Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 155, de Outubro/Dezembro 2004

Destaque 1

Mulheres de novo em casa!

“A Carta aos Bispos da Igreja cató­lica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no Mundo”, assi­na­da em 31 de Maio de 2004 pelo papa João Paulo II e enviada posteriormente a todos eles pela Cúria romana bem po­deria e deveria ter representado um momento de verdadeira mudança na hi­erarquia católica, nomeadamente, no que respeita à sua visão sobre o papel das mulheres na Igreja e no mundo.

Infelizmente, o documento limita-se a ser mais do mesmo eclesiástico, até para pior, sobretudo, se tivermos em con­ta as aceleradas mudanças que, neste campo, se têm verificado nos últi­mos anos em todas as sociedades do mundo, mesmo as mais fechadas.

Mas o mais negativo em tudo isto ainda é termos de concluir, com dor e sofrimento, que os nossos bispos, em lu­­gar de se comportarem como os servi­do­res do Evangelho chamados a presi­dir à con­creta Igreja local para que fo­ram eleitos, estão a mostrar-se, mais uma vez, escandalosamente incapazes de se rebelarem contra as orientações emanadas da imperial Cúria roma­na. Tanto quanto se sabe, acataram a Car­ta, como se as orientações nela conti­das proviessem directamente de Deus.

Ora, uma postura assim, própria de súbditos do poder da Cúria romana, e não de bispos da Igreja de Deus, é, por­ventura, o pecado maior contra Deus e contra a sua Igreja. Em lugar de, co­mo bispos da Igreja, obedecerem a Deus, preferem continuar a identificar Deus com a Cúria romana, à qual obe­de­cem acriticamente, sem jamais se da­rem conta que, embora consigam no imediato perpetuar-se nos lugares e nos privilégios que essa mesma Cúria lhes garante, ficam, entretanto, irreme­diavelmente privados da presença e da cooperação da esmagadora maioria das mulheres e dos homens que hoje muito legitimamente já não se revêem nas orientações deste documento papal muito pouco católico e, por isso, avan­çam por outros caminhos, sem precisa­rem para nada do tipo de Igreja patriar­cal que ele materializa.

Mas nem tudo está perdido, já que são estas mulheres e estes homens que, mesmo sem o saberem, estão a obede­cer a Deus, esse mesmo que nos quer cada vez mais rebeldes e criadores, à sua imagem e semelhança, em lugar de escravos de concepções herdadas do passado, manifestamente contrárias à dignidade e à radical igualdade de to­dos os seres humanos.

O documento – Jornal Fraternizar leu-o na íntegra – defende o regresso das mulheres à vida doméstica. Deseja que as próprias leis civis avancem nes­te senti­do. Como quem diz, mulheres em casa, homens no mundo; mulheres domésticas, homens no poder; mulhe­res domesticadas, homens na condu­ção do mundo e da Igreja. Só assim é que a “dignidade” das mulheres é sal­va­guardada! Não abre a Política às mu­lheres, não as chama à condução da sociedade, nem das empresas, nem dos governos. A Cúria romana sabe que no dia em que o fizesse, teria também que abrir às mulheres a condução da Igreja, a começar pela Igreja que está em Roma. E aí é que bate o ponto.

Para a Cúria romana, presidida por João Paulo II, as mulheres têm que con­ti­­nuar longe dos ministérios ordenados, bispos, presbíteros e diáconos, os úni­cos que decidem a condução da Igreja. Podem continuar como zeladoras de altar, integrar grupos corais litúrgicos, dar catequese, limpar locais de culto, mas nada de “invadir” o domínio dos e­cle­siásticos. Isso é coisa de homens. E homens sem mulher, a não ser mu­lhe­res domés­ticas, mas não na condi­ção de esposas, apenas na condição de “criadas” ou de “mulheres a dias”. Infelizmente, não é caricatura. É a rea­lidade nua e crua. Uma realidade que nos envergonha, como Igreja!

Para justificar estas e outras barba­ridades eclesiásticas católicas, o docu­mento da Cúria romana lança mão do que chama “antropologia bíblica”. Mas não é. Aliás, se fosse, teríamos que ras­gar a Bíblia, porque ela se revelava ini­miga dos seres humanos, mulheres e homens. Qualquer antropologia que discrimine as mulheres dos homens, que favoreça os homens em detrimento das mulheres, não tem, não pode ter, a marca de Deus. Não é, não pode ser, Pa­lavra de Deus. É pecado e dos maio­res e, como tal, há-de ser combatido por todas as pessoas, crentes ou não.

O que esta Carta aos bispos faz é ler em chave patriarcal textos da Bíblia sobre a mulher e o ho­mem, desde o Gé­­­nesis ao Apocali­pse. Chama-lhe antropologia bíblica, mas é pura antro­po­logia patriarcal. Vê-se logo que são ho­mens, e homens sem mulher, que ela­boraram este docu­mento. Só eles seriam capazes de ler-interpretar os textos bíblicos como este documento romano o faz. E que mais não é do que uma leitura-interpretação à letra, que mata, quando toda a Pala­vra de Deus sempre liber­ta e promove a radical igualdade entre os seres hu­ma­nos.

O documento faz ainda pior. Em lu­gar de aproveitar da “luz” que o movi­men­to feminista, nos últimos anos, tem trazido à consciência da Humanidade, volta-se furiosamente contra ele, como se ele fosse algo demoníaco. Nem se­quer vê que, com essa postura, a Cúria ro­mana coloca-se nos antípodas do pa­pa João XXIII que ensinou a Igre­ja a ler os sinais dos tempos, um dos quais, em seu sábio entender, é preci­sa­men­te a emancipação das mulheres, o mes­mo é dizer, o movimento femi­nista.

P.S. Se os bispos que presi­dem às Igrejas locais, em lugar de se rebelarem contra as orienta­ções desta Carta, preferirem con­ti­nuar a comportar-se como súb­ditos da Cúria romana, bom será que as mulheres católicas tenham um assomo de dignidade e deixem de fazer todos os servi­ços “me­no­res” que os párocos lhes con­fi­am. Nem catequistas. Nem can­toras. Nem zeladoras de al­tar. Nem mulheres de limpeza da igre­ja. O gesto é radical, mas profé­tico. Só há dignidade na pres­ta­ção destes serviços “menores”, se eles também incluírem todos os ministérios ordenados.


Destaque 2

XXIV Congresso de Teologia de Madrid

Que Deus contemplam as/os contemplativos?

“A Deus nunca ninguém o viu. Então, que Deus é que contemplam as contemplativas, os contemplativos nos conventos e nos mosteiros de clausura?” Ninguém a formulou assim, mas esta pergunta impôs-se abruptamente ao Jornal Fraternizar, precisamente quando, ao segundo dia do XXIV Congresso de Teologia de Madrid, os mais de mil participantes escutavam a longa intervenção proferida pela religiosa beneditina, Maria Lourdes Solé, subordinada ao tema “A mística hoje tem sentido?” O Congresso decorreu entre os dias 9 e 12 de Setembro 2004 no salão de actos das Comisiones Obreras, sedeado na capital do país vizinho. “Espiritualidade para um mundo novo”, foi o tema que os diversos intervenientes convidados, mulheres e homens, procuraram desenvolver. Vigorosamente profética foi a conferência de encerramento do Congresso, da responsabilidade do teólogo maior de El Salvador, o jesuíta Jon Sobrino (ver texto nas páginas centrais desta edição). O teólogo não pôde estar fisicamente presente, devido a doença grave, mas teve o cuidado de preparar com antecedência a intervenção e enviá-la para ser lida, o que aconteceu em clima de forte emoção e de comunhão solidária com ele. A abrir o Congresso, usou da palavra o teólogo madrileno recentemente censurado pela Cúria romana, Juan-José Tamayo, secretário da Associação de teólogas e teólogos João XXIII. Embora o programa indicasse que se tratava da “Apresentação”, a verdade é que as suas palavras marcaram todo o Congresso, bem mais do que algumas das conferências propriamente ditas que, infelizmente, não conseguiram ir além de conhecidos lugares comuns difundidos por aí em muitos livros de espiritualidade.

Mas regressemos à pergunta inici­al, por sinal, uma perturbadora pergun­ta, que se impôs abruptamente ao Jor­nal Fraternizar e que, infelizmente, não chegou a ser colocada à conferencista, no decorrer do curto período de tempo a isso destinado. Quando o seu director estava para se levantar e aproximar do microfone para a formular, foi anuncia­do que se havia esgotado o tempo pa­ra perguntas. Deste modo, e sem que ninguém tivesse culpa, a pergunta ficou sem ser ouvida na sala de actos das Co­misiones Obreras e sem possibi­li­da­de de alcançar a consciência de todos os participantes, incluída a reli­giosa be­neditina que esteve na origem dela. O que, certamente, representa uma per­da, já que, se a pergunta tivesse sido formulada de viva voz, poderia ter sus­citado algum alvoroço entre as, os con­gressistas.

Pois bem. Que Deus contemplam as contemplativas, os contemplativos pro­fissionais da Igreja, como podem hoje ser chamados todos os frades, todas as freiras de clausura? Será o Deus que se nos revelou definitivamente em Jesus de Nazaré como aquele que gos­ta de política, e não suporta toda essa tralha religiosa com que costumam ser preenchidos os dias nos conventos e nos mosteiros? Ou será, sobretudo, um ídolo, sem reino a edificar, sem história a realizar, sem entranhas de misericór­dia a viver em comunhão de sangue com a Humanidade mais empobrecida e mais oprimida? E que tipo de espiri­tualidade é essa que leva as pessoas a fazer sacrifícios, penitências, e a re­citar dia após dia, mês após mês, ano após ano, as mesmas fórmulas, os mes­mos salmos, as mesmas preces, sem jamais chegarem a ouvir uma or­dem como aquela que Moisés diz ter escutado no meio da sarça ardente e que o fez voltar ao Egipto dos faraós, de onde antes tinha fugido, mas agora com a missão política expressa de li­bertar os escravos hebreus e outros da tirania e da opressão a que estavam irre­mediavelmente submetidos? Um Deus que se compraz em toda a tralha religiosa que por aí se faz nos conven­tos, nos templos e noutros locais de culto; que se agrada de gente que por amor dele renuncia – ou é levada a re­nunciar – a viver o máximo das suas capacidades e o máximo das suas res­pon­sabilidades, ainda pode ser o Deus de Jesus? Não é antes um ídolo que vem dos tempos mais primitivos da Hu­manidade, quando se pensava que a glória de Deus era que o ser humano se humilhasse e aniquilasse diante de­le, e que atravessou os séculos até ao nosso tempo e continua aí a fazer das dele, em milhões de vítimas desgraça­das que se auto-imolam em sua honra, como se Deus fosse um tirano a quem é preciso amainar e satisfazer até os seus mais estúpidos caprichos? Não nos revelou Jesus que a glória de Deus, pelo contrário, é que o ser humano vi­va, que o pobre viva, que as vítimas se­jam tiradas da cruz, que a cruz seja destruída? Como podem estar a con­tem­plar Deus aquelas pessoas que in­sistem em sacrificar-se e em imolar-se por ele, em lugar de gastarem toda a sua vida, como Jesus, em duélicos com­bates em prol da libertação de todas as vítimas e pela denúncia e destruição dos perversos sistemas que as fabri­cam? Pode haver espiritualidade fora destes combates históricos? E, se hou­ver, tal espiritualidade não tem em men­te um ídolo inventado, ao qual se pretende agradar, em lugar de ter o Deus vivo e criador como a sua fecunda e gratuita fonte? Se a espiritualidade tiver o Deus vivo e criador como a sua fonte, não fará de quantas, quantos a viverem outros tantos Jesus de Nazaré, nos nossos aqui e agora? E não é ape­nas este tipo de espiritualidade que se faz o prolongamento até ao nosso aqui e agora da memória subversiva e peri­gosa de Jesus, o ser humano plena­men­te espiritual e por isso plenamente político?

Infelizmente, não foi muito por aqui que avançaram as diversas interven­ções que se fizeram ouvir no Congres­so, por entre conferências e mesas re­dondas protagonizadas por re­pre­sen­tantes de diferentes religiões e Igrejas.

A própria Eucaristia de encerra­mento, embora muito efusiva e mexida, cheia de cantos e de palmas, terá con­seguido “consolar” as pessoas, mais do que as estimulou a abrir-se à fonte de toda a espiritualidade que é o Deus vivo e criador de vida e de liberdade e o promotor de maioridades humanas capazes por isso de assumirem a vida e a História, como se Ele próprio não existisse.

A prova disto mesmo é que toda aquela assembleia de mais de mil pes­soas entusiastas escutou, nessa oca­sião, o Evangelho de Mateus (19, 16-22) a convidar-nos, na pessoa do jo­vem rico, a darmos todos os nossos bens aos pobres, numa inequívoca e radical recusa do capitalismo e da ido­la­tria do Dinheiro que lhe anda infali­vel­mente ligada, mas a verdade é que ninguém foi capaz de um gesto assim, como em seu tempo Francisco de As­sis, por exemplo, terá sido capaz.

Pelo contrário, todos fizemos, uns mais outros menos, como o jovem do E­vangelho e preferimos continuar com os bens que temos, nem que seja a pre­texto de que, assim, podemos ajudar a financiar congressos como este, ou ajudar a financiar projectos de solida­rie­dade com os pobres, sem contudo, nos atrevermos a acabar de vez com a pobreza, muito menos, com o sistema que a fabrica em massa.

Mas de que vale adoptar na nossa vida um certo tipo de espiritualidade, por muito sonante e vistosa que ela possa ser, se isso não nos leva a in­tervir política e decisivamente para pôr fim à pobreza e ao sistema que fabrica pobres em massa? Alguém pode dizer que uma espiritualidade assim tão distante da Política tem, como sua fonte, o Espírito do Deus vivo e criador, como felizmente aconteceu com a pessoa de Jesus de Nazaré, muito justamente por isso chamado o Cristo ou o Libertador?


Teólogo Juan-Tamayo faz a apresentação do Congresso

Espiritualidade: Não tem nada a ver com uma concepção sacrificialista das religiões, em especial do cristianismo

“O que queremos descobrir neste Congresso é a importância, centrali­dade e actualidade da espiritualidade. Ela constitui uma das dimensões funda­mentais da experiência humana e da experiência religiosa. Foi resgatada do estreito mundo da ascética em que vi­veu sequestrada durante séculos. Con­verteu-se num dos temas do nosso tem­po, que é estudado interdisciplinarmen­te. Tem uma grande capacidade de ener­gias utópicas, geradora de atitudes éticas e é instância crítica, ao mesmo tempo que força subversiva. Não é algo do passado, mas um fenómeno em ple­na ebulição. Não tem nada a ver com uma concepção sacrificialista das reli­giões e em especial do cristianismo, pelo contrário, fomenta uma experiên­cia jubilosa, solidária, dinâmica e espe­rançada, no coração do mundo, no meio da vida.”

Assim começou o teólogo madri­le­no, Juan-José Tamayo, a sua comuni­ca­ção de apresentação do XXIV Con­gresso de Teologia de Madrid, a que deu o título geral “Do negócio da es­piritualidade ao retorno da mística e da espiritualidade feminista e inter-re­ligiosa”.Foi, como se vê, um início chei­o de esperança. Mas o teólogo que, fe­lizmente, vive de olhos abertos e com os pés bem assentes no chão, logo avan­çou um mais que oportuno alerta:

“São cada vez menos os âmbitos da existência que escapam ao mundo do negócio. […] Até a espiritualidade acabou por cair nas redes do mercado, entrou nos circuitos comerciais e con­verteu-se num ingente negócio; subme­teu-se às férreas leis do mercado e en­trou nos circuitos económicos e finan­ceiros, que a converteram num objecto mais de consumo e de compra-e-ven­da. O mundo empresarial descobriu o seu poder e investe em espiritualidade, es­perando conseguir pingues benefí­cios a muito curto prazo. O Wall Stre­et Journal, a bíblia da religião do mer­­cado, como o chama Ignacio Ramo­net, revelava há uns anos que a espiri­tualidade movia hoje no mundo mil mi­lhões de dólares. Penso que, já na al­tura, esta estimativa era baixa e hoje certamente ultrapassa em muito essa cifra.”

“Vários são os fenómenos – pros­segue Tamayo – que se movem nessa órbita: os grupos de auto-ajuda que contam com uma ampla difusão; os mo­vimentos da «Nova Era», que inva­dem o mercado religioso e cultural; as novas manifestações da magia, que desembocam numa credulidade laica; algumas das manifestações religiosas orientais manipuladas por interesses crematísticos [crematística é a arte de adquirir e conservar riquezas]; e, no nos­so caso, a própria instituição eclesi­ástica que se converteu numa ingente empresa do sagrado, que vive de es­molas, isenções fiscais, acções na bol­sa, investimentos em paraísos fiscais, sem qualquer preocupação pelo desen­vol­vimento da fé e menos ainda do fo­mento duma espiritualidade evangélica, gratuita e libertadora.”

A propósito do mundo da magia, Ta­mayo concretiza: “Difunde-se a «cultura dos horóscopos» com o apoio de não poucos meios de comunicação e cresce em proporções impensáveis o número de pessoas que os consultam diariamente e que se regem cegamen­te pelas suas previsões. O indivíduo renuncia assim à sua liberdade de es­colha e coloca-se à mercê das forças do destino. O que entre muitas pessoas começa como um jogo ou uma distrac­ção, com o passar do tempo converte-se numa espécie de imperativo cate­gó­rico a seguir. As consultas dos viden­tes, cartomantes, magos e adivinhos contam cada vez com mais clientes à pro­cura de mensagens optimistas que aliviem as tensões e os conflitos da vida. O alívio é passageiro e torna-se frustração quando a pessoa tem que enfrentar a realidade nua e crua. Os ho­norários pelas consultas deste tipo não costumam estar sujeitos a regras nenhumas e podem constituir uma for­ma de extorsão económica legitimada socialmente e não controlada pelas correspondentes instâncias.”

E a Igreja católica, como se com­porta hoje neste campo da es­piritualidade?

“O que parece mover a instituição eclesiástica - diz Tamayo - é assegurar a sua sobrevivência a qualquer preço e a manutenção dos seus privilégios. O que ela procura é a reprodução da sua ideologia conservadora em todos os âmbitos da sociedade; uma ideo­logia que não se apresenta modesta­mente como oferta de sentido, mas que pretende impor-se a toda a cidadania e inclusive aos representantes da von­tade popular, aos quais pede que vo­tem conforme as orientações da hie­rar­quia católica e não em consciência e conforme o programa do partido pelo qual foram eleitos. O que a Igreja pre­tende é conseguir o financiamento económico por parte do Estado, o que a converte numa instituição protegida, tutelada e, finalmente, dependente. O que a Igreja mais anseia é a manuten­ção duma moral rançosa, repressiva, patriarcal que não tem nada a ver com a ética libertadora do evangelho e com o seguimento de Jesus de Nazaré. […] Até o imperativo ético-evangélico da opção pelos pobres acabou por dar lugar à opção pela rentabilidade eco­nómica. Produz-se então uma mudan­ça no espírito e na letra do Evangelho que diz: «Não se pode servir a dois se­nho­res: a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24). A Igreja institucional parece ter substituído a incompatibilidade entre Deus e o dinheiro, que está no centro duma espiritualidade cristã do despren­di­mento, pela incompatibilidade entre Deus e a sexualidade que é estranha à espiritualidade evangélica. Parece ter mudado a opção pelos pobres que cons­­titui o coração das Bem-aventuran­ças, e o compartilhar os bens que faz parte do estilo de vida das primeiras comunidades cristãs, pela lógica da a­cu­mulação e do lucro que está na base do capitalismo.”[...]

LIBERTAR A ESPIRITUALIDADE

"O que estas manifestações de­mons­tram - prossegue, certeiro, o teó­logo madrileno - é que se provocaram vá­rias alterações: passou-se da crença crítica que caracterizou o fenómeno re­li­gioso das décadas anteriores e que ques­tionava a ordem estabelecida, à cre­dulidade acrítica, que se instala co­mo­damente na ordem estabelecida e a legitima religiosamen­te; passou-se da gratuidade que constitui o que há de mais genuíno e autêntico da experiên­cia religiosa e que definiu os movimen­tos espirituais alternativos, ao interesse crematístico[busca do lucro], que define hoje a nossa cultura e uma grande par­te do mundo das religiões; passou-se duma fé mobilizadora das consciências e das energias utópicas, a uma fé passi­va, alienante, adormecedora das consci­ên­cias; passou-se da comunicação di­re­cta com a divindade, à relação atra­vés de múltiplos mediadores, guias es­pirituais, gurus, ritos, práticas religio­sas, etc, que  garantem chorudos lucros aos profissionais do sagrado. [...]

Diante duma situação assim, é ne­ces­sário libertar a espiritualidade das «bocas devoradoras» do mercado e de­volver-lhe o seu verdadeiro sentido de profundidade e de «trans-cendên­cia». Como? Não dirigindo novas cru­za­das em defesa do sagrado, mas vi­ven­do a experiência da fraternidade-sororidade sociocósmica que abarque todos os níveis da existência.

A não ser assim, o E(e)spírito - com maiúscula e minúscula - será engolido pelo sistema e ver-nos-emos privados duma das fontes de energia mais ne­ces­sária para a humanidade e a nature­za. Sem o E(e)spírito não haverá mais dia, apenas noite, não haverá mais vi­da, apenas morte. A espiritualidade, sem dúvida, desemboca na ressurrei­ção, que é a utopia com que todos so­nha­mos e que queremos ver realiza­da."

NOVA ESPIRITUALIDADE

Tamayo fala depois da nova espiri­tuali­dade marcada também pelo femi­nismo. Nestes termos: "Na nova espiri­tua­lidade, a mulher redescobre-se co­mo sujeito, vive a experiência religiosa a partir da sua própria subjectividade e não aceita mediações clerico-patriar­cais ou hierárquico-institucionais que, no fundo, pretendem negar a sua sub­jectividade feminina. Não aceita as tra­di­cionais divisões entre sagrado e pro­fano, espiritual e material, natural e so­bre­natural. O lugar da nova espirituali­dade é o mundo sem fronteiras, a natu­reza toda onde se deixa sentir o misté­rio, a vida como dom e como responsa­bilidade, a realidade sem compartimen­tos estanques. O seu espaço são todos aqueles lugares nos quais se desenvol­ve a existência humana: a profissão, a actividade política, a comunicação, a via pública, a ágora, a vida quotidiana. Não quer dizer que a nova espirituali­dade se proponha neosacralizar o mun­do. Pelo contrário: respeita a sua ple­na autonomia e reconhece-o como o verdadeiro cenário onde se joga o des­tino humano.

A sua presença no mun­do destina-se a transmitir o dinamismo libertador do E(e)spírito. É uma espiritualidade sapiencial, não intimista mas política, não evasiva mas comprometida, que levanta a voz e luta a favor das pesso­as indefesas e da natureza dominada. Nesse sentido, é militante, rebelde, in­conformista com o sistema excluente e todo-poderoso. Caracteriza-se por uma inspiração ético-prática que a leva a tra­balhar por um mundo onde caiba­mos todas e todos. Guia-se pelos impe­ra­tivos da fraternidade-sororidade, jus­ti­ça-libertação, igualdade-diferença. U­ma espiritualidade sem ética é vazia; uma ética sem espiritualidade é cega."

"Muito outra - adverte Tamayo com sagacidade - é a postura da hierarquia católica, através dos seus documentos e das suas práticas excluentes das mu­lheres do universo religioso. Acusa-as de serem responsáveis pela violência doméstica, por defenderem a libertação sexual; amarra-as ao lar e, no caso de tra­balharem fora do lar, defende a com­pa­tibi­lidade entre os dois trabalhos, su­b­metendo-as assim a jornadas intermi­náveis de trabalho sem descanso. Va­loriza-as pela sua função reprodutiva e de cuidado, não por serem pessoas. Exclui-as dos ministérios ordenados, alegando que não podem representar sacramentalmente a Cristo, porque Je­sus de Nazaré não ordenou mulheres, quando ele tão pouco ordenou homens, apenas criou um movimento igualitário de homens e de mulheres. Exclui-as dos âmbitos de poder e de responsabi­li­dade dentro da comunidade cristã, re­produzindo assim a ideia patriarcal de que o exercício do poder compete aos homens. Critica a «ideologia de géne­ro» que questiona o «eterno feminino» e os esteriótipos que dimanam dele, quando o que essa ideologia defende é a não-discriminação por razões de género, a igualdade de homens e mu­lhe­res em direitos e deveres, a parida­de no exercício do poder. É a própria organização eclesiástica hierárquico-patriarcal que reforça as desi­gual­da­des de género."

E Tamayo conclui: "Não se pode defender uma espi­ritualidade feminista, quando não se condenam com a devida contundência a violência contra as mu­lhe­res, os abu­sos sexuais, a prostitui­ção. Quantos sermões de clérigos, qu­an­tas pastorais de bispos e encíclicas de papas contra o aborto, o divórcio, os métodos contra­ceptivos, as relações pre-matrimoniais, a homossexualidade, as uniões de fa­cto, adopção de crian­ças por casais homossexuais!... E quão poucos docu­mentos contra os abusos sexuais, a vio­lência de género, o tráfico de mulhe­res, etc."


O Drama das religiões
Segundo o teólogo José M.ª Castillo

Coube ao teólogo José M.ª Castillo, actualmente professor da UCA, em El Salvador, proferir a conferência de abertura do XXIV Congresso de Teologia de Madrid. Dissertou, como só ele sabe, sobre a "Situação sócio-religiosa e espiritual da nossa sociedade". Fixou mais a realidade espanhola. Mas toda a sociedade ocidental se pode rever nesta sua intervenção que será publicada em breve nas Actas do Congresso. Jornal Fraternizar deixa aqui apenas um breve apontamento. Eis.

"As grandes religiões da humanida­de nasceram e organizaram-se em mo­delos de sociedade que pouco ou nada têm a ver com a sociedade em que hoje vivemos. Daí os graves problemas que a nossa sociedade levanta às religiões e, ao invés, os graves problemas que as religiões provocam na sociedade actual.

Por exemplo, todos sabemos que as grandes religiões da humanidade nasceram em tempos e em culturas em que a liberdade das pessoas, a igual­dade das pessoas e os direitos das pes­soas não se valorizavam como hoje se valorizam.

Por isso, ninguém tem que estra­nhar que, em temas como liberdade, igualdade e direitos humanos, as reli­giões e os seus dirigentes tenham com frequência sérias dificuldades com as pessoas do nosso tempo e com os go­vernantes da nossa sociedade. Vou explicar isto mais em pormenor.

Em primeiro lugar, as religiões ba­seiam-se em tradições antiquíssimas, que se consideram reveladas, isto é, de origem divina e, portanto, inamoví­veis e intocáveis. Costumam ser mais fiéis ao passado que ao futuro. A fi­delidade ao passado dá segurança aos homens da religião, enquanto que a aber­tura ao presente e a criatividade diante do futuro produz insegurança e medo em não poucos religiosos. [...]

No caso concreto da Igreja cató­lica: No século XIX, ela tinha medo do liberalismo. No século XXI, tem medo da secularização e da sensualidade dos costumes. No fundo, é sempre o mes­mo: a resistência à mudança e o medo a quase tudo o que é novo.

Em segundo lugar, as religiões te­mem o pluralismo de critérios, de cos­tumes e de cerimoniais religiosos entre os seus adeptos. Sobretudo, temem a liberdade das pessoas, especialmente, dos seus fiéis. Por exemplo, no caso do cristianismo, sabemos que a Igreja dos primeiros séculos foi uma Igreja que respeitou o pluralismo de culturas, de teologias, de línguas e normas litúr­gicas. Com o passar do tempo, esse plu­ralismo tolerou-se cada vez menos. E hoje é bem conhecido até que ponto a Sagrada Congregação para a Doutri­na da Fé tenta controlar e uniformizar até os mais pequenos detalhes da litur­gia ou do ensino religioso.

Em terceiro lugar, as instituições religiosas não aceitam a laicidade da nossa sociedade. Porque para qualquer religião, «o sagrado» está antes e por cima do "profano". Por isso, para muitas pessoas religiosas, as normas «sagra­das» da religião merecem mais respei­to e são mais importantes que as nor­mas «profanas» da sociedade civil. Igual­mente, vê-se com naturalidade que, por exemplo, um bispo chame a atenção  ou até ameace publicamente o chefe de Estado ou o presidente do Governo, enquanto que dificilmente se toleraria que o chefe de Estado ou o presidente do Governo corrigissem ou advertissem um bispo sobre o que faz ou deixa de fazer na sua diocese.

Em quarto lugar, as religiões não se regem pelo princípio de participação dos fiéis, mas pelo princípio de autori­dade dos seus hierarcas. Uma autorida­de que, para cúmulo, se considera de origem divina e portanto inquestioná­vel. Aliás, não se pode deixar de re­cordar aqui que a Igreja católica hoje está organizada, não como uma demo­cracia, mas como uma monarquia a­bso­luta. De facto, o Estado da Cidade do Vaticano é a última monarquia abso­luta que resta na Europa, como consta do artigo primeiro da sua Cons­tituição, onde se estabelece que os três poderes - legislativo, judicial e exe­cutivo - estão concentrados num único homem, o Romano Pontífice. Mas isto nem é o mais importante, porque, se­gun­do os cânones 331, 333, 1404 e 1372, o papa possui um poder que é supremo, pleno, imediato e universal; um poder perante o qual não há apelo ou recurso; um poder que não pode ser julgado por ninguém. De modo que, se alguém recorrer a um Concílio Ecu­ménico ou ao Colégio de bispos contra uma decisão do papa deve ser castigado com uma censura.

Por isso, na Igreja ninguém tem, nem pode ter direi­tos adquiridos. O que equivale a dizer que na Igreja não se reconhecem os direi­tos humanos das pessoas. Não é de estranhar que uma instituição assim, presente numa cultu­ra como a nossa, tão marcada pelos critérios que emanam do Estado de di­reito e da consciência democrática, se­ja uma instituição que tropeça com pro­ble­­mas constantes no seio da socieda­de em que vive e que se sente constan­te­mente ameaçada pela sociedade ci­vil, suas leis e seus governantes.


Espaço Aberto

Editorial

Alerta! O Inimigo do País disfarçou-se de Governo!

1. O Inimigo do país anda por aí à solta e ataca em múltiplas frentes. Sobretudo no actual Governo CDS/PP-PPD/PSD. Não, não são os simples cidadãos Paulo Portas e Santana Lopes os maus da fita, pobres mortais como todos os outros seres humanos, mulheres e homens. Mas já o são, certamente, o ministro da defesa e dos assuntos do mar e o primeiro ministro deste (des)Governo que nos coube em sorte, depois que o PR Jorge Sampaio, de hesitação em hesitação, lá acabou por consumar um verdadeiro golpe de estado institucional (a letra da Constituição dá-lhe esse poder e ele avançou nessa direcção contra o mais elementar bom senso e contra o seu próprio passado de generoso militante das causas da justiça e da liberdade) e, com ele, escancarou as portas do país ao Inimigo.

Manda a verdade que se diga que entre o ministro da defesa e dos assuntos do mar e o primeiro ministro do Governo, venha o diabo e escolha, uma vez que o ministro da defesa pela-se todo por fazer de primeiro ministro e o primeiro-ministro, que há-de andar com umas saudades danadas dos tempos em que não era obrigado a ter de se comportar em público como o n.º três da hierarquia do Estado, não só não chega a dar conta desse permanente atropelo ao protocolo, por parte do seu truculento ministro da defesa, como é até capaz de lhe estar grato por tamanho "zelo" pela nação de que ele dá mostras (levado por este seu "zelo", este mesmo ministro um dia destes ainda é capaz de mandar avançar as fragatas e os submarinos contra o próprio povo do seu país, para que ele, duma vez por todas, diga que é contra a lei do aborto, vote pela inclusão do nome de Deus na Constituição Europeia e cante perfilado e de braço direito estendido, à mocidade portuguesa, o hino nacional antes de se sentar à mesa para almoçar e jantar!...).

Para o primeiro ministro, basta-lhe o título e os prazeres que o cargo lhe garante, a começar pela presença à sua volta de tantas assessoras bonitas e perfumadas. A sua vaidade atingiu o clímax, ao ser empossado como primeiro ministro sem que tivesse feito nada para isso. O facto parece até provar que isto de ser primeiro ministro não é, como por aí se pensa e oficialmente se diz, para governar maieuticamente o país, mas sim para se governar à custa do país. Aliás, para ter sucesso no cargo, muito importa que o primeiro ministro não faça nada de nada e se limite a deixar o Inimigo do país fazer tudo o que ele queira fazer. O êxito é garantido e, por isso, é bem possível que, depois de um mandato tão curto como este que agora lhe saiu na rifa, ainda se lhe siga outro e mais outro, e então já com o aval do voto popular.

Se tal desgraça acontecer, eu sei que não faltará quem logo diga cobras e lagartos contra o povo, nomeadamente, que é cego, surdo e que vota sempre nos que o oprimem e exploram. Mas é um dizer sem-razão. O que efectivamente se passa é que o Inimigo não dorme. E tão pouco é analfabeto. A linguagem mítica do passado chamou-lhe, e com razão, Lúcifer, isto é, inteligente e perverso q.b. É por isso que ele nunca se apresenta às claras e nem exibe bilhete de identidade. Como ladrão que é, tão pouco gosta de entrar pela porta principal de um país, prefere entrar por outro lado, sem ninguém dar por isso e instala-se nele de armas e bagagens, nomeadamente, em certas pessoas  ambiciosas, ávidas de protagonismo e vaidosas como pavões, que, por isso mesmo, facilmente se deixam enganar e seduzir pelas suas mentiras e pelos muitos privilégios que ele sempre garante a quem o servir e lhe entregar a alma.

Nesta altura e no nosso país, o Inimigo veste de ministro da defesa e dos assuntos do mar e de primeiro ministro. Não exclusivamente, já se vê. Também veste de PR, já  politicamente morto. E de muitos outros cargos de proa, inclusive, eclesiásticos católicos e das seitas.

O país tem que acordar para esta sinistra realidade e resistir-lhe activamente. Sob pena de embarcar no tipo de discurso mentiroso e demagógico em que o Inimigo é hábil, nomeadamente, quando, como agora, é servido por homens cheios de vaidade, cheios de ambição, dotados de inteligência fanática e de vontade de dominar tudo e todos.

Resistir é preciso. Mas não só. É também preciso insurgir-se civicamente contra esta situação que inopinadamente nos aconteceu. Ou nos decidimos, quanto antes, ou voltamos a perder a dignidade e a liberdade que Abril nos restituiu.

Vejam como eles nos fazem servir overdoses de futebol, quase 24 horas sobre 24. Como nos metem pelos olhos e pelos ouvidos dentro padres daniéis e outros que tais, que andam aos saltos nos altares e na televisão em honra de um Deus que tem tudo de demoníaco, de Inimigo, de alienador, de mentiroso e pai de mentira. E também de assassino sem escrúpulos. Vejam como nos oferecem novelas e mais novelas, nos diversos canais de televisão. Fazem tudo isso para nos alienar, anestesiar, adormecer, desmobilizar.

Para cúmulo, ainda nos atraem regularmente às novas catedrais do consumo, onde fazem nascer em nós falsas necessidades. E quase nos convencem que os outros iguais a nós, em lugar de nossos companheiros e irmãos, são nossos inimigos, nossos rivais, que havemos de evitar. Ficamos, assim, reduzidos à nossa própria debilidade, cheios de medo, desconfiados, armados de indiferença, ou mesmo de ódio, totalmente à mercê do Inimigo e dos seus homens de mão. Que fazer?! Exactamente o contrário do que o Inimigo quer. Comecemos já!

2. Infelizmente, consumou-se o mais que previsível massacre naquela escola do país de Putin. O terrorismo, quando acontece, em proporções assim, é sempre um crime hediondo. Mas ainda mais hediondo é o terrorismo de Estado que não é capaz de humildade/humanidade para se interrogar porque é que há acções como esta dos independentistas da Tchetchénia. Quando é que o nosso mundo dá um sinal de que já saiu da selva, ao impedir que tiranos e terroristas de Estado como Putin e Bush continuem aí impunemente como chefes de Estado, reconhecidos pelos outros chefes de Estado? Não nos diz a História recente que os guerrilheiros que lutam pela independência dos seus países andam carregados de futuro? Não são homens/mulheres para matar, como nos repete até à náusea a demência política de Putin. São homens/mulheres que humildemente havemos de escutar, bem como às mais profundas razões que os movem. A Causa pela qual arriscam a própria vida e não hesitam em pôr em risco a vida de tantos inocentes é uma Causa da Humanidade. Matá-los, é matar a Humanidade. Escutá-los e deixar-se interpelar pela sua Causa é garantir futuro à Humanidade. É por aqui que eu vou. Até que nos decidamos a criar um mundo de justiça. E sem terrorismo, naturalmente.

Vosso companheiro e irmão,

Mário, presbítero


OUTRAS VOZES

“Sou ateu”

E-mail 1. Rui: Chamo-me Rui, tenho vinte e sete anos e sou do Porto. Desde há uns anos que sigo com admi­ração o seu insurgi­mento contra os do­gmas e o obscuran­tismo que re­pre­sen­ta a “Empresa de Deus” com delega­ções nos cinco con­tinentes...

Sou ateu. Contudo não sou funda­mentalista (como poderia ser, se este sentimento é um dos pilares das diver­sas religiões?!). Tenho a profunda con­vic­ção que o Homem, quando não con­segue entender e explicar algo, logo arranja um embuste para ficar de bem consigo... Deus, na minha humilde opi­nião, serve de apoio. Tem um carácter utilitário.

Entretanto a Ciência, a Filosofia e o próprio avanço civilizacional vão es­clarecendo alguns fenómenos, mas como o saber não é infinito, existirá sem­­pre espaço para a transferência de poderes para algo que nos ultrapas­sa...

A relação do Homem com a religi­ão é promíscua.. Toma lá... Mas dá cá!!! Desde cedo que os ritos católicos me causaram estranheza e desconforto... Ainda muito novo me recusei a fazer a comunhão... É engraçado como já acha­va aquilo falso e inútil...

Tive a sorte de ter uma família mui­to liberal neste aspecto. Nunca me for­çaram a nada. Fui baptizado porque, enfim... Convenções sociais. Se algum dia tiver filhos não os baptizarei. quan­do tiverem idade para decidirem por eles, tomarão os caminhos que lhes aprouver.

É claro que passei por um ateísmo mais radical, próprio da idade, mas hoje já detenho o equilíbrio emocional que me permite defender as minhas ideias, sem ferir demasiado susceptibi­li­dades, ou amordaçar opiniões diver­sas. Uma prova disto é que me casei pela igreja católica. Há uns anos atrás seria impensável eu anuir em tal espe­ctáculo “circense”. Não obstante, che­guei à conclusão que, para mim, aquela cerimónia era absolutamente indolor e inofensiva, mas que faria felizes outras pessoas... E porque não? Não será isso o mais importante? A felicidade das pes­soas?

Bem, mas para não tornar esta men­sagem demasiado egocêntrica, dei­xo-lhe aqui vivamente expressa a mi­nha profunda admiração por si. Não precisa de se dar ao trabalho de me res­ponder. De certeza que mensagens mais importantes e interessantes reque­rem o seu tempo. Um tempo precioso repleto de humanismo, de bondade, de entrega ao próximo e altruísmo. Muita saúde e felicidade para si.

N. D.

Caro Rui: A sua mensagem deixou-me comovido. Confirma que não luto em vão. Há muita gente que me odeia e me despreza, por ser este tipo de pa­dre/presbítero católico que sou. As­sim como também há muita outra gente que me estima e apoia. O Rui, pelo vis­tos, está neste último número. Bem-haja.

Saúdo o seu ateísmo. Também eu sou ateu, mas, ao contrário de si, sou ateu apenas de todos os deuses que se alimentam de gente. Por isso, posso dizer que sou ateu, porque creio em Deus, no Deus de Jesus de Nazaré, o Cru­cificado/Ressuscitado. Deus está na minha vida, não como necessidade, nem como consolo. Está na minha vida como pura graça, como puro dom. É uma Presença que continuamente me desafia e me desinstala. Continuamen­te me salta ao caminho com a pergunta mais perturbadora e também mais hu­ma­nizadora de todas: Onde está o teu irmão/a tua irmã? Que fizeste do teu irmão/da tua irmã?

Só me custa a compreender que o Rui, ateu assumido que é, ainda te­nha casado na Igreja e pela Igreja. Espero que, ao menos, o tenha feito como ateu assumido perante a Igreja e perante o pároco que presidiu ao vosso casamento ou perante o padre amigo em quem o pároco delegou essa função canónica. Se não o tiver feito, se, pelo contrário, até tiver escondido essa sua convicção de ateu ou essa sua “fé” ateísta, nem que o tenha feito para “a felicidade das pessoas”, então eu ver-me-ei obrigado a perguntar que concepção de felicidade é essa que têm certas pessoas católicas que, para se di­zerem felizes, não se importam de exi­gir que alguém que é ateu proceda como se fosse cristão católico, nem que seja apenas por uns breves minutos da sua vida, e não uns quaisquer mi­nu­tos, mas precisamente os minutos em que esse alguém dá o passo que mais pode decidir sobre o seu futuro pes­soal?! Assim como também terei que perguntar que tipo de catolicismo é o de certas pessoas católicas que, em lugar conjugarem felicidade com ver­da­de, insistem em conjugar felicidade com mentira, com hipocrisia, com dis­far­ce, com faz-de-conta?

Quando uma nubente católica se propõe casar com um nubente assumi­do de outra Igreja, tem que o declarar previamente ao respectivo pároco que organiza o processo canónico. O casa­mento pode então ser celebrado, mas exige uma autorização especial do Bis­po da diocese e compromissos espe­ciais por parte de cada um dos nuben­tes, nomeadamente, no que respeita à educação dos filhos que vierem a nas­cer-lhes. Ora, se a Igreja católica exige que as coisas sejam assim, mes­mo entre crentes em Deus, mas de Igre­jas diferentes, por maioria de razão deveria exigir que as coisas também fos­sem assim entre uma nubente assu­mi­damente católica e um nubente assu­mi­damente ateu. E se nem a nubente é assumidamente católica, e o nubente é assumidamente ateu, então ainda menos sentido tem o casamento pela Igreja. Num caso assim ou noutro se­me­lhante, o casamento canónico não passará duma palhaçada de mau gos­to, um ritual que vai invocar o nome de Deus em vão. Haverá alguém que, mesmo assim, ainda pense que o casa­mento celebrado nestas condições re­presenta um passo para a felicidade dos que o celebram? Mas não será, antes, o princípio da desgraça dos que o celebram? Como pode haver felici­dade, lá onde não há respeito pela ver­dade, onde a hipocrisia é estimulada e onde ninguém, a começar pelos nu­ben­tes e a acabar no pároco que pre­side, toma a sério aquilo que está a fazer, nem valoriza as palavras que está a proferir? Mas se não nos com­por­tarmos como homens, mesmo quan­do damos a nossa palavra de honra e juramos em nome de Deus, ainda po­derá haver algo de humano nesse acto? Como poderemos pensar que al­guém sai feliz com actos desses? Talvez por isso hoje a nossa sociedade anda como anda. Se não somos nós pró­prios, nem mesmo nos momentos de mais solenidade em que empenhamos a nossa palavra, então quando é que o seremos?

Desculpe toda esta reflexão que aqui partilho consigo, e que foi provo­cada pelo seu e-mail. Sobretudo, se esta reflexão não vier muito a propósito do seu casamento. Se assim for, aceite-a na mesma, mas não a aplique ao seu caso pessoal. Pode aplicá-la a outros casos que, infelizmente, hoje são mais do que muitos entre os católicos portu­gueses e dos outros países do Ociden­te. É uma pouca vergonha. Nem os pá­rocos, nem os bispos católicos são ca­pazes de se darem ao respeito. Parece que o que lhes interessa são as esta­tísticas, e poderem dizer, no final de cada ano, que a diocese teve tantos mi­lhares de casamentos canónicos. Só que, muito provavelmente, não foram tantos milhares de casamentos canóni­cos, mas milhares de sacrilégios, durante os quais o santo nome de Deus foi invocado em vão. Mas que que­rem? Estatisticamente pesa, ao mesmo tempo que dá muito dinheiro a ganhar ao pároco e à diocese!... Mas que é uma pouca vergonha, é!

Um abraço, sempre

ALGUMAS QUESTÕES

E-mail 2. Rui: Bem sei que posso estar a abusar de seu tempo (e paci­ên­cia), mas gostaria de lhe colocar al­gu­mas questões. Diz que crê no Deus de Jesus de Nazaré... Não entendi cabalmente. Critica a idolatria que as­sola as gentes do nosso tempo, mas não será Jesus de Nazaré um ídolo para si, no sentido de modelo incontes­tado e incontestável a seguir? Diz que Deus está na sua vida como pura gra­ça, como puro dom... A sua extraordi­nária forma de ser e agir não será ge­ne­ticamente intrínseca? Não terá sido fruto de condições exógenas? Se é Ele que constantemente o interpela para ser bom e seguir um determinado cami­nho, então Deus não existe em todos, mas só em alguns e então com essa premência só em muito poucos!!! Por­que não considera que o Homem é auto-suficiente para ser bom e praticar o bem? Não será o Homem capaz de encontrar em si, sem intervenções ex­ternas à sua vivência real, a sua mis­são? A sua conduta moral? A Presença que sente em si não será... O seu eu? É injusto se for mesmo um Deus que “habita em si”... Porquê ser um esco­lhido, quando fazia tão bem ao nosso Mundo que existissem muito mais pessoas como o Padre Mário?

Peço perdão se interpretei mal as suas palavras. Teria muitas outras per­guntas, mas não o quero maçar mais. Mais uma vez obrigado pela atenção dispensada. Abraço forte.

N. D.

Caro Rui: Gosto dos ateus, particu­larmente, dos que não vivem acomo­dados e instalados no seu ateísmo. Assim como gosto dos crentes em Deus que não vivem acomodados e instala­dos na sua crença ou fé. Nem os cren­tes, pelo facto de crerem em Deus, po­dem provar que Deus existe, nem os ateus, pelo facto de não crerem em Deus, podem provar que Deus não exis­te. Quem sou eu para dizer que Deus existe ou que não existe? Tudo o que um homem, uma mulher tem foi-lhe dado. Ou não? Ninguém vive por si mesmo. Todos começamos a ser e a existir por pura graça. Ou por acaso, dirá o ateu. Mas, bem vistas as coisas, até o acaso se apresenta carregado de graça, de mistério. Somos essencial­mente Mistério! Não é assim que o Rui se sente todos os dias, particularmente, quando está sozinho e em silêncio e deixa que a sua consciência mais pro­fun­da se faça ouvir?

Ninguém se explica a si mesmo. So­mos seres em relação, em comu­nhão, medonhamente interdependen­tes. Chamaram-me à vida e eu aqui estou. Levei anos a tornar-me autóno­mo. E quando já pensava que não pre­cisava de ninguém, que me bastava a mim mesmo, foi quando senti um miste­rioso apelo a ligar-me a outra(s) pes­so­a(s), sob a forma de concretas alian­ças que têm todas o amor por denomi­nador comum. Sem amor, eu não teria sido concebido, não teria nascido, não teria sobrevivido. Cada ser humano é fruto do amor, é amor condensado. O amor é que nos faz. E será o amor que nos irá continuar a fazer, mesmo qu­an­do cada um de nós se tornar invisí­vel aos olhos dos demais, tal como ou­tros que nos precederam no tempo tam­bém já se tornaram invisíveis aos nossos olhos.

Onde estaremos, quando já não estivermos aqui? Conheço ateus que têm resposta definitiva para esta per­gun­ta e para outras perguntas como esta. Por mim, prefiro não matar este tipo de perguntas com respostas preci­pi­tadas e muito menos definitivas. Pre­firo continuar com este tipo de pergun­tas em aberto. Talvez esta postura seja uma das coisas que me distingue dos ateus: às grandes perguntas, não me apresso a matá-las com respostas de­fi­nitivas; prefiro mantê-las em aberto. E, misteriosamente, constato depois que são estas perguntas que me “fa­zem”, muito mais do que as respostas que, em cada momento, lhes possa dar.

É por isso que para mim a questão da existência ou da não existência de Deus pode acabar por se tornar uma falsa questão, que só serve para nos desviar da questão essencial. E, hoje, a questão essencial para qualquer ser humano que se preze, ateu ou crente em Deus, só pode ser esta: a existência massiva de vítimas humanas, de povos crucificados, que estão aí, não como uma fatalidade, mas como produto de cer­tas vontades, estruturadas em de­ter­minados sistemas económicos e políticos. A existência massiva de víti­mas humanas é, hoje, a questão deci­siva para qualquer ser humano que se preze, crente ou ateu. É com esta rea­lidade que estamos confrontados, ateus e crentes em Deus.

Como é que então nos posiciona­mos diante desta realidade mais real, que é a existência massiva de vítimas humanas? Como é que eu, crente em Deus, me posiciono diante desta reali­dade? Como é que o Rui, ateu assumi­do, se posiciona diante desta realida­de? Esta realidade determina o meu, o seu jeito de viver? Foi e continua a ser determinante na opção do estilo de vida que eu levo, que o Rui leva? Ou con­seguimos, o Rui e eu, viver “felizes” no nosso reduzido círculo familiar e de amigos, como se esta realidade não exis­tisse e não estivesse aí a desafiar-nos, a si e a mim, e a dizer-nos, a si e a mim, que é mentira tudo o que apre­goamos e fazemos, se o que apregoa­mos e fazemos não contribui para pôr fim a este escândalo e a esta vergo­nha?

Neste seu novo e-mail, o Rui for­mula-me muitas perguntas e muitas outras mais me poderia formular sobre Deus e sobre as palavras que balbu­ciei, ao tentar testemunhar-lhe que tam­bém eu sou ateu, mas apenas de todos os deuses que se alimentam de gente. Testemunhei-lhe igualmente que este meu ateísmo não só não me impede, antes me prepara e predispõe para dar pela Presença do Mistério que me en­vol­ve e me faz ser, mas também o en­vol­ve a si e a todos os demais seres hu­manos, mulheres e homens. A dife­rença é que alguns seres humanos dão-se conta dessa Presença e outros não. Os crentes são os que já se dão conta dessa Presença e mantêm-se abertos a ela. Não, a Fé não é um privi­légio. É uma enorme responsabilidade histórica. E uma exigência a sermos seres humanos até ao limite, como se Deus não existisse.

Como deve calcular, também eu conheço bem esse tipo de perguntas e de questões que o Rui, ateu assumi­do, me coloca. E saiba que, embora essas suas perguntas sejam aparente­mente pertinentes, embaraçam-no mais a si que as formula, do que a mim. Con­vido-o, pois, a desistir desse tipo de questões. São perigosas, sobretudo, para si. Prefira ser um ateu assumido, mas humilde, à escuta dos sinais dos tempos, permanentemente aberto às grandes perguntas, sobretudo, à per­gunta que vem do mundo das vítimas humanas e que a Bíblia, desde o início formula assim: Onde está o teu irmão, a tua irmã? Que fizeste do teu irmão, da tua irmã? (Génesis 4)

Finalmente, convido-o a acompa­nhar-me em mais esta reflexão: De que Deus é que o Rui é ateu? De que Deus é que eu sou crente? Esta é uma outra maneira de colocar o problema de Deus, muito mais correcta. Porque a rea­lidade Deus está aí. Podemos negá-la, mas nem por isso ela deixa de estar aí. Por isso, a questão fundamental, para crentes e ateus, não é se Deus existe ou não existe. Mas antes: Crês em Deus? em que Deus tu crês? És ateu? de que Deus és ateu?

Diga-me, Rui, de que Deus é ateu. Se o seu ateísmo o leva a viver acomo­dado neste mundo que fabrica vítimas humanas aos milhões e mantém povos inteiros crucificados na fome, no anal­fabetismo, no subdesenvolvimento, na guerra, na droga, na sida e até em doen­ças facilmente curáveis, então eu direi que o Rui não é ateu, mas idóla­tra, presta culto ao deus Dinheiro, ao deus Mercado, ao deus dos crucifica­dores, dos verdugos. Pelo contrário, se o seu ateísmo o leva a viver como mi­litante, como homem de causas, soli­dário com as vítimas, até arriscar a sua própria vida pela libertação delas, en­tão direi que o Rui é ateu de todos os deuses que se alimentam de gente e, por isso, está nas condições ideais para se tornar crente no Deus que em Jesus de Nazaré se nos revelou como a For­ça libertadora, como o Espírito, e que o levou a ser tão solidário com as víti­mas deste mundo, que acabou a en­frentar os crucificadores e os verdugos e a desmascarar os seus crimes, ao ponto de ele próprio acabar, contra a sua vontade, por se tornar também ví­tima, crucificado com os milhões de vítimas e de crucificados!

Diga-me, Rui, se conhece outro jeito de se ser homem, mulher mais radical do que este, protagonizado de forma paradigmática por Jesus de Na­za­ré, em seu tempo e país ocupado pelo Império de turno, então, o Império ro­ma­no, e governado por uma oligarquia religiosa sem entranhas de misericór­dia, com tudo o que havia de mais cruel. Eu não conheço.

Quando confesso que creio em Deus e especifico que creio no Deus de Jesus que historicamente acabou crucificado, estou a testemunhar que a minha Fé é da mesma qualidade da de Jesus. Quero dizer que, como Jesus, também eu sou ateu de todos os deuses que se alimentam de gente, mas, ao mes­mo tempo, procuro estar inteiro à disposição dessa Força libertadora ou Espírito (Deus), que me leva a manter-me lucidamente afastado dos crucifica­do­res e verdugos da História, sejam eles chefes de estado, donos das multi­nacionais, hierarquias eclesiásticas ou Pastores de igrejas, e me estimula a manter-me criativamente solidário com todas as suas vítimas, nem que, por via disso, venha a ser também vítima com elas. Porque, como a História bem no-lo confirma, os verdugos e crucificado­res não perdoam, quando percebem que eu não alinho nos seus maquiavé­licos banquetes, mesmo e sobretudo quando eles se fazem a coberto do no­me de Deus, e com gente graúda das di­versas Igrejas. O meu lugar de elei­ção é nas margens, junto das vítimas. Ao seu incondicional serviço conscien­ci­a­li­za­dor e libertador.

Fico no abraço amigo.

CARTA-DENÚNCIA CONTRA FÁBRICA DA IGREJA

E-mail. A. Alçada: Tenho lido com atenção as suas crónicas, referentes aos lideres da Igreja Católica! e refe­rências quanto à Instituição, que se man­tém bem referenciada acima do Es­tado, e do Governo. Tomei a liberdade de lhe dar conhecimento de um facto, que está incompleto na sua explicação, mas como foi elaborado por um senhor Advogado (não vi outro recurso senão a ele recorrer) vão aqui descritos talvez os aspectos mais importantes. Recebi uma resposta do gabinete do Presiden­te da República, acusando a recepção do documento e o reenvio ao Patriar­ca­do de Lisboa. Sinceramente, tudo vai ficar em silêncio como de costume! En­fim sou um pequeno bote à frente de um Titanic.

Quando tinha 10 anos, saltei o mu­ro do Seminário de Stª Maria dos Olivais, na companhia do meu amigo de escola, Miguel, para colher algumas folhas de Amoreira para os meus bichos da seda. No regresso, fomos aborda­dos pelo Pároco da Igreja de Moscavide, o meu amigo deu à sola, mas eu fiquei ali e obedeci ao chamamento dele, on­de ele me perguntou (depois de me agar­rar), QUEM ME TINHA DADO AU­TORIZAÇÃO PARA ENTRAR NO SEMI­NÁRIO, eu disse-lhe: Ninguém Sr. Prior; se eu pedir, ninguém me deixa lá en­trar para apanhar folhas para os meus bichos da seda! Mal acabei de falar, senti um valente estalo na cara, como nunca tinha sentido, porque meu pai nunca me bateu, e corri a chorar e fui-me esconder num vão de escada com medo de apanhar mais!

Desejos de saúde para si, para continuar a sua missão. Deixo-o agora com a carta-denúncia:

EXMO. SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, SR. DR. JORGE SAMPAIO

Dirijo-me, respeitosamente, a V. Exa. para lhe trazer ao conhecimento uma situação que me indigna, é injusta e revoltante, sentimentos que são agra­vados se tivermos em atenção a nature­za e os fins prosseguidos pela institui­ção envolvida – FÁBRICA DA IGREJA PAROQUIAL DE SANTO ANTÓNIO DE MOSCAVIDE.

A situação é a seguinte: A minha mãe, que tem actualmente 82 anos, nas­ceu no R/C do nº 78 da Rua de Mos­ca­vide, uma casa arrendada (renda antiga), com tectos e soalhos em ma­deira, que nunca foi objecto de qual­quer conservação ao longo do tempo.

Todavia, a minha mãe habitou o re­ferenciado R/C, até há 3 anos atrás, altura em que ocorreu um incêndio no andar de cima. A extinção do incêndio só foi possível com a intervenção dos bom­beiros e, embora o R/C não tenha ardido, o certo é que ficou completa­mente inundado e sem reunir condi­ções mínimas de higiene, segurança e salubridade que permitissem uma vi­vência humana, pelo menos enquanto tudo estava molhado.

Face a este acontecimento, a mi­nha mãe viu-se obrigada a ir viver, tem­porariamente, para os Estados Unidos da América, com a minha irmã, porque eu não tenho condições em Portugal para a ter em minha casa, mercê de gran­des dificuldades e ter uma habita­ção com uma área insuficiente para o meu agregado familiar. A minha mãe também não tem recursos financeiros que lhe permitam custear uma renda actua­lizada.

Porém, a estada nos EUA tem sido bastante penosa, porque é um meio com­pletamente diferente, onde tudo é estranho, havendo muita dificuldade de adaptação que é agravada pela idade.

Não obstante, o senhorio, nada fez até ao momento, pelo que o imóvel se foi degradando cada vez mais e hoje não tem quaisquer condições de habi­ta­bi­li­dade.

Cumpre também informar que an­tes do incêndio diligenciei junto do an­terior senhorio para que fosse feita al­guma conservação ao imóvel e porque havia recibos que estavam em falta. Na altura, fui informado que havia uma en­ti­dade interessada no imóvel pelo que muito provavelmente seria vendido.

Vim a saber, passado algum tempo, que o imóvel foi doado à Fábrica da Igreja Paroquial de Santo António de Mos­cavide (sempre há gente boa !?...)

Porque a vontade de regresso à terra natal por parte da minha mãe é cada vez maior, diligenciei junto do no­vo proprietário, atenta a sua “vocação” de defesa dos mais pobres e desprote­gidos, para que fossem feitas as obras adequadas à restituição das condições mínimas de habitabilidade, ou fosse dis­po­nibilizado um outro espaço com as mesmas características.

Lamentavelmente, a resposta foi ne­gativa, apesar de o pároco José Reis reconhecer, inicialmente, o arrenda­men­to e  também o estado degradado em que se encontra o imóvel. Incom­pre­en­sivelmente, a justificação para a de­clinação das minhas solicitações foi o facto - pasme-se - de ter sido gasto muito dinheiro com a aquisição de um espaço no Parque das Nações.

Ainda fiz uma exposição ao Patriar­cado de Lisboa em Outubro de 2002, e depois novas insistências durante o ano de 2003, solicitando uma interven­ção neste assunto, mas o resultado tem sido, apenas e só, o silêncio.

Recentemente recebi uma comuni­ca­ção do Pároco de Moscavide a soli­citar que a habitação fosse desocupada (todos os haveres da minha mãe per­ma­necem no local), porque querem ex­pandir as suas actividades, alegando que o contrato de arrendamento cadu­cou… Solicitações semelhantes foram feitas a outros idosos que residem em propriedade da mesma entidade.

Face a tudo isto, eu pergunto: On­de está a solidariedade social? O ser humano idoso não é importante, nem tem direitos? Qual é a finalidade da ins­tituição? Só têm recursos financeiros para obras imponentes? (fala-se que vai ser construída numa nova basílica em Fátima que custará mais de 80 mi­lhões de euros) Temos de assistir a tudo isto impávidos e serenos? Estou, de facto, muito indignado!

Peço desculpa pelo tempo que to­mei a V. Exa., mas penso que é um dever de cidadania informar o Presidente de todos os portugueses sobre o funciona­mento de algumas instituições e sobre as atitudes dos seus responsáveis, para que cada vez mais haja um co­nhecimento, tão próximo quanto possí­vel, das nossas realidades.

Agradecendo a atenção dispensa­da e, se possível, uma ajuda neste as­sunto, subscrevo-me com elevada con­si­deração.

De V. Exa. Atentamente

(António Alçada)

ADERIMOS À IDEIA

Gulpilhares (Gaia). Grupo de Cris­tãos: Mário, nós, o Grupo de Gulpi­lhares que se identifica com o teu ideal cristão e fidelidade ao Evangelho, sin­to­ni­zamos na essência com a ideia lan­ça­da pelo Prof. Manuel Sérgio , moti­vo por que estamos a enviar uma con­tribui­ção de 100 euros e compro­me­te­mo-nos, conforme a sua proposta, a fa­zê-lo nos meses de Janeiro – Abril – Julho – Outubro. Para que o Jornal Fra­­ternizar continue vivo por muitos mais anos, contando sempre com a tua colaboração.

Associado ao nosso Grupo, incluí­mos também a comparticipação do ca­sal teu / nosso amigo de Almada.

AINDA GUARDA AS MARCAS…

E-mail. Elísio Carmona : Olá Pe Mário, saúde. Regressado de férias, curtas, nas quais, olhe, nem li nada e, che­gado agora a casa, findo o dia de trabalho na Portucel Tejo, apeteceu-me enviar-lhe, perdoe-me a ousadia, uns respigos de uma coisa que li a pro­pósito de Maria de Lourdes Pinta­sil­go, imolada ingloriamente na sequ­ên­cia da conversa presidencial para que tinha sido convocada. Olhe, para não pecar por defeito, sem saber se­quer se já o leu, anexo o artigo escrito pelo Eduardo Prado Coelho.

Continuo às voltas com o seu (úl­timo) livro. Mas nada surpreendido. Há uns anos atrás, a cantora Sinead O’Con­nor teve a ousadia de rasgar uma fotografia deste papa (a letra é a que merece) na puritana América (também não vejo razão para outro tipo de letra) e foi “crucificada” por isso. No esclare­ci­mento a que se viu obrigada dias de­pois, explicou que “(...) não precisava de recorrer ao corpo de ninguém para mostrar as marcas desses criminosos de que este papa é o chefe”. Tinha, en­tão,10 anos mas ainda guarda as marcas...

O seu livro dá-nos aquilo de que pre­cisamos em termos de conhecimento teológico. Nesse aspecto, o Prof. Ma­nuel Sérgio tem razão sobre o Fraterni­zar. Faz-nos falta. Mas quantos poderão assumir o desafio lançado por ele?

A minha sogra, acometida de doe­nça degenerativa, acha também, como a Alexandrina, que o seu sofrimento é bênção de Deus (de deus). Como não sou religioso, o seu livro, nas minhas mãos, é, no pensar dela, mais um ins­trumento do mafar­rico. Nem querem ouvir, nem ela nem o fundamentalista analfabeto do meu sogro. Quando entrei em casa deles, ainda pensei que estava perante alguma revelação: muita beatice saloia, muito murro no peito,... os filhos secundarizados... Pouco tempo levei a dizer “NÃO, comi­go não contam”. Foi numa visita pascal. A festa juntava a família, muitos, entre irmãos, tios, primos, perfilados à volta da mesa bem posta, cantava-se o “Res­suscitou, ressuscitou”, tomando de­pois o patriarca a cruz nas mãos e dan­do-a a beijar aos presentes. Nesse dia, ele teve o arrojo de ir escolhendo: tu beijas, porque és baptizado, tu não bei­jas, porque não és baptizado. Ar­mou-se em deus e eu devo ter subido pelas paredes, quando o meu filho me perguntou por que ficava de fora.

Bom, mas ao longo dos anos, nas aflições, os primeiros a quem pedem socorro é aos proscritos, também, por sinal, por razões bem mesquinhas: não podem incomodar os filhos empresá­rios, têm a sua vida muito ocupada, ou os altos quadros duma Empresa podem cair do seu pedestal e, então, socor­rem-se dos trabalhadores por conta de outrem, dito doutra maneira, dos “te­sos” que, mesmo com ofensas, aceitam estender a mão a quem nem sempre fez por a merecer. Adiante. Nessa festa, logo no início, até aconteceu uma cena bem engraçada: entrou o padre a as­per­gir o pessoal reunido e o meu filho mais novo, o excluído, perguntou: - Ó pai, é uma varinha mágica?...

No seu livro anterior, “... Deus gosta de Política, não de Religião”, apercebi-me como foi (pareceu-me) es­morecendo em si a esperança suscita­da pelo 1º governo Guterres. Não faço a mesma leitura sobre o Ferro Rodri­gues. Acho que fugiu à luta. O seu ca­mi­nho era o mesmo. Apanhou a boleia da decisão presidencial para se espan­tar. Até porque com este PS, não se vai a lado nenhum. Veja-se a feira rasca que está a ser este prólogo. Mas con­cor­do consigo acerca da insurreição cívica. O problema é como e com quem. Talvez as condições ainda não este­jam maduras...

Bom, isto hoje vai largo. Peço des­culpa. Um abraço.

PERMANENTEMENTE INCONFORMADO

Pontinha. José M Areias: Sou um homem a caminho dos 72 anos, oriun­do duma família pobre e numerosa (é­ra­mos 9 irmãos). Eu e os meus irmãos mal acabávamos de ser desmamados, logo tínhamos que começar a trabalhar para ajudar a angariar o sustento da fa­mília. Os meus pais eram analfabetos. Apenas eu e um outro irmão tivemos o pri­vilégio de frequentar a escola primá­ria, mas só até à 3.ª classe do então ensino primário. Aos meus restantes 7 irmãos não lhes foi dada a possibilidade de aprender a ler. O mesmo não acon­teceu em relação à então chamada dou­trina. Fomos todos obrigados a fazer a chamada “1.ª comunhão” e a chamada “comunhão solene”. Ainda me lembro de ser obrigado a deslocar-me 4 kms descalço para ir à doutrina, onde havia sempre uma beata solteirona que me batia com uma grossa e comprida cana na cabeça, com tal violência que me fa­zia hematomas, a mim e aos meus cole­gas, quando não sabíamos na ponta da língua todas as rezas do catecismo.

Aos 15 anos, fugi da casa dos meus pais, na terra onde nasci, algures num concelho do médio Ribatejo e vim para a grande cidade, Lisboa, onde sempre tenho vivido até aos dias de hoje. Aqui lutei com todas as minhas forças para me libertar de todas as amarras e peias que meus pobres pais, vítimas do lema salazarista/cerejeirista “deus, pátria, fa­mília” me impuseram. Aqui comecei a to­mar consciência – mas só por volta de 1958/60 – de que um humano só é digno desse predicadol se viver de pé, não de joelhos. Foi aqui que aprendi que caridade é o antídoto de solidarie­dade. Foi aqui que aprendi que nada nos é dado, mas tudo tem que ser con­quistado. Foi aqui que aprendi que ante as dificuldades nunca se deve pensar ou dizer “Não sou capaz”, muito menos, cruzar os braços, mas antes se deve lutar. Lutar sempre.

Mas foi aqui também que aprendi que a luta para dar frutos tem que ser organizada e que a união é que faz a força e quanto maior e mais bem orga­ni­zada for a luta melhores serão os re­sul­tados. Foi ainda aqui que descobri que sou um permanentemente inconfor­ma­do, porque os males do planeta que afectam milhões de humanos me afe­ctam também. Não posso ficar indife­rente, quando vejo e ouço todos os dias que famílias e mais famílias engrossam a torrente daqueles a quem é negado um dos mais elementares direitos, o direito ao trabalho, ou seja, é-lhes ne­ga­do o direito de vender o único produ­to de que dispõem, a força do seu corpo e a sua inteligência, para poderem continuar a sobreviver.

É chegada a hora dos/das inconfor­mados/as (porque explorados/as e injustiçados/as deste país e do plane­ta) tomarem consciência da força que têm, perderem o medo (muitos/as já pouco mais têm a perder), se unirem para enfrentar os poderosos que a cada dia se apoderam de toda a rique­za produzida por aqueles/aquelas que desumanamente exploram, dei­xan­do atrás de si um rasto de fome, miséria, doença, cadáveres e a des­truição da própria natureza.

Foi também nesta grande cidade de Lisboa que por volta de 1958, aqu­an­do da candidatura de Humber­to Delgado, comecei a despertar para as questões políticas-sociais e sindi­cais. Foi finalmente nesta grande cida­de que na madrugada de 25 de Abril de 1974 (às 5h30) me juntei aos mili­tares do Regimento de Engenharia 1, sedeado na Pontinha, local onde resi­do desde 1956, para, na rua, com eles, abraçar em liberdade o processo revolucionário que viria a ser inter­rom­pido com o golpe de 25 de No­vem­bro de 1975.

Durante os 10 anos que se se­guiram, dediquei-me de alma e cora­ção ao serviço da Autarquia do con­celho de residência e ao Sindicato que abrangia a minha área profissional. Recusei sempre toda e qualquer mor­do­mia ou majoração pela prestação dessas actividades, para além da mi­nha remuneração profissional. Ocupei a quase totalidade dos meus tempos livres (incluindo parte das férias) ao serviço destas actividades. Só vários problemas de saúde e um forte des­gas­te físico me obrigaram a abran­dar. Mas não parei. Fui contra a minha vontade empurrado para a reforma em 1989. Continuei e continuo a lutar por uma sociedade mais justa e fra­ter­na.

É com enorme preocupação que constato que o discurso dos gover­nantes, para além de não ter qual­quer semelhança com os resultados da prática governativa é um discurso beatífico, bolorento. É um discurso men­tiroso, mas que leva muito boa gente ao convencimento, porque não consegue pensar mais longe e perce­ber que está a ser permanentemente enganada.

É preocupante ver e ouvir, dia após dia, que numerosas famílias fi­cam desempregadas, para já não falar dos muitos milhares que sobrevivem com salários e pensões de miséria, que não chegam para alimentação e medicamentos. A par disto, assiste-se à espécie de homilia no Convento do Beato, promovida por denominados “gestores de nova geração” que de nova só tem o nome, pois as ideias são bem velhas, são as dos interesses do capi­talismo selvagem, ou não fossem todos eles gestores e quejandos de grandes grupos financeiros e outros.

Mas o que dói mais é ver que en­quanto a vergonhosa mancha de pobre­za que (como o azeite em água) alastra por todo o lado, aparecem como cogu­me­los instituições privadas prontas a fazer caridade aos pobres fabricados pelos ricos. Ironia do destino ou não, nal­gumas dessas instituições acabam por ir parar trabalhadores/as em regime de voluntariado que ficaram sem o seu posto de trabalho remunerado. Não sou contra a existência de instituições de solidariedade na sociedade civil, bem pelo contrário, mas quando os ricos ne­gam o direito ao trabalho e ao salário justo e estão disponíveis para dar a es­mo­la ao pobre, por meio de instituições de caridade e serem motivo de notícia em alguns órgãos de comunicação, é de bradar aos céus. Pois aos pobres não basta dar-lhes pão, o que importa é extinguir a fome e eliminar as suas origens.

Mais lamentável ainda é que a Igre­ja católica, ao invés de evangelizar os seus crentes no sentido de, por forma adulta e responsável, reivindicarem jus­ti­ça social, difunde a atitude mental do capitalismo, ou seja, os ricos continuam a acumular riqueza, marcando lugar no grupo dos poderosos e prometendo aos pobres o paraíso no céu.

É no seguimento deste pequeno de­sabafo que se enquadra a leitura do Fraternizar n.º 152, bem como a mensa­gem que com ele nos foi enviada. Julgo que não estou em dívida com a minha assinatura, mas se estou foi involun­ta­riamente. Preocupa-me o SOS chaman­do a atenção para o facto de não haver dinheiro para financiar a publicação e o envio do Jornal. É lamentável e de certo modo revelam alguma irresponsa­bi­lidade as pessoas que de forma conti­nuada recebem o Jornal e o lêem e não pagam a sua assinatura, pois não sendo ninguém obrigado a consumir o que não quer, não é lícito não pagar o que con­so­me. Deixo um apelo a todos os que recebem o Fraternizar, que o leiam e me­ditem sobre a sua mensagem e a associem aos sinais dos tempos que correm; aos que gostam de o ler e que querem continuar a lê-lo, que façam o favor de actualizarem a sua assinatura. O Jornal Fraternizar é necessário.

DEMOCRACIA DE FORMATO REDUZIDO

Coimbra. José J Lucas: Por um descuido indesculpável, não enviei em devido tempo a minha contribuição para o Jornal Fraternizar. Envio este cheque no valor de… manifestando o meu desejo de que continue a viver com a necessária saúde e a incomodar os verdadeiros causadores das doen­ças mais graves da nossa sociedade. Solidarizo-me com o vosso lamento do último número e respondo, dentro das minhas possibilidades, ao apelo que lançam. Considero, aliás, que estas fra­gilidades são sinais dum tempo de conformismo mal digerido e de reco­nhe­cimento duma grande impotência perante todos os poderes estabeleci­dos que da maneira mais descarada nos manietam e anestesiam. Por isso o sofrimento físico e moral em muitos casos intensíssimo, não se transforma em revolta, pelo menos, uma revolta consequente, porque verificamos – assim nos fazem crer – que as saídas estão todas bloqueadas.

A democracia de formato reduzido em que vivemos circunscreve-se às cam­panhas eleitorais, oficias e oficio­sas, após as quais se rasgam os com­pro­missos públicos para prevalecerem os realizados em privado, deixando-se a conduta moral e o sentido de res­ponsabilidade escondidos no porta-bagagens. A ética cede então o lugar à retórica da “ordem e da autoridade”, que disfarça (mal…) a teia de interes­ses que se desenvolve a partir das ins­tituições financeiras – bancos, segu­radoras, sociedades imobiliárias, bol­sas e seus actores, compradores de dívidas mal paradas e outros negoci­antes.

Contudo, se a vida não se reduz à contemplação e à lamentação, é ne­cessário que se restabeleça a força que nos faz gritar e denunciar os dis­cursos hipócritas de todos os “Bagão Félix” da nossa praça que jogam e traficam com as vidas de tantos seus concidadãos em situações dramáticas, apresentando-se com ar seráfico a criticar os que recebem reformas de 100 mil contos (?!). Estará a falar de quem? Não é o sadismo mais cruel que temos diante de nós? E tudo invo­cando Deus e os valores do Cristia­nismo… A História vai-se repetindo, no pior dos seus registos. Que vendi­lhões!... Que “sepulcros caiados”!... Os meus votos de um bom trabalho e que encontrem a maior coragem para prosseguirem o projecto “Fraternizar”.

ÓRGÃO DE VERDADE E VIDA

Almada. Carlos Leal : Com os votos das maiores felicidades e convicto que o Fraternizar terá de continuar, desde que todos o queiramos, estou a enviar o cheque de… que, tenho a certeza, sendo apenas uma gota relativamente às necessidades, não deixa de ser uma manifestação de alegria pela subsistên­cia de tão importante órgão de verdade e vida. Apresento os mais respeitosos cumprimentos e com o vosso ilustre di­re­ctor mantenho contacto por outras vias, sempre que tal considero perti­nente.

GOSTARIA QUE FOSSE LIDO AQUI

Açores. M.ª Eduarda: Força e co­ragem para prosseguir! O Jornal Fra­ternizar vale a pena! Bem gostaria que ele fosse lido aqui na Ilha do Faial. Co­mo isto está atrasado! Que poder têm as forças negativas, inquisidoras, nas pessoas! Mas não cruzamos ao braços. Tem-se trabalhado bastante no campo cultural. Desejo-te a continua­ção do Jornal, embora por vezes sejam necessárias as paragens para depois ver mais claro. Um abraço fraterno da amiga. Segue junto cheque de…

FRATERNIZAR PARA O GAIATO

Porto. Manuel Pinheiro: Antes de mais, os meus sinceros parabéns por mais um livro, “Eu, porém digo-vos”. Já o comprei e estou a devorá-lo.

Gostaria que enviasse o Fraternizar ao Gaiato, Paço de Sousa. Vou enviar um cheque que o paga. É uma obra que muito ajudo e admiro. Embora ain­da lá rezem o terço. Mas o Padre Ba­ptis­ta foi chamado a tribunal, denuncia­do por uma assistente social, por dis­cordar de uma situação de um defici­ente e o juiz chamou-lhe “vilão”. Ele disse ao magistrado que o voltasse a notificar e que iria acompanhado de um advogado. Fonte idónea que me contou disse que dois desembargado­res vieram de Lisboa para sanar o as­sunto. O Padre Baptista é quem lidera o Calvário em Beire-Paredes. Sei que é um homem muito bom, porque se en­trega 100% aos deficientes profundos que a família rejeita e o hospital não aceita! Também era bom, ao menos numa só vez, enviar para o referido Padre um Jornal Fraternizar. Também o Padre Telmo, em Malange, escreveu no Gaiato: “Não há nenhuma senhora a cuidar dos rapazes. Falta-lhes um sor­riso, um carinho de mãe. Não damos atenção ao «segue-me». Construímos castelos que se desmoronam. Vivemos de mãos vazias. Em Portugal, há tantas mães a rezar nas igrejas. Não haverá uma que ouça o Mestre e venha limpar o rabinho aos meninos? Há novas cate­drais sumptuosas, apontando o céu. Mas que céu? O das nuvens somente”.

Segue um cheque de… sendo… para o Fraternizar e… para o Barracão de Cultura. Padre Mário é diferente, inteligente, desafiador, de muito valor e estima, porque ensina com o exemplo a santa doutrina, não vivida em Israel nem na Palestina. Jesus diz-nos quem pratica o bem ressuscita para a vida eterna. E o poeta diz: quem não faz o bem é muito palerma. “Jerusalém, Jeru­sa­lém, que matas os profetas…” Um abraço.

FIQUEI INCOMODADO

Guimarães. Manuel Reis: Segue junto um cheque para ajudar a pagar esta edição de Julho/Setembro de 2004 do Jornal Fraternizar. Li a tua Nota na p. 9 e fiquei incomodado com o aconte­ci­mento. Vê se me podes mandar para Guimarães um exemplar deste Frater­nizar, para eu enviar para o Brasil (Grupo Granja). Já lá têm o teu livro. E querem agora o Fraternizar.

TENHO GUARDADO TODOS OS EXEMPLARES

Porto. António Duarte: Com a lei­tura quase total do seu Jornal, tendo guardado todos os exemplares desde que sou assinante para consulta, tenho aprendido alguma coisa. Espero não termine a sua publicação e sim sinta for­ças e meios para continuar o seu tra­balho com o fim de dar o conhecimento aos que procuram a paz, a harmonia e o querer servir. É certo que uns ficam escandalizados, outros confundidos, uns tantos alertados, muitos apoiantes, e há também os curiosos. Eu não fico baralhado nem perplexo com esta leitu­ra e algum dos seus livros, fora do co­mum, porque tenho já algumas raízes bem tratadas pelo meu especializado jardineiro e sinto satisfação num convite apostólico que me diz: “Examinai tudo e guardai o que é bom.”

“QUEM O INIMIGO POUPA…”

E-mail. Fernando Luís (Brasil):

Devido a problemas de rivalidade no trabalho, um funcionário de outro departamento tentou prejudicar meu assistente, um jovem advogado corre­cto, estudioso e leal. A atitude dessa pessoa (pretendendo arrasar aquele que passou a considerar como desafe­cto) me fez lembrar do antigo provérbio “Quem o inimigo poupa, nas mãos lhe morre”. Procurei na Internet alguma coi­sa que pudesse me ajudar preparar um “sermão” para apaziguar os ânimos e tentar mostrar que não é destruindo aqueles que discordam de nossas ideias que seremos bem sucedidos no trabalho e na vida. Bem, essa é uma outra história. O motivo que me leva a enviar esta mensagem electrónica foi o fato de haver encontrado uma óptima inspiração no texto com esse mesmo tí­tulo, de sua autoria, inte­grado no "Diá­rio - Um olhar sobre a Igreja e a socie­dade feito de humor e amor", do dia 4 Abril 2001. É conforta­dor saber que ain­da existem pessoas lúcidas, coeren­tes e com coragem para escrever aqui­lo que pensam. Parabéns!

“A IGREJA CATÓLICA E O CORPO”

Faro. António Rocha:  Folheando o vosso jornal, deparei com uma local “A Igreja católica e o corpo”, em que se afirmava que “não faltou quem se dirigisse ao Jornal Fraternizar para que tentasse reproduzir a comunicação” que o Pe. Anselmo Borges tinha produ­zido sobre o tema. Por esse interesse tão acentuado, por se tratar dum tema de “fronteira” e, sobretudo, pela “enver­ga­dura” do “Teólogo”, género “topo de gama” já bem conhecido doutras locais de Fraternizar, por tudo isto, dizia, tam­bém eu fiquei interessado na leitura.

Ora, deverei dizer que “a monta­nha pariu um rato”. Se tratar teológica e eclesialmente o tema é isto, “eu vou ali e já venho”. De facto, a “badalada conferência” parte dum inquérito, tipo, tas a ver, como se faz aos miúdos da 4.ª classe, mas feito a universitários, com umas perguntas de “chacha” para as respostas que interessam. Daí se fazem uns comentários e se tiram umas conclusões que, ao fim e ao cabo, só servem para ver como até os “teólogos topo de gama” mais não fazem do que cultivar uma demagogia que só entris­tece quem desejaria ver os temas sé­rios tratados com seriedade, profundi­dade, elevação e integridade. Será que do que está escrito as pessoas ficaram mesmo a gostar??? Duvido!!!

P.S. Agradeço dê conhecimento do meu sentir ao destinatário.

HÁ ATRASOS SEM JUSTIFICAÇÃO

Leiria. Maria Odete: Junto envio um cheque de… para a assinatura do Fraternizar. Há atrasos sem justifica­ção. Obrigada pela sua forma de estar no Evangelho.

TRIBUNA DA TROCA DE OPINIÕES

Brandoa. Manuel Natividade: Que a paz esteja convosco e com todas, todos. De facto sou uma nulidade em observar prazos decentes para contri­buir, como faço desde que passei a receber o Fraternizar. De veras nubla­do fiquei face à ameaça de não tornar a receber a vossa/nossa publicação. Depois foi o anúncio de que não se rea­lizaria o encontro  [de leitores] em Lisboa e eu e minha companheira de quase meio século não temos “po-pó” para ir aí ao Norte. Em Lisboa, ou aqui na zona da Amadora e arrabaldes não conhecemos ninguém com cara de or­ga­nizado, em quer que seja, pois até os organismos de progressistas estão em maré vazante; bem, não é de políti­ca organizada que eu falava, mas de cristãos de base… Não se fez movi­mento, talvez por centralismo a mais. Tenho a dizer que não navego na net, como operário que maneja a geometria e aritmética à mão, com 70 anos é tarde e, de resto, não me atrai. Prefiro outras formas de contacto e divulgação.

Envio … euros para cumprir a mi­nha contribuição. Acho que não me devo repetir, ao achar a V/ obra de mé­rito, embora como neo-pagão, neo-cristão, neo-cátaro, adepto da Grande Mãe, não concorde com a visão paulista que emana da vossa análise jesuína. Sou pelo Mestre da Galileia mesmo enquanto beatitude utópica digna de ser tentada, aceito a ideia sublime da reencarnação. Não acredito em teólo­gos, ou acredito menos que em certos mestres arcanos, maçons, búdicos, etc, etc. Mas acho que a instituição que teve a lata de santificar Isabel de Aragão, de maltratar e ofender Maria Magdale­na, de outros tantos crimes, ao apode­rar-se dos cultos de nossos antepas­sa­dos, não rendeu culto à Deusa, não, não, tornou uma farsa aquilo que é sagrado e que nos está nos genes…

Nunca fui a Fátima, já fui à Ladeira algumas vezes, há uns anos atrás, co­mo observador e, digamos, para beber da espiritualidade da ortodoxia, senti que o local tinha vibrações telúricas e fui até testemunha de um facto insólito com minha esposa e meu irmão, su­cedido com a viatura por este con­duzida, mas isso não é importante, o importante é analisar que o fenómeno de massas vem de dentro de cada ser, mau grado o que dizem e fazem os fa­riseus, os papas, os reitores, os neo-fachos dos governos. Aí acho eu que o amigo exagera, ou não leva em conta que é com este Povo que o rodeia que nós nos movemos, amamos, rejeitamos.

Eu tenho para mim que a falência da “grande revolução” foi devida a ten­tar-se extirpar a “alma russa”. Passados os anos da paixão, veio a desilusão, o dia igual a outro e se lermos Tolstoi e outros grandes dessa época, vemos que havia algo de grande naquele mis­ticismo, afinal foi um ex-seminarista, alguns judeus marxizados, outros posi­ti­vistas irredentistas que não viram a História, afinal quem venceu?

Será que ser-se crente é sinónimo de reaccionário? Será que ser-se polí­cia do pensamento, psique, alma do no­sso próximo é progressismo? Então porque não abrir de uma forma fraterna, sem demagogias nem tabus a tribuna da troca de opiniões, sem o labéu do “imprimatur”? Não é de forma alguma uma crítica pela negativa, apenas cons­tato um facto em relação a que as pes­soas só através de uma net ou de uma publicação trimestral em vias de fechar (longe vá o agoiro…), sem se encontra­rem, auto-educarem, criando laços e abrindo caminhos, e isso queiramos ou não, não pode ser obra de um “predesti­nado”, por muito mérito e dons de que seja imbuído ou revestido.

Fora disso, nada fará mossa no baluarte vaticanal, nem reduzirá o Bispo de Roma à sua condição regional, se acaso nele alguém votar de forma de­mo­crática, esse “baluarte” cairá por acção da erosão e não pela luta e ac­ção dos filhos de Deus Mãe e Pai, o que é lamentável. Com um abraço sincero.

P.S. Isabel de Aragão era oriunda de uma família dizimada pelos papistas e o reiseco francês, grande mulher, in­trodutora do culto feminino do Espírito Santo em terras lusas.

PEDRADA NO CHARCO

Lisboa. Flávio Vara: Acabo de receber o Jornal Fraternizar que lhe tinha solicitado telefonicamente. Obri­gado pela presteza em satisfazer o meu pedido. Junto segue cheque para pa­ga­mento da minha assinatura. Tanto o Jornal, como os seus livros (quatro dos quais já li) são uma pedrada no charco do nosso catolicismo institucional. Con­tinue a combater o bom combate. O meu abraço sororal.

P.S. Permita-me apontar-lhe uma pequena gralha para corrigir em futuras edições: a palavra jesuânico, bem como joânico, devem grafar-se assim, com acento circunflexo, porque a vogal é fe­chada como em palavras seme­lhantes: messiânico, adâmico, etc

FICAMOS A DORMIR ATÉ À RESSURREIÇÃO?

E-mail. Lena Gonçalves: Tenho lido alguns livros seus, vejo que é muito polémico, e es­tou de acordo consigo em muita coisa. Contudo gostava que me esclarecesse do seu ponto de vista sobre a vida após a morte física. Como somos criaturas eternas “Almas” criadas por Deus para onde vamos quando ter­minamos a nossa vida terrena? Fica­mos a dormir até à ressurreição? Expli­que-me o que é para si a continuação da vida espiritual, e se quando morre­mos somos levados à presença de Deus ou seus representantes Divinos para sermos julgados?

   Todas estas perguntas e outras mais tenho feito na Igreja católica, pois sou católica praticante e a resposta é sempre a mesma “Mistérios de Deus”. Se Deus nos deu inteligência e o livre arbítrio, acho que é para o ser humano evoluir, ou então ainda estávamos no tempo da inquisição. Obrigada por me dar um pouco do seu tempo e se puder dar-me estas respostas eu agradeço-lhe. Muita paz e um grande abraço.

N. D.

Querida Lena: Agradeço-lhe o e-mail. Comunique sempre que quiser. Responderei logo que me seja possível.

Que lhe hei-de dizer, de forma tele­gráfica, sobre o assunto, neste sim­ples e-mail? Eis: A Deus nunca nin­guém o viu. Nem ouviu em directo. O que sabemos de Deus, sabemo-lo por Jesus de Nazaré, o Cristo. Ora, Jesus nunca colocou a questão da vida depois da morte como questão prioritária. Com o que ele mais se preocupou foi com a vida aqui e agora, enquanto estamos na História. Não se preocupou com a vida eterna, mas com a vida eféme­ra (histórica). Da vida depois da morte, ninguém sabe nada. O que possamos dizer são conjecturas, imaginação. Nun­ca alguém veio de lá comunicar-nos nada. Nem Jesus! O que sabemos é da vida aqui e agora. E é nesta que havemos de apostar tudo até ao fim. Foi o que fez Jesus. Apostou tudo, toda a sua vida, pela vida. E fê-lo de forma polémica, porque não deixou de de­nun­ciar os sistemas anti-Deus e anti-Humanidade que estão aí organizados para destruir a vida, quando Deus, nos­sa Mãe/nossoPai, é o Deus criador de vida. Em consequência, Jesus acabou por perder/dar a própria vida pela vida. É este sublime exemplo que nos deixou para todo o sempre.

A Lena está preocupada com a vida eterna? Então aposte tudo, toda a sua capacidade, na promoção da vida efé­mera, sua e dos outros, nomeadamente, daquelas pessoas que encontra aí mais caídas, desprezadas, roubadas, perdi­das, humilhadas, empobrecidas, des­pre­za­das, meio-mortas. Se o fizer, dá mostras de crer na vida. E, ao morrer, só pode ser para viver, mais e sempre. O rio, quando encontra o mar, atinge o máximo da sua realização histórica. Nós, quando morremos, mergulhamos no Deus da Vida e essa é a nossa má­xi­ma realização pessoal.

Como é esse encontro? Como é esse viver nosso no Viver de Deus? Não sabemos, nem temos que nos preocu­par. Com o que temos que nos preocu­par, a exemplo de Jesus, é com quem está aí despojado, roubado, meio mor­to. Aposte tudo, toda a sua vida, na promoção da vida e viverá. Porque Deus é o Deus de vivos, não de mortos.

Tenho consciência de que lhe es­tou a dizer uma palavra difícil de rea­lizar. Mas quem disse que viver à ser humano, à mulher, à homem é coisa fácil? Ponha os seus olhos em Jesus de Nazaré e siga-lhe as pisadas, hoje e aqui. E viverá para sempre.

Vamos ser julgados por Deus? Per­ca todo o medo de Deus. De Deus só pode esperar a salvação. Como o pai do filho pródigo, Deus vive de braços abertos para nos acolher, nos libertar, nos salvar, nos reabilitar. O encontro de­finitivo com Deus é uma festa. Fica­remos, finalmente, seres à sua imagem e semelhança. Filhas, filhos no Filho predilecto de Deus que é Jesus, o Cris­to.

Veja então como haveremos de viver estes dias, estes anos que nos restam de vida na História, até ao gran­de encontro, à grande festa do encon­tro com Deus criador de vida.

Seja, pois, mulher militante. Pela promoção e desenvolvimento da vida. Viva e faça viver a muitas, muitos. E o resto virá por acréscimo. Um beijo.


Porfírio Borges (Porto)

Deus criou-nos livres?

Deus criou-nos livres? Por mim a­cre­dito que o sou; posso cumprir os man­damentos ou não, ser bom ou mau ci­dadão, trabalhar por um mundo me­lhor ou deixar que cada um trate de si.

Deus deu-nos a lei (os Evan­ge­lhos), mas não pôs nenhum polícia junto de nós para nos obrigar a cumprir.

No entanto, se não nos limita a li­berdade, é uma verdade que não deixa de constantemente nos chamar, sem­pre na esperança de uma resposta po­sitiva.

Por vezes, quando fingimos não O ouvir, Ele usa métodos mais eficientes. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com o S. Paulo. Para saber as razões porque este o perseguia, nos cristãos, atirou-o abaixo do cavalo e cegou-o.

Depois disto o S. Paulo, pode­ria considerar-se livre? Não foi impedi­do de forma violenta de continuar a per­seguir os cristãos?

Assim parece, mas a decisão final, foi a sua, tomada depois de ouvir Ana­nias que, enviado por Deus o foi visitar.

Só quando se apercebeu que este acontecimento foi um sinal de chama­mento, talvez um pouco violento, o tor­nou livre sem qualquer imposição e, por isso, aderiu a Cristo incondicio­nal­mente.

Tudo isto vem a propósito do se­guinte: Num dos domingos de verão, fui à missa numa capela, junto ao mar. Por coincidência, e grande espanto, encontro um casal, meu vizinho na cidade, que se dirige igualmente para a mesma capela.

O meu espanto fundamenta-se, pelo facto de nunca ter visto o marido numa igreja, mas logo se me tornou compreensivo, vê-lo exactamente ago­ra, porque sabe que se debate com uma doença grave.

Este, de facto não é um caso iné­dito, porque há muitos outros que, só quando se vêem apoquentados por do­en­ças ou problemas graves é que se lembram de Deus.

Esta verdade faz-me pensar. Não será esta uma outra forma, também violenta, de Deus nos chamar? Não é quando o mundo nos começa a escapar que nos lembramos d’Ele?

Reafirmo que, apesar das aparên­cias, continuo a acreditar que, perante Deus, sou livre.

No caso de S. Paulo, julgo que este episódio não foi para o obrigar a seguir Jesus, mas um sinal que lhe deu a opor­tunidade para tomar conhecimento da Mensagem que, posteriormente, lhe foi transmitida por Ananias.

Por outro lado, no que se refere à saúde, só quando esta se perde é que tomamos consciência de que não so­mos auto-suficientes e, que há um ser superior, sempre disposto a acolher-nos nas nossas aflições.

Deus, porque quer mesmo a nossa salvação, embora respeitando a nossa liberdade, vai-nos chamando pelos si­nais que nos envia e que poderemos descobrir, num amigo, numa conversa, num abraço, num gesto de solidarie­dade e igualmente nas horas difíceis, sobretudo nas da doença.


Frei Betto (Brasil)

Sexo & Afecto

Neste texto, Frei Betto traz até nós a realidade brasileira. Por isso, é importante lê-lo com o pensamento na nossa realidade portuguesa. Ninguém deixe de o fazer. E, depois, ousemos agir para mudar as coisas. Não basta compreender a realidade. É urgente transformá-la.

A pesquisa da Unesco sobre a sexualidade da juventude brasileira, divulgada este ano, é no mínimo preo­cupante. Como ressaltou Jorge Wer­thein, representante do organismo da ONU no Brasil, há aspectos positivos, como o repúdio à promiscuidade e a busca de mais conhecimento sobre a questão. Os jovens brasileiros tendem a iniciar a vida sexual mais cedo (entre 11 e 14 anos) e consideram não-im­por­tante a virgindade. Mas nem sempre se protegem contra as DST (doenças sexualmente transmissíveis) e a Aids (= sida), e tendem a discriminar os ho­mossexuais.

Ano passado, acompanhei uma pes­quisa realizada no Ceará. Indicava o aumento da gravidez precoce e a diminuição dos casos de aborto. As me­ninas, com certeza induzidas por exem­plos televisivos, preferem assumir a “pro­dução independente”, ainda que isso implique riscos de abandono da es­cola, ingresso na prostituição e mais criança na rua. Na pesquisa da Unesco, 14,7% das entrevistadas admitiram ter engravidado, pela primeira vez, entre 10 e 14 anos.

A Unicef constata que a educação escolar de uma menina vale, na Amé­rica Latina, em termos de efeitos soci­ais, pela educação de cinco meninos. Quanto mais escolaridade da mãe, me­nor o índice de natalidade e maior o pe­ríodo de vida do filho. São as mães que assumem, sempre mais, a chefia da família, e também as principais trans­mis­soras de valores aos filhos.

O que me espanta é que os jovens se queixem de que têm poucas fontes de conhecimento da sexualidade. Só nas últimas décadas as escolas come­çaram a introduzir o tema na salas de aulas, assim mesmo com ênfase na higiene corporal, tendo em vista as DST. A família, aos poucos, começa a derrubar tabus, excepto nas classes po­pulares, onde a falta de conhecimento obriga os jovens a aprenderem “na rua”, como se dizia na minha geração. Hoje, “aprende-se” na TV. Primeiro, com a exacerbação do voyeurismo, tipo Big Brother. É o bordel despejado, via ele­ctrónica, no quarto das crianças ou na sala da casa. Sem que famílias, escolas e igrejas cuidem da edu­ca­ção do olhar de crianças e jo­vens.

Na minha adolescência, em Belo Horizonte, havia cine-clubes, onde apren­díamos, nos debates após a exi­bição dos filmes, a distinguir obras de arte do mero entretenimento. Por que as escolas não exibem vídeos clipes publicitários, trechos de filmes e tele­novelas, programas humorísticos? Não há melhor caminho para despertar a consciência crítica, o discernimento, que debater em grupo as mensagens implícitas quanto, por exemplo, à digni­dade da mulher num quadro de humor ou o fetiche do carro numa peça publi­citária.

Os animais têm uma sexualidade atá­vica, presos a seus ciclos libi­dinosos. Talvez essa herança instintiva, acrescida de tabus religiosos, nos im­peça de falar da sexualidade com a mesma liberdade com que tratamos a geografia e a história do nosso país. E quanto menos se fala, mais bobagem se faz. O melhor seria a TV, com o seu poder de irradiação, entrar em detalhes a respeito de mens­trua­ção e masturbação, homosse­xua­lismo e machismo, castidade e promiscuidade. Mas nem sempre interessa tratar esses temas às claras. O tabu reforça o mistério, que excita a imaginação, que alimenta o voyeu­ris­mo, que atrai milhares de telespecta­dores à exibição de produtos que impri­mem à sexualidade o sabor libidinoso da pornografia. Ao contrário da reali­dade, a fantasia não conhece limites… E dá-lhe delegacias de mulheres, e a proliferação de assédios e estupros, e o preconceito aos homossexuais.

Suponho que 99% da humanidade case algum dia. Mas tenho certeza de que a grande maioria é obrigada a im­pro­visar nessa opção tão importante. Pois se ainda estamos nos primórdios da educação sexual, falta muito para atingirmos a idade da pedra da edu­cação afectiva. Que eu saiba, uma úni­ca instituição se dedica a preparar noi­vos para o casamento - a Igreja. Fora disso, não há nenhuma didáctica que sistematize, para proveito alheio, a con­vivência conjugal, a educação dos filhos, os valores da família, as fases da sexualidade do casal, o modo de dialogar com os filhos sobre vida sexual e afectiva, o divórcio e o recasamento, o universo da homossexualidade etc. Em consequência, cada um que faça o próprio caminho, à base do improviso, repetindo erros que po­de­riam ser evitados se houvesse, em nossa sociedade, espaços e recursos de educação para o amor.

Outro dia deparei-me, num hospital público, com uma menina de 13 anos, toda machucada porque havia sido espancada pela mãe. Estava grávida. Isso a mãe aceitou. Mas ficou revoltada quando a menina declarou não saber quem é o pai. Pois havia participado da dança do “trenzinho” num baile funk: rapazes sentados, a braguilha aberta, as garotas sem calcinha pulando de colo em colo…

O que me chocou não foi tanto o ritual orgíaco. Mas a carência, o vazio, a subjectividade inconsútil, a busca de­senfreada de afecto reduzida àquela espécie de “roleta russa”. Não se trata de imoralidade, e sim de amoralidade, como entre os répteis. Porque estamos começando a ter vergonha de assumir valores, cultivar o espírito e fazer proje­ctos. Nos escombros da modernidade, tudo é aqui-e-agora, my brother. E quando o desemprego, o baixo nível da educação, a violência, a desagre­ga­ção familiar, nos fecham as cortinas do horizonte da felicidade, o jeito é ape­lar para o prazer imediato, epidér­mico, já que a vida se reduz a um jogo de sobrevivência e a morte pode estar nos espreitando na próxima esquina.


Manuel Sérgio (Lisboa)

Por que será?

Por que será que tantos dos anti-fascistas (não são todos, evidentemen­te), com o emblema de um partido dito de esquerda na lapela e que debitam sonorosas frases sobre os tempos omi­nosos que passaram nas prisões da Pide, vivem hoje, com majestade e so­branceria, uma vida de burgueses endinheirados?

Por que será que muitos deles se deixam fascinar pelo convívio com os poderosos, aproveitando as benesses que dessa camaradagem resultam?

Por que será que essa gente, que não cessa de mitificar os grandes moti­vos do seu passado anti-salazarista, se afasta dos pobres, dos deserdados, dos excluídos e finge lutar por eles tão-só com discursos elegantes, feitos de pro­pósito para as primeiras páginas dos jornais?

Por que será que essa “gente de esquerda”, quando é Poder, assume “po­líticas de direita”?

Por que será que há, hoje, uma clas­se dominante, no nosso país, onde não se descortinam políticos, como o Padre Mário de Oliveira, ou o Prof. Ma­nuel Reis e uns poucos mais?

Por que será que, há muitos anos já, pertencem à classe dominante as mesmas pessoas (umas de direita, ou­tras de esquerda), as quais não se sen­tem, nos seus habituais conciliábulos, ideologicamente distantes, alegando, com muita hipocrisia à mistura, que em primeiro está o País e só depois os partidos?

Será que é verdade que “a ideolo­gia dominante é a ideologia da classe dominante” e, portanto, sejam eles do PSD ou do PS, visam os mesmos objecti­vos e têm os mesmos métodos econó­mi­co-sociais?

Por que será que o Padre Mário de Oliveira que também lutou contra a ditadura, foi preso e julgado em Tribu­nal Plenário, nada beneficiou, moneta­ria­mente falando, com o 25 de Abril?

Por que será que muitos dos seus melhores amigos se contam entre os que frontalmente recusam acrobáticas inclinações de espinha, diante do Ter e do Poder?

Por que será que é tão difícil reu­nir cem leitores do jornal Fraternizar que, de três em três meses, remetam, cada um deles, cem euros ao Padre Mário, para que este jornal, imprescin­dível e único, possa singrar e superar o rancor de muitos que não comungam connosco?

Por que será que o Ministério da Cultura, ou mesmo uma autarquia, não encorajam e apoiam o Fraternizar, dado que ele deve integrar, pelo seu espí­rito inovador e o bem fundado das suas teorias (que não são dogmáticas, como tudo o que é científico), uma cul­tu­ra para o desenvolvimento?

Por que será que só ele corporiza, abertamente, na nossa Comunicação Social, as mesmas palavras de Cristo, diante da mulher adúltera ou da samaritana?

Por que será que ele, mais do que ninguém, lembra aos financeiros e aos políticos as palavras de Jesus: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” e “aquele que não nascer de novo não verá o reino de Deus”?

Por que será que só ele recorda aos católicos, designadamente aos padres e aos bispos, o doutrinamento que Jesus nos ministrou: “Se trouxeres a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que teu irmão está sentido contigo, deixa diante do altar a tua oferta e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão”?

Por que será que, em Portugal, só o jornal Fraternizar nos ensina que, em Jesus de Nazaré, toda a sua mensagem se faz política e, assim, passou a fazer sentido a exclamação imortal de Filipe, gritando a Natanael. “Achámos Aquele de quem Moisés escreveu e os profetas anunciaram”?

Por que será que só ele, em língua portuguesa, nos noticia o que de mais actual se encontra, na teologia hodier­na?

Por que será que o Fraternizar, pela sua pujança intelectual, pela sua independência, é um jornal necessário, urgentemente necessário, numa crise de valores, como a que hoje consome a maioria das pessoas?

Por que será que só, de três em três meses, e não todos os meses, este jornal pode publicar-se? Por que será? Porque o dirige o Padre Mário de Oli­veira que produz alergias incontrolá­veis a todos os mortos-em-pé, a todos os fantasmas-do-passado, a todos os instalados? Porque nele escrevem, além do Padre Mário, o Frei Betto, o Leonar­do Boff, o Manuel Reis, o Anselmo Bor­ges e alguns mais que continuam, apai­xo­nadamente, agarrados a princí­pios e ideais, talvez, aqui e além, pue­ril e sentimentalmente, mas nem por isso menos convictos e operantes?

Mas não foi, para jornais como o Fraternizar e para homens como os que venho de referir, que também se fez o 25 de Abril, já que o “espírito de Abril” neles vivia, muito antes da Revolução dos Cravos? E por que será que a clas­se dominante parece deitar-lhes um olhar lateral e suspeitoso? Por que será? Por que será?


Documento

Espiritualidade do seguimento de Jesus

                       Por JON SOBRINO

Para o teólogo salvadorenho, Jon Sobrino, a espiritualidade do seguimento de Jesus é inseparável da opção pelos pobres. Sem esta opção, levada às últimas consequências - é martirial e duélica, pois não se fica pela simples "caridadezinha" ou assistencialismo, mas tem que chegar a enfrentar profética e politicamente as causas e os fabricadores da pobreza em massa - não há espiritualidade cristã jesuânica.

O texto que aqui se apresenta é um resumo da conferência que ele escreveu e enviou para ser lida no XXIV Congresso de Teologia de Madrid.

Pediram-me umas reflexões sobre a espiritualidade do seguimento de Je­sus, desde a América Latina. Vou fazê-lo a partir da opção pelos pobres, já que as duas dimensões são insepará­veis e no cristianismo latino-­ame­ricano vivem-se de maneira indivisa.

Vou con­centrar-me em dois pontos: o que a Igreja deve fazer a favor dos po­bres - costuma ser a perspectiva ha­bitual - e o que os pobres podem fazer a favor da Igreja e, mais radicalmente, da so­ciedade - uma perspectiva quase sem­pre ausente nas nossas preocupa­ções.

Entendo que a Igreja tem que fazer uma opção não só de "dar" aos pobres, mas também tem que fazer uma opção de "receber" dos pobres. E se a primei­ra opção ainda não é evidente, a se­gun­da é tudo menos evidente.

Entendida na sua dupla direcção, a opção pelos pobres converte-se num meio para avançarmos rumo a uma verdadeira globalização humana inclu­ente.

Pelo que respeita à Igreja, ela não só estará a fazer um bem concreto - "oferecer ajuda a alguém" - como está a ajudar a configurar uma totalidade humana utópica, a que chamamos "so­lidariedade", e que consiste em Igreja e pobres "carregarem-se" reciproca­men­te.

Nos pobres, irrompe o mistério da realidade e, como a teologia da liberta­ção o repetiu, neles irrompe a realidade do próprio Deus. Optar pelos pobres é expressão da nossa deificação e da nossa eucaristia existencial por um Deus es­can­dalosamente presente ne­les.

Optar pelos pobres não é apenas algo custoso e arriscado que pode levar ao martírio; é também algo que dá sen­tido e júbilo à existência.

Não se pode dar por suposto que "a opção pelos pobres" é coisa adqui­rida nas Igrejas e nas teologias.  Pelo contrário, ela continua a ser tudo me­nos evidente, pois participa do mistério primigénio cristão e está sempre em risco de ser diluída e manipulada.

Histo­ricamente, nos pobres "irrom­peu a realidade". Teologalmente, nos pobres "irrompeu Deus". Por isso, nos pobres irrompeu o mistério. É sabido que nenhum mistério é fácil de aceitar, pelo que tem de imanipulável. Menos ainda é fácil aceitar, se o mistério se faz presente nos pobres. Aí, não é ape­nas imanipulável, mas também contra­-cul­tural.

Com esta reflexão, queremos situar e manter os pobres no âmbito do misté­rio de Deus - e a Deus no âmbito dos po­bres - ao menos quando os contem­pla­mos desde a fé e a teologia, o que é coisa rara, já que os pobres quase só são olhados no âmbito da pastoral assistencial, não no da fé e no da teolo­gia.

O mistério dos pobres é anterior à missão eclesial, e essa missão é logi­camente anterior à existência duma Igreja já constituída. Não é a Igreja que "tem" uma missão, mas o inverso, a missão de Cristo é que cria uma Igreja (J. Moltmann).

Na Igreja existem certamente rea­lidades prévias à opção pelos pobres: Deus, o seu Cristo e a sua palavra - e é preciso manter como verdade central que a iniciativa provém do alto, do Deus que nos amou "primeiro".

Porém, o mistério desse Deus e desse Cristo vai-se mostrando na rela­ção que vivermos com os pobres deste mundo, de modo que aprofundar a figura histórica do mistério dos pobres é aprofundar também o mistério de Deus, e no inverso.

Na opção pelos pobres decide-se, pois, a essência histórica da Igreja de Je­sus. Esta opção configura essencial­mente a sua missão, bem como a sua identidade histórica.

É preciso perguntar "que" salvação produz a Igreja - se é fiel a si mesma - para os pobres, e também "que" sal­va­ção histórica oferecem os pobres à Igreja e à humanidade.

Antes de mais, uma clarificação: os pobres - "empobrecidos", "vítimas" - não oferecem uma redenção à maneira da expiação vicária. É evidente que eles carregam com o pecado do mun­do, mas é preciso dizer que eles tra­zem algo importante à salvação do mun­do, de acordo com a teologia devida­mente historicizada do servo sofredor: introduzem no mundo, ou tornam isso possível historicamente, e como mais nenhuma outra realidade o faz, valores humanos e cristãos: luz, verdade, capa­cidade de conversão, perdão.

Gera-se assim um círculo soterioló­gico: ao "salvar" a Igreja (e o mundo), os pobres capacitam-na para que ela, por sua vez, se debruce sobre a salva­ção e a libertação do povo crucificado, se dedique a "tirar da cruz os povos crucificados".

Outra clarificação: Falar da salva­ção que trazem os pobres (os sofre­do­res, as vítimas), nada tem a ver com uma teologia sacrificialista, como se o sofrimento, à maneira da causa efici­ente, trouxesse salvação.

Não caímos em semelhante aberra­ção, embora seja de realçar que a rea­lidade dos pobres não se reduz a sofri­mento e carência, pois eles possuem também um potencial para partilhar, não apenas para receber; no nosso caso, um potencial para "humanizar a humanidade".

Hoje reconhece-se quão perigosa é uma soteriologia em que o sofrimento produz salvação à maneira da causa eficiente, o que, por sua vez, conduz ao sacrificialismo e ao dolorismo na teoria, e a práticas inumanas e cruéis. Nada, pois, de ingenuidade.

Alguma vez é preciso perguntar a sério - pelo menos o cristão - se e quê de bom apareceu na cruz de Jesus, se e quê de salvação histórica trouxe essa cruz, isto se não queremos des-histo­ricizar eficazmente e anular/diluir a fé cristã, e logo em matérias tão centrais. Equivaleria a dizer que "há vinte sé­culos as coisas eram assim, mas agora já não".

É evidente que existem diversas formas de pobreza. Na Palestina do tempo de Jesus, por exemplo, os pobres podiam ser descritos da seguinte ma­neira:

Os excluídos socialmente (lepro­sos e deficientes mentais), os margina­li­zados religiosamente (prostitutas e publicanos), os oprimidos culturalmen­te (mulheres e crianças), os depen­dentes socialmente (viúvas e órfãos), os deficientes fisicamente (surdos e mudos, paralíticos e cegos), os ator­men­tados psicologicamente (possessos e epilépticos), os humildes espiritual­mente (pessoas simples e tementes a Deus, pecadores arrependidos).

Hoje, existem maiorias de seres humanos para quem o simples facto de viver já é um fardo muito pesado, pro­veniente não só de limitações naturais, mas sobretudo de limitações históricas.

Nessa carga pesada manifesta-se o profundo da pobreza. O profundo da pobreza afecta em primeiro lugar os próprios pobres, mas também os que a geram e os que se comportam como espectadores.

Na tradição bíblica e jesuânica - ao contrário da grega, romana, demo­crática e ocidental - esse profundo remete a outro: o profundo do mistério de Deus (e dos ídolos), o da graça (e do pecado), o da salvação (e da con­denação).

Este profundo é, na minha opinião, o mais importante que se redescobriu em redor de Medellín e da teologia da libertação. Aí se deu o salto qualitativo: Deus é o Deus dos pobres; e também a ruptura epistemológica: Deus só o conhecemos a partir dos pobres. Em linguagem bíblica, ocorreu um kairós.

Não é necessário alargarmo-nos aqui na descrição da pobreza na América Latina e no mundo. O nosso é um mundo de "lázaros", no sentido absoluto da pobreza: há 1.300 milhões de seres humanos que têm que viver com menos de um dólar por dia, o que significa um grave mal para a espécie humana. Em linguagem teológica, são "a macroblasfêmia do nosso tempo", segundo palavras de Casaldáliga, as quais, para um crente, são duma pro­fundi­dade teológica comparável às de Jesus na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"

Esses "lázaros" coexistem com "epu­lões". Os dados do PNUD já não impressionam, porque se tornaram ro­tina: em 1960, havia 1 rico por cada 30 pobres; em 1990, 1 rico por cada 60 pobres; em 1997, 1 rico por cada 74 pobres. É o sentido relacional da pobreza.

Por isso, e para sacudir consciên­cias, permitam-me esclarecer isto com um exemplo tomado do âmbito da in­dús­tria do futebol, o que não costuma ser frequente, pois parece que essa in­dústria, como a do desporto em geral, ou a do entretenimento, ao contrário das outras, é imune à crítica que se faz ao capitalismo que a atravessa.

Pois bem, os três jogadores de fu­te­bol mais bem pagos do mundo, um inglês, um francês e um brasileiro, que jogam num mesmo club de Espanha, ganham por ano 42 milhões de dóla­res, enquanto que o orçamento da á­rea de San Salvador, com 1.821.532 habitantes, é de 45.6 milhões de dóla­res.

A comparação é um insulto aos po­bres e o fracasso da família humana. Em linguagem teológica, é o fracasso de Deus na sua criação.

É um escândalo - e expressão de um grande pecado de encobrimento - que "a realidade mais real" do nosso mundo, a que mais chega ao coração de Deus, seja também a realidade que menos se conhece e, portanto, a que menos existe.

A denúncia profética está hoje bastante diluída na Igreja. No melhor dos casos, é substituída por pronuncia­mentos éticos sobre o neoliberalismo, a guerra, etc. Isto é bom, porém ética não é o mesmo que profecia; doutrina social não é o mesmo que denúncia profética; e nunca a doutrina social é suficiente, pois a palavra que apenas enuncia princípios éticos é facilmente ignorada.

Denunciar não é simplesmente "pro­testar", o que, por certo, não tem nada de mau (ainda que seja sempre desejável protestos com propostas). Denunciar é trazer à luz os males da realidade, as suas vítimas e os seus responsáveis.

Enquanto profética, a denúncia tem ultimidade, pois faz-se "em nome de Deus"; e é compassiva, pois faz-se con­tra os que fabricam as vítimas, mas para defender o pobre. Finalmente, a denúncia é arriscada, pois incomoda e por isso é raro mantê-la durante mui­to tempo; depressa cai em desuso.

Hoje, repete-se com frequência que no regime feu­dal havia escravos e na revolução industrial proletários; e recorda-se que as suas vidas eram cruéis, mas visíveis.

Agora, ao contrário, passou-se à não-visibilidade do pobre. Fala-se sem pestanejar dos excluídos, aqueles para quem não há lugar - máxima ironia e so­bretudo máxima hipocrisia; ao mes­mo tempo fala-se da globalização, na qual, por definição, deveria ao menos haver lugar para todos. E a não-visibili­dade gera, logicamente, a insensibili­da­de e lança os pobres para uma es­pé­cie de sheol moderno. É a não-existência.

Uma prova disso é que os pobres nem sequer têm nome. Por exemplo, a maioria das vítimas norte-americanas do Vietname têm nome, inclusive gra­vado em monumentos. O mesmo pode ocorrer com as vítimas de Nova Iorque e Washington do 11 de Setembro.

Mas os meninos da rua e muitas das vítimas e de desaparecidos na Amé­rica Latina não têm nome. Muito menos calendário. O 11 de Setembro existe por direito próprio e indiscutível, não é preciso dizer mais nada. Porém, o 7 de Outubro de 2001, o dia em que tive­ram início os bombardeamentos contra o Afeganistão, não existe. Nem o 19 de Março de 2003, o dia em que teve iní­cio a guerra contra o Iraque. Para já não falarmos do 11 de Dezembro de 1981, o dia em que no El Mazote em El Salvador, o batalhão Atlacatl, treinado por assessores norte-ameri­canos, assassinou umas mil pessoas, entre elas 160 crianças de seis anos em média. Neste contexto, pôr nome é fazer com que as coisas se tornem reais, é chamá-las à existência, como nos adverte o livro do Génesis.

Algo semelhante se passa nas Igrejas com os mortos em massacres, maiorias pobres e indefesas, muitos de­les cristãos, por vezes, muito compro­me­tidos. Na América Latina houve már­tires notáveis, mas houve sobretudo mi­lhares de homens e mulheres, crianças e velhos, inocentes, indefesos, vítimas da perseguição e da repressão, assas­si­nados massiva e cruelmente em mas­sacres. Em vários locais fez-se um ingente esforço para manter os seus nomes e honrá-los, e disso as comuni­dades populares e algumas Igrejas po­dem orgulhar-se.

Porém, em conjunto e oficialmente, a igreja instituição não sabe o que fazer com eles. Nem sequer tem nome para esses cristãos (e não cristãos) que so­freram uma morte historicamente cruel e cristamente próxima à do servo de Iahvé.

A estas pessoas nem se costuma chamar "mártires". É verdade que a teo­logia deu passos importantes na com­pre­ensão do martírio e assim, para lá da definição canónica, hoje já se diz que mártir é não só aquele que morre "por causa da fé", mas também "por cau­sa da justiça".

Nós pensamos que a maior novi­dade no conceito de mártir consiste, no substancial, em pensá-lo como quem vive como Jesus viveu, promove a causa de Jesus (o Reino de Deus), entra em conflito e luta contra o anti-Reino de Deus; e por tudo isso é morto como Jesus. A estes mártires, chama­mos-lhes mártires jesuânicos.

Neste pontificado de João Paulo II bateram-se todos os recordes de bea­tificações e de canonizações, mas, no meu entender, nem um só dos homens e nem uma só das mulheres que foram as­sassinados no tereiro mundo por pra­ticarem a justiça, defenderem os po­bres, serem fiéis a Jesus, foram reco­nhecidos pelo Vaticano. E não falemos já dos povos crucificados em África, Ásia e América Latina. Ao nível eclesi­ás­tico solene, também permanecem sem nome!

Mas a opção pelos pobres, para ser correcta, tem que ter determinadas características ou marcas. Apontarei quatro.

A primeira característica é a dialéctica. Hoje, fala-se muito em diá­lo­go, negocia­ção, tolerância e foge-se o mais que se pode à confron­tação.

Até parece que, no caso dos pobres em massa, eles caem do céu, ou sur­gem do inferno. Ou que os problemas que eles levantam po­dem ser resolvidos por uma mão invisível que quebraria o egoísmo dos poderosos e baniria a injustiça, a mentira e a violência estru­turais.

Por isso a opção pelos pobres não precisaria de ser dialéctica, não precisa­ria de ter em conta o opressor e enfren­tá-lo, sobretudo, nas suas formas estru­turais.

Nesta situação importa recordar a verdade bíblica e histórica fundamen­tal que foi oportunamente proclamada por ocasião de Medellín e Puebla: "Há ricos porque há pobres, e há pobres por­que há ricos".

Pessoalmente, senti grande alegria ao ler recentemente estas palavras de José Comblin: "Em realidade, a humani­dade está dividida entre opressores e oprimidos". Por isso, uma opção pelos pobres que não seja dialéctica, que não seja também uma opção contra a opres­são, não é a opção de Jesus, e, finalmente, é uma opção que deixa o pobre à mercê do opressor.

A segunda característica é a par­cialidade. Hoje fala-se muito de "igualdade" e de "universalidade" e até de "globalização". Querem-nos conven­cer que "todos" cabemos no globo, mas é pura mentira. Se procuramos salvação para os pobres deste mundo, então temos que ser parciais e colocá-los bem no centro. Isto é uma utopia que não se realizará, mas se nem sequer nos atrevemos a "pensá-la", então é que não haverá mesmo solução para os pobres.

Antes de nascerem, os homens já são desiguais. Daí a necessidade de formularmos a tese contrária a esta rea­lidade e a necessidade da parcialida­de. Havemos de dizer: "Os direitos hu­manos são os direitos dos pobres".

Com isto, quero dizer que a Igreja não só deve ajudar os pobres, mas deve colocá-los de modo consciente no cen­tro da realidade. Não basta confiar nas bondades do bem comum.

A terceira característica é a inserção. Com isto, não me refiro dire­cta­mente a comportamentos ascéticos de empobrecimento e de aproximação voluntária aos pobres, mas a algo mais metafísico e que tem a ver com a ob­ses­são por se ser "objectivo" num mun­do de pobres como é o nosso. A Igreja pode aspirar a ser santa, ou perfeita, ou autêntica ou evangélica, segundo as épocas em que vive. Hoje, deve ser "objectiva", isto é, há-de fazer do mun­do dos pobres o seu próprio mundo. Num mundo de pobreza massiva como é o nosso, que a Igreja não tenha ver­go­nha de ser unha e carne com os po­bres e de, aí, agir em consequência.

Dizia Mons. Romero: "Alegro-me, ir­mãos, pela nossa Igreja ser perse­guida, devido à sua opção pelos pobres e por procurar encarnar-se neles. Seria triste que numa pátria onde se assas­sina tão horrorosamente, não contásse­mos também sacerdotes entre as víti­mas. Eles são o testemunho duma Igreja encarnada (inserida) nos problemas do povo". Eis um exemplo concreto de inserção.

A quarta e última característi­ca é a humildade. Por muito que o não-pobre queira compreender o pobre, inclusive, ajudá-lo, sempre haverá um abismo entre ambos. Por isso, tudo o que seja falar dos pobres, pensar em ajudá-los, tem que ter a humildade co­mo componente, uma espécie de não-saber. Talvez este não-saber possa ser compreendido como um elemento cons­titutivo do "saber" do mistério. O­cor­re com Deus e ocorre com os po­bres.

É claro que isto não é nada fácil, não só em políticas imperialistas de sujeição do outro, mas também em po­líticas de ajuda e de cooperação das ONGs, por exemplo. Mais do que nunca a opção pelos pobres tem que estar atravessada de humildade, para que não acabe por ser uma camuflada ma­neira de optarmos por nós próprios.

Sublinhamos que a opção pelos po­bres, que a Igreja tem que fazer, deve incluir também essencialmente a salvação que os pobres fazem chegar à Igreja e à humanidade. Em teoria, isto não é nada novo. Sempre se disse, desde Puebla, que os pobres nos e­van­ge­lizam.

Vejamos alguns elementos impor­tan­tes de salvação que os pobres nos fazem chegar, quando optamos por eles.

Em primeiro lugar, a Igreja (e a so­ciedade) precisa seriamente de ser in­terpelada, pois tem uma tendência natu­ral a ocultar as suas misérias. Daí que a interpelação seja um bem e um ele­mento de salvação. Que exista histori­camente uma realidade interpelante para a Igreja é, pois, um grande benefício e princípio de salvação.

É verdade que a Igreja pode e de­ve ser interpelada pela palavra de Deus, pela Tradição, pela hierarquia. Mas nada pode interpelá-la com mais veemência que os pobres e as vítimas deste mundo. Bem diz Puebla que os pobres movem a Igreja à conversão. E acrescento aqui que se os pobres não comovem o coração de pedra, então podemos ter sérias dúvidas que outra realidade o possa fazer! Então a gran­de pergunta que a Igreja tem que fazer é: Que vamos fazer para tirar da cruz o povo crucificado?

Em segundo lugar, os pobres e as vítimas podem ajudar a Igreja a ver a verdade da realidade e a estabelecer-se na sua própria verdade.

Antes de mais, as vítimas produzem luz para ver a verdadeira realidade do mundo e também a nossa. Fazem-nos conhecer melhor o que somos. Os po­bres e as vítimas deste mundo são obra e produto das nossas mãos, enquanto sociedade estruturada. Ao vermos o que produzimos - os pobres em massa - sabemos melhor o que somos.

Ellacuría, referindo-se ao nosso mun­do, costumava dizer duas inesque­cíveis metáforas. Se o primeiro mundo quer conhecer a sua verdade, que se veja nas vítimas do terceiro mundo. Ne­las, como num espelho invertido, ver-se-á como é sem maquilhagens, sem propagan­das e sem ideologias. E se quer saber como está a sua saúde, submeta-se à coproanálise, à análise de fezes: nelas aparece o terceiro mun­do tal como o primeiro mundo o produz. Esta luz é uma grande contribuição.

As vítimas podem conseguir fazer-nos chegar não só ao conhecimento que supera a ignorância, mas também à verdade que supera a mentira, para que esta deixe de continuar a reter a verdade cativa na injustiça.

Muitos outros benefícios trazem os pobres e as vítimas. Um muito impor­tante é o dinamismo a criarmos verda­deira civilização, hoje, a "civilização da pobreza" - "civilização da austeridade compartilhada", prefere chamar-lhe Ca­sal­dáliga - que superará dialecticamente os gravíssimos males da actual civiliza­ção da riqueza.

Os pobres e as vítimas também ge­ram solidariedade, segundo as palavras do Evangelho de João: "Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim" (12, 32).

As vítimas atraem, convocam, fa­zem-nos sair de nós mesmos, e isso é a sua contribuição fundamental dentro de um mundo de insensibilidade e de egoísmo como o nosso. Isto fazem so­bretudo os mártires. Aliás, foi assim que começou a solidariedade com El Salvador.

O último elemento pode formular-se assim: As vítimas têm um potencial para salvar a história e a humanidade e, em parte esse potencial é insubstituível. E não se pode esca­motear esta intuição sem anular a fé cristã: na cruz de Jesus há salvação. E tanto essa cruz como essa salvação chegam até nós através das vítimas deste mundo.

De tal modo as coisas são assim, que podemos também di­zer: "Fora dos pobres não há salvação". Só os pobres (as vítimas) têm autoridade moral para se nos dirigirem/interpelarem.

Ouça­mo-los! E tudo mudará.


IGREJA/SOCIEDADE

Alerta! Custódios de Maria “atacam” por correio

Um amigo do Jornal Fraternizar, residente em Aveiro, o eng. Sousa Ramos, por sinal, um bem-humorado e convicto ateu da mesma provecta idade do nosso actual papa idólatra de Fátima, João Paulo II, recebeu recentemente na sua caixa de correio um envelope tamanho A4 em papel ouro brilhante, remetido da Av. de Berna, em Lisboa por “O meu Imaculado Coração Triunfará”, com um pedido em vermelho: “É favor / não dobrar / contém fotografia”. Olhou, palpou, e tudo aquilo lhe cheirou a esturro. No seu saudável ateísmo, logo deduziu que estava perante mais um habilidoso processo de fazer dinheiro, por parte de católicos com poucos ou nenhuns escrúpulos que não hesitam em recorrer à manipulação de certos símbolos religiosos, particularmente em tempos de crise e de depressão social generalizada como são os que estamos presentemente a viver no país. Abriu com todas as cautelas e logo deparou com uma fotografia a cores (ver p.21), do mesmo tamanho do envelope, duma das múltiplas imagens da "Virgem", a mítica e cruel deusa dos cultos do Paganismo, as quais o Império Romano, depois de se tornar oficialmente cristão católico, passou a considerar, mentirosamente, como outras tantas imagens de Maria, a mãe biológica de Jesus. A fotografia fazia-se acompanhar de um texto em 4 páginas dactilografadas, assinadas por um tal Luís Miguel Morais Soares que se apresenta como “coordenador da Campanha”. Vinha também um envelope branco em formato normal, já devidamente preenchido e isento de selo, endereçado a “Custódios de Maria”, para os quais deverão ser remetidas ofertas em dinheiro, no valor de 15, 25, 50 ou mais euros cada uma! Às incautas, aos incautos que caírem na esparrela, é garantido que “Nossa Senhora protegerá” as respectivas famílias! Aqui fica a denúncia e o alerta. Também a pedido do nosso amigo ateu de Aveiro.

“Hoje, venho oferecer-lhe um con­so­lo, um bálsamo, um momento de alí­vio para o seu dia-a-dia: esta estampa da Imagem peregrina de Nossa Senho­ra. Ela apresenta o Imaculado Coração de Maria, tal como foi descrito pela Irmã Lúcia, a quem Nossa Senhora apareceu em Fátima”.

É assim com toda esta mentira e todo este pietismo alienante retintamen­te pagão que abre a mensagem que acompanha a imagem.

Esclarece, depois, que os promoto­res da iniciativa estão na disposição de “enviar esta mesma estampa a 4 milhões de famílias, ou seja a todas as caixas de correio do nosso país”.

Pelos vistos, não fazem isto por menos. É uma campanha e peras. Mas já estamos a ver a marosca: Vão dizer que não dispõem de dinheiro para tão piedoso empreendimento. Bem pode­riam então dirigir-se ao Santuário de Fátima que, como se sabe, nada em dinheiro e era até capaz de suportar a despesa, como recentemente supor­tou a despesa do envio pelo correio a todos os assinantes do Jornal Frater­nizar dos dois volumes das chamadas Memórias da Irmã Lúcia. Mas não. Este é um outro negócio, paralelo ao de Fá­tima. E, como aquele, também tecido de piedosas mentiras e mensagens sem dignidade humana, a puxar ao so­bre­naturalismo infantil e medíocre.

“A presença desta estampa em cada lar – vejam o que aqui vai de dema­go­gia e de mentira, por sinal todos os dias confirmadas pela crueldade dos factos reais que fazem a vida das famí­lias pobres, melhor, empobrecidas, nas quais abundam imagens e estampas religiosas à mistura com a degradação, as doenças, o desemprego, o alcoolis­mo e muitas vezes a droga e a prosti­tuição – exercerá uma acção benfazeja sobre toda a família”.

“Nesta estampa – continua o chor­rilho de mentiras e de demagogia – está a solução para os problemas mo­der­nos”.

Vem, finalmente, o que interessa a quem meteu mãos e pés nesta campa­nha: “Confiante em Nossa Senhora, e na sua generosidade [não, não é a generosidade de Nossa Senhora que, como está à vista de toda a gente, não é nenhuma, ou ela não seja uma nossa senhora cega, surda e muda, sem en­tranhas de misericórdia; por isso só pode ser a generosidade de quem re­cebeu o envelope em papel dourado brilhante com a fotografia da imagem dentro], lancei-me nela [a campanha] antes mesmo de ter todos os recursos para financiá-la. Já mandei imprimir 1.000.000 de estampas iguais a esta, mas para poder enviá-las às famílias, precisaria contar com a sua partici­pação financeira neste apostolado todo voltado para a glorificação de Nossa Senhora”.

“Permita-me então pedir-lhe – ve­jam como quem está por trás da campanha no que verdadeiramente pensa é no dinheiro a extorquir às pes­soas, nomeadamente, às famílias pobres com problemas de toda a ordem – um generoso apoio em favor da difus­ão desta estampa de Nossa Senhora, bem como para as demais actividades evangelizadoras da nossa Associação, seja de 15 euros, 25 ou 50 euros, ou quanto lhe for possível.”

A mensagem desce a estes porme­nores de requinte: “Com 15 euros, por exemplo, poderemos distribuir 12 es­tampas. Com 25 euros, o senhor [aqui, ao referir-se exclusivamente aos ho­mens, os promotores esqueceram-se de que quem mais embarca nestas piedosas mentiras e as financia ainda continuam a ser as mulheres pobres pouco escolarizadas e nada evange­lizadas] estará a levar Nossa Senhora a 20 lares portugueses.”

E dá um exemplo anónimo que, se  tiver sido inventado, resulta igual: “Uma senhora [vêem como continuam a ser as mulheres pobres que ainda embar­cam neste tipo de negócio religioso], en­tusiasmada com a Campanha, che­gou mesmo a fazer um sacrifício espe­cial e enviou-nos 125 euros, o que nos permitiu oferecer 100 estampas.”

A terminar, a mensagem multiplica os apelos ao dinheiro das incautas, dos incautos: “Utilize o envelope «re­messa livre» para enviar o seu cupão-resposta devidamente preenchido. Ele não necessita de selo. Envie cheque nominal em favor da Associação dos Custódios de Maria. Se preferir, utilize o talão impresso na parte inferior do seu cupão de resposta. Ele substitui o vale postal e não custa nada. Apresen­te-o em qualquer balcão dos Correios, indicando apenas o valor do donativo que pretende enviar.”

São assim as coisas. Tal e qual. Já alguma vez tinham ouvido falar destes “Custódios de Maria”? Sinceramente, aqui pelo Jornal Fraternizar, nunca nin­guém tinha ouvido falar deles. Por isso, esta iniciativa nos pareceu ainda mais chocante. Mas o mais curioso é que, de­pois de nos chegar às mãos o conteú­do desta iniciativa, metemo-nos a pro­curar na Internet o que haveria sob esta designação. E encontrámos duas refe­rên­cias, qual delas a mais surpreen­dente.

Uma das referências até “mete” o papa João Paulo II. Diz respeito a uma das audiências semanais das quartas-feiras. Na audiência papal do dia 11 de Junho de 2003, João Paulo II, numa daquelas curtas mensagens aos pere­gri­nos de diversos países lá presentes, refere-se expressamente aos “Custó­dios de Maria”, à mistura com sacerdo­tes de três dioceses de língua portugue­sa. Assim: “Amados peregrinos de lín­gua portuguesa, com grande afecto saú­do todos os presentes, nomeadamente o grupo de famílias de Lisboa, que be­ne­ficiam do apostolado dos “Custódios de Maria” e os sacerdotes de Braga, Via­na do Castelo e Timor Leste que vi­e­ram, com familiares e amigos, cele­brar os 25 anos da sua Ordenação pres­biteral. (...)”

A outra referência remete-nos, es­tranhamente, ou talvez não, para a pá­gina ou “sítio” dum partido político por­tu­guês, ainda pouco conhecido, exacta­mente, o Partido Nacional Renovador. A referência tem a data de 15 de Maio de 2004 e diz assim: “A Associação dos Custódios de Maria publica um interes­sante boletim de nome «Flashes de Fá­tima», que, como o nome indica, é con­sa­gra­do a Nossa Senhora de Fátima. Esta associação católica tem desenvol­vi­do nos últimos anos várias importantes campanhas, das quais destacamos, a título de exemplo, a que foi promovida contra a liberalização do aborto. A este respeito, recorde-se que também o PNR esteve particularmente activo, quer na recolha de assinaturas, quer na edição e distribuição de material de informa­ção.”

Por cá, ficámos bastante esclare­cidos. E vocês que acham de tudo isto? Acham que Maria, a de Nazaré, está a sair dignificada com iniciativas destas, realizadas com estes fins? Mas não es­queçamos que a injúria maior ao seu nome e à sua pessoa ainda é ousar iden­tificá-la com a invenção das “apari­ções” de nossa senhora na Cova da Iria. Onde já se viu tamanha mentira?


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