudo para Marro­cos

Incomoda-me ver o desespero, a desilusão e até as lágrimas dos traba­lha­dores que protestam, na rua, tentan­do salvar os seus postos de trabalho.

Com estas manifestações, não nos é difícil concluir que para eles e famí­lias, estes tempos mais próximos têm sido bem penosos, atendendo à preca­rie­dade dos seus empregos.

UMA FÉ INTERPELADA

Na Gaudium et Spes pode ler-se: “As alegrias e as esperanças, as tris­tezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de J.C.”

Será uma evidência para todos os cristãos? Não estaremos demasiado pas­sivos, na esperança de que isto só acontece aos outros?

Como cristãos não podemos cair no pessimismo, nem no desespero, nem na passividade. Temos que aceitar os de­sa­fios concretos, conscientes de que o nos­so campo específico de acção é o mundo dos homens, e não as funções internas da comunidade cristã.

Jesus Cristo disse: “Vim para que te­nham a vida e a tenham em abundân­cia.”

DESAFIOS

Como não é no sentido da felicida­de de cada um que a sociedade se orienta, precisamos de cristãos dispo­níveis e coerentes com a fé, capazes de enfrentarem as realidades sem se deixarem acomodar. Que se integrem nas estruturas sociais, sindicais, cultu­rais, politicas e outras.

São precisos homens e mulheres de fé e de esperança que, solidaria­mente com todos os de boa vontade, façam uma opção clara pelos mais po­bres e desprotegidos.

Não podemos continuar a ignorar as imagens televisivas que nos mos­tram que afinal os trabalhadores não são malandros, querem trabalhar e lutam pelos seus postos de trabalho.

Devemos gritar alto e bom som que o mundo (guerras, doenças, desem­prego) só se encontrará, se encontrar Deus, mas que os homens só encon­trarão Deus através do mundo, com­pro­metendo-se com a sua transforma­ção.


Pe. Anselmo Borges (V. N. Gaia)

A Igreja católica e o corpo

O Programa radiofónico "Toda a gente é pessoa" (Antena 1, aos domingos, entre as 7 e as 8h) deu voz, há poucas semanas, ao Pe. Anselmo Borges , do Seminário Boa Nova, em VN Gaia, sobre a temática "A Igreja Católica e o corpo". Não faltou quem se dirigisse ao Jornal Fraternizar para que tentasse reproduzir a comunicação em causa, de tanto que haviam gostado dela. Ela aqui está, no essencial. O próprio Anselmo teve o cuidado de a sintetizar numa crónica radiofónica, emitida aos domingos, próximo das 11h, na Rádio TSF, no programa de Manuel Villas-Boas, "Como se visse o Invisível", que infelizmente já não existe. Ei-la na íntegra, com o placet do autor.

Fiz um inquérito, universal, secreto e anónimo, aos Estudantes de Antropo­logia Filosófica e Filosofia da Religião da Faculdade de Letras da Universi­da­de de Coimbra sobre "a Igreja e o corpo", no sentido de saber não a sua opinião pessoal, mas aquela que eles julgam a Igreja Católica ter e transmitir sobre esse tema.

As respostas foram 80 (20 do sexo masculino e 60 do sexo feminino). À pri­meira pergunta: "Tenho (tive) algu­ma ligação à Igreja católica", 73 res­pon­deram que sim e 4 que não. "Do cor­po fiquei com uma ideia positiva/ne­gativa": 29 disseram que ficaram com uma ideia positiva e 45 com uma ideia negativa. "O corpo é desprezível": 36 res­ponderam que sim e 43 que não. "O corpo é realidade sagrada": 25 res­postas afirmativas e 50 negativas. "Era melhor sermos assexuados": 22 res­pon­deram que sim e 56 que não, "O sexo é perigoso": para 59, sim; para 20, não. "O sexo é sujo e só tem sentido para procriar": 65 responderam que sim e 14 que não. "As relações sexuais an­tes do casamento são pecado": 71 res­pos­tas afirmativas e 9 negativas. "Na confissão foram-lhe feitas perguntas inconvenientes": 19 disseram que sim e 56 que não. "O importante é a alma, o corpo é acessório": assim é para 61; não para 17. "Os bebés nascem com o pecado original": 43 afirmam que sim e 33 dizem que não.

Se quisessem, os Estudantes po­de­riam fazer algum comentário. Os que apareceram - não muitos - vão todos no sentido da queixa pelo facto de a Igreja não acompanhar a evolução dos tempos. A Igreja devia criar laços mais próximos com os jovens, sem proibir, mas aconselhando. Não se percebe como é que, sendo o Amor o princípio bá­sico da Igreja, esta tenha uma ati­tude tão negativa em relação ao corpo e ao sexo, que constitui uma das razões essenciais do afastamento dos jovens. Também se não entende a proibição dos preservativos, embora se compreen­da que as relações sexuais não possam ser levianas nem superficiais.

Seria abusivo pretender tirar con­clu­sões amplas a partir de um universo de amostragem tão restrito. Mas, no fun­do, confirma-se a impressão geral: a ideia que a Igreja transmite de corpo não é feliz. Impressionou-me particular­mente que para a pergunta: "o corpo é realidade sagrada" só tenha havido 25 respostas afirmativas, pois 50 foram negativas. De facto, a chave da questão é precisamente esta: considerar o cor­po realidade sagrada ou não. O corpo não é uma coisa que se tem: pelo con­trário, o meu corpo é a presença mani­festa da minha interioridade humana, eu sou um corpo-sujeito, um corpo-pes­soa, eu sou um corpo que diz eu, o corpo sou eu mesmo visibilizado, uma liberdade encarnada - Virgílio Ferreira escreveu: "a realidade última do meu ser é o corpo que sou, ou seja o «eu» que ele é". E a Igreja sabe ou deveria saber disso, pois afirma a criação do ser humano - homem e mulher - por Deus, ensina que Deus mesmo, em Je­sus, assumiu a carne, confessa que, pela ressurreição, a humanidade carnal se encontra agora no seio da Trindade.

Desgraçadamente, a Igreja oficial perdeu, por sua culpa, a credibilidade nas questões de moral sexual: bastaria perguntar qual a percentagem da popu­lação católica que a segue. No entanto, há, por outro lado, um mal-estar latente no que se refere à sexualidade e ao se­xocentrismo e a percepção de que tam­bém neste domínio "não vale tudo".

Associo-me, pois, à esperança de Hans Küng de que "um dia um Papa escreva uma encíclica razoável sobre a sexualidade, em que se abra um ca­minho entre a libertinagem e rigorismo." De qualquer forma, a sexualidade será sempre sagrada, pois por ela e nela par­ti­cipa o ser humano no poder cria­dor de Deus.


Frei Betto (Brasil)

1. Por que o budismo encanta o Ocidente?

O budismo faz tanto sucesso no Ocidente, porque possui características que correspondem às tendências da pós-modernidade neo-liberal. Num mun­do em que muitas religiões se sus­ten­tam em estruturas autoritárias e apre­sentam desvios fundamentalistas, o budismo apresenta-se como uma não-religião, uma filosofia de vida que não possui hierarquias, estruturas nem códigos canónicos. No budismo não há a ideia de Deus, nem de pecado. Cen­tra­do no indivíduo e baseado na prática do yoga e da meditação, o budismo não exige compromissos sociais de seus adeptos, nem submissão a uma comunidade ou crença em verdades re­veladas. Há, contudo, muitos budistas engajados em lutas sociais e políticas.

Nessa cultura do elixir da eterna juventude, em que envelhecimento e morte são encarados, não como desti­nos, mas como fatalidades, o budismo oferece a crença na reencarnação, ho­je abraçada por Norman Mailer. Acre­di­tar que será possível viver outras vi­das além dessa é sempre consolo e es­perança para quem se deixa seduzir pela ideia da imortalidade e não se sente plenamente realizado nessa exis­tência.

Outro aspecto do budismo que o torna tão palatável no Ocidente é a sua adequação a qualquer tendência religi­o­sa. Pode-se ser católico ou protestante e abraçar o budismo como disciplina men­tal e espiritual, sem conflitos. Mes­clar diferentes tradições religiosas é uma tendência crescente para quem res­pira a ideologia pós-moderna do indivi­dualismo exacerbado, segundo a qual cada um de nós pode ser seu próprio papa ou pastor, sem necessidade de re­ferências objectivas.

Como método espiritual, o budismo é de grande riqueza, pois nos ensina a lidar, sem angústia, com o sofrimento; a limpar a mente de inquietações; a a­do­ptar atitudes éticas; a esvaziar o co­ração de vaidades e ambições des­me­didas; a ir ao encontro do mais íntimo de nós mesmos, lá onde habita aquele Outro que funda a nossa verdadeira identidade.

2. Última ceia

Nessa Última Ceia sentarei à mesa farta e estenderei, aos semelhantes, travessas repletas de misericórdia. Ser­virei, em abundância, o cardápio da sa­ciedade: de entradas, hinos e flores, para que a alegria plenifique o coração de cada comensal. Como prato forte, efu­são espiritual recheada de mistério, para que os sentidos se calem e a ra­zão, prostrada, reverencie a sabedoria. De sobremesa, uma noz e, dentro dela, um labirinto e, em sua porta, um sino e, em seu badalo, o reflexo da lua e, em seu brilho, o rosto interior de cada convidado.

O vinho terá o gosto das liturgias salmodiadas por cordas e címbalos. To­dos haverão de se embriagar de Deus. Serão invadidos por tamanha lu­cidez, que já não poderão distinguir o dentro e o fora, o acima e o em baixo, a esquerda e a direita. O feio se fará bo­nito e o que se julga belo expressará o horror. O frio terá o calor da fervura e o quente será gélido quanto uma mon­tanha de neve.

Estarão à mesa a escória e o es­cár­nio, o sorriso patético dos imbecis e o ódio escancarado dos algozes, a fúria de vingança e a pérfida arrogân­cia da indiferença. Convidarei o desa­mor e a crueldade, o abuso e a injúria, a insípida ilusão de quem se ama aci­ma de todas as pessoas e a efémera ri­queza dos que somam e multiplicam atacados pela amnésia que lhes furta a ventura de subtrair e dividir.

Quero que todos à mesa provem o veneno da própria alma ou deixem seus espíritos transbordarem em taças cheias de luz. Farei um brinde à com­pai­xão e pedirei um minuto de silêncio para que cada um se envergonhe da existência contrária à sua essência. Ha­verá, então, tanta música e dança e festança que os pares levitarão de olhos fechados.

Nessa Última Ceia molharei o pão em azeite novo e ofertarei ao primeiro que arrancar as sandálias e, de pés nus, caminhar à beira do tatame sem provar a vertigem do medo. Premiarei a fé, a cegueira da mente, a noite escu­ra que prenuncia o reverso dos versos. Entregarei, assim, a amante ao amado, e um coro de anjos celebrará a união de corpos transmutada em alucinação do espírito, o sexo sorvido como ága­pe, o imponderável voejando em tão ace­lerado ritmo que já não haverá Nor­te ou Sul, Leste ou Oeste, porque a Ro­sa dos Ventos estará girando desvaira­damente.

Louvarei o discípulo amado por sua humilde fidelidade aos sonhos que lapidam sua realidade, como quem cul­ti­va um fruto que nasce na direcção do fundo da terra ou uma ostra indife­rente ao seu futuro de pérola. E beija­rei aquele que haverá de trair-me, não porque o decepcionei, mas por trazer ele, impregnado nas entranhas, essa pusilanimidade que impede certas pes­soas de serem fiéis a si mesmas. Não o rejeitarei, ele não será vitima de meu opróbrio. Deixarei que ele trasfegue di­vi­dido pela vida, ora amigo, ora inimi­go, amável hoje, detestável amanhã, até que possa juntar os cacos espalha­dos por seu caminho e compor o vitral de sua dignidade resgatada.

Nessa Última Ceia abençoarei o pão e o vinho, as moléculas do trigo e da uva, e os átomos e os neutrinos e to­das as partículas elementares, e os quarks invisíveis e indivizíveis. E na composição do Universo, detalhe por detalhe, será elevada ao mais alto dos céus a hóstia cósmica de meu corpo embebido no sangue que imprime vida a todas as galáxias. Então, todos os olhos verão que sou tudo em todos, uno e trino, pessoa e substância, iden­tidade e mistério. Sou o que se é, o limite intransponível da negação.

Quando a noite cair e do cordeiro não restar senão os ossos, ofertarei como alimento Deus transubstanciado em corpo e sangue, pão e vinho. Terei ressuscitado antes de morrer e farei da vida a mais preciosa dádiva da Criação.

Alimentados por mim, todos sabe­rão que a Última Ceia é sempre a pró­xima, pródiga comemoração do amor, singelo gesto, aqui e agora, que acon­tece e, assim tece os fios que enlaçam, envolvem e fundem tudo e todos, amo­ro­samente. Ou inexiste e, portanto, padece.

Para quem guarda o apetite por aquilo que transcende o paladar e cultiva a gula por luminescências, todas as ceias serão primeiras, e sairão de­las ainda mais famintos, porém sacia­dos de felicidade.

3. O ovo e a galinha

Eis o enigma que intriga a nossa vã filosofia: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Para as tradições reli­giosas, muda-se o mundo transforman­do, primeiro, as pessoas. Formadas no bem, farão uma sociedade melhor. Para as utopias libertárias, é preciso mudar o mundo para que nenhuma pessoa seja induzida a praticar o mal.

O ovo ou a galinha? As duas vias tiveram as suas oportunidades históri­cas. A Igreja criou escolas católicas destinadas à boa formação de nossas elites. Notórios políticos brasileiros, que ocuparam governos de Estado e até a presidência da República, foram alunos daqueles colégios. Nem por isso as políticas que implementaram coincidi­ram com a proposta evangélica de de­fesa irredutível dos direitos dos pobres. Em muitos casos, nem as pessoas mu­daram, nem o mundo.

A formação religiosa, quando tem força de conversão, modifica hábitos pessoais, elimina vícios e aprimora vir­tu­des, incute valores e alarga o hori­zonte ético. Mas não induz necessaria­mente à crítica estrutural da sociedade. Antes, adequa melhor o convertido aos valores vigentes na ordem social. E nem sempre são valores positivos, como é o caso da competitividade, antagónica ao preceito evangélico da solidarieda­de.

Uma pessoa que opera mudanças em sua vida pessoal não o faz impe­riosamente na vida social. Ela “salva-se” sem se empenhar em salvar o mun­do, ou seja, libertá-lo de tantas marcas do pecado, como as estruturas que pro­duzem desigualdade social.

A via contrária também foi testada. Ao revolucionar a sociedade, o socia­lis­mo não mudou radicalmente as pes­soas. Prova disso é que, após 70 anos de “nova sociedade”, bastou a União Soviética ruir, para que a sociedade russa apresentasse a sua face cruel, da rede mundial de pedófilos, via Internet, ao facto de Moscovo superar Nova York em número de multimi­lio­nários do dólar.

Antonio Machado já ensinava que o caminho se faz ao caminhar. A pessoa muda na medida em que trans­forma o mundo. E quanto mais a so­ciedade é mais justa, mais produz seres humanos voltados ao bem, assim como as pessoas de bem se empenham em construir uma convivência social me­lhor.

Há uma dialéctica de interacção transformadora. Não basta “conscien­tizar” as pessoas. Ninguém é o que pensa, nem mesmo de si próprio. So­mos os nossos actos. Na vida, temos a liberdade de apenas escolher as se­mentes. Depois haveremos de, inelu­tavelmente, colher o que plantamos. Isso vale para a vida pessoal, social e política. Por isso as nossas opções fun­damentais são tão importantes. São elas o nosso verdadeiro retrato.

Nem ovo, nem galinha. Os dois jun­tos, o ovo contendo a galinha, a ga­linha botando o ovo. As pessoas mudam mudando o mundo. Mudado, o mundo muda as pessoas. Numa sociedade de estruturas justas, posso querer praticar o mal. Fico, porém, na intenção, a me­nos que prefira correr o risco de ser punido pela lei e perder a liberdade. Numa sociedade injusta, a lei protege quem oprime e castiga o oprimido.

Jesus pregou a mudança pessoal, a conversão, e a transformação desse mundo, pelo advento do Reino de Deus. Anunciar um outro reino dentro do reino de César era, no mínimo, uma subversiva ousadia, pela qual Jesus pagou com a vida. O seu exemplo im­pre­gnou a dinâmica histórica no rumo das utopias libertárias. Mas ainda esta­mos longe de alcançar uma civilização verdadeiramente humana. Somos 6,1 mil milhões de habitantes, dos quais 4 mil milhões vivem abaixo da linha da pobreza.

O homem é, ainda, o lobo do ho­mem. Basta ver as torturas aplicadas aos prisioneiros iraquianos por solda­dos da pátria que se erige em paladino da liberdade. A maioria da população mundial nasce para morrer antes do tempo. Quebram-se os ovos, matam-se as galinhas.

Contudo, a esperança perdura, fa­zendo considerável parcela da humani­dade crer e lutar para que, no futuro, todos os projectos políticos desaguem na globalização da solidariedade e na civilização do amor.


Autor desconhecido

O único defeito da mulher

Quando Deus fez a mulher, já esta­va a trabalhar há seis dias consecu­tivos.

Apareceu um anjo que lhe per­guntou: ”Deus, porque estás a perder tanto tempo com esta criação?”

Ao que Deus respondeu: “Já viste a minha lista de especificações para este projecto? Ela tem que ser comple­ta­mente lavável, mas sem ser de plás­tico, tem mais de 200 partes móveis, todas substituíveis, e é capaz de sobre­viver à base de coca cola light e restos de comida; tem um colo capaz de se­gu­rar em quatro crianças ao mesmo tempo, tem um beijo capaz de curar qual­quer coisa desde um arranhão no joelho a um coração ferido e faz tudo isto ape­nas com duas mãos.”

O anjo ficou estupefacto com estas especificações. “Só com duas mãos!? Im­possível! E esse é apenas o modelo normal? É muito trabalho para um só dia. É melhor acabares amanhã.”

“Nem pensar”, protestou Deus. “Es­tou quase a acabar esta criação que me é tão querida. Ela é capaz de se curar a si própria, quando fica doente. E consegue trabalhar 18 horas por dia.”

O anjo aproximou-se e tocou na mu­lher.”Mas fizeste-a tão macia e de­licada, meu Deus.”

“Sim, mas também pode ser muito resistente. Nem fazes ideia do que ela pode fazer e aguentar.”

“E ela vai ser capaz de pensar?” perguntou o anjo.

“Não só é capaz de pensar como é capaz de negociar e convencer.”

O anjo então reparou num porme­nor e tocou na cara da mulher. “Upa, pa­rece que tens uma fuga neste mode­lo. Eu disse-te que estavas a tentar fa­zer demais numa criatura só.”

“Isso não é uma fuga, é uma lágri­ma.”

“E para que é que isso serve?” per­guntou o anjo.

“A lágrima é o seu modo de expri­mir alegria, pena, dor, desilusão, amor, solidão, luto e orgulho.”

O anjo estava impressionado.”És um génio, Deus. Pensaste em tudo.”

E de facto as mulheres são verda­deiramente espantosas. Têm capacida­des que surpreendem os homens. Car­regam fardos e dificuldades, mas man­ten­do um clima de felicidade, amor e alegria. Sorriem, quando querem gritar. Can­tam, quando querem chorar. Cho­ram, quando estão felizes e riem, quan­do estão nervosas. Lutam por aquilo em que acreditam e não aguentam in­justiças. Não aceitam um “não”, quando acreditam que existe uma solução me­lhor. Prescindem de tudo para dar à família. Vão com um amigo assustado ao médico. Amam incondicionalmente. Choram, quando os seus filhos são os me­lhores e aplaudem, quando um ami­go ganha um prémio. Ficam radiantes, quando nasce um bebé, ou quando al­guém se casa. Ficam devastadas com a morte de alguém querido, mas man­têm a força além de todos os limites. Sabem que um abraço e um beijo podem curar qualquer desgosto.

Existem mulheres de todos os for­ma­tos, tamanhos e cores. Elas condu­zem, voam, andam e correm ou mandam e-mails só para mostrar que se preo­cupam contigo. O coração de uma mu­lher mantém este mundo a andar.

Elas trazem alegria, esperança e amor. Dão apoio moral à sua família e amigos. As mulheres têm coisas vitais a dizer e tudo para dar.

No entanto, existe um único de­feito nas mulheres: é que elas se esquecem constantemente do seu valor.


Documento

Pensamentos de Rubem Alves

Um companheiro  do Jornal Fraternizar fez-nos chegar dois textos do conhecido escritor e pensador brasileiro, Rubem Alves. Não hesitamos em partilhá-los aqui com as leitoras e os leitores, como "Documento". Os  dois são um encadeamento de outros pequenos textos. Como o pão que para ser comido tem que ser partido em pedaços. Ninguém deixe de comer estes pensamentos. O tempo de férias - que desejamos boas para todas, todos - a isso nos convida.

SOBRE O LER: Ler rapidamente aquilo que o autor levou anos para pensar é um desrespeito. É certo que os pensamentos, por vezes, surgem rapidamente, como num relâmpago. Mas a gravidez foi longa. Há frases que resumem uma vida. Por isso é preciso ler vagarosamente prestando atenção nas ideias que se escondem nos silêncios que há entre as palavras. Eu gostaria que me lessem assim. Quer eu escreva como um poeta, no esforço para mostrar a beleza, ou como palhaço, no esforço para mostrar o ridículo, é sempre a minha carne que se encontra nas minhas palavras.

A PRINCEZINHA DE CUJA BOCA SALTAVAM SAPOS. Minha mãe me contava estórias. Contou-me a estória da menina que a madrasta enterrou por ter deixado que um passarinho bicasse um figo da figueira e cujos cabelos nasceram no jardim como relva verde. Contou-me a estória do macaco trocador e que a cada troca cantava um refraozinho “Jingue le jingue que eu vou para a Angola”. Aprendi depois que ela ouvira esta estória da escrava forra Iaiá, que tomou conta dela quando pequena. Contou-me também a estória de uma princezinha, linda, linda, linda! Todos os moços se apaixonavam por ela. Até que ela abrisse a boca para falar. Quando ela falava, ao invés de palavras, saltavam de sua boca sapos e mais sapos. E se o interlocutor não fosse esperto o sapo grudaria no seu rosto. Ai, como essa estória é verdadeira! Todo mundo, de vez em quando, fala sapos, diz cobras e lagartos.

APLAUSOS AO PAPA:  O Papa assinou uma instrução sobre a liturgia que merece todo o meu louvor. Pôs ordem na casa. Primeiro, proibiu que padres permitissem que pastores protestantes participassem da celebração dos sacramentos. Muito certo. Sem essa proibição a casa cai. Pois a doutrina da Igreja está baseada na crença de que o Espírito Santo é comunicado pela imposição das mãos, coisa que vem desde São Pedro. De São Pedro até os dias de hoje, há um contínuo fluir desse carisma. E é esse carisma que dá ao sacerdote o poder para, ao pronunciar as palavras sagradas, transubstanciar o pão e o vinho em corpo e sangue de Cristo. Ora, os pastores protestantes estão fora dessa corrente. Portanto, falta-lhes o Espírito Santo. Se eles participarem da celebração dos sacramentos o milagre da transubstanciação não acontece. Permitir que pastores protestantes participem da celebração dos sacramentos equivale a negar o fundamento sobre o qual a Igreja Católica foi construída. É por isso que o ecumenismo é também proibido. A diferença está em que a Igreja Católica afirma que o Espírito Santo anda dentro de um cano chamado “sucessão apostólica”. Os protestantes, ao contrário, acreditam que não há formas de encanar o Espírito Santo. Porque ele mais se parece com a chuva que cai onde quer, quando quer... Parabenizo, assim, o Papa, por sua sólida coerência teológica!...

A seguir ele proibiu o uso de música popular na missa. Tem todo o meu apoio. Há músicas que se cantam nas missas que são lamentáveis. E não tem nada a ver com ser popular ou não. “Oh! Deus salve o cálix bento onde Deus fez a morada...” é música popular e é absolutamente linda. A Missa Creoula, a Missa Luba. O problema é a qualidade. Não basta juntar rimas e violão para se ter música.  A tradição musical cristã é maravilhosa: Canto Gregoriano, Bach, Monteverdi, Haendel, Mozart, Fauré, os Spirituals dos Negros norte-americanos. Por outro lado as músicas tradicionais católicas, arrastadas, que se cantavam nas procissões, não são modelos de beleza.

Por último, o que mais me agradou. Imagino que o Sumo Pontífice deve ter lido uma crónica que lhe dirigi, há anos, com o nome De Rerum Vetustarum. Nessa crónica eu lhe implorava que restaurasse o uso do latim na liturgia. Porque o latim é música pura, um deleite ouvi-lo. Só que eu não entendo latim. Assim, ao ouvir latim sem entender eu fico com a beleza da sua música e livre daquilo que se diz. Não quero entender para não me irritar. Não entendendo, fico a imaginar que o pregador está dizendo coisas maravilhosas. Pois não é que o Papa deu permissão aos padres para fazer uso do latim nas missas? Logo que as missas voltarem a ser ditas em latim eu estarei lá. Parabéns ao Papa. Parabéns ao Cardeal Ratzinger!

TEXTOS BÍBLICOS QUE EU GOSTO:  “Come teu pão com alegria e bebe contente o teu vinho, porque Deus se agrada das tuas obras. Usa sempre vestes brancas e não falte óleo perfumado sobre a tua cabeça. Goza tua vida com quem tu amas todos os dias da tua vida que logo passa...” (Ec.9.7-9). 10).  “Não há outra felicidade para o homem senão alegrar-se... E é igualmente uma dádiva de Deus  o homem comer e beber e, mediante o seu trabalho, desfrutar da felicidade.” (Ec. 3..12-13).

Na minha vida ouvi centenas de sermões. A maioria sobre o perigo do inferno e a necessidade de ser bom para Deus não se aborrecer com a gente. Nunca ouvi um sermão sobre esses textos. Parece que eles causam medo, por louvarem o prazer, a alegria, o amor, o comer, o beber. O Cristianismo tem-se nutrido do medo do prazer e da alegria. As feridas, o sangue, o tenebroso são mais persuasivos. Os pregadores e igrejas estabelecem seus próprios menus de textos deixando os outros de fora.

EU METO-ME EM CADA UMA! Recebo muitos pedidos de entrevista via Internet. Quando posso, atendo. Um desses pedidos tinha a ver com meu livrinho O gato que gostava de cenouras – uma estória sobre o homossexualismo. Respondi as perguntas que me fizeram. Agora, a surpresa: a minha entrevista apareceu na G-Magazine, que é uma revista gay, cheia de fotos de homens nus! Ignorante, nem sabia da existência de tal revista. Agora pasmem: foram as mulheres que me informaram! O que muito revela sobre suas curiosidades. Mas eu estou vestido.

HABILIDADES EXCEPCIONAIS: Antigamente usava-se chamar de “excepcionais” as pessoas deficientes. De fato, elas são excepções, no meio da dita normalidade. Hoje essa palavra não é mais usada. Mas eu gosto dela na expressão “habilidades excepcionais”. Foi criada por um empresário do Paraná para se referir às habilidades excepcionais que os deficientes desenvolvem. “O  boy da minha empresa”, disse-me ele, “não tem os dois braços. Sendo deficiente de braços, desenvolveu habilidades excepcionais com as pernas. Anda com uma velocidade... Vai para os bancos com a bolsa de cheques pendurada no pescoço. Quem vai assaltar o moço sem braços? Não paga ónibus. E ainda por cima não fica na fila... ”Ele fabricava capas para vídeos. Contou-me que as capas de vídeos, ao sair das formas, têm rebarbas que deve ser eliminadas. Ele descobriu que os cegos são muito mais rápidos em  identificar as rebarbas que “os que vêem”. Basta correr a mão. Sendo cegos, desenvolveram habilidades excepcionais com o tacto. Já os paraplégicos realizam com muita competência a tarefa de ascensoristas de elevador...

COISAS SIMPLES QUE COMOVEM: Coisas extremamente simples acham um lugar imortal no coração. Há dias, conversando com os meus filhos, encontrei-me com elas, as coisas simples. O Sérgio me contou sobre quando ele era menino, tempo em que eu ainda fumava cachimbo. “Você viajava, eu ficava com saudade. Ia para o seu escritório que estava impregnado com o cheiro bom de fumo de cachimbo, perfumado. Era o meu jeito de matar a minha saudade...” O Marcos, por sua vez, me lembrou um incidente muito engraçado. Eu e ele estávamos no banco. Eu preenchia as guias de depósito, distraído. Enquanto isso, ele examinava os cheques, sem que eu percebesse. Aí ele notou que as assinaturas estavam muito feias (eram cheques de uma outra pessoa) prontificou-se a ajudar-me, melhorando-as. Pegou uma caneta e mãos à obra. Quando percebi, já era tarde demais. Não sabia se ria, se chorava, se ficava bravo... Felizmente o gerente foi compreensivo e tudo terminou bem. Isso é uma das delícias de conversar com os filhos. A conversa é um ritual mágico que ressuscita memórias há muito enterradas.

INTELIGÊNCIA FULGURANTE: Tive um primo de inteligência fulgurante. Éramos da mesma idade. Aos oito anos brincávamos de soldadinhos de chumbo. Mas o seu o prazer era um Dicionário Comparativo de Português, Francês, Inglês e Alemão que estava fazendo. Eu olhava para aquele livro enorme de capa preta, daqueles que os contadores usavam para registar a contabilidade de firmas, cada página dividida em quatro colunas, uma para cada língua. Na escola, quando tirava 98 numa prova, ele batia com a palma da mão na testa em desespero e dizia: “Fracassei”. Dele jamais se poderia dizer que foi mau aluno. Seu brilho prometia uma vida de vitórias. Adulto, pela manhã, ao levantar, o seu primeiro gesto era ligar a fita da língua que estava aprendendo. Veio a conhecer doze línguas. Não sei direito para quê. Que utilidade poderia ter para ele a língua húngara? Os benefícios de falar húngaro eram desproporcionais ao esforço de aprendizagem. Como psicanalista, pergunto: Será que ele estava em busca da língua desconhecida que lhe permitiria entender a Babel da sua alma? Muitos brilhos são chamas de um coração infeliz. Lançou-se do sétimo andar de um prédio. Não suportou o sentimento de fracasso que lhe deu um discurso – pelos seus critérios o tal discurso não era merecedor da nota 10. Matou-se por não suportar a vergonha de um pequeno fracasso. Esse é o perigo do perfeccionismo. Não conheço nenhum estudo que explore as relações entre genialidade e loucura. Mas deve haver. Conheci um homem que se vangloriava por ter um QI acima de 200. E tinha mesmo uma carteirinha de um clube de génios com QI acima de 200 que sempre levava consigo. Acho que para certificar-se de que era inteligente. Quando os outros não concordavam com ele julgava-os burros e ele, um incompreendido. Autoritário. Quem se julga possuidor de QI 200 tem de ser autoritário. Não saltou do 7o. andar, apesar de ser um chato presunçoso. Não sei onde andará. Suspeito que se tenha mudado para o país dos homens com QI acima de 200.

+ Pensamentos de Rubem Alves

LEIA ESSE POEMINHA e você virará um poeta: “Prá gente aqui ser poeta / Não precisa professor. / Basta ver no mês de Maio / Um poema em cada gaio / Um verso em cada flor.”

HAVIA UMA MOÇA que passava sempre defronte da minha casa. Eu a via, do outro lado da rua. Ela tinha um defeito na perna que a fazia mancar. O seu rosto tinha uma suavidade, uma beleza que me encantava. E eu ficava com vontade de atravessar a rua e dizer-lhe:  “Eu acho você muito bonita!” E voltar correndo para dentro de casa. Nunca tive coragem. Tive medo que ela me considerasse um velho desrespeitoso, dando-me uma cantada. E fico a perguntar: Por que é tão difícil dizer aos outros o quanto gostamos deles?

OS POETAS NÃO CONCORDAM COM OS TEÓLOGOS. Certos teólogos descreveram Deus como um produto híbrido, cruzamento de juiz e de banqueiro. Ele tem um livro de contabilidade onde anota as dívidas dos homens. Pecados. Toda dívida deve ser paga. Perdão livre não há. O pagamento tem de ser feito na única moeda que o banqueiro-juiz aceita: sangue, muito sangue, o sangue de Cristo.

Já os poetas descrevem Deus como jardineiro, outros como músico, outros como criança... Escolha o da sua preferência.

VIVIAM NUM PAÍS DO ORIENTE 5 CEGOS que mendigavam juntos à beira de um caminho. Eram amigos em virtude de seu infortúnio comum. Todos tinham um grande desejo. Já haviam ouvido falar de um animal extraordinário, enorme, chamado elefante. Tão maravilhoso era o dito animal que muitos afirmavam que ele era divino. Mas eles, pobres cegos, nunca haviam estado com um elefante. Ah! Como gostariam de conhecer um elefante. Aconteceu, porque Alá ouviu suas preces, que um domador de elefantes foi por aquele caminho conduzindo seu animal. Foi uma festa! A criançada gritando, homens e mulheres falando. Ouvindo tal  rebuliço, os cegos perguntaram: “O que está acontecendo?” – “Um elefante, um elefante”, responderam. Eles se encheram de alegria e pediram ao domador que os deixasse tocar o elefante, já que ver não podiam. O domador parou o animal e os cegos aproximaram-se. Um deles foi pela traseira, agarrou o rabo do elefante e ficou encantado. O segundo foi pelo lado, abraçou uma perna e ficou encantado. O terceiro apalpou o lado do elefante e ficou encantado. O quarto passou as mãos nas orelhas do elefante e ficou encantado. E o último segurou a tromba e ficou encantado. Ido o elefante, os cegos começaram a conversar: “Quem diria que o elefante é como uma corda!”, disse o primeiro. “Corda coisa nenhuma”, disse o segundo. “É como uma palmeira”. “Vocês estão loucos”, disse o terceiro. “O elefante é como um muro muito alto.” “Vocês não são só cegos dos olhos”, disse o quarto, “são também cegos da cabeça. Pois é claro que o elefante é como uma ventarola.” Doidos, doidos”, disse o quinto, “o elefante é como uma cobra enorme...”

Por mais que conversassem eles não conseguiram chegar a um acordo. Começaram a brigar. Separaram-se. E cada um deles formou uma seita religiosa diferente: a seita do deus corda, a seita do deus palmeira, a seita do deus parede, a seita do deus ventarola, a seita do deus cobra...”

HÁ, NOS ESTADOS UNIDOS, UM COSTUME de que gosto: o chamado “Mercado das Pulgas”. É assim: numa praça, num dia da semana, as pessoas levam, de sua casa, coisas que não usam mais, para vender. A gente junta tanta coisa inútil que poderia ser de utilidade para outros. Sugiro que você faça um balanço nos badulaques da sua casa... O Carlos Rodrigues Brandão, como exemplo de uma economia de troca, criou na sua casa em Pocinhos um canto onde as pessoas colocam objectos de que não necessitam. E escreveu: “Deixe aqui aquilo que você não usa mais. E leve daqui o que você vai usar.”

PELO QUE SEI, PARA UM CANDIDATO A SANTO ser beatificado, tem de dar provas de haver feito milagres. Discordo. A marca do divino não são os milagres excepcionais. A marca do divino é o milagre quotidiano que é esse mundo, a vida, o meu olho, a asa de uma libélula, uma flor, o arco-íris, a chuva, a sopa de fubá, o café, o pão quente, o perfume do jasmim, o amor entre duas pessoas, uma gota de água numa folha, uma teia de aranha, uma concha de caramujo, um poema. Eu amaria um santo que não tivesse feito milagre algum, mas que tivesse ficado extasiado, contemplando os milagres que Deus espalhou pelo mundo.

POR RAZÕES QUE SÓ FREUD EXPLICA, quando eu era menino, adorava descascar mexiricas e enfiar meu indicador no buraco que há no meio. Ficava com a mexirica espetada, mostrando para todo mundo. De vez em quando, nas minhas falas, conto esta experiência infantil e o auditório morre de dar risada. Porque todos eles fizeram a mesma coisa. Não é estranho isso, que todas as crianças tenham a mesma ideia e o mesmo prazer? Por quê?

O TEÓLOGO PROTESTANTE KARL BARTH brincava dizendo que os anjos, quando estavam diante de Deus, tocavam Bach. Mas, nas suas reuniões particulares, tocavam Mozart. E eu acrescento: E Deus escutava atrás da porta…

O ROSTO É UMA ENTIDADE CURIOSA. Nos jovens, a sua plasticidade é limitada pela resistência da matéria. Falta, no rosto dos jovens, uma espiritualidade que só vem com a velhice. Os músculos são muito fortes. Quando se envelhece, o rosto fica plástico. Se fica triste, as linhas se verticalizam, atraídas pela força e pelo espírito da gravidade. Os velhos são graves. Se, ao contrário, se fica alegre, as linhas verticais se tornam horizontais. Bem dizem os textos sagrados que “um coração alegre aformoseia o rosto, mas um espírito abatido resseca os ossos.” Acho que a alegria é melhor que uma operação plástica.

A MODA É O SUCESSO. Um famoso conferencista anuncia com letras enormes: “O seu lugar é o pódio”. Imaginemos que assim seja. Jogos Olímpicos. Corrida de 100 metros rasos. Aí ele diz para todos:  "O seu lugar é o pódio!" Os corredores disparam. Só um deles arrebenta a fita. Nas olimpíadas são pouquíssimos os que vão para o pódio. Isso vale para a vida inteira. Então, alguma coisa está errada. O mais provável é que o dito conferencista está mentindo para manter-se no pódio à custa da credulidade das pessoas. Quem acredita que o seu lugar é o pódio está sempre estressado, competindo, tentando passar na frente. Quem não tem pretensões ao pódio vive uma vida mais alegre. Não é preciso chegar na frente. Mas há uma seita que anuncia como palavra de Deus: “Você está destinado ao sucesso!” Não sei onde descobriram isto. Não conheço Deus algum que prometa sucesso. Só um ídolo.

LEMBREI-ME DE UMA PASSAGEM no livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Tratava-se de uma corrida. Alice queria saber as regras. O Pássaro Dodo explicou: “Primeiro marca-se o caminho da corrida, num tipo de círculo, (a forma exacta não tem importância), e então os participantes são todos colocados em lugares diferentes, ao longo do caminho, aqui e ali. Não tem nada de “um, dois, três, já”. Eles começam a correr quando lhes apetece, ou abandonam quando querem, o que torna difícil dizer quando a corrida termina.” Assim a corrida começou. Depois que haviam corrido por mais ou menos meia hora, o Pássaro Dodo gritou: “A corrida terminou!” Todos se reuniram ao redor de Dodo e perguntaram: “Quem ganhou?” – “Todos ganharam”, disse Dodo, e todos devem ganhar prémios.”

A PATROA ACERTAVA OS DETALHES COM A JOVEM que se apresentara como candidata ao emprego de cozinheira. “Quanto você pretende ganhar?”, perguntou-lhe a patroa.” – “Depende”, respondeu a candidata. – “Depende de quê?”, perguntou a patroa. – “Depende de se é com penso ou sem penso. Se a patroa me diz o que tenho de fazer é sem penso. Eu só faço, sem precisar de pensar.. Mas se a patroa não me diz, eu tenho de pensar. É com penso. Custa mais…

CONTOU-SE O DR. LUIZ HENRIQUE, director da Fazenda Santa Elisa, que Campinas é a cidade no Brasil que tem a maior variedade de árvores. Falou-me sobre o “Complexo Botânico Monjolinho”, que eu já conhecia de caminhadas – maravilhoso! Segundo entendi, iniciativa do Dr. Hermes Moreira de Souza, pelos idos de 1960. Uma coisa comovente, quando se trata de plantar árvores é que quem planta não vê o resultado. Só vê na esperança. Plantar árvores, a cuja sombra nunca nos assentaremos. Aí a gente se alegra pensando que outros se assentarão à sua sombra e serão gratos ao desconhecido que as plantou. Nossa gratidão ao Dr. Hermes.


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