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DESTAQUE
“DETESTO AS VOSSAS MISSAS”, DIZ DEUS
É claro que o Jornal Fraternizar não foi entrevistar Deus, para ouvir dEle a afirmação, altamente chocante e a raiar o escândalo, que serve de título ao DESTAQUE desta edição n.º 157. Nem era preciso. Para ficarmos a conhecer o seu sentir, basta-nos ler com olhos de ver o Livro bíblico do Profeta Isaías, logo no primeiro capítulo, e aplicar depois, com alguma audácia teológico-pastoral-jornalística, às missas católicas que acontecem todos os dias e em especial aos domingos por essas igrejas paroquiais e catedrais fora, o que o profeta lá põe Deus a dizer sobre as missas, perdão, sobre os cultos oficiais que os sacerdotes seus contemporâneos faziam acontecer com regularidade no templo de Jerusalém. E foi o que humildemente fizemos, ao elaborar este DESTAQUE, no Ano da Eucaristia que está a decorrer no interior da nossa Igreja católica, por determinação do Papa João Paulo II e da sua Cúria. Perante tal mensagem de Deus, o que vamos fazer? Em lugar de nos erguermos contra o mensageiro, ousemos, como Igreja, a conversão mais radical. Afinal, se pensarmos bem e com verdade, temos que reconhecer que o que a Eucaristia reclama das cristãs, dos cristãos é que sejamos no mundo e na História, seres humanos outros, bem ao jeito de Jesus, o de Nazaré, e não que façamos missas a toda a hora, juntamente com práticas católicas de pura idolatria, como lausperenes, adorações da Hóstia e folclóricas procissões do Corpo de Deus.
Escutemos então a mensagem do Profeta Isaías, 1, 11-17, tal como ela se apresenta traduzida na Nova Bíblia dos Capuchinhos:
"De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? - pergunta o Senhor. E acrescenta: Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros, nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, quem reclamou de vós semelhantes dons, ao pisardes o meu santuário? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados [os domingos] as reuniões de culto [as missas], as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Detesto as vossas celebrações lunares, as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que eu não as atendo. É que as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos a malícia das vossas acções. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas".
As catequeses tradicionais da Igreja, nomeadamente, as dos últimos séculos da Cristandade, têm-nos levado a pensar que Deus do que gosta é de missas, quantas mais melhor, de ritos nos templos, de liturgias mais ou menos inebriantes e alienantes, abrilhantadas por coros especialmente preparados para o efeito, realizadas com regularidade em dias, horas e locais certos. Não paramos sequer para pensar que nem nós, os seres humanos, alguma vez suportaríamos, se outros seres humanos, a pretexto de nos quererem honrar, passassem a vida a dizer-nos, em dias, horas e locais certos, as mesmas palavras de louvor e de petição, e tudo isso com palavras que nem sequer podem ser nossas, pois têm que ser lidas no Missal Romano!!!
Preferimos ignorar o que, a este propósito, Deus nos revelou através dos Profetas bíblicos, em particular, do Profeta Isaías, que acabámos de transcrever e do Profeta Jeremias. Preferimos ignorar também toda a prática eucarística de Jesus, que jamais foi capaz de se meter no templo do seu país a presidir ou a assistir a rotineiros actos de culto em honra de Deus, seu Pai/Mãe. Preferimos ignorar que Jesus até destruiu simbolicamente o Templo e derrubou as mesas dos que lá dentro vendiam animais para os sacrifícios cruentos, que os sacerdotes ofereciam dia e noite sobre o altar em honra de Deus. Preferimos ignorar igualmente o que Jesus com toda a solenidade revelou, em contexto de missão aos samaritanos do século I: que Deus é espírito e que só em espírito e verdade é que gosta de ser adorado, por isso, não gosta de ser adorado nem em Garizim nem em Jerusalém, isto é, em lugar nenhum especial. Preferimos ignorar, finalmente, a espantosa catequese que, uns 50-60 anos depois da Morte/Ressurreição de Jesus, a Carta aos Hebreus dirige, a este respeito, às comunidades cristãs que integravam o Movimento dele, de cariz eminentemente messiânico, por isso, eminentemente político, não religioso. São estes os precisos termos dessa catequese:
"Por isso, ao entrar no mundo, Cristo diz: Tu não quiseste sacrifício nem oferenda, mas preparaste-me um corpo. Não te agradaram holocaustos nem sacrifícios pelos pecados. Então eu disse: Eis que venho - como está escrito no livro a meu respeito - para fazer, ó Deus, a tua vontade. [Vede!] Disse primeiro: «Não quiseste nem te agradaram sacrifícios, oferendas e holocaustos pelos pecados» - e no entanto eram oferecidos segundo a Lei. Disse em seguida: «Eis que venho para fazer a tua vontade». Suprime assim o primeiro culto, para instaurar o segundo. E foi por essa vontade - conclui - que nós fomos santificados, pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre" (Hebreus 10, 5-10).
É verdade que a Carta aos Hebreus ainda fala de culto, de um segundo culto que veio substituir o primeiro. Não fala de política. Mas tem o cuidado de dizer em que consiste este segundo culto que substitui o primeiro. É um culto que historicamente aconteceu uma só vez. E que culto é esse? "Eis que vim, ó Deus, para fazer a tua vontade!" Ora, a vontade de Deus, tal como Jesus, o de Nazaré, a percebeu e realizou integralmente, tem tudo a ver com garantir vida, e vida em abundância, a todas as pessoas e a todos os povos. Tem tudo a ver com a realização integral de todas as pessoas e de todos os povos. Por isso, tem tudo a ver com a Política, com aquelas sábias e fecundas acções que ousem mudar as economias e as políticas concretas que, em cada momento histórico, informam as nossas sociedades, de modo a garantirmos vida, saúde, educação, bem-estar, numa palavra, a felicidade a todas as pessoas e a todos os povos. Não tem nada a ver com a Religião, com ritos nos templos, realizados regularmente sob a presidência de um corpo de sacerdotes ou funcionários sagrados que Jesus nunca quis integrar, nem nunca quis que as suas seguidoras, os seus seguidores alguma vez integrassem.
A Carta aos Hebreus fala expressamente no corpo de Jesus, esse corpo que se entregou por inteiro e incondicionalmente às causas do Reino de Deus, o mesmo é dizer, às causas da Humanidade, sem sequer recuar perante os poderes estabelecidos que, no seu tempo e país, se tinham na conta de poderes sagrados, provenientes directamente de Deus.
Foi por levar até ao limite esta sua forma de ser e de intervir com o seu corpo, que Jesus acabou violentamente crucificado e morto. Contudo, não é a morte dele enquanto tal que havemos de valorizar. O que havemos de valorizar é a fidelidade de Jesus à vontade do Pai/Mãe Deus - eis que vim, ó Deus, para fazer a tua vontade - e esta nunca foi que ele morresse, muito menos, que fosse morto, mas que vivesse e fizesse viver a muitas, muitos e, por isso, logo o ressuscitou, no mesmo instante em que esses poderes o mataram.
Sublinhe-se então que as Igrejas cristãs, que resultam do movimento messiânico (= político) inspirado e iniciado por Jesus, não têm que falar em "sacrifício" de Jesus, nem em "sacrifício da missa", como aberrantemente todas elas mais ou menos fazem, com destaque maior para a nossa Igreja católica, em tudo o que seja documentos emanados da Cúria Romana e do próprio papa. "Tu não quiseste sacrifício nem oferenda", diz inequivocamente a Carta aos Hebreus, como quem se faz eco do que Deus já havia dito pelos Profetas bíblicos, Isaías e Jeremias, sobretudo.
Ora, se Deus não quis nem quer sacrifício nem oferenda, porque havemos de lhe oferecer a toda a hora, e a pretexto de tudo e de nada, o "santo sacrifício da missa"? Não percebemos que Deus, o de Jesus, do que gosta, do que espera de nós, suas filhas, seus filhos, é que nós, com o corpo que Ele nos deu, nos entreguemos até ao limite, como Jesus se entregou, às grandes e às pequenas causas da Humanidade? Em concreto, que dêmos o melhor do nosso sentir, do nosso entender, do nosso querer, do nosso saber, do nosso agir, para termos economias e políticas que garantam vida e vida em abundância a todas as pessoas e a todos os povos, num grande respeito pela Natureza e pelo meio ambiente! Portanto, tudo posturas essencialmente políticas, não religiosas, realizadas no mundo e na sociedade. Posturas que pressupõem pessoas e povos progressivamente desenvolvidos, sujeitos, protagonistas, vertebrados, lúcidos, audazes, corajosos, exactamente como Jesus, o de Nazaré, que, pelos 12 anos, deixou o Templo de Jerusalém e passou a viver em Nazaré entre os seus e com os seus, a crescer em idade, estatura, sabedoria e graça, ao ponto de, pelos 30 anos, iniciar uma missão política ainda hoje inultrapassada, pois não se limitou a fazer mais do mesmo, dentro desta Ordem, feita de Mentira e por isso opressora e assassina, mas foi à raiz dos problemas e fez acontecer um Novo Começo, por força do Sopro ou Espírito de Deus que o possuiu por inteiro e o conduziu ininterruptamente, e que ainda hoje prossegue aí empenhado, através de nós, em fazer novas todas as coisas, queiram ou não queiram os senhores do mundo, os Herodes e os Pilatos, os Caifás e os Sinédrios de cada tempo e lugar.
"Tudo o que fizestes ao mais pequenino dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes. E tudo o que deixastes de fazer ao mais pequenino dos meus irmãos, foi a mim que deixastes de o fazer" (Mateus 25, 31-46). Trata-se, pois, de fazer, de agir, de realizar. Não de se meter nos templos a pedir, a mendigar, a dizer palavras mais ou menos bobas a Deus (na verdade, tudo o que possamos dizer a Deus, por mais sublime que nos pareça, é sempre bobo, e é apenas para nós próprios que o dizemos e para os que nos rodeiam. A Deus, o que podemos fazer é escutar-acolher o que Ele nos está continuamente a dizer e, sobretudo, fazer o que Ele nos diz, de modo que a Criação que Ele iniciou prossiga com a nossa intervenção e chegue à sua plena realização. Meter-se nos templos a fazer missas em série, a dizer frases mais ou menos bobas a Deus, a pedir-lhe que faça por nós e pelo mundo o que Ele ininterruptamente nos pede que façamos, é cair na tentação da Religião e renunciar a sermos mulheres, homens ao jeito de Jesus, à sua medida, com a sua estatura. É recusarmo-nos a prosseguir a sua prática messiânica, politicamente libertadora, não religiosa, a única que nos fará crescer na liberdade e na responsabilidade.
Não foi só a Carta aos Hebreus que captou o que de especificamente "Novo" e de "Salvador" Jesus, o de Nazaré, trouxe à Humanidade. Também o apóstolo Paulo, na sua inexcedível Carta aos Romanos (12, 1-2), proclama que o único culto (em contexto religioso, como o do século I, teria que recorrer a esta linguagem, em lugar da linguagem política, como hoje se nos exige!) que podemos prestar a Deus é este:
"Exorto-vos irmãos a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom e lhe é agradável e perfeito." O que não for assim, só pode dar vómitos a Deus! Missas que sejam.
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Um caso concreto no concelho de Felgueiras
MISSAS QUANTAS QUEIRAS,
DESDE QUE PAGUES, EVIDENTEMENTE!
Jornal FRATERNIZAR visitou a página do padre Mário, na internet (www.padremariodemacieira.com.sapo.pt). Consultou o seu "Diário Aberto". E deparou com esta notícia entremeada de oportuna reflexão teológica. Porque "encaixa" perfeitamente no Destaque desta edição, aqui segue na íntegra.
Deixem-se supreender. E tirem a vossas conclusões.
“O Pároco tem direito à sua subsistência, que consiste na oferta de um dia de salário de cada família. Podeis fazê-lo no fim das eucaristias, na sacristia. Estará alguém da Fábrica da Igreja. Recordo que quem não o fizer não tem o direito de exigir o que quer que seja do trabalho do pároco.”
O recado está dado. Por escrito. Vem na folha paroquial que é distribuída aos domingos, no final das missas, em várias paróquias católicas do concelho de Felgueiras. As famílias que residem nessas paróquias, ou pagam, ou ficam a ver navios, no que respeita à disponibilidade do “seu” pároco.
Alguém me fez chegar às mãos um exemplar da folha em que este recado está escrito. Limitei-me a transcrever. Não me acusem de dizer mal da Igreja. É a Igreja, nestas paróquias concretas, quem diz mal de si própria, ao escrever recados destes numa folha destinada a ser posta nas mãos das pessoas que frequentam o templo e a missa dominical.
Recados assim são sobejamente elucidativos. Nem sei como é que os párocos que assim entendem o seu ministério pastoral e assim se comportam no seu exercício, ainda se não lembraram de colocar à entrada do templo paroquial vários ficais privativos com o livro paroquial dos pagamentos na mão, para conferirem se quem vai entrar para a missa efectivamente satisfez o pagamento. A ser verdade o que diz esta folha, a entrada na missa deveria ser condicionada a quem paga. A missa é um trabalho do pároco. Não é só dele, mas a verdade é que sem ele já não há missa. E sem o trabalho das outras pessoas pode haver missa. Menos “solenizada”, mas há missa. Sem ele é que não há.
É sabido que todas as outras pessoas que aceitam ajudar a “fazer” a missa não exigem qualquer pagamento pelos serviços prestados. Ainda se não terão lembrado disso! Mas pela lógica dos párocos que assim procedem, poderiam e deveriam fazê-lo, sejam as meninas, os meninos de coro, sejam os membros do grupo coral, sejam os ministros extraordinários da comunhão, sejam os portadores das cestas que recolhem as ofertas dos “fiéis”, no momento do Ofertório. É sabido que ninguém o faz. Só certos párocos o fazem! Quase todos. O Evangelho bem diz que dêem de graça o que de graça receberam. Mas os párocos que assim se comportam fazem orelhas moucas ao Evangelho. O que querem é dinheiro e mais dinheiro. A instituição que servem não lhes permite que constituam família e que gerem filhas e filhos, mas eles, mesmo assim, com o que sonham é com dinheiro e mais dinheiro. Talvez para compensar a carência de não terem constituído família. Assim, podem ver o dinheiro a crescer, em lugar de verem crescer as suas próprias filhas e os seus próprios filhos. Além disso, estes párocos entendem que têm um status social elevado a salvaguardar e fazem questão de o manter. Se possível, até elevá-lo ainda mais. Esse status exige-lhes que mudem de carro de marca todos os anos, o mais tardar, de dois em dois anos; que façam férias repartidas no estrangeiro, em boas estâncias balneares, nada deste provincianismo das praias portuguesas; que não deixem de frequentar grandes jantaradas e de dar os seus passeios ao estrangeiro; que construam uma ou duas moradias com piscina privativa. Depois, como o seguro morreu de velho, estes párocos ainda têm que fazer tudo, quando estão no activo, para garantirem um bom pé de meia, para o tempo em que já não puderem estar à frente das várias paróquias em que presentemente estão, e, consequentemente, já não receberem, todos os anos, como agora recebem, “um dia de salário de cada família”.
Aos pobres e remediados que se escandalizam com comportamentos assim, estes párocos defendem-se com argumentos rasca, como, por exemplo, que andaram 12 anos a estudar, para além dos primeiros 4 anos do ensino básico; que estão habilitados por um curso superior; que não são menos que os médicos e os engenheiros, por exemplo; e que são funcionários eclesiásticos credenciados, logo abaixo dos bispos! Como quem diz: Quem quer os bons empregos, faz por isso. E eles fizeram. Assim como os pais deles, quando consentiram que eles fossem para padre. Agora, que já são padres, são os primeiros a exigir que quem pretende “o que quer que seja do trabalho do pároco”, tem que se chegar à frente. Ou assim, ou não há nada para ninguém!...
Mas a folha paroquial que traz este recado não se fica por aqui. Também traz um rol de “intenções” de missa para toda a semana nas mesmas paróquias onde a folha foi distribuída. Dei-me ao trabalho de contar essas “intenções”. São quase 60 por semana só para um dos párocos! Ora, se quem manda celebrar a missa pagar no mínimo, 7 euros e 50 cêntimos, por cada “intenção”, o referido pároco celebrante junta, no final da semana, a “módica” quantia de cerca de 450 euros! O que dá, em média, no final de cada mês, só por esse “trabalho”, cerca de 1.800 euros!!!
Mas em que consiste o “trabalho” de rezar cada uma destas missas de rotina? Pois simplesmente deslocar-se até à igreja onde ela está anunciada, vestir os paramentos da praxe, que são propriedade da paróquia, avançar para o altar e ai, durante cerca de 20/25 minutos, ler o que está no missal, num tom de voz sem qualquer esforço especial. De resto e segundo o que oficialmente ensinam as próprias catequeses paroquiais o efeito da missa a favor das “intenções” está sempre garantido, pois é automático, quer o pároco esteja bem disposto ou mal disposto, ponha empenho no que faz ou esteja completamente alheio ao que faz, pronuncie com nitidez as palavras, ou coma grande parte delas, ponha alguma dignidade no acto, ou o realize no registo da inércia e da rotina!
Sei que estou a caricaturar, mas infelizmente há muitos casos por essas paróquias católicas além, em que a realidade é ainda mais caricata que a caricatura que aqui estou a fazer. Mas o que me deixa mais triste é constatar que, apesar de já estarmos no início do terceiro milénio, ainda continua a haver por aí bastantes pessoas que, na sua boa fé, na sua ingenuidade e nos seus ancestrais medos do além, não deixam de alimentar toda esta engrenagem eclesiástica de mentira e de negócio. Duma maneira geral, são as pessoas menos escolarizadas, menos ilustradas e, sobretudo, nada evangelizadas, que, assim, se mantêm escravas de todo um tradicionalismo católico-pagão, na continuação do que, para seu mal, já fizeram os seus antepassados. E não são só católicos praticantes que o fazem. Também muitos católicos, que hoje se dizem não praticantes, continuam aí a não dispensar as “missinhas” pelas “almas” dos seus familiares falecidos! Deste modo, o negócio das missas continua de vento em popa. Para mal das pessoas que assim continuam sem se libertar dos muitos medos ancestrais que as habitam. E também para mal da nossa Igreja católica que, com esta prática simoníaca, deixa de ser sacramento do Deus de Jesus no mundo onde está implantada, ao mesmo tempo que progressivamente se auto-corrompe e auto-descredibiliza.
É manifesto que os párocos que adoptam este tipo de comportamento pastoral nas paróquias onde são reis e senhores (há uma “Fábrica da Igreja”, eu sei, mas também sei que o pároco é obrigatoriamente o seu presidente e é ele quem escolhe os outros membros, ou, pelo menos, todos têm a confiança dele, o que transforma este organismo numa espécie de claque de apoio!) não estão nada interessados em evangelizar as pessoas e as famílias. Aliás, como poderão fazê-lo, se eles próprios ainda não estão evangelizados? Se eles próprios ainda se comportam como meros funcionários eclesiásticos, tal como outros homens podem ser funcionários públicos ou da administração local? A única diferença entre uns e outros tem apenas a ver com o tipo de “trabalho” que executam, com a empresa a que pertencem e com a entidade patronal que os nomeia para a função. Em tudo o mais, é idêntico. E creiam que, numa Igreja assim, tipo empresa, tudo pode funcionar, mesmo que o pároco não seja crente no Deus de Jesus, nem seja verdadeiro discípulo de Jesus, o Cristo.
Aliás, para se ser funcionário eclesiástico assim, a Fé cristã jesuânica só atrapalha, o Espírito Santo só atrapalha, o Evangelho de Jesus só atrapalha. A única coisa que não atrapalha é que haja muito dinheiro em jogo e um mecanismo de funcionamento tal, que esse muito dinheiro reverta, na sua maior fatia, para o respectivo funcionário, o pároco de turno!
Não se escandalizem com o que escrevo. Escandalizem-se com a realidade dos factos. E fujam dela, se quiserem, se forem capazes, se tiverem coragem para assumir a diferença, para dissentir, mesmo que o meio social em que estão a viver, seja um daqueles meios pequenos, como a freguesia de Macieira da Lixa em que presentemente vivo, nos quais toda a gente se conhece, tudo se sabe e é de imediato comentado, criticado e apontado a dedo. Infelizmente, uma coragem assim é coisa rara, muito rara, nestes tempos camaleónicos que vivemos. E dignidade pessoal e verticalidade humana nem se fala. Custa-me ter de o reconhecer, mas não posso deixar de confessar que, no tipo de Igreja católica que hoje somos, mais pagã do que cristã jesuânica, e no meio de toda a simonia em curso, sancionada como coisa boa até pelo Código de Direito Canónico, dignidade e verticalidade são coisas que não se vêem em abundância, a começar nos funcionários mais responsáveis e a acabar nos “leigos” anónimos, mulheres ou homens, os quais, o mais a que podem aspirar é poder andar na órbita do pároco, ou do bispo a aplaudi-los, a fazer-lhes reverências, a fazer de conta que tudo aquilo que tanto um como outro dizem e fazem é importante, é decisivo para a salvação do mundo, quando a verdade é que não vale a ponta dum corno, causa vómitos a Deus, enoja as pessoas com um mínimo de bom senso e de empenhamento no mundo, embora continue a dar muito jeito a certos políticos corruptos que nunca dispensam esses ambientes, sobretudo, em tempo de campanha eleitoral (similes cum similibus = os corruptos e hipócritas dão-se bem uns com os outros).
Entretanto, não sei se repararam num pormenor chocante que a frase que transcrevi da folha paroquial e com a qual abri esta minha reflexão, contém, e que é revelador de que os párocos que assim actuam não olham a meios para obterem os seus fins. E os seus fins é juntar dinheiro e mais dinheiro. Eu reparei e por isso faço aqui o devido destaque. O pormenor é este: Os párocos que assim actuam, afirmam, por um lado, que têm “direito à sua subsistência”; e que esta será garantida com “a oferta de um dia de salário de cada família”. Por outro lado, esses mesmos párocos cobram dinheiro - e que dinheiro! - por cada “intenção” de missa que as pessoas que já lhe dão um dia de salário lhe encomendarem! Quer dizer: para lá da “oferta de um dia de salário”, feita anualmente, para a “subsistência” do pároco, as pessoas que quiserem ter uma ou mais missas pelas suas “intenções”, têm que lhe pagar esse “trabalho” por fora, que, supostamente, já não será para a sua “subsistência”, mas para o seu esbanjamento, para os seus excessos, para os seus luxos!
Mas há mais: Se os párocos que assim actuam, exigem que lhes paguem por cada “intenção” de missa a verba que a própria Diocese impõe como “emolumentos”, é também de supor que eles exijam outros pagamentos por outros “trabalhos” que alguém lhes peça, como por exemplo, por cada baptismo, por cada casamento, por cada funeral. E, se assim for, é mesmo um ver se te avias!... E um tal fartar, vilanagem!...
O que mais me dói, no meio de tudo isto, é que continue a haver pessoas que aceitam, como uma fatalidade, toda esta pouca vergonha e não gritem com palavras e com a própria vida: Basta! Na verdade, se a Igreja, nas paróquias católicas, não é capaz de se deixar conduzir pelo Evangelho de Jesus e pelo seu Espírito; se a Igreja, nas paróquias católicas, se comporta como uma empresa de serviços mais, entre as outras empresas de serviços que estão aí no mercado, então que sejam as pessoas a tomar uma posição radical: afastem-se desses espaços duma vez por todas. Não continuem a confundir Deus e Fé em Deus com esta pouca vergonha, com este negócio eclesiástico. E saibam que para poderem viver e alimentar a sua Fé em Igreja, as pessoas não precisam para nada das paróquias católicas transformadas em empresas de serviços religiosos, nem dos párocos-funcionários que, à frente delas, descaradamente as sugam e enganam. A Igreja de Jesus é muito mais simples e gratuita. Basta, como diz o próprio Jesus, no Evangelho de Mateus, que dois ou três nos reunamos em seu nome, seja onde for, até num café, em plena natureza ou na casa de alguma, algum de nós, e ele sempre estará no nosso meio. Sem nos exigir qualquer dinheiro em troca. A pequenina Comunidade cristã de base que assim se congrega pode e deve escutar a Palavra de Deus, Partir/Comer o Pão e Derramar/Beber o Vinho em memória de Jesus e impulsionar-se a si mesma e a todos e cada um dos seus membros, para se fazerem próximos das pessoas que mais sofrem e que mais são excluídas e marginalizadas, até que elas se levantem e andem! Experimentem e verão.
Por mim, é assim que vivo como padre/presbítero da Igreja do Porto. Longe das paróquias católicas. Longe dos seus templos e dos seus altares. Bem próximo das pessoas, sobretudo, das mais fragilizadas e marginalizadas. E tudo o que faço como tal é de graça, evidentemente, como nos recomenda o Evangelho: “Dai de graça o que de graça recebestes”. Tenho para mim que tudo o que não for assim, é pecado. Como tal, não pode ter a marca, o selo, do Espírito Santo!
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ESPAÇO ABERTO
Editorial COM ESPERANÇA
É grande a minha esperança. Nas recentes eleições legislativas antecipadas para a Assembleia da República, mobilizámo-nos como país e, com o nosso voto depositado nas urnas, corremos politicamente com o desgovernado governo de Paulo Portas e de Santana Lopes. Pelo caminho, ainda demos mais força e mais voz aos Partidos políticos que defendem os valores da Esquerda, indubitavelmente, mais próximos dos valores do Reino/Reinado de Deus, e já empossámos o novo Governo, encabeçado por José Sócrates, do PS, o qual, felizmente, resistiu à tentação de acolher no seu seio certos vícios políticos do aparelho partidário, de onde emana, ao mesmo tempo que teve a audácia de se abrir à sociedade civil, da qual o seu Governo também emana, e ainda mais do que do aparelho partidário.
Estas mudanças, só por si, são fonte de esperança, porque um Governo pior do que o imediatamente anterior seria de todo impossível. É verdade que as mulheres estão muito pouco presentes no novo Governo. E as poucas que estão, aparecem colocadas à frente de ministérios de menor peso político.
Este facto, que aqui registo com desagrado e bastante perplexidade, constitui uma falha substancial que pode vir a revelar-se irreparável, ao longo do mandato.
Mesmo assim, prefiro sublinhar, nesta hora, o óbvio, isto é, que ninguém, mulher ou homem, foi ou está a ser impedido de participar politicamente no processo de recuperação do país. Para este processo, todas, todos, podemos e devemos continuar mobilizados, tanto ou mais que os deputados no novo Parlamento e que os ministros e os secretários de Estado no novo Governo.
O que quero dizer com isto é que a mobilização a que fomos capazes de dar corpo nestas eleições legislativas antecipadas de modo nenhum é para suspender agora. Pelo contrário, tem que prosseguir, sem desfalecimentos. Com muita imaginação. Muita inteligência. Muita vigilância. E também com muita confiança. Muita alegria. Muita determinação.
Não basta termos mudado o Parlamento e o Governo. Foi bom, muito bom, mas é insuficiente. É imperioso que mudemos também o país. Digo mais: É imperioso que nos mudemos também a nós próprias, a nós próprios, como povo português.
E aqui é que as mulheres que foram perigosamente subalternizadas pelo primeiro-ministro na formação do XVII Governo constitucional, têm um insubstituível papel a desempenhar, provavelmente, ainda mais decisivo do que o dos membros do Parlamento e do Governo.
Se tal vier a acontecer e tem que acontecer, sob pena de falharmos como país, e não apenas como Parlamento e como Governo então acabaremos por reconhecer que até terá sido bom as mulheres terem ficado tão pouco presentes no Governo e no Parlamento, embora, neste, as mulheres tenham sido tidas mais em conta por parte dos partidos de Esquerda, do que pelos partidos da Direita.
Tenho para mim que é a Política, não o Poder, que muda o mundo e que salva a Humanidade. Embora, desde que existe mundo, os poderosos sempre nos tenham querido convencer - e com êxito, reconheça-se - que é o Poder que muda o mundo e que salva a Humanidade. Não é. Chegou-se inclusive ao cúmulo do descaramento de ensinar e nisso as Igrejas ajudaram os poderosos com ambas as mãos e com uma teologia feita de mentira e de idolatria!... que todo o Poder vem de Deus. Uma completa barbaridade teológica, pelo menos, no âmbito da teologia jesuânica, de consequências tremendas na História da Humanidade, a pior das quais, é, porventura, a reiterada sacralização dos sempre cruéis e perversos Impérios de turno, sem esquecer o Império eclesiástico católico romano.
Com essa sua mentirosa propaganda, ensinada até nas Universidades católicas como Evangelho de Deus, os poderosos têm conseguido assegurar e até aumentar sem grandes custos os seus inúmeros privilégios e justificar todos os seus crimes.
Aliás, na boca deles, nunca são crimes. São sempre acções/intervenções necessárias e oportunas, destinadas a manter a Ordem estabelecida e a paz de cada Império de turno, a qual, como é manifesto, nunca coincide, nem nunca poderá coincidir com aquela paz por que aspira a Humanidade e que só pode ser a Paz que vive casada e aos beijos com a Justiça, com o Pão em todos os lares e com a Liberdade a ser protagonizada por todas as pessoas e por todos os povos.
O Poder corrompe. Perverte. Mente. Exclui. Tudo compra, até consciências. Tudo vende, até a honra e a palavra dada. Submete. Infantiliza. Humilha. Oprime. Aterroriza. E, no limite, mata. Nunca olha a meios para atingir os seus fins, os quais nunca andam dissociados dos privilégios dos poderosos.
Não é assim a Política, nomeadamente, quando ela vive descasada do Poder e recusa liminarmente andar de mão dada com o Poder. A Política, só por si, diz com poesia e profecia. E com cuidado. E com vida. E com ternura. E com afectos. E com bem-estar. E com felicidade das pessoas e dos povos.
Lá, onde o Poder exclui, a Política integra. Onde o Poder oprime, aterroriza e infantiliza pessoas e povos, a Política liberta, desperta potencialidades e faz nascer sujeitos. Lá, onde o Poder faz caridadezinha social, para melhor se perpetuar, a Política faz nascer protagonismos pessoais e comunitários que podem, um dia oxalá não seja muito distante chegar a dispensar o Poder que hoje, disparatadamente, ainda temos como insubstituível, porque ele, habilmente, sempre se tem feito passar por Política, quando, efectivamente, é a sua sibilina negação.
Se a Política vem de Deus, melhor, se a Política é o próprio Deus-em-acção-no-mundo-e-na-História, o Poder vem do Demoníaco, melhor, é o Demoníaco ou o anti-Deus, ou a anti-fraternidade/sororidade-em-acção-no-mundo.
A Política é Força criadora e libertadora na História, cujo Sopro vem sempre de fora dos circuitos do Poder e, por isso, é sempre fecundo, é gerador de Fraternidade/sororidade universal. O Poder é uma criação dos seres humanos, nomeadamente, daqueles que vêem nos demais seres humanos, não irmãs e irmãos a quem amar, mas rivais, concorrentes, inimigos a neutralizar, dominar ou mesmo abater. É uma criação, não do Espírito do Deus vivo nos seres humanos, como a Política, mas da dimensão cainítica dos seres humanos e das instituições por eles criadas e mantidas ao longo dos séculos (a mais antiga de todas é, sem dúvida, a religião!), como pesos mortos, nem que, para as defender e conservar, eles tenham que roubar, matar e destruir sem dó nem piedade não só os seus opositores, mas o próprio planeta que nos serve de casa a todas, todos.
De Jesus, o de Nazaré, sabemos que sempre recusou o Poder, não a Política, evidentemente. Na sua percepção do Real, Jesus sempre colocou o Poder no âmbito do Demoníaco, por isso, no âmbito da Tentação, melhor, do Tentador que sempre está interessado em tornar inumanos os seres humanos. Em consequência, Jesus nunca aceitou ir pelo Poder. Nem fez jamais qualquer pacto com ele. “A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Isto é: Ao Poder o que é do Poder, e à Política o que é da Política.
Enquanto durar a História, sempre teremos Poder e Política. O Poder puro mata tudo o que tocar. O que o torna suportável e tolerável é que ele sempre procura actuar vestido de Política. Mas só até ao ponto em que nunca ninguém ouse provocá-lo até ao limite, ou desmascará-lo por completo. Jesus, o de Nazaré, atreveu-se a fazê-lo e logo foi morto na cruz, como o maldito por antonomásia.
Do novo Governo, espero que tenha a sabedoria e a coragem de ser mais político do que poder. Que tome decisões lúcidas e corajosas destinadas a cuidar da vida das pessoas, das populações e da Natureza. Que enfrente o Poder, lá onde ele está alojado e não suporta sequer a ideia de vir a perder privilégios adquiridos.
Mas para que o Governo possa realizar esta ingente Acção Política, nas múltiplas frentes em que essa Acção tem que realizar-se para dar fruto, é de todo necessário que o país que se mobilizou para votar, agora não desmobilize politicamente nunca mais. A começar pelas mulheres. As poucas que estão no Governo e a quase totalidade das outras que estão fora do Governo, mas não estão fora do País. Nem podem estar de fora da Política. É hora!
Deixemo-nos de lamúrias, de crendices, de beatices, de fatimices, de milagrices. Recusemos o Poder e os privilégios com que ele sempre tenta comprar as pessoas e as suas almas. Mas vivamos em cheio a Política, ao jeito de Jesus. Veremos o país a passar (Páscoa) da depressão para a festa da vida. Vosso companheiro e irmão
Mário, presbítero da Igreja do Porto.
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Outras Cartas
O GAIATO E OUTROS TEMAS
E-mail.
Victor Sismeiro
: É curioso: acabe-se com a Casa do Gaiato porque ela faz com que haja crianças para a fazer crescer. Desculpa Mário, mas isto é muito cinismo.
Tenho para mim que as instituições como a Casa do Gaiato são um produto da sociedade que, como ela, não evoluiu. Só se deve lamentar a existência da Casa do Gaiato porque há crianças abandonadas pelos familiares que não têm emprego, que passam fome, que não têm habitação, que não têm verdadeiro acesso à educação e à saúde ou que morreram.
Porra, estou farto de moralismos politicamente correctos a propósito e a despropósito. Tenho suficiente respeito pelo trabalho e dedicação de alguns - cada vez menos - espíritos solidários para os julgar e os condenar na praça pública e, ainda por cima, tendo como pretexto um relatório feito por senhoras - digo bem, senhoras - sentadas no conforto dos seus empregos tipo champô-para-cabelos-pretos e champô-para-cabelos-castanhos.
Concordo que na Casa do Gaiato possa haver comportamentos condenáveis e que esses, e apenas esses, devem ser revistos. Pergunta às senhoras donas do relatório para onde é que elas pensam mandar as crianças que, entretanto, lhes aparecerem a precisar de apoio!?
Sabes que mais? Estou farto de ouvir críticas de quem nada faz, OBJECTIVAMENTE, para minorar os males desta sociedade.
Mais respeito por quem é solidário, exige-se. Depois, tratemos todos de fazer alguma coisa por esta sociedade, nomeadamente começando a deixar de ter o olhar fixo no nosso próprio umbigo.
Um abraço fraterno,
N.D.
Caríssimo Victor: Compreendo a tua indignação. A curta Nota Editorial sobre a Casa do Gaiato, inserida na anterior edição do FRATERNIZAR, está escrita de maneira a não deixar ninguém indiferente. Nem mesmo as pedras! Aliás, assinantes houve não passou da meia dúzia que cortaram de imediato com o Jornal, por causa desta mesma Nota Editorial. Compreendo a tua indignação, mas nem assim adopto o teu ponto de vista. Continuo a achar mais saudável o ponto de vista expresso na Nota Editorial. Creio que tu próprio, hoje, mais a frio, te identificarás mais com o que nela se escreve. Com a tua reacção indignada, acabas, sem querer, por dar ainda mais força a todas aquelas pessoas e muitas são que acham muito bem que haja casas do gaiato para acolher meninos e rapazes que não têm onde cair mortos e, por isso, nunca chegam a indignar-se com a sua perpetuação no tempo. O pesadelo que seria para essas pessoas a existência de meninos e rapazes que não têm onde cair mortos transforma-se em sentimento de satisfação, pelas esmolas que regularmente enviam para as diferentes casas do gaiato, que proliferam tanto mais quanto maior é o número de crianças e rapazes que não têm onde cair mortos. O crime já não é continuarmos indefinidamente a produzir meninos e rapazes que não têm onde cair mortos. O crime é a denúncia, como a que faz a Nota Editorial, de soluções concretas que, de pontuais e de emergência, depois se arrastam no tempo como definitivas e acabam até por ser apresentadas como exemplares e eticamente virtuosas, cujos mentores são achados dignos de beatificação e de canonização por parte da Cúria romana e de todos os fabricantes de pobreza em massa e de pobres. Sabes bem, caríssimo Victor, que não vou por aí. Em nome do Evangelho libertador de Jesus. Em nome da dignidade humana. E também em nome dos meninos e rapazes que não têm onde cair mortos e que, mais dia menos dia, acabam por cair numa dessas casas e carregar com esse ferrete para o resto da vida.
Sabes tão bem como eu que a caridadezinha, quando substitui a justiça e nos dispensa da luta martirial e duélica pela justiça, é um insulto. Pode não se converter em causa da existência de cada vez maior número de meninos e rapazes que não têm onde cair mortos, mas ninguém pode dizer com verdade que não dá um jeito do caraças à perpetuação do Sistema de iniquidade. A verdade que liberta é muito mais radical. E neste caso pode ser formulada assim: a aplicação duma má solução para um grave problema social é sempre pior que a não-existência duma boa solução. Porque com a má solução, indefinidamente arrastada no tempo, nunca mais a existência de meninos e rapazes que não têm onde cair mortos nos tira o sono. Para tanto, lá estão as casas do gaiato como soporíferos. E lá está a caridadezinha institucionalizada, com o seu numeroso exército de benfeitores, para nos desmobilizar das martiriais e duélicas lutas pela justiça, essas mesmas em que Jesus, o de Nazaré, por se ter metido até ao extremo, acabou por perder/dar a própria vida. É por estas (impopulares) águas que procuro navegar e ser solidário. Ou nelas não continue hoje a soprar forte e fecundo o Espírito de Jesus. E o Espírito do nosso querido Pe. Américo, definitivamente ressuscitado.
Lisboa. Flávio: Ao remeter um cheque para pagamento da assinatura do Jornal, relativa ao ano de 2005, aproveito para lhe enviar um abraço amigo e para lhe significar quanto aprecio os seus escritos e a expectativa com que fico aguardando o “advento” dos mesmos.
Conduzidos como carneiros de Panurgo, somos mais de 99% do povo de Deus a quem não é concedido o direito à palavra e à expressão, encarregando-se os menos de 1% a Igreja clerical de falar e pensar por nós, de tudo decidir, regulamentar e controlar, com a pretensão de aprisionar nos muros do Vaticano até o Espírito que dá vida, num sistema concentracionário e absolutista como não há outro no mundo um único homem concentra em si o poder legislativo, executivo e judicial!...
Por isso, quando leio os seus textos, sinto-me como um cachorro a quem, no jardim, tiram por momentos a trela, ou como quando, num ambiente abafadiço, se abre uma fresta para que entre o ar.
Precisamos de muitos proféticos padres Mários entre nós. Não desista, não nos prive desse tónico de alma, desse suplemento de inteligência e de intrepidez. Que aquela “Presença que continuamente o desafia e desinstala” lhe dê força para que o Pe. Mário nos ajude também a desinstalar-nos. Permita que, com muita amizade, partilhe consigo dois momentos natalícios que gratamente lhe dedico. Com muita estima.
EH! NATAL
Nasceu em Belém,
E por Deus nos foi dado,
Mas foi feito refém
Das leis do mercado.
E já nem sequer choca
Os cristãos corações
Usá-lO como troca
Nas suas transacções.
Enquanto vão cantando
A Deus nas alturas,
Vão na terra aumentando
O total das facturas.
E a festa do Natal
Não é mais, em resumo,
Que um grande festival
De comércio e consumo.
Tal é o encandeamento
Pela febre do ganho,
Que neste nascimento
Nem sequer há Menino,
Só a água do banho.
ENCARNAÇÃO
Divino senhorio
Em tal humilhação
É o maior desafio
À humana compreensão!
Que o nosso Criador
Se torne criatura
É um gesto de amor
Ou de loucura?
Mas mesmo no meio
Da dúvida mais densa,
Meu Deus, eu creio
Contra a minha descrença.
Lisboa. A. Costa: Cumpre-me felicitá-lo pela vossa continuada acção positiva. No entanto, considerando que nas circunstâncias da vida existe sempre um “mas”, permita-me a liberdade de expor o seguinte:
1. É importante procurar-se uma maneira de apresentar as verdades da nossa fé. E o caro pe. Mário tem tido essa preocupação. Qual profeta de aproximar Deus das gentes, possui o dom de convencimento através duma corajosa liberdade de expressão, onde contra o fanatismo supersticioso e devoto tem apelado para a sensatez.
2. O n.º 155, de Outubro/Dezembro de 2004, publicou um e-mail da leitora e nossa irmã no Senhor, Lena Gonçalves, que expõe incertezas acerca do polémico assunto da vida após a morte. Responde V. também com dúvidas!
3. Ora, comparando a vossa actual resposta com o escrito no seu livro “Chicote no templo” Morte: o fim da vida humana, ou o parto mais difícil?, pgs. 207-212, 2.ª edição 1971 nota-se uma discrepância relativamente ao controverso tema.
4. Considero que a matéria em questão é sempre actual e que racionalmente devemos seguir o caminho mais lógico. A carta do leitor e nosso irmão no Senhor, Manuel da Natividade, da Brandoa, também publicada no citado n.º de Fraternizar, além de expressar assuntos que me parecem merecer essencial reflexão, aponta como sublime a ideia da reencarnação. Também eu considero como racionalmente lógico e sublime o conceito da reencarnação. Lamento que V. não tenha expressado um comentário àquela referenciada carta.
5. Possui o pe. Mário as suas opiniões teológicas com as quais sou livre de concordar ou não. Vivemos no período da racionalidade; no tempo das grandes transformações, aonde os “porquês” têm que fazer parte do nosso dia a dia. A dúvida é um alimento da alma. Cada um de nós deve examinar e explicar o que se passa, reflectindo com base no que pensa e nos dados de que dispõe. Quem tem razão? Todos terão alguma razão. Nenhum terá toda a razão.
6. Pena é que a Comunidade onde o pe. Mário se insere seja local e não nacional. Estamos a assistir à queda do sector eclesial e inerente avanço do seu descrédito. Os tempos mudaram e hoje a Igreja sente o muito que infelizmente perdeu e continua a perder. É oportuno um exame de consciência: onde é que nos encontramos? Aonde nos trouxe Cristo? Onde é que desviamos do Evangelho?
7. A organização eclesial insiste na defesa da sua “autoridade” e das suas “verdades”. Continue, pe. Mário, a colaborar na difusão de um caminho lógico e racional para a credibilidade de uma Igreja livre, consciente e responsável.
N. D.
Caro A. Costa: Se ler com atenção a resposta que partilhei com a leitora Lena Gonçalves, verificará que não lhe expus dúvidas. Disse-lhe e digo a si e a todas, todos coisas muito sérias e profundas. Difíceis de realizar, aqui e agora. Não adiei para depois da morte. Nem para uma nova encarnação. Convidei-a a viver radicalmente o aqui e agora. Em cada dia, como se fosse o último. Porque, efectivamente, só temos esta vida como oportunidade. Pelo menos, é assim que vejo e vivo. E testemunho. O que vem a seguir, sei, pela Fé que partilho com Jesus de Nazaré, que será infinitamente mais belo, mas não sei como. Ninguém sabe. Sei que não regresso nunca mais ao aqui e agora. Que a partida, quando acontecer, é um parto para diante. Irreversível. Único. Para a plenitude. Não por méritos meus. Mas por pura Graça de Deus que, como testemunha Jesus, é Deus de vivos e não de mortos. Nem de reencarnados!
E-mail.
Graça Borges
: Olá Pe. Mário! Recebemos o Fraternizar e gostamos da homenagem que prestou ao meu pai. Realmente não esteve presente na missa do funeral do meu pai nenhum bispo da nossa Igreja. Estavam em Fátima, na Conferência Episcopal. Na missa do 7º dia não sei onde estavam...
É de referir que na missa do funeral esteve presente o D. Fernando Soares, Bispo Anglicano. Talvez nessa Igreja se dê mais importância às pessoas do que às instituições...
Se me pergunta se penso que deveria ter estado um bispo da minha (nossa) Igreja, numa dessas cerimónias de “despedida” do meu pai, respondo-lhe que sim. O meu pai gastou a sua vida ao serviço da Igreja, na diocese do Porto, mas também ao nível nacional. Dedicou-se à catequese das crianças da Sé durante a sua juventude e passou os últimos anos catequizando adultos num colégio salesiano. E, neste espaço de tempo que mediou a sua juventude e a entrada na terceira idade, dedicou-se de corpo e alma à Acção Católica, na JOC e LOC. “Saiu” da igreja, da protecção divina que existe dentro dos templos e desceu às ruas, bateu a portas fechadas, sujou as suas mãos na construção de um mundo mais justo para todos. Compreendeu que não poderiam existir “bons” (verdadeiros) cristãos, sem se cuidar primeiro da dignidade humana. A Igreja não precisa de homens dependentes de Deus, mas de homens livres com capacidade de Amar. Não teve tempo para enriquecer, o emprego servia apenas para sobreviver. Não teve tempo para acompanhar passo a passo o crescimento dos filhos, pois passava longas horas fora de casa.
Tenho pena de nenhum bispo ter estado lá... não pelo meu pai, pois não lhe faltaram amigos (padres e leigos), que o acompanharam naquele e em tantos outros momentos da sua vida. Tenho pena por eles terem perdido um momento único de fé, de comunhão, de eternidade...
O meu pai tinha um sonho e eu herdei-o. Que a hierarquia desse as mãos aos leigos e todos fossem apenas (o mesmo) Povo de Deus. E aqueles que fossem escolhidos para pastores, conhecessem pelo nome cada ser do seu rebanho e os acompanhassem no seu desenvolvimento humano e espiritual. Talvez um dia o sonho do meu pai se torne realidade e o Espírito de Deus seja acolhido por todos nós! Um beijo.
Amarante. António Augusto: Com a presente, tomo a liberdade de juntar um cheque de… euros, sendo… euros destinados ao pagamento da assinatura do Jornal para 2005, e… euros para adquirir (e custear os portes de correio) um exemplar do n.º 155, de Out/Dez 2004 que acabo de ler na íntegra, mas cujo original tenho de devolver ao Amigo que fez o favor de mo emprestar.
O seu jornal é incómodo, incómodo e perturbador, fica a ecoar dentro de nós. Se bem entendi (ou assim o entendi!); espicaça-nos, responsabiliza-nos; não desculpa o marasmo a que nos devotamos, exige que, como seres humanos, nos interroguemos e, como co-responsáveis do que se passa nesta aldeia global, interroguemos o papel das instituições (nomeadamente, o Estado e a Igreja). Ser cristão, ser, enfim, qualquer coisa (seja ateu, seja cidadão, seja passante desta vida…) não é fácil depois de o lermos!
Com os melhores cumprimentos e obrigado por tudo quanto tem feito de genuíno ao longo da sua vida.
Macieira de Cambra. M.ª Emília: Faço votos para que esteja de boa saúde, pois em relação a boa disposição sei que não lhe falta, e espero que continue sempre assim. Só agora dou sinal de mim. Não que me tenha esquecido daquela tarde que passámos a conversar numa confeitaria do Porto, mas entretanto surgiram alguns problemas de saúde a um familiar meu, e o tempo foi passando. Tenho recebido o Jornal, de que gosto muito. Continue. Um abraço, até à próxima.
Lisboa. Jorge: Sou o Jorge que lhe enviou a morada para a assinatura do Jornal. Lamentavelmente, perdi o meu pai para sempre, no dia 9 de Janeiro 2005. O meu pai era um alfarrabista da zona de S. Domingos de Benfica, um amante dos livros, um amigo de Abril e um admirador seu. Gostaria de lhe transmitir que todas as leituras que fiz dos seus textos foram importantes para mim, na altura da morte do meu pai. Os seus artigos publicados em livros como QUE FAZER COM ESTA IGREJA? foram úteis e deram-me força e coragem para resistir a momentos tão difíceis como estes que eu ainda estou a atravessar. Afinal, posso ter perdido o meu pai, de uma maneira física, mas a sua imagem e memória permanecem no meu interior.
Um grande bem-haja para si e que continue a escrever por muitos e bons longos anos. Um abraço.
N.D.
Caro Jorge: Porque há-de dizer que perdeu o seu pai? Quando a minha mãe, primeiro, e o meu pai, depois, morreram/ressuscitaram, eu nunca disse que os perdi. Em comunhão e em sintonia com a mesma Fé de Jesus, que me leva a experimentar, como o levou a ele, que a vida nunca acaba, sempre se transforma, procurei, nesses instantes, abrir-me de imediato à vida transformada da minha mãe e do meu pai. Por isso, nunca me senti órfão. Senti-me permanentemente acompanhado. Nem a mãe, nem o pai me deixaram. Nem eu deixei a mãe e o pai. Vivemos, desde então, uma comunhão de outra ordem de grandeza que me alimenta e me faz ser o homem que sou, comprometido com este mundo e aberto ao mundo em que este já se está a transformar. Experimente também. Olhe que seu pai vive para sempre, e não apenas como imagem e como memória. O Jorge não o vê, como também não vê a Deus. Deixe-se surpreender pela sua presença e verá que nunca mais estará sozinho. A comunhão é intensa e fecunda.
Fiães. Mário Malheiro: Junto envio cheque para pagar a minha assinatura do Fraternizar e desejar que a força do Espírito de Deus continue a abençoar o teu trabalho-militância, para que a mensagem de Jesus seja melhor assimilada e vivida.
Fico desejando que Deus te dê muita vida e saúde para que pelo menos o Fraternizar não se extinga, pois ele é como um farol que ilumina a minha vivência cristã. Aceita um fraternal abraço deste que muito te estima e admira a tua obra.
Cacém. Olívia: Recebo há alguns meses o vosso Jornal. Um cunhado deu-mo a conhecer e, embora católica, não concordando com algumas posições da Igreja, “ouvi” a voz que faltava.
Tenho uma formação académica que me dá possibilidade de ver em todas as religiões universais os mesmos princípios e os mesmos fins: servir o poder sócio-económico-religioso-político instituído. É uma leitura fácil de fazer e fácil de perceber: basta estar atento e ver os sinais.
Li, recentemente, “Maria Madalena e o Santo Graal”, de Margaret Starbird e… explica porque a mulher é desprezada na Igreja! Faz sentido. À luz da Antropologia, faz sentido. À luz da razão, também.
Não quero alongar-me mais. O vosso tempo é precioso. Junto cheque… que só lamento não ter podido enviar há mais tempo. Obrigada.
Massamá. Leitor devidamente identificado: Tornei-me leitor assíduo tanto do Jornal Fraternizar como dos livros que amiúde publica por um acaso do destino. Foi um colega de trabalho e amigo, agora aposentado com quem partilhava afinidades políticas, que me fez tomar conhecimento das suas ideias. Confesso que nunca pude imaginar até então que as denúncias que sempre considerei pertinentes e urgentes para desmascarar todas as hipocrisias perpetradas pela Igreja católica (bem como por outras que proliferam por aí) pudessem justamente ser divulgadas por um presbítero da mesma Igreja católica.
Desta forma, continuo a ler avidamente todos os seus comentários, que considero verdadeiramente portadores de mensagens de esperança e sérias tentativas de levar as mentalidades a combater o “ostracismo intelectual” e os lugares comuns impostos pelo “status quo”, passando efectivamente a pensar por si próprias.
Não queria no entanto acabar esta carta (junto envio o meu contributo para mais uma assinatura do Jornal) sem colocar uma série de dúvidas sobre as quais reflicto com alguma recorrência e que me deixam a maior parte das vezes com um sentimento de que é quase impossível ou extremamente difícil algum dia a Humanidade ser realmente consciente/madura/dona do seu destino.
Eis as dúvidas e receios que tenho e vou agora partilhar consigo:
1. Como conseguir que a mensagem duma sociedade igualitária passe e informe todos os homens, quando até no seio do meu partido que se supõe uma força progressista e de emancipação dos homens e de liberdade, são violentamente atacadas todas as tentativas de democratizar a sua estrutura interna, em nome de dogmas inquestionáveis (no que são muito parecidos com a Igreja católica) na opinião dos seus dirigentes, que resultam sempre na decisão “superior” de um comité de “iluminados” ter de ser acatada pela maioria apenas com simples emendas e rasuras superficiais?
2. O que dizer das forças de esquerda em geral que, no seu actuar, tomam decisões a favor ou contra qualquer medida, não tendo em vista o seu real mérito ou oportunidade, nem tão pouco os ideais que tais forças defendem, mas apenas numa perspectiva verdadeiramente maquiavélica de conquista do poder e sua manutenção a qualquer preço?
3. Como conseguir que os jovens acordem para realidades diferentes do capitalismo selvagem, se desde que começam a falar, a sociedade os informa que o ideal de vida e a medida pela qual o seu sucesso será avaliado será a quantidade de bens que possuem, independentemente de quantos crimes contra o seu semelhante ou contra o próprio planeta cometam?
4. Como conseguir criar consciência política/interventiva nas pessoas, se já ouvi a muitos homens e mulheres, gente trabalhadora e humilde, quando confrontada com a corrupção gritante dos nossos governantes, afirmar peremptoriamente: “Deixe lá, eu se lá estivesse faria a mesma coisa”; ou: “O homem está a orientar o seu futuro e você não faria o mesmo no lugar dele?”
5. Será mesmo possível transformar esta sociedade? O que será preciso? A que níveis de degradação teremos de chegar, até finalmente se começar a ouvir: BASTA!?
Teria mais coisas para lhe perguntar, mas deixo aqui apenas estes “tópicos de debate” que penso já não serem poucos. Despeço-me com um abraço fraterno, pedindo-lhe que em caso de publicação desta carta, mantenha o anonimato sobre a minha identidade.
N.D.
Todas as questões que me coloca são manifestamente oportunas. Não tenho respostas na manga. Mas posso contribuir com algumas achegas, para que nos saibamos situar de forma mais correcta e mais esperançada na História. Eis:
1. A História é um processo aberto. Dialéctico, diria o nosso companheiro e irmão mais velho, Karl Marx. Por isso, todos os conservadores e privilegiados deste mundo detestam tanto a História. E não se cansam de repetir que já estamos no fim da História, na esperança de que as maiorias empobrecidas e excluídas da mesa da vida se convençam e desmobilizem das lutas libertadoras e transformadoras que a História como processo aberto que é sempre propicia e reclama. A sociedade igualitária ainda não está aí? Nem no seu partido? Mais uma razão para não alinhar nunca na mentira repetida pelas minorias dos privilégios de que estamos no fim da História. Não estamos. E muito mal avisados andaremos, se desmobilizamos das lutas e nos convertemos em meros consumidores dentro do Sistema. A sociedade igualitária só existe como utopia no nosso horizonte, a iluminar os nossos olhares de combatentes e a aquecer os nossos corações de militantes. Os pequenos passos que damos nessa direcção, em cada geração que vem a este mundo, são os únicos que garantem futuro ao nosso presente. Quando fazemos da vida um combate sem tréguas por uma sociedade igualitária, esta torna-se realidade nos nossos corpos militantes. Por isso, o que é decisivo em cada geração que vem a este mundo são posturas de combate político, cada vez mais inteligentes e cada vez mais fecundas, a médio e a longo prazo. A desmobilização geral que hoje está na ordem do dia, sobretudo, no mundo ocidental, é um fenómeno meramente episódico e circunstancial. Aproximam-se tempos de combate nunca antes protagonizados, e que Império algum conseguirá deter e desmobilizar. Não será o fim da História, mas um Novo Começo, de muitos outros novos começos. Armemo-nos de paciência e de esperança. E de muita ternura. Porque os combates a travar no próximo futuro já não serão marcados pela violência do Sistema. Serão combates que vestem ternura e respiram afectos.
2. As forças de esquerda, tal como hoje as conhecemos, têm os dias contados. Foram todas geradas pelo Império. Para o beneficiar e viabilizar. Por isso, estão inquinadas e feridas de morte. O discurso delas soa a alternativo, mas são palavras sem Sopro, sem Espírito. Reforçam o Império que as pariu, quando mais parece que o combatem. Alimentam-se do Império e dos privilégios que ele distribui entre os seus servidores. Nascerão outras forças de Esquerda. Sopradas pelos clamores das vítimas do Império. Protagonizadas pelas próprias maiorias empobrecidas e excluídas. Pela Humanidade, contra o Império.
3. Os nossos jovens, quando deixam de ter sonhos e projectos, envelhecem precocemente. À presente geração de jovens, o Império meteu-lhes o bichinho do consumo e eles adormeceram. São conduzidos, quando deveriam ser condutores. Há momentos assim na História. Não duram sempre. Confiemos. Já está aí a surgir outra geração de jovens que resistirão ao vírus do Império. Exigirão ser criadores, em lugar de consumidores. Serão poetas e profetas. Ao jeito de Jesus de Nazaré. Jovens no mundo, sem serem do mundo, por isso, irmãs, irmãos universais. Animados de projectos e de sonhos. Com eles, o Império será obrigado a ceder mais protagonismo à Humanidade. A luta será duélica. Mas empolgante. Já se vêem aí alguns sinais anunciadores deste Tempo Novo. Não os vemos? Será que o Império nos fez cegos?
4. Consciência política e interventiva? Um pouco mais de tempo, e ela será o pão de cada dia da Humanidade. Basta recordar que Deus, o de Jesus, do que verdadeiramente gosta é de Política, não de Religião. Até aqui, foi o tempo das religiões que nos alienaram e domesticaram. As pessoas metiam-se nos templos, em lugar de se meterem no mundo. Cuidavam das deusas e dos deuses, em lugar de cuidarem da Terra. Mas esse tempo está a passar. Vem aí o tempo da Política feita pela Humanidade contra o Império. A Política como o que os seres humanos, todos os seres humanos, temos de melhor. Por isso, sem espaço nem oportunidade para a corrupção que o Império desperta e alimenta.
5. Mas então não vê que os seus anseios de mudança já são sinal de que o mundo está a mudar? A transformação está em curso. Não se deixe cegar pelo Império. É ele que não quer que as pessoas vejam, para não se mobilizarem. Veja. Confie. Quebre as suas rotinas. Liberte-se do pessimismo. Deixe as trevas do Império. Venha para a luz. Na luz, tudo é diferente. O Império ainda está lá, mas já sabemos que é o Inimigo da Humanidade e, em lugar de seguirmos o seu discurso, resistimos-lhe e desmascaramo-lo. Não espere pelo momento de dizer BASTA! Este é o momento. Viva-o. Vivamo-lo.
Penafirme. Manuel Nunes: Junto envio cheque relativo à minha assinatura do Fraternizar. Espero e desejo que esteja bem e que continue a lutar por que o ano 2005 seja bom.
A leitura do Fraternizar é para mim sempre refrescante, revigorante e estimuladora das minhas próprias lutas. Contribui para que eu avive a minha consciência de que, afinal, não estou só na coragem de dizer “não” e na ousadia de tentar desbravar outros caminhos e de acender outras luzes que propiciem e favoreçam que Aquele que é para nós o Caminho e a Luz o possa ser para outros.
Ultimamente, tem havido alguns sinais animadores que mostram que, afinal, não estamos sós. Saliento dois: 1. A última Semana Bíblica Nacional (dos Capuchinhos: o Frei Herculano Alves, o Frei Fernando Ventura e o Frei Francolino Gonçalves foram corajosos na denúncia de graves males que atingem as estruturas exteriores da Igreja que amamos). 2. O último encontro de jovens, promovido pela Comunidade de Taizé (o irmão Roger foi corajoso na denúncia dos obstáculos que alguns teimam em erigir para dificultar a urgente tarefa da reconciliação entre os cristãos). Com um abraço amigo.
Alcochete. Miguel: Sendo destituído de fé cristã e agnóstico militante, gostaria todavia de continuar a receber o Fraternizar, por ele constituir um exemplo de coragem e de dedicação fundamentais para o desenvolvimento da consciência cívica dos cidadãos. Julgo, aliás, que o debate desassombrado e franco e a dialéctica são imprescindíveis à evolução da Humanidade no seu duplo aspecto: moral e intelectual.
Junto envio cheque de… euros, para assinatura respeitante a dois anos. Votos de ânimo e de boa saúde para o prosseguimento da sua meritória actividade.
Porto. Joaquim Moreno: Nem sempre estou de acordo com o pe. Mário, mas isso é saudável e só vem aumentar a ideia que sempre tive de que o Fraternizar é uma voz necessária para alertar e dar a conhecer o que se passa em áreas que a outra comunicação social não toca, nem dá a conhecer notícias e posições que vão surgindo neste cantinho e noutras partes do globo.
Felicito o grande obreiro e mentor desta viagem trimestral que é o pe. Mário. O meu pensamento leva-me a pensar nesse jovem de ontem com toda aquela garra que tinha e se tem mantido até hoje, sem esquecer todos os “acidentes” que lhe foram surgindo (= impostos) por pessoas que tinham a obrigação de ter outra postura na vida e na Igreja.
Com o sabor dos anos passados e o “estatuto” de reformados, posso expressar o meu desejo de que o Fraternizar não termine. Será que na geração mais jovem não existem outros MÁRIOS?
Junto cheque para pagamento da minha assinatura. Votos de que o grito lançado pela Direcção do Jornal não caia em saco roto.
Ao sempre jovem Mário-presbítero vai o meu fraterno e velho abraço de parabéns por essa constante frescura e lucidez de pensamento e que se vai manifestando em muitos actos do dia a dia, concretamente no penúltimo Editorial: Alerta! O inimigo do país disfarçou-se de Governo! Parabéns, padre Mário e força para encontrares uma forma de participação na continuidade digna do Jornal Fraternizar.
Malveira. António Grilo: Habituei-me, ainda antes de acontecer Abril, na época que imediatamente o antecedeu, a ler, com uma certa avidez, tudo quanto escreveu, ou sobre si se escrevia. O 25 de Abril, as grandes transformações a que deu lugar e as muitas tarefas que então a todos se impunham, levou-me a interromper de alguma maneira o contacto com os seus livros. Um feliz acaso, porém, voltou a recolocá-lo ante mim. “Ouvistes o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos”. Este foi o acaso.
Serei breve. Não queria, porém, começar sem que, primeiro, o felicite pela forma digna e corajosa como enfrentou, por um lado, os beleguins do regime fascista e, por outro, a sua própria hierarquia, na sua qualidade de presbítero, também. Daqueles, tudo era de esperar; desta, custa-me bastante imaginar que o D. António, ele próprio vítima do ditador, o tenha tratado a si da forma como o fez. Atrevo-me a acreditar que o seu Jesus terá discordado, também, do D. António. Afrontar o ditador, sim, mas solidarizar-se com o seu presbítero em todas as circunstâncias, também. Infelizmente assim não foi, para si. Acontece, porém, que ganhámos um aliado, mas que aliado… para continuar, livre de quaisquer peias, a lutar e a combater todos os Bush’s que tentam subjugar pela força todos quantos se lhes opõem.
Creio que todos os seus escritos foram e continuam a ser um farol a que todos os náufragos se agarram para não soçobrarem e se libertarem das grilhetas a que a Igreja católica teima em manietá-los, através das mais variadas formas: sermões, retiros espirituais, missas, confissões, etc., formas essas destinadas a mantê-los alheados, indiferentes, mesmo afastados dos reais problemas, uma vez que a sua palavra (da Igreja) é, na maioria dos casos, inócua, senão mesmo reaccionária. Não é por esta via que a liberdade física e moral se obtém.
Se os presbíteros da Igreja católica agissem da mesma forma que o pe. Mário age, Portugal seria totalmente diferente. Imagino o que seria, 10% que fosse dos padres, ao domingo, dialogando nas igrejas, do modo como o sr. o faz na sua comunidade de base. Outro, e bem diferente para melhor, seria Portugal.
Antes de terminar, junto a minha voz à daquelas que lhe pedem para que não desfaleça em proclamar bem alto a palavra pela liberdade, quer civil, que, sobretudo no seu caso, religiosa. Os seus conhecimentos na matéria são extremamente valiosos na ajuda ao combate e erradicação dos fantasmas e dos preconceitos que a hierarquia católica teima em manter uma parte considerável do povo português. Não desista. Um abraço fraternal.
Algés. Benedita: Como eu, há muitos que se atrasam. Peço desculpa. O tempo passa e não está certo receber e nada dizer, não colaborar.
Há muito no Fraternizar de que gosto. Há também algo de que não gosto, não concordo. Leio. Penso. Formo opinião. Mas gosto de ler. Leio desde o n.º 0, anunciado no EXPRESSO.
Aqui vai a minha colaboração. Espero que outros o façam para que continuem. Os leitores continuarão a gostar ou a rejeitar.
Aveiro. Eng.º José de Sousa: Após o 25 de Abril, os partidos de esquerda, ou ditos como tais, passaram a ser, mais do que os de direita, culpados pela despolitização do eleitorado e consequente aumento da abstenção devido ao crescente e fomentado desinteresse pela política, assim dificultando o lançamento da alternativa que dará "sentido à vida", saindo-se desta modorra do "ora agora comes tu, ora agora como eu, ora agora comes tu mais eu"! Tais partidos, mantendo embora a estratégia (conjunto de objectivos), não têm actualizado a táctica (forma de alcançar os objectivos).
Mas, pior ainda, nenhum deles tem mostrado interesse pelo projecto de alternativa que lhes tem sido proposto desde há mais de sete anos e que é verdadeiramente empolgante, revolucionário, pacífico e sui generis, com ideologia axiomática por certo aceitável pela maioria da população. Aqueles partidos, assim, passaram a assumir maior responsabilidade do que os de direita pela "castração" política do Povo, iludindo os próprios militantes e não só, o que é verdadeiramente condenável.
Está documentado para comprovar tão escandaloso procedimento que, por este meio, denuncia publicamente, o leitor ecoudemocrata, José de Sousa (
sousa_ramos@sapo.pt
).
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Manuel Sérgio
(Lisboa)
DEMOCRACIA E SOCIALISMO
No ensaio “Le philosophe et le sociologie”, Maurice Merleau-Ponty referia os riscos da rivalidade existente entre os filósofos e os sociólogos: aqueles, considerando-se próximos da verdade, porque possuidores e criadores de ideias; estes, reivindicando a verdade, porque partem dos factos às ideias ou, como recomendava Malraux, pretendem transformar a experiência em consciência. Trata-se de uma emulação ridícula, já que o filósofo não pode teorizar desconhecendo o mundo-da-vida, nem o sociólogo pode ordenar os factos, sem um paradigma e um programa de investigação.
O tema “Democracia e Socialismo” é para filósofos, sociólogos e afinal para todos os inconformistas insubornáveis, de espírito alerta e vigilante. Alguém tem dúvidas que as relações entre a Democracia e o Socialismo exigem a reflexão atenta do homem do nosso tempo? E uma questão se levanta imediatamente: é possível ser-se socialista e anti-marxista? É verdade que os vários marxismos, quando se fizeram poder, nada trouxeram de novo aos excluídos pela sociedade injusta, eternizando um Estado ditatorial quando Marx, em muitos dos seus textos, sustentou a abolição do Estado, nas sociedades socialistas.
Mas não é verdade também que o capitalismo, que Marx sabiamente criticou, permanece nos governos europeus ditos socialistas, onde a alta competição do mercado e as políticas públicas convivem em permanente e amiga relação dialéctica? E na alta competição não é certo que há sempre vencedores e vencidos? Na Europa e na América (exceptuando Cuba, onde não há nem democracia, nem socialismo, embora a coragem admirável de Fidel Castro, diante do Golias norte-americano), a Democracia distingue-se pela defesa e preservação do sistema capitalista. E os movimentos sociais e os partidos de esquerda, mesmo quando aparecem sob a forma de democracia directa ou de base, não põem em causa, habitualmente, o capitalismo, pois que este farisaicamente vai incorporando uma ou outra prática social que eles reivindicam.
Os próprios sindicatos, de facto, não apresentam qualquer projecto de transformação do paradigma político dominante e ao aceitarem a democracia representativa, sem o aprofundamento da democracia participativa, contribuem também à morte do socialismo, no sentido forte do termo, pois que tudo se passa como se a igualdade não integrasse a matriz unificadora da sua prática política.
Não se vê, à vista desarmada, qual a relação, no Ocidente, entre Democracia e Socialismo. Evidentes, sim, são os vínculos estreitos entre Democracia e Capitalismo. E assim é caso para perguntar-se: ainda há socialismo, na Europa? Não convencem os discursos anti-neoliberalismo-selvagem, quando se aceita esse mesmo neoliberalismo, incensado e mascarado pelos ícones do “socialismo democrático”.
O Partido Socialista chegou ao poder, dispondo hoje de maioria absoluta, ao mesmo tempo que os partidos da esquerda parlamentar somaram 59 por cento dos votos expressos. Será de esperar que os portugueses, designadamente os mais frágeis e desvalidos, as crianças e as mulheres abandonadas, os dissidentes, os marginais, os refugiados, os idosos, as minorias sintam que a solidariedade não é uma dimensão esquecida, no nosso país.
Com um novo poder, Portugal foi chamado à mudança! Ou melhor, todos os portugueses foram chamados à mudança! Não basta a liberdade, importa que se implementem também políticas económicas e sociais que, através da transparência e do rigor, aperfeiçoem a solidariedade. É que é na solidariedade que a esquerda deverá afirmar-se, dado que não há exterioridade, sem a interioridade que lhe dê sentido.
Os drs. Durão Barroso e Santana Lopes e os seus governos pretenderam fazer uma “irrevolução” (P. Ricoeur), tentando cloroformizar os portugueses, face às verdadeiras e profundas questões que atormentam os nossos irmãos mais pobres. Vivemos, com o PPD/PSD e o CDS/PP, na ditadura do efémero.
Se a abstenção foi a mais baixa desde 1987, tal se deve ao facto de os portugueses necessitarem de dizer “basta!” à hipocrisia e a incompetência à hipocrisia e à incompetência que é preciso erradicar da vida política nacional!
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Júlio Ribeiro (Maputo)
UM ROMANCE NAS FRALDAS DO MARÃO
Como alterei a visão legalista
A altitudes um tanto semelhantes, a longitudes bem diferentes, a latitudes quase opostas, e cada qual com panorâmicas características, a verdade é que, naqueles primeiros dias do ano capicua do século vinte e um, as montanhas de Mankele, a mil metros acima do nível do mar, e, aproximadamente, a uma Longitude Este de 30º 69' 00" e Latitude Sul de 25º 37' 00", fizeram-me recordar o romance dos meus vinte anos com uma trasmontana dos seus quinze, mas já bem mulher.
Desde a mais tenra idade, passava, nas quintas de Vila Real, longas férias, e não só, porque, até iniciar o liceu, as minhas sucessivas professoras (com excepção da de piano) viviam em nossa casa: era o ensino doméstico, de meninos ricos, para serem protegidos dos perigos do mundo, quer dizer, das classes menos favorecidas ou das classes em degenerescência...
Também, por vezes, mas por períodos muito mais reduzidos, íamos para San
tiago
de Lobão, e aí ganhei o gosto pelos pinhais e pela vida de aldeia; mas o convívio com feitores e caseiros não ganhou as proporções nem de longe das que se foram estabelecendo em Folhadela, e que duraram até a minha vinda para África.
Um feitor e caseiro se bem me recordo: feitor na parte vinícola e florestal, caseiro na parte agrícola , adivinhando (e não era nada difícil) as minhas tendências poéticas e místicas, construiu-me, com uns troncos, no recôndito do pinhal maior e mais elevado da Quinta de Vilalva, um oratório aberto. Eram apenas uns quatro paus debaixo de dois pinheiros: um para apoiar os joelhos, outro para apoiar os braços e dois para lembrar a cruz. A luz era coada pela popa dos pinheiros, a música era executada pela aragem a atravessar a imensidade de agulhas verdes dos seus ramos, e por um ou outro pássaro, e o chão era atapetado pela caruma seca de um castanho inigualável.
Como eu gostava de passear naquele pinhal, subir a rampa das acácias que dava para a casa do cuco, sair por um pequeno portão que dava para o santuário incompleto da Senhora de Lurdes, ajoelhar aos pés dela, contemplar lá ao longe a cidade símbolo de Civilização e voltar a embrenhar-me na mata símbolo da Natureza e por lá vaguear, sentar-me a ler, talvez a escrever, saboreando as variantes das cores em constante mutação, e da música nunca repetitiva e sempre e simultaneamente calmante e excitante!
Também o olival me atraía, e os lameiros, na margem esquerda do ribeiro (de nome Tourinhas), e a corte do gado, sobretudo na hora de tirar o espumoso leite, que eu bebia ali mesmo, ainda morno, e reconfortante.
As vindimas e o lagar, onde até eu (pequeno e devido a atraso no andar) parece que pisei as uvas com os jornaleiros, abraçados, e a tocar concertina e a cantar eram momentos altos na vida campestre, juntamente com as esfolhadas e a alegria de encontrar o milho rei a espiga vermelha que dava direito a abraçar todas as mulheres da roda e cumprimentar os homens.
A quinta, porém, era limitada, na parte baixa, pelo ribeiro, e, dos outros lados, por altos muros. Mas os portões, embora fechados à chave, se proporcionavam entradas, também convidavam a saídas, alargar tendas...
Na parte alta do olival, havia um sobretudo convidativo para chegar na Quinta de Cima assim lhe chamavam. Tínhamos lá dois quartos de reserva, mas o senhorio, meu pai, cedera-os aos caseiros e aos filhos.
Na sala, ao almoço, lá pelo meio da manhã, sentar-me com eles à volta da mesa, com o prato das batatas cozidas e um outro com azeite e vinagre, no meio, equidistante de cada um de nós, e empunhando o garfo, estendendo-o para apanhar, à vez, um pedaço de batata e demolhando-o e logo em seguida saboreando-o... ou sentarmo-nos à volta da lareira, cada um com a sua tigela de sopa bem quente e suavemente mastigada se não era o cúmulo da felicidade, muito se aproximava disso.
Todos mulheres e homens, adultos e crianças conversando alegremente e partilhando o mesmo alimento à volta de uma mesa ou de uma lareira tudo fruto do trabalho de todos era mesmo, além de enorme prazer, um ideal de vida a acenar-me.
Talvez só o tenha percebido na luta pela união de camponeses e operários com que iniciámos a independência de Moçambique, e nas celebrações eucarísticas, às tardes, depois dos trabalhos revolucionários, no convento dos Capuchinhos de Bari, em Quelimane, ou em qualquer outro recanto do país ou do estrangeiro, onde nos encontrássemos.
A maior parte daqueles camponeses não conhecia o mar, e meu pai, quando no verão nos levava para a praia, convidava os filhos desses caseiros, e era eu que, espontaneamente, me encarregava deles. Em Espinho era notório, como mais tarde me apercebi, este jovenzinho que eu era, entretido com um grupo crescente de crianças (aos pequenos camponeses que viviam na casa alugada para a época de praia, juntavam-se filhos de um ou outro vizinho).
Os meus passeios em Vila Real, porém, não se limitavam às duas quintas (nas duas havia matas para alimentar os vinhedos). Toda a freguesia de Folhadela, desde Vila Nova de Baixo até Vila Nova de Cima com a sua ermida de Santa Luzia e a respectiva romaria em 13 de Dezembro era percorrida por mim, e gostava de falar com os aldeãos e brincar com as crianças. Aquele introvertido nos meios formalísticos da burguesia, onde me sentia dentro de uma camisa de forças, surgia como um extrovertido nos ambientes campesinos (mais tarde também nos operários), onde me podia expandir sem constrangimentos.
E não tardou a formar-se um grupo de crianças que me seguia nas passeatas por toda a freguesia de Folhadela com o beneplácito, simpatia e até a gratidão dos adultos.
Isto deve ter despertado a curiosidade de uma jovem liceal que vivia, em abastada casa de Vila Nova de Baixo, com uma irmã mais nova, a Anita, uma tia e a avó (o pai havia-se separado ou divorciado da mãe e vivia na cidade de Vila Real com outra companheira).
De momento, ia-me constrangendo: elemento burguês no grupo, parecia-me uma infiltração nada agradável. Mas eu não podia ser homem de pre-juízos: como iria, na prática, trair os meus princípios filosóficos? Julgar a priori uma dádiva destas?
...E a posteriori fui vendo que era a companheira que me faltava não só em Folhadela e nas férias, mas para todas as andanças da minha vida e em qualquer parte do mundo.
A solidão já não existia ao contemplar as ondulações montanhosas, os planaltos, os vales, os rios e os ribeiros, as noites de luar. Encontrara a quem eu poderia fazer feliz sem renunciar a ser eu mesmo.
Já não era aquela menininha, filha de ricaço brasileiro, com quem precocemente primos meus mais velhos me quereriam entusiasmar. Também não era a priminha rica, minhota, que talvez também fosse um bom partido. Tudo isso me desagradava por falta de autenticidade e por intromissão nos meus sentimentos profundos, que não dava para exteriorizar em ambientes mornos.
Agora era uma mulher que surgia, vinha ao meu encontro, começou por me admirar, passou a sentir ternura por mim, a verter, às escondidas, lágrimas de saudade, quando eu regressava ao Porto, e começou a amar, talvez a primeira vez, mas já com bastante maturidade.
Não era a simples amiga por partilhar os mesmos ideais, ou os mesmos sentimentos artísticos, sociais ou políticos, ou os mesmos estudos, ou o mesmo trabalho, ou a mesma casa, ou as mesmas férias ou as mesmas brincadeiras.
Era a mulher que integrava a paisagem não apenas geográfica ou transitória, mas a paisagem global, cósmica, qualquer que ela fosse e sob que prisma fosse de um modo total e definitivo.
Eu queria evangelizar, sim, mas por que me haveriam de impor o celibato para o fazer? Em termos teológicos, por que se haveria de estabelecer no Ocidente uma incompatibilidade jurídica entre os sacramentos do Matrimónio e da Ordem? Se, por natureza, nenhuma incompatibilidade existe, se, algures, no Oriente, até Roma aceita, por que exigir entre nós a coincidência, na mesma pessoa, da vocação presbiterial e celibatária?
Tentar dessa forma a Deus, impedir a autenticidade e felicidade a tantas pessoas, fomentar tanto escândalo e tanta hipocrisia, e, por cima, ainda proclamar a falta de vocações e a necessidade de pedir a Deus que faça surgir mais! Cinismo revoltante. Segundas intenções criminosas.
Eu não concordaria com Papini, se nessa altura já o conhecesse. Mas já conhecia Herculano, e concordava com ele. Eu não quereria ser um Eurico, sempre triste. Outros e outras há que, por vocação, e, portanto, com alegria, abraçam o celibato. Esses, porém, não têm o exclusivo da vocação presbiterial, assim como também não são só os homens. As mulheres casadas ou não nunca foram discriminadas por Cristo, nem naquela época, quanto mais agora.
***
Que peninha perder-se, na crise da juventude uma vocação que se revelara promissora na crise da adolescência! Aos quinze, abalara a opinião familiar a entrada num seminário frio e austero de quem vivia num ambiente morno e abastado de um grande casarão. Aos vinte, volta a abalar a mesma opinião familiar com a saída do célebre Seminário dos Grilos aparentemente causada pela paixão por uma mocinha de aldeia perdida em Trás-os-Montes!
Mas não tinha ainda vinte e um anos (lembrou-se o zeloso Reitor, já depois de me ter exigido a passagem pelo quarto do Director Espiritual), e foi preciso autorização paterna para deixar o Porto e seguir para Coimbra a fim de me candidatar a aluno da Faculdade de Histórico-Filosóficas.
A autorização não se fez esperar... mas apenas para regressar à casa paterna, e assim tive de regressar a Vila Real, e não pude seguir para Coimbra como era minha intenção.
Os meus devaneios eram muitos. Primeiro, queria ir para Cucujães, a fim de ser missionário em África. Depois, aceitei um meio termo, fingindo que me preparava para padre diocesano, quando, na verdade, a ideia de África não me saía. Logo a seguir, no meio de prémios de bom comportamento, mas com notas horríveis em latim, quero me fazer contemplativo em Espanha, em alguma Cartuxa ou Trapa. Relaciono-me com Ir. M.ª Buenaventura Ramos, O.C.S.O., Abade de S. Isidro, apesar do «zelo seminarístico» de um contínuo o Sr.
Armando
, salvo erro me interceptar uma carta, para agradar ao «zelo maternal» de irmãzinha mais velha, que me quereria proteger das garras de frades castelhanos. E agora, em vez de África, ou de Espanha, ou mesmo de Vila Real, onde vivia a apaixonada, quero ir para a Universidade de Coimbra!
De facto, era preciso, aos vinte anos, ir para o pé do paizinho, para este me encaminhar, me proteger dos maus caminhos e más companhias, não fosse eu ainda me lembrar de pegar num saco e me fazer mendicante, na esteia de Francisco de Assis...
De facto, a preocupação do dote que ao menos certas ordens religiosas exigiam dos seus candidatos bem como dos golpes de baú não deviam ser-lhe estranhos, embora não fossem as únicas.
Um dia ainda havia tentado, sem o menor resultado, a emancipação. Tive de começar a contar os anos, os meses, os dias, ao contrário. Até que chegou o dia zero a desejada maior idade para começar a aventura da vida sob a minha total responsabilidade. Consultei um advogado e coloquei-me sob a sua defesa, para o caso de qualquer acção policial numa última tentativa de prolongamento da tutela paternal (o que, felizmente, não aconteceu: meu pai respeitava muito a legalidade).
No dia seguinte, 9 de Janeiro de 1946, dirigi-me, logo de manhã, para a estação de S. Bento, e tomei o comboio para Vila Real (linha do Douro até a Régua, e a panorâmica linha do Corgo, depois). Ao meio dia, uma amiga minha entregava em casa de meu pai uma carta, delicada e talvez patética, que eu previamente escrevera. Não queria ferir, mas não podia renunciar à responsabilidade de traçar a minha vida. E nesse mesmo dia encontrava-me com a minha noiva.
Compreendeu (todos compreenderam) a quanto renunciara por causa dela, e amorosamente me acolheu, e o romance continuou, não em sonho, mas na realidade quotidiana.
Uns tios, que viviam em casa contígua (até havia uma janela de comunicação) hospedaram-me com a mesma afabilidade de sempre. E eu gostava das suas três pequeninas filhas, como se minhas fossem. Era uma ternura espontânea.
A avó admirava-me muito e favoreceu o noivado, apenas com os habituais cuidados da moral tradicional. A Tia Zélia, embora muito nossa amiga (bem como o marido, Rogério), era tão escrupulosa que até nos repreendeu, uma vez, quando estudávamos filosofia juntos, por, em vez de nos sentarmos à mesa um de cada lado, nos termos sentado do mesmo lado, talvez tocando levemente os braços... aliás bem agasalhados, porque o frio de Janeiro não é brincadeira naquele clima continental.
O Tio Rogério aceitou que fosse trabalhar para o seu Armazém de Mercearia, na Rua Direita. Descontava cama, mesa e roupa lavada, e assim estava assegurada a minha subsistência e independência. Com o que restava, mais tarde, aluguei casa (no recém-construído Bairro de Nossa Senhora dos Prazeres, na Estrada do Circuito) e mobilei-a, e esperava os dezasseis anos da minha noiva para nos casarmos.
José, o pai, sócio capitalista e irmão do Rogério, gostava muito de mim: também a actual mulher dele. A Anita, a irmã mais nova, muito linda, talvez fosse um pequeno senão, porque gostava muito de nos espionar e não devia ser nada discreta. Pelo contrário, o irmão mais velho, Eduardo, foi sempre camaradão, tanto no serviço (como não era muito dado aos estudos, também trabalhava no armazém de mercearia) como fora do serviço. (Ainda lá pelos anos oitenta ou pouco antes, me emprestou um apartamento em Lausanne para eu esperar pelo avião que me faria regressar a África de uma viagem ao hemisfério norte.)
Todos sabiam da oposição da minha família, mas todos respeitavam a opção bem livre e consciente de nós dois nos unirmos conjugalmente na idade legal da parte mais nova. Ela estudava, eu trabalhava, e, nas horas vagas que não eram muitas íamos vivendo o presente e projectando o futuro.
Este relacionamento era bem diferente das amizades que cada um de nós mantinha. Não fora, também, um amor à primeira vista: era um amor conjugal que ia amadurecendo à medida que nos revelávamos e conhecíamos.
A avó era uma pessoa maravilhosa quando do nosso lado, mas temível se contra nós: o próprio filho a temia e nada fazia contra ela. Eu estava radiante porque até por escrito me testemunhara o seu apreço e a sua alegria por me ir casar com a neta.
No armazém de mercearia eu também dera provas de competência e dedicação, muito embora, evidentemente, não pudesse estar de acordo com certos procedimentos da entidade patronal, tanto no relacionamento com o pessoal como, talvez sobretudo, com os clientes, os merceeiros a retalho das diversas aldeolas de serras e vales circunvizinhos. Um ou outro choque logo era ultrapassado pela nossa mútua admiração e reconhecimento.
Meu pai, por outro lado, rendera-se, dolorosamente, estou certo, à evidência dos factos, aos direitos que me assistiam, sem, no entanto, deixar de me considerar um filho pródigo, como, muito mais tarde, já eu estava em África e ele me voltara a admirar, comprovou com um recorte de jornal em que uma minibanda desenhada ilustrava a célebre parábola evangélica.
Além disso, logo se apressou a entregar-me a administração do pequeno espólio que meu avô materno, Ernesto Abílio Rodrigues, e meu tio paterno, Fernando Caetano Ribeiro, me haviam deixado. Era um certo alívio nas minhas finanças, permitindo-me, assim, enveredar pelo matrimónio com uma jovem liceal sem alterar o nosso bem estar diário. E eu, esporadicamente, quando ele estava na Quinta de Vilalva, visitava-o.
Um dia, porém, o vulcão que parecia inactivo na avó entra em convulsão: alguém, quase certo da aldeia, a espicaçara, o seu orgulho ferve, e coloca-se ferozmente contra o nosso noivado. O pai, desgostoso, intercede, mas desconsegue. Se a minha família está contra o casamento da sua neta comigo, então também ela vai opor-se terminantemente.
O pai redobrou a amizade comigo, os tios colocam-se a meu lado, a adoração mútua entre nós crescia, mas era um inferno em casa dela, e nova táctica tinha de ser tomada. Já não podia ir, evidentemente, a casa dela, e às vezes até eram impedidos os encontros em casa dos tios, onde continuava a viver e me davam todo o apoio nesta nova e desesperante situação. Em casa do pai, no entanto, à hora do almoço, na cidade, continuávamos a encontrar-nos livremente.
Entretanto, como parecia lógico, uma vez que já alugara casa no recente Bairro de Nossa Senhora dos Prazeres, na estrada do circuito, no troço que dava para a Casa de Mateus, dos Condes de Vila Real e agora do Conde de Mangualde, e como já a tinha mobilada para o grande dia do casamento, eu deveria deixar a casa dos tios e passar a residir na nossa casa. Ela temia que essa mudança agravasse a situação, no sentido de nos vermos menos vezes e de se descartarem mais facilmente de mim. Por outro lado, porém, ganhava outra independência e passaria a ganhar o vencimento por inteiro. Foram tempos difíceis, e não há dúvida de que o isolamento foi terrível.
Perante a irredutibilidade da avó e a fraqueza do pai, que nunca levaria a cabo uma acção legal contra o parecer dela melhor, contra a vontade omnipotente dela , tínhamos de cortar o mal pela raiz.
Foi então que concebemos um plano ao abrigo da Concordata. Quando os dezasseis anos fossem atingidos, apresentar-nos-íamos, os dois, ao bispo diocesano e, sob a invocação de perigo moral, pediríamos que ele nos testemunhasse o casamento canónico, que, nessas circunstâncias, teria imediatos efeitos civis.
E assim íamos vivendo, nesta esperança de que tudo correria conforme planejado. Era dura a espera, mas um grande amor tudo faria suportar. Mais uma vez tive de contar o tempo a decrescer.
Só que, ao aproximar-se a data, ela vacila com medo da avó e descombina o combinado. Seria preciso esperar mais cinco anos... e eu não tinha o arcaboiço de um santo.
Sempre percebi e percebo que ela não tivesse a heroicidade de enfrentar a fera que era a avó quando ferida no seu orgulho, nunca lhe tive raiva, foi uma falta à palavra bem compreensível, mas eu ainda era e sou mais fraco, e desfaleci.
E procurei novos rumos...
O pai procurou-me para recomeçar, mas eu já não tinha esperança, já não acreditava, e como seria o amor sem confiança e sem fé?
Lembro-me bem de uma dessas conversas, um pouco depois da passagem de nível e antes de entrar no patamar superior da célebre ponte metálica sobre o Rio Corgo obra do mesmo construtor da Torre Eiffel.
Mas todos continuámos amigos e, evidentemente, o ocorrido em nada afectou o meu trabalho no armazém de mercearia: só o deixei quando resolvi continuar Filosofia na Universidade Gregoriana.
Embora com um final fracassado, este foi dos mais belos romances que vivi. Desaguentei uma falta de palavra bem compreensível, e, afinal, acabei por suportar sabe Deus com que raiva tantas outras faltas de palavra de quem menos poderia esperar, e sempre sem a mínima justificação ou sequer posterior reconhecimento... como se tudo fosse muito normal e muito correcto, e até nem pudesse ser de outro modo.
Este romance, porém, mais uma vez me indignou contra os pais e tutores que se opõem à vocação dos filhos, e levou-me a efectuar uma intervenção escrita no I CONGRESO INTERIBEROAMERICANO DE EDUCATION, realizado em Madrid, de 16 a 25 de Outubro de 1949, no sentido de se exigir das autoridades estaduais a protecção dos menores desrespeitados nos seus direitos de opção, quer no campo profissional, quer no campo matrimonial.
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Esta foi a segunda mulher que, depois de adulto, me evangelizou, não só pela ternura, intimidade e amor com que vivemos um noivado, cuja interrupção se deve mais à minha fraqueza do que à dela, não só pelo apoio que me deu a lidar com o grupo de crianças de Folhadela, mas ainda por me ter libertado de uma visão legalista do relacionamento humano, influenciado que eu ainda vinha por certas normas do Direito Canónico referentes aos casos ditos de mancebia.
Não é muito melhor que um homem separado da mulher (apelidada de legítima) viva estavelmente com outra, em vez de se perder com esta, aquela e aqueloutra?
Hoje até é ridículo ser preciso dizer isto, mas, naquele tempo, não era o único católico a ter assomos de escrúpulo por frequentar casas dos ditos amantizados (para minha vergonha, que já me considerava razoavelmente despreconcebido e evoluído...).
Hoje, que penso já ter aprofundado mais a essência do matrimónio que não pode existir (ver válido, muito menos legítimo) apenas com um amor universal ou com uma amizade (sólida que seja), mas exige também, e cumulativamente, um autêntico amor conjugal , hoje penso já não ser tão leviano como outrora ao tentar discernir os falsos dos verdadeiros casamentos.
Cada vez mais nos damos conta de que a sua autenticidade e legitimidade pouco tem a ver com os registos civis ou religiosos, ou mesmo com os rituais, quaisquer que eles sejam, tantos são, de facto, os casos de invalidade, que ninguém ou quase ninguém se dá ao trabalho de esclarecer.
Tanto se condenam divórcios, separações, uniões de facto, adultérios (que muitas vezes nem o são, porque nunca o casamento existiu senão no papel ou nos rituais) e quase não se fala dos casamentos viciados de nulidade por ausência de qualquer elemento essencial, nem se promovem estatísticas, que sem dúvida seriam não só surpreendentemente reveladoras como sobretudo sadiamente desmascaradoras!
Será que a sociedade, ao descrer dos formalismos legais, está assim tão corrupta que já não liga aos valores do matrimónio e da família, ou será que desesperadamente (ou lucidamente?) procura repor a verdade onde afinal só existe falsidade, erro e/ou mentira?
Em vez de temermos divórcios, não será de temermos que matrimónios nulos continuem a infernizar pais e filhos? Em vez de temermos a desagregação da actual instituição familiar, não será muito mais sadio reestruturar a família em moldes libertadores? O que há a temer, isso sim, não será que a família continue, das formas mais refinadas (desde as selváticas às subtis e mistificadoras), a frustrar, às vezes irremediavelmente, o futuro de cada um dos seus membros?
O que é preciso salvar a todo o custo? O matrimónio, a família, as instituições? Ou a felicidade de cada um?
E para nós, cristãos, o que é evangelizar? Pôr o ser humano ao serviço das instituições, por mais respeitáveis ou até sagradas que sejam, ou estas ao serviço do ser humano? Proclamar uma notícia atemorizante ou uma notícia jubilosa?
Quando é que o sermão da montanha e o cântico de Maria da Nazaré serão incorporados na doutrina oficial das igrejas e não apenas nas suas leituras rituais (e tantas vezes apenas como enfeite)?
Quando ajudaremos as hierarquias a libertarem-se e a libertar-nos de sucedâneos dos Estados Pontifícios e do Direito Romano, e conquistaremos o direito de viver plenamente o Evangelho?
Obrigado por me teres evangelizado, libertando-me de pre-juízos tão desumanos e ensinando-me a amar. Não ouso pronunciar ou escrever o teu nome, mas o vocativo está-me sempre presente.
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Maria Clara Bingemer, teóloga (Brasil)
SEIS BALAS
Seis tiros soaram no calor da manhã ensolarada de Anapu, estado do Pará. Seis balas penetraram a cabeça, o coração e as entranhas de uma mulher idosa em anos e jovem de coração. Seis vezes a irmã Dorothy Stang teve seu corpo perfurado e sua vida liquidada por aqueles a quem incomodavam seu compromisso e sua ação em favor dos camponeses da Amazónia.
As 600 famílias que compunham a comunidade de Ir. Dorothy encontram-se neste momento órfãs da maternidade espiritual e pastoral dessa corajosa mulher. Aquela que não temia coisa alguma e diante de nada recuava para defendê-los jazia agora no chão e seu sangue era bebido pela terra brasileira, tão amada, que ela escolhera como sua e pela qual dera a vida.
Irmã Dorothy Stang, 74 anos, norte-americana de nascimento e cidadã brasileira por opção, membro da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, viveu quase metade de sua vida na Amazónia.
Durante esse tempo, tudo o que fez foi dar voz às comunidades rurais, defendendo o direito à terra e lutando por um modelo de desenvolvimento sem destruição da floresta. Lutava para que o Estado se fizesse presente na Amazónia, denunciando inclusive o envolvimento de policiais com fazendeiros e grileiros da região.
Defendia a Amazónia e seus habitantes da ação destruidora dos madeireiros ávidos de lucro, que não hesitavam em derrubar a mata e privar as famílias que dela viviam de seu sustento e segurança.
Ao longo destes mais de vinte anos, Ir. Dorothy foi ameaçada de morte inúmeras vezes. Aconselhada a afastar-se de Anapu para proteger sua vida, repetia sem cessar: “Eu não corro risco de vida, mas os colonos sim. Eles têm família para sustentar”.
Sua firmeza inabalável provinha da beleza e da grandeza da causa à qual se dedicava: a vida dos agricultores pobres e explorados e a defesa do meio ambiente na cobiçada Amazónia, pulmão do mundo e sempre sob a mira cúpida das grandes potências. Na esteira de homens como Chico Mendes e ao lado de pessoas e grupos idealistas, Ir. Dorothy e sua comunidade eram semente e símbolo de resistência na luta por um modelo de desenvolvimento econômico sustentável, pautado em critérios éticos de cuidado com a natureza e com a vida das pessoas.
Em corajosa e emocionante nota, a Conferência dos Religiosos do Brasil assim interpretou o bárbaro assassinato da religiosa norte-americana: “Irmã Dorothy foi assassinada com seis tiros, dos quais três fatais e simbólicos. Uma bala atingiu seu cérebro, outra seu coração e outra suas vísceras. Quiseram eliminar o pensar, o sentir e o gerar desta pequena, simples, humilde e idosa mulher. Seu cérebro, seu coração e seu útero eram uma ameaça para o modelo de desenvolvimento económico implantado neste país, especialmente na Amazónia.”
A fragilidade e simplicidade de Ir. Dorothy dão ainda maior força e eloquência ao seu testemunho. Era uma mulher frágil e indefesa diante da força bruta dos jagunços. Religiosa, era alguém que, respondendo a um chamamento de Deus, escolheu não casar-se nem constituir família. Na Amazónia, longe da proteção das casas onde vivem as outras irmãs de sua congregação, encontrava-se totalmente sozinha e exposta, tendo como companheiros e porta-vozes apenas os agricultores e camponeses, tão pobres e indefesos como ela. Tinha 74 anos. Portanto, uma pessoa de idade, que normalmente, a esta altura da vida, deveria encontrar-se confortavelmente repousando dos muitos anos de trabalho e atividade.
As reportagens que nos chegam relatam que aos seus assassinos Ir. Dorothy leu trechos da Bíblia que levava consigo para a reunião comunitária à qual se dirigia. Mas nem a Palavra de Deus deteve o ímpeto assassino das balas fatais.
No seio da terra que tanto amou e pela qual deu a vida, o corpo de Ir. Dorothy descansa, velado pela dor dos companheiros. Seu martírio, no entanto, é força viva que, como grão de trigo enterrado e morto, dará abundantes e fecundos frutos em prol de maior justiça para o povo brasileiro.
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Frei Betto (Brasil)
WOJTYLA E DOROTHI STANG
Há muito em comum entre o papa João Paulo II e a irmã Dorothy Stang, assassinada pelo latifúndio no Pará: católicos, consagrados a Deus, discípulos de Jesus. A diferença é que ele se depara com o espectro da morte, enquanto ela agora vive na esfera do amor divino. E ao contrário da missionária, Karol Wojtyla chegou à mais alta hierarquia de poder, não só na Igreja católica, mas também estatutariamente comparada às demais instâncias de governo na Europa: o papa é o único monarca absoluto do Velho Continente.
Certa vez Fidel confessou nutrir o sonho de ver os comunistas seguirem o exemplo das religiosas que, em Havana, trabalham em hospitais. Diante da minha perplexidade, explicou que elas cuidam dos enfermos com dedicação, tratam a todos por igual, não se pautam pelo horário de serviço e nem se queixam diante das dificuldades.
Fidel percebeu algo que Péguy já havia assinalado em 1914, ao afirmar que o futuro da política é a mística. Malraux faria eco ao seu conterrâneo pouco antes de morrer, ao declarar que o século XXI seria místico ou estaria fadado à barbárie.
O que significa isso? Devem os políticos ser religiosos? Longe de mim a confessionalização da política! Não se trata de religiosidade, mas de espiritualidade. Embora ateus, os budistas, por exemplo, são profundamente espiritualizados. É esse mergulho no Ser, nominado Deus por quem crê, que faz o místico. Nele o inconsciente transborda no consciente, como diagnosticou Jung. E as “coisas deste mundo” passam a ser relativizadas quando se vive a paixão pelo Transcendente.
Irmã Dorothy desapegou-se das três tentações que direitizam militantes de esquerda: o poder, o ter e o prazer. Eis os ingredientes que, juntos, fazem um corrupto. O poder da freira de Anapu espelhava-se no de Jesus, explicitado no capitulo 22 de Lucas: servir aos mais pobres. Abriu mão do ter para ser, imbuída de valores éticos, subjectivos, normatizadores de sua prática solidária às vítimas da opressão. Seu prazer: a conquista da dignidade e da terra por agricultores excluídos da cidadania.
Karol Wojtyla abriu mão do ter e do prazer, mas os caminhos de Deus o levaram ao poder. Agora, doente, afectado pelo mal de Parkinson, é vítima da papolatria vaticana. Por que não teria ele o direito de terminar seus dias em paz, livre do peso de governar uma instituição tão vasta e complexa como a Igreja católica? Por que não aplicar ao bispo de Roma a lei 401 do Código de Direito Canônico, que obriga todos os bispos a renunciarem ao completar 75 anos? Talvez convenha à Cúria Romana essa acefalia que lhe permite dirigir a Igreja sem intromissão papal.
Queira Deus que não se repita com Wojtyla o que fizeram com o generalíssimo Franco, ditador da Espanha por 36 anos e, enfermo, submetido a uma sequência de transplantes para que se lhe prolongasse a vida ao máximo. Ou com Tancredo Neves, rendido a cirurgias quase diárias, como se a vontade política pudesse vencer a inexorabilidade da morte.
Em 1294, o papa Celestino V renunciou. Mas, quantos renunciam ao poder? Ou quantos fazem do poder serviço?
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DOCUMENTO
VENEZUELA: A REVOLUÇÃO SILENCIADA
Reportagem do Padre-Poeta ERNESTO CARDENAL
Pepe, um amigo do Jornal Fraternizar, residente em Madrid, fez-nos chegar esta Reportagem assinada pelo Padre-Poeta maior da América Latina, Ernesto Cardenal, no Jornal Rebelón (10-01-05), intitulada: "Venezuela: a Revolução silenciada". Afinal, tudo neste texto é agradavelmente surpreendente. Até a entusiástica referência do autor ao pensamento teológico do nosso director.
Nas ruas de Caracas, as paredes continuam cheias de pichagens do recente referendo, muitas dizendo VOTA NÃO (isto é, que Chávez não saia) e outras VOTA SIM (que saia), e muitas dizendo simplesmente NÃO, ou SIM, em letras de todo o tamanho. Gostei especialmente duma que dizia: DIZ NÃO AO SIM. Chamou-me muito a atenção uma que dizia: BÓLÍVAR VIVE, A LUTA CONTINUA, porque me fez lembrar uma pichagem que foi muito frequente na revolução de Nicarágua, e que era: SANDINO VIVE, A LUTA CONTINUA. Sandino tinha sido assassinado há 50 anos e tinha ficado sepultado na memória do povo, porém, com a revolução sandinista tinha ressuscitado e era ele quem encabeçava a luta. Também aqui Bolívar foi resgatado dos livros de história e trazido para a rua, posto a caminhar.
Pareceu-me que agora havia mais pichagens a favor de Chávez e menos contra, do que há seis meses atrás, quando estive aqui num festival mundial de poesia. Desta vez, vim convidado pelo Congresso de Intelectuais e Artistas em Defesa da Humanidade. Os 350 participantes foram divididos em numerosos grupos e enviados a ver as obras da revolução por toda a Venezuela até ao Orinoco.
A mim, coube-me visitar os morros de Caracas, que são os que noutras partes são chamados favelas ou chabolas ou vilas-miséria, e que estão pelas escarpas dominando toda a cidade. São os mesmos morros que inspiram a famosa canção “As casas de cartão”, do venezuelano Ali Primera.
Eu sempre os tinha visto de longe, quando visitava Caracas, e uma vez escrevi sobre eles: Aquelas luzes sobre Caracas, como um céu estrelado, são as luzinhas tristes dos pobres, o seu cordão de miséria virado para o céu. Noutras partes do mundo, estão ocultos, aqui não. Vêem-se de toda a parte, e em pleno céu.
No nosso grupo houve um professor universitário que, embora viva em Caracas, disse-nos depois que nunca antes tinha estado nos morros e que tinha ido com algum medo. A pobreza que vimos é a que haverá em todo o lado onde há bairros pobres, embora as pessoas não os vejam.
Porém, aqui deparamo-nos com uma enorme surpresa. Lá muito no interior desse bairro de 1 milhão de habitantes, que é um dos vários núcleos populacionais pobres de Caracas, havia um moderníssimo hospital, como costumam ser os hospitais para ricos, porém, era gratuito para toda a gente; e um centro dentário e um oftalmologista.
Perto, uma farmácia com os medicamentos 85% abaixo do seu preço. (Os receitados no hospital são gratuitos).
Mais adiante, havia uma fábrica de calçado e outra têxtil, dirigidas por cooperativas e construídas para proporcionar trabalho aos desempregados. Vimos uma rua com dois ou três conjuntos de casas com murais de um e de outro lado, de bela pintura popular realizada pelos moradores.
No Centro Comunal pedi que me indicassem os sanitários e deparei com uns serviços sanitários brilhantes e luxuosos, melhores que os do hotel Caracas Hilton, onde estávamos hospedados. Soubemos que naquele Centro Comunal distribuíam alimentação gratuita a 90.000 pessoas e que esse programa existia em toda a Venezuela.
Visitámos uma Casa de Alimentação, que era casa particular onde uma senhora preparava diariamente comida para umas 200 pessoas. Vimos um Mercado Popular, onde os preços são 40% mais baixos, e desses há em toda a Venezuela, e também há Mercaditos e supermercados.
Soubemos que 8 milhões de pessoas beneficiam desses alimentos mais baratos ou gratuitos, dependendo do grau de pobreza em que se encontrem, e que são mais de meio milhão os que são atendidos pelos Refeitórios Populares. Soubemos também que agora o povo pode comer frango e outra carne todos os dias.
Tudo isto da alimentação é parte do programa de saúde, que lá é chamado “Saúde Integral”, isto é, saúde relacionada com educação, desporto, cultura e alimentação.
Na Venezuela o direito à saúde é considerado como parte do direito à vida. Há no país cerca de 25 milhões de habitantes, e desses, 17 milhões estavam excluídos dos serviços de saúde. Agora, 85% da população têm cobertura de saúde pública. Os outros 15% recorrem ao sistema privado. Agora, descongestionaram-se os serviços de emergência.
Anteriormente, as pessoas já não iam aos consultórios para ser atendidas, devido aos descuidos que os outros governos tinham nesta área da saúde. Agora nos bairros pobres, selvas, planícies e montanhas há serviços médicos para todos os que estavam excluídos, com modernos centros de diagnóstico com raios X e electrocardiogramas e endoscopias e ultra-sons, tudo de graça para todos.
Há 20 mil médicos para os pobres, quase todos cubanos, que atendem em média 250 famílias cada um. Estes são alojados pela comunidade e vivem nas mesmas condições que as outras pessoas. Os médicos venezuelanos não foram formados para isto, e por isso há poucos venezuelanos entre eles. E esta é a diferença entre ter havido uma revolução ou não.
Nos morros de Caracas onde estivemos, os médicos cubanos alojam-se nas casas do bairro, e uma mulher que hospedava um deles disse-me: “A mim pagam-me uma renda, mas mesmo que não pagassem, eu hospedava-o, pelo sacrifício que eles fazem por nós”.
Esses médicos atendiam durante a manhã na sua clínica e durante a tarde visitavam os doentes nas suas casas. E não posso esquecer uma médica cubana que irradiava tanto amor para todos, que parecia uma Madre Teresa jovem.
Estavam a concluir por esses dias o programa de alfabetizar milhão e meio de pessoas analfabetas que existiam na Venezuela. Antes, qualquer tipo de educação estava fora do alcance dos pobres, porém, agora 13 milhões de venezuelanos estavam a estudar.
Há aulas até nos mais afastados rincões da Venezuela e até os índios da selva são ensinados nas suas línguas e a partir de textos impressos para eles. Também há as Escolas Bolivarianas para os pobres, nas quais não se paga nem sequer a inscrição, e servem pequeno almoço, almoço e merenda.
Deste género de escolas, há mais de mil na Venezuela. Estas escolas têm também desportos, computadores, internet, psicólogos, acompanhamento médico. Logicamente, ninguém falta.
Muitas famílias de classe média e média baixa começam já a retirar os seus filhos dos colégios privados é o que me dizem porque estas escolas são melhores e não tem que se pagar nada.
As universidades eram gratuitas, porém com um filtro de entrada por onde não passavam os pobres, e hoje os jovens estão a optar mais pela Universidade Bolivariana do que pelas privadas.
Existem também nos municípios uns “Núcleos Universitários” para aqueles que não podem frequentar as sedes das universidades. A isto chama-se “municipalização da Universidade”.
Cuba contribui também para a educação com assessores e com vídeos e folhetos. Também foi uma surpresa para mim ver uma colecção de livritos de bolso, dos quais se publicam 1 milhão de exemplares cada um, e são distribuídos de graça à população. Há já 20 títulos publicados.
Também soube que estavam para abrir 6 mil Infocentros de Internet e computadores gratuitos para o povo.
Conto tudo isto, porque sei que é desconhecido no estrangeiro. O programa desportivo tem vários milhares de Professores Desportivos Comunitários. Agora são coisa vulgar nos bairros as actividades que antes eram exclusivas duma minoria que podia pagar um luxuoso ginásio.
Há educação física e desporto nas escolas, e também ginástica básica para a mulher, ginástica musical aeróbica e baile-terapia, actividades físicas para pessoas obesas, para hipertensos, para grávidas, e também para os do Clube de Avós (os da terceira idade). Diziam-nos que nesses morros os vizinhos não se conheciam, nem sequer se saudavam, e agora têm um grande espírito comunitário.
A aquisição de títulos de propriedade estava a ser feita comunitariamente, porque era impensável que o fizessem apenas um a um, quando eram milhões os que estavam sem título de propriedade. Todos esses morros estavam ilegais e ninguém tinha esperança de alguma vez adquirir o registo de propriedade da sua casa.
Nos morros, há um transporte de táxis locais, servido por jipes, porque só os jipes podem percorrer aqueles labirintos de ruas estreitas, muito a subir e muito a descer. Estes transportadores fazem o serviço de graça, quando é necessário, por exemplo, em casos de emergência. Contribuíram para a libertação de Chávez, quando todos decidiram descer os morros. “Desceram dos morros, os bravos”, diz-se, e libertaram o presidente. Ao mesmo tempo que toda a Venezuela transbordava.
É preciso ver o brilho dos olhos de rapazes e de raparigas, quando falam dos seus projectos comunitários; e também os olhos dos homens e das mulheres de idade madura e os velhos.
Existem Círculos Bolivarianos para se envolver em qualquer espécie de tarefa comunitária, como por exemplo responder às necessidades do bairro, formar uma cooperativa, obter um empréstimo. Basta fazer um telefonema para que um destes Círculos fique constituído. E há destes Círculos por toda a Venezuela.
Há os que criticam isto como excesso de espontaneísmo, porém, é uma maneira de contrariar a imobilidade burocrática do Estado.
Está a criar-se um Estado paralelo. Ouve-se falar muito mal do governo; dos ministérios que trabalham pouco. O governo está cheio de burocratas de administrações ultrapassadas, e segundo as actuais leis não podem ser removidos. Então a revolução está a fazer-se paralelamente, por vias populares. E o que Chávez quer é a plena participação popular. Há os que vêem a revolução como um estado dentro do Estado, mas, dadas as circunstâncias da Venezuela, não podia ser de outro modo.
Existem "bolsas" de 100 dólares/mês, uma verba próxima do salário mínimo. Há umas 400 mil em toda a Venezuela. Todos os pobres que trabalham em projectos comunitários recebem essas bolsas, assim como todos os pobres que ensinam ou estudam ou estão a ter alguma capacitação. Perguntei quem pagava isso e disseram-me que o petróleo. É uma socialização do rendimento do petróleo. Estudar agora é uma forma de emprego, e paga-se a quem aprende.
Os ministérios que incidam nos programas sociais contribuem, mas com obstáculos burocráticos. A maior parte do trabalho é feito pelo próprio povo com infinitas organizações. Na realidade, Chávez “nacionalizou” o petróleo. Uma mulher disse-me: “O petróleo já é dos venezuelanos. Nadávamos em petróleo, e não sabíamos nada do preço do barril de petróleo”.
Chávez é o único presidente, dizem eles, que está com os pobres. E outra mulher disse-me: “Amor com amor se paga, por isso gostamos tanto dele”
Por duas vezes, estive nesses morros, em sítios diferentes.
O Exército de Venezuela tem uma particularidade especial: é o exército de Bolívar e chama-se Exército Libertador. É um exército marcado por Simão Bolívar, e os militares de todas as categorias sempre souberam que para Bolívar a democracia era um sistema para dar a máxima felicidade ao povo. Tem outra particularidade esse exército: nunca passou pela Escola das Américas. Tiveram a formação na Venezuela. Uma formação humanista. Estudaram ciências políticas, graduaram-se em universidades e ali relacionaram-se com universitários.
A revolução de Chávez não é uma revolução improvisada, e não é só dele. É uma revolução que esteve em gestação, desde há anos, nos quartéis. Estes militares estudavam Marx e muitos outros autores, entre eles Mao Tse Tung. Aí tomaram consciência que existem para garantir a felicidade do povo, e que um exército deve ser agente de mudança social.
Os do tempo de Chávez graduaram-se e passaram a instrutores de novos oficiais. Enviados a enfrentar as guerrilhas, encontraram-se com a pobreza da população, mais do que com os guerrilheiros, que já eram poucos. Eles mesmos eram pobres, como Chávez que foi uma criança descalça que vendia doces nas ruas.
Ao contrário de outros exércitos latino-americanos, o de Venezuela nunca foi uma casta, e foi deste exército do povo pobre irmanado com os ex-guerrilheiros que nasceu a revolução bolivariana.
Na Venezuela, ouve-se a cada instante a palavra “bolivariano”. Porém, não é uma palavra vazia, como nos discursos oficiais dos outros governos.
Trata-se nada mais nada menos do que de regressar ao sonho de Bolívar. Bolívar sonhou a unificação dos povos da América Latina e empreendeu uma cruzada para o conseguir. Foi o primeiro homem do nosso continente que se deu conta do perigo que os Estados Unidos representam para nós.
Sem um governo americano unificado, dizia, os nossos povos ver-se-ão envolvidos em guerras civis e à mercê de bandidos; foi o que aconteceu.
Chávez retomou o sonho de Bolívar. O que ele pretende não é apenas venerar uma figura que todos os seus predecessores veneraram, mas continuar com a obra histórica e política que ele não acabou, e fazer com que o Libertador não seja apenas um mito, mas uma realidade actual.
Chávez lutou arduamente na Assembleia Nacional, perante uma forte oposição, até conseguir mudar o nome ao país, fazendo com que se chamasse República Bolivariana. Não foi um capricho, nem uma extravagância, como se divulgou, muito menos uma banalidade.
Essa mudança tem uma intenção oculta. Em linguagem cifrada diz que na Venezuela se volta a sonhar com a reunificação da América Latina. Esse nome foi apagado durante as poucas horas que durou o golpe contra Chávez, o que é muito revelador.
Falhou o golpe e Bolívar continua a ser um projecto político e um programa de governo. O Plano Bolívar é um vasto plano de participação do Exército nas obras sociais.
Os militares estiveram em todo o lado, limpando ruas, pintando escolas, reparando clínicas, construindo casas, fazendo parques, desinfectando as escolas. O Plano Bolívar uniu as Forças Armadas com os pobres. É preciso ver a familiaridade que hoje existe entre os civis e os fardados (que antes eram obrigados a usar balas de chumbo para reprimir os manifestantes).
Esta união de civis e militares sempre foi uma meta de Chávez. A oposição ataca Chávez, porque é militar, e pelo que chamam de “militarização” do governo. Deve recordar-se que a revolução peruana foi de militares e que o general Torrijos foi militar, como o foi o coronel Jacobo Arbens de Guatemala; e que tanto o tenente Báez Boné, de Nicarágua, como o general Seregni, de Uruguai provinham dos quartéis. Em realidade, a revolução da Venezuela apoia-se em dois pilares: o povo e o exército.
Uma rara característica da revolução da Venezuela é que é uma revolução sem partido. Chávez quis criar um partido de governo, porém, parece que depois dos dois grandes partidos que antes se revezavam no governo e que agora estão liquidados, o povo já não gosta de partido nenhum.
Também é uma revolução que não se define senão como bolivariana. É uma revolução “sem teorias”, como nos disse o alcaide de Caracas, um militar que tinha sido chefe da contra-insurreição e que foi atraído pelos insurrectos e passou à clandestinidade com eles. É uma revolução com elementos heterogéneos, pois vimos Hugo Chávez inaugurar o congresso “Em Defesa da Humanidade”, tendo ao seu lado o ministro das Relações Exteriores que antes foi um guerrilheiro no estado de Falcon.
Chávez é acusado de ser um chefe antidemocrático, embora não tenha um único preso político e não tenha fechado nenhum meio de comunicação, rádio, jornais ou televisão. E apesar dele ter o recorde de ter ganho 8 eleições e do seu governo ser o único no mundo em que o povo pode destituir o seu líder, graças a uma lei que ele próprio impulsionou.
Se eu devesse classificar este governo, deveria ser de governo constitucional. Chávez está sempre a citar a Constituição e a mostrá-la numa edição miniatura que leva sempre com ele, e o povo que também anda com ela, faz o mesmo.
“Democracia com justiça” é um lema que Chávez muitas vezes repete. E também insiste que a Democracia deve ser representativa: que é o que agora se vê todos os dias na Venezuela; e não na antiga Venezuela, que era só votar por um dos dois partidos.
O governo é acusado de corrupção e é verdade, porém o Executivo enviou aos tribunais grandes quantidades de casos para serem investigados ou sancionados, mas a Fiscalização e o Controlo - que também são corruptos - não fazem caso. São vícios duma burocracia herdada que ainda não foi possível erradicar.
Segundo as leis ainda em vigor, os burocratas nomeados pelos governos anteriores não podem ser destituídos, mesmo que sejam corruptos ou incompetentes.
Por isso a revolução avança por outros caminhos. Esta revolução está a ser uma verdadeira alternativa ao neo-liberalismo.
Os micro-créditos estão a criar uma nova classe de empresários e a economia cresceu 12%. Venezuela teve no passado lucros parecidos com os da Arábia Saudita, porém 80% da população continuou a ser pobre; pela primeira vez, os lucros do petróleo são para o povo. Chávez não assinou nunca nenhum acordo com o FMI, pelo contrário, as cimeiras latino-americanas propuseram aos outros governos criar um Fundo Monetário Latino-americano, para que os nossos países emprestem a si próprios. Não fizeram caso do que ele disse, e Chávez diz que essas Cimeiras não servem para nada. Diz que uma vez disse aos outros presidentes: “Nós de cimeira em cimeira e os nossos povos de abismo em abismo”.
Conta também que a primeira vez que assistiu a uma cimeira latino-americana ameaçou zangar-se com os outros presidentes. Fidel de Castro fez-lhe chegar um papelito: “Antes, eu era o único diabo, agora somos dois”.
O maior aliado que Cuba agora tem é a Venezuela, e o maior aliado da Venezuela é Cuba. “Bolívar e Martí são um só país unificado”, disse Chávez. Embora uma vez tenha havido uma pega entre os dois. Explico: Todos sabem da paixão que Fidel tem pelo beisebol. E a primeira ambição que Chávez teve foi ser guarda redes das grandes ligas e por isso entrou no exército, porque sendo um adolescente pobre não tinha outra maneira de brilhar no beisebol.
A verdade é que depressa mudou de ambição. Ora, uma vez, estando Chávez de visita a Cuba, realizou-se um jogo de beisebol entre Venezuela e Cuba, com Chávez de 43 anos à frente da sua equipa e Fidel de 73 anos à frente da de Cuba. Foi acordado que todos os jogadores deviam ter mais de 40 anos, mas Fidel anunciou que ia haver uma surpresa.
Ganhou Cuba, porém no final descobriu-se que uns jogadores da equipa cubana eram famosos profissionais jovens que se disfarçaram para parecerem velhos. Chávez disse que a ele não o enganaram, mas a verdade é que ninguém o tomou a sério.
Chávez conta que Fidel lhe disse que era cristão, mas no social: e acrescenta que ele próprio é cristão no social e no religioso, embora menos no religioso.
Por mim, poderia dizer a ambos o que diz o P. Mário de Oliveira, de Portugal: que Deus, do que gosta não é de religião, mas de política (e nisto não faz mais do que copiar os profetas). Quanto à religião, a hierarquia católica está contra o processo revolucionário, juntamente com os empresários e a oligarquia, e é tão má como a da Nicarágua ou, melhor dito, é até pior.
De acordo com a sua origem popular, Chávez mantém a fé simples das classes humildes venezuelanas. Diz que a Constituição é quase sagrada, porque o único livro sagrado é a Bíblia. E cita muito a Bíblia nos seus discursos, porém com bastante liberdade, como quando diz que Cristo disse: “Dai a César o que é de César, e ao povo o que é do povo”. O que Cristo efectivamente não disse, mas está no espírito do que disse.
Os seus discursos são tão longos como os de Fidel, uma conferência de imprensa pode demorar duas horas e o seu programa dominical, “Alô, Presidente” pode durar 6 ou 7 horas.
Cativa o auditório como Fidel, embora o seu estilo seja diferente: muito terra-a-terra e bem-humorado, contando anedotas e fazendo à partes com os quais, entretanto, não perde o fio à meada. Canta e recita versos, cita Bolívar e outros libertadores, tudo à mistura com frequentes risos tanto dele mesmo como do público, com intervenções que o público lhe faz por vezes em gritos e às quais ele responde com grande rapidez. Por vezes, chega até a entrar em diálogo com quem o interrompeu. (Disseram-me que “Alô, Presidente” pode ser captado pela internet ou pela rádio).
Em Chávez há um sorriso permanente que torna radiante o seu rosto meio mestiço e meio mulato, com o qual as classes populares devem sentir-se muito identificadas. Tem também uma maneira muito peculiar de olhar nos olhos, fixamente, como quem observa algo especial.
Porém, a revolução venezuelana não é só um líder carismático, mas todo um povo. Os inimigos fizeram a caricatura do seu carisma como coisa cómica, e da sua popularidade como um totatalitarismo. Mas a verdade é que, para muita gente na Venezuela a vida está a mudar. Em 1999, Chávez na China, diante do túmulo de Mao, declarou que Venezuela se tinha levantado como a China dos anos 50 com Mao Tse Tung. Assim é, embora os meios de comunicação social da Venezuela e do estrangeiro façam por ignorar este facto.
A revolução cubana foi caluniada até hoje, assim como a da Nicarágua. Com a da Venezuela a táctica foi silenciá-la.
Uma professora em Espanha perguntou-me como é que ela, que é professora universitária, não sabia nada da revolução na Venezuela. Eu disse-lhe que era por causa das fontes de informação que ela tinha. Porque 9 transnacionais da informação produzem 90% da informação mundial, e esta é feita de acordo com os interesses dos seus donos. Ora, a revolução da Venezuela não faz parte dos interesses dos donos dessas 9 transnacionais.
Quando me perguntavam naqueles morros o que se dizia no estrangeiro sobre o que os seus habitantes fazem, a mim custou muito ter que lhes dizer que não dizem nada. Os revolucionários venezuelanos ignoram que a sua revolução é uma revolução ignorada no mundo. “A revolução bonita”, como Chávez lhe chama, é, na verdade, uma revolução silenciada. Apesar de tudo, Bolívar vive e a luta continua.
Estejamos certos que ela vai continuar. “Graças a Deus e ao meu Comandante Jesus Cristo”, como gosta de repetir o presidente Chávez.
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Pe. Martins Júnior (Madeira)
S.O.S. Vaticano!
Aqui d’el Papa!
O Jornal PÚBLICO, de 18 de Novembro 2004, inseriu nas suas páginas um grito de "Aqui d'el Papa!", assinado pelo Pe. Martins Júnior, da Madeira. O grito, sem qualquer chamada à 1.ª página, é bem capaz de ter passado despercebido. Por isso, Jornal Fraternizar permite-se retomá-lo nas suas páginas. Com a devida vénia. Ninguém perca pitada.
Escandalizaram-se católicos do Canadá por verem o santuário de Fátima “invadido” pela espiritualidade do dalai-lama e pelo místico ritual hinduísta, ao ponto de exigirem do Vaticano o afastamento do bispo de Leiria e do reitor do santuário.
A “bomba” - exigir do Papa o exercício do seu múnus específico de “episcopus” vigilante do rebanho e, daí, o imediato saneamento de altos representantes da hierarquia católica portuguesa - lançou estilhaços que atravessaram o Atlântico e chegaram também à Madeira, para uma reflexão serena sobre a verdadeira matriz da Igreja de Cristo.
Católicos do Canadá incomodaram-se e incomodaram o Papa com a abertura ecuménica da Igreja em Fátima. Mas incomodar-se-ão uns e outro com a destruição do corpo e do espírito da Igreja no santuário verde de uma ilha chamada Madeira? Terão, ao menos, conhecimento do assalto ao “poder” espiritual da Igreja, por parte do poder temporal de um mini-império político-partidário?
Sob a exuberância da paisagem que faz da Madeira o seu turístico cartaz de identidade e a coberto de uma campanuda barafunda político-publicitária de que se enche a mente e se embriaga o olho do consumidor na ilha e fora dela, saberá o bispo de Roma, o “olheiro de Deus”,saberá sequer que o seu “colega” na Madeira anda a entregar “as chaves do reino” ao poder político vigente e continua a profanar o santuário de Deus, fazendo subir ao supedâneo do altar o chefe político da ilha para encerrar a missa solene da sagração de novos templos? Em vésperas de eleições!... Nenhum bispo do antigo regime consenti-lo-ia a qualquer governante, nem mesmo o próprio cardeal Cerejeira seria capaz de permiti-lo ao todo-poderoso Salazar.
SOS Vaticano! - é caso para gritar, quando na Madeira se anda a rasgar toda uma história de martírio e de luta para emancipar a Igreja das garras insaciáveis do poder dominante, desde o Nero facínora até ao galicano Filipe “O Belo”.
Tanto mais sofisticada e perigosa se torna esta intencionada cedência ao poder reinante, quando numa cerimónia do crisma se vê um bispo abandonar no altar o cálice eucarístico para ir beber da taça de champanhe, brindando com os governantes na inauguração de uma unidade hoteleira.
São adultos, são idosos, são jovens e são crianças que no ecrã da televisão regionalizada vêem todos os dias cenários desta deprimente dimensão.
Daí que já não se estranhe o anúncio que nas homilias dominicais fazem os párocos, convocando os crentes para as inaugurações eleitoralistas, indicando até o horário das camionetas pagas pelo Governo Regional para levar o povo crente (“a força do povo e o povo à força”) ao local do festim oficial. E não poderia estranhar-se, pois o bispo já lá está, no local do festim, geometricamente alinhado ao lado dos senhores do Governo, para lançar a água benta ao alcatrão ainda quente. De batina debruada a vermelho, faixa escarlate e cruz de ouro ao peito, como manda o uniforme dos príncipes da Igreja. Em véspera de eleições. Não incomoda o Vaticano, não incomoda os católicos do Canadá, não incomoda o mais simples cristão o facto de ser publicamente glosado o bispo da diocese como o “sr. secretário Regional dos Assuntos Religiosos” ?
Enquanto isso, no outro lado cristão da ilha, a diocese dá todo o aval ao Governo para mandar 70 polícias violar uma igreja rural e ocupá-la durante 18 dias e 18 noites, sem qualquer mandado judicial. Em 1985! Também não se lhe ouviu uma palavra, quando o Governo, volvidas 12 horas sobre as eleições de 17 de Outubro último, manda retirar os projectores públicos que há anos iluminavam o adro e a envolvente desse modesto templo.
Por tudo isto, a consciência lúcida dos cristãos interpela e denuncia a degenerescência da Igreja regional e compara-a a certas situações sul-americanas e terceiro-mundistas: lá como cá, vêem-se alguns sacerdotes na obrigação “que nos urge” de envolver-se activamente na luta sociopolítica para contraporem os usurários do poder e demonstrarem que a Igreja de Cristo não está (nem nunca deve estar) de braço dado com o mais forte, com os detentores do poder político e financeiro.
Nesta conjuntura, questiona-se ainda: por ter o Papa, bispo residente de Roma, o estatuto de Chefe de Estado (o que se repudia liminarmente) e por inerência dever submeter-se ao protocolo oficial dos demais reis e soberanos do mundo, poderá o seu “colega” bispo residente do Funchal alimentar a obsessão de ombrear com os dominadores da ilha e arrogar-se a tentação de levar o seu assento para junto do cadeiral dos novos capitães donatários?
Transformou-se a ilha num estranho laboratório da promiscuidade entre os poderes político-religiosos, de que é paradigma esse ridículo quanto repugnante travesti discursivo que é o de ouvir-se publicamente o presidente do Governo mandar rezar e o bispo diocesano mandar votar. (Sic!)
Mas a leitura dos factos, no grande curso da história que se repete, é que neste micro-humus da ilha está a gerar-se (e oxalá que o mar circundante venha a afogá-lo sem demora) o monstro antigo da entronização da realeza e da sacralização do poder, tentando reincarnar a histeria megalómana de um Napoleão ou a vingativa omnipotência de um Henrique VIII, chefe da Igreja Anglicana.
Perante as múltiplas transacções entre a Igreja e o poder político, ao ponto de não saber-se onde começa e onde acaba a legitimidade do braço secular e do braço religioso em questões que só a um deles dizem respeito, não será ousado concluir que na Madeira pouco falta para se instalar uma das mais refinadas e subreptícias formas de Inquisição.
Servirão estes poucos (porque eles são muitos) excertos do quotidiano da ilha para lançar daqui de longe lampejos de inquietante reflexão não só a católicos do Canadá, mas a toda a consciência cristã e perguntarmo-nos a nós próprios se não é chegada a hora de clamar “SOS Vaticano!” e bradar “Aqui d’el Papa!” Antes que seja tarde. E para que, aos que vierem depois, não seja tão doloroso o regresso às origens, à verdadeira matriz da Igreja de Cristo.
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IGREJA / SOCIEDADE
José Manuel Vidal, in diário El Mundo
AS DUAS FACES DE FÁTIMA
Por ocasião do funeral da irmã Lúcia, o jornalista do diário El Mundo, de Madrid, José Manuel Vidal, elaborou e publicou a reportagem "Las dos caras de Fátima". Jornal Fraternizar traduziu-a e aqui a divulga na íntegra. Com vénia. E com feliz espanto! Logo a seguir, divulga também mais um extracto do "Diário Aberto" do pe. Mário, na net
Faleceu a santa em vida, irmã Lúcia, a última vidente das aparições de Fátima. Porém, deixa atrás dela o milagre mais polémico, controverso e influente de todos os tempos. Fátima marcou a Igreja e a História do mundo. Com seus símbolos, os seus medos e os seus segredos. E com os seus protagonistas: Rússia, fim do mundo, Guerra Fria, Salazar, Ratzinger ou João Paulo II. Com os seus apaixonados defensores, que vêem em Fátima “a rocha da fé contra as artimanhas do Maligno”, e os seus radicais opositores, que a classificam de “fraude, montagem e negócio”.
Fátima levanta paixões. Desde o princípio até hoje. Fátima fez correr rios de tinta a favor e contra. Nenhuma outra aparição mariana (Lourdes ou Guadalupe incluídas) suscitou tanto interesse. Os livros escritos em todo o mundo sobre o fenómeno de Fátima contam-se por milhares. Só na biblioteca do santuário contam-se mais de 10 mil volumes. Todos louvando a “senhora mais brilhante que o sol”. Lá não entram os críticos nem os iconoclastas.
Porém, também os há. E muitos. Porque Fátima tem duas faces. A mais conhecida, feita de anjos, aparições, visões apocalípticas e culto a Maria Rainha. É a versão que defende com paixão Juan Clá, 66 anos, fundador e presidente dos Arautos do Evangelho, uma associação internacional de direito pontifício, cujo escudo é a Virgem de Fátima, a eucaristia e as chaves de Pedro, símbolo do papado. São 3 mil leigos e estão presentes em 55 países. O fundador é também o director do coro e da orquestra da associação, com que já gravou 15 CDs de música religiosa, uma das suas especialidades.
Com um cerimonial aristocrático, os arautos, vestidos meio monges, meio soldados, apetrechados de pendões e estandartes, com coro e orquestra, costumam interpretar o drama sagrado da coroação de Nossa Senhora de Fátima, cujo coração, rodeado de espinhos e dardejando chamas pelos seus aurículos, “triunfará sobre a Babilónia moderna”.
A outra face de Fátima é menos conhecida e fala de “paganismo e utilização enviesada da religiosidade popular com fins políticos e crematísticos”. [crematística: ciência da produção das riquezas. Arte de adquirir e conservar riquezas, in Artur Bivar, Dicionário Geral e Analítico da Língua Portuguesa, Edições Ouro, Porto]. O padre Mário de Oliveira, presbítero português, tem 68 anos e é um dos opositores mais conhecidos das aparições de Fátima. Os dois, Juan e Mário, são homens da Igreja. Porém, com sensibilidades eclesiais diferentes, para não dizer, opostas.
O padre Mário é presbítero da Igreja [do Porto] desde 1962. Foi pároco de Macieira da Lixa e enviado como capelão militar a Guiné-Bissau, quando esta antiga colónia portuguesa se encontrava em plena guerra pela independência. Esteve lá apenas 4 meses. Os chefes do Exército do regime fascista de Salazar expulsaram-no por ele pedir a paz e defender o direito à independência dos povos colonizados. Marcado, no seu regresso ao país, acabou por ser detido pela PIDE, a polícia política do regime, e preso. Participou da revolução dos cravos e dedica a sua atenção pastoral às comunidades cristãs de base. Claro expoente da Teologia da Libertação, defensor dos pobres e das causas perdidas, é muito conhecido em Portugal, onde participa com assiduidade em debates televisivos. Alguns chamam-lhe o Casaldáliga português (em referência ao rebelde claretiano espanhol e bispo dos pobres do Mato Grosso brasileiro). Outros, o padre Apeles [de Espanha]. Publicou mais de 25 livros. Mas o que o projectou para a fama foi FÁTIMA NUNCA MAIS, publicado em 1999 pela Editorial Campo das Letras [Porto], com 11 reedições (está no prelo a 12.ª) e mais de 30 mil exemplares vendidos, o que num país como Portugal, é um verdadeiro recorde.
Nem em livros, nem em êxito editorial lhe fica atrás Juan Clá. O presidente geral dos Arautos do Evangelho tem 14 obras publicadas, com uma tiragem total de mais de 8 milhões de exemplares. A maioria delas centradas nas aparições de Fátima, como “Meu Imaculado Coração triunfará”, “Fátima, aurora do terceiro milénio”, “O Rosário, a oração da paz”, ou “Jacinta e Francisco, predilectos de Maria”.
No seu entender, “as aparições estão de tal modo marcadas por sinais de autenticidade, que receberam uma atenção particular da Igreja católica”, com bênçãos especiais dos últimos Papas, especialmente João Paulo II.
Se Juan Clá mitifica, o padre Mário desmitifica e questiona um dos pilares da religiosidade conservadora. O primeiro crê a pés juntos nas aparições de Fátima, tal como as descreveu irmã Lúcia nas suas Memórias. O segundo rebate ponto por ponto as Memórias da irmã Lúcia, as aparições e os segredos. Por exemplo, garante que Lúcia “não escreveu as Memórias, porque ela mal sabia ler e escrever. Por isso, alguém as escreveu por ela”.
O padre iconoclasta português vai mais longe. Garante que todas as aparições são “uma montagem e uma fraude”. Segundo ele, “é uma invenção do clero português da época que nunca suportou a revolução da República que pôs fim a quase oito séculos de mancebia [política] entre a Monarquia e a Igreja. O que as crianças dizem ver não são mais do que as imagens das pregações das Santas Missões populares, nas quais os pregadores ameaçavam as pes-soas com o fogo eterno. Não há dedo de Deus, mas dedo humano. Quando muito, há um delírio ou alguma alucinação provocada pelo medo”.
Juan Clá defende, ao contrário, que os três pastorinhos de Fátima não inventaram nada. Apareceu-lhes, como conta Lúcia, “uma senhora vestida de branco, mais brilhante que o sol”. E contaram o sucedido. Até os seus pais lhes bateram para que se desdissessem. E as autoridades ameaçam-nos com deitá-los em azeite a ferver. Tão pressionados se viram, que Lúcia pediu à Virgem um milagre.
O famoso milagre do sol que baila no dia 13 de Outubro de 1917. Segundo Clá, “a Virgem havia prometido um sinal para que todos pudessem crer e, de facto, a multidão pôde testemunhar o milagre do sol: o astro-rei bailou no céu e parecia cair sobre a terra.
“Era uma aurora boreal”, replica o padre Mário. “Tudo falso, como as mensagens, que foram reescritas a partir de 1935 e nas quais fazem as crianças falar da URSS já em 1917, quando a União Soviética ainda não existia e em Portugal nunca se tinha ouvido falar em semelhante nome. Menos ainda, três crianças analfabetas funcionais”. Na sua opinião, os três pastorinhos são “vítimas inocentes do terrorismo eclesiástico. À Jacinta e ao Francisco, os clérigos mataram-nos de fome, de sede e de medo. E a peste [pneumónica] fez o resto. Restava-lhes Lúcia, uma adolescente de escasso entendimento, facilmente manipulável”.
DEMÊNCIA E DELÍRIO
O padre português defende que Lúcia, “sequestrada desde então, foi condenada a viver em estado de demência e delírio, com visões e aparições a toda a hora”. E garante: “São crimes que deveriam ser levados aos tribunais”. Culpa o Papa de sacralização do “paganismo de Fátima, um dos maiores fatimistas”. Wojtyla atribuiu à Virgem de Fátima tê-lo salvo da bala disparada pelo turco Ali Agca. De facto, a bala e o anel papal estão na coroa da Virgem.
“E não só isso, mas que se apropriou do terceiro segredo, atribuiu-o a si e, para isso, fabricaram-no mesmo à medida”, denuncia o padre Mário.
Durante décadas julgou-se que o terceiro segredo predizia o fim do mundo. No dia 13 de Maio de 2000, devido ao Jubileu, o número dois do Vaticano, cardeal Ângelo Sodano, tornou público o temido mistério. Que não é o Apocalipse, mas a visão de um “bispo vestido de branco” que caminha para a cruz entre cadáveres de mártires e cai morto por disparos de arma de fogo. Esse bispo vestido de branco era João Paulo II. Embora, como sublinha Juan Clá, “a Igreja deixa livre a interpretação do complexo texto, admitindo que poderia referir-se a acontecimentos futuros”.
O padre Mário conclui: “Fátima é uma fraude e um imenso negócio”. Com 4 milhões e meio de visitantes por ano e mais de 500 casas de comércio. Para Juan Clá, tem “uma suprema importância, porque foi a própria Virgem a embaixadora do Céu”.
Em geral, os teólogos sérios sentem-se incomodados com as aparições de Fátima. Mas só alguns se atrevem a declará-lo. Como o já falecido jesuíta Carlos Maria Staehlin, cujo livro sobre as aparições, publicado em 1954, as desautorizava e foi proibido por Roma. Como também foram silenciados os 22 volumes do padre Alonso e quase toda a obra do padre Gruner sobre o mesmo tema.
QUESTÃO DE FÉ
Também o teólogo jesuíta José Ignacio González Faus é taxativo: “Não acredito nas aparições de Fátima. Como cristão, não estou obrigado a crer nelas”. Juan Clá, ao contrário, crê que se pode dizer “sem medo de exagerar que Fátima constitui o principal acontecimento do século XX. A mensagem transmitida por Maria toca em cheio nos principais problemas dos últimos 100 anos, tais como as duas guerras mundiais, o avanço do comunismo, os conflitos religiosos e a avassaladora crise de moral em curso; aponta as suas causas básicas e contribui com remédios”.
Como diz o catedrático da Complutense Rafael Navarro-Valls, “Fátima acrescenta às chaves geopolíticas critérios teológicos para explicar as grandes quebras morais do século”. Um século como o XX que “foi o mais sangrento de toda a História da Humanidade”. No dizer de Paul Claudel, “Fátima é uma irrupção violenta e escandalosa do mundo sobrenatural neste agitado mundo material”.
Uma irrupção sempre envolta na polémica. A morte da irmã Lúcia reavivou-a. Juan Clá pensa que se pode ver no seu falecimento “um sinal de que tragédias apocalípticas podem a todo o momento abater-se sobre a Humanidade”. E conclui: “Aconteça o que acontecer, não tenhamos medo: a Virgem cuidará de nós como filhos muito queridos”.
Ao contrário, o padre Mário considera que “as aparições são contrárias ao Evangelho. A minha maior alegria seria que acabássemos com elas e que a apocalíptica Nossa Senhora de Fátima, que mete medo com as chamas do inferno, se converta em Maria de Nazaré, passando de fonte de alienação popular a companheira do povo empobrecido”.
As duas faces de Fátima persistiram durante quase um século e a chama da polémica reavivou-se. Manter-se-á indefinidamente?
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Jornal Fraternizar voltou a espreitar o “Diário Aberto” (02 Março 05) do pe. Mário
RENUNCIAIS À SENHORA DE FÁTIMA,
ÀS SUAS MENTIRAS E AOS SEUS CULTOS?
As línguas religiosas e mais ou menos fanáticas da senhora de Fátima gostam de dizer que Portugal está livre de desgraças, de catástrofes e de guerras, porque tem a senhora de Fátima. Mentem com quantos dentes têm na boca. Mesmo em 1917, em plenas “aparições”, milhares de soldados portugueses estavam envolvidos na I Guerra Mundial. Milhares deles morreram lá. Poucos meses depois das “aparições” serem dadas oficialmente como concluídas, veio a peste pneumónica que matou muitas pessoas no país. E nem sequer as duas crianças que disseram ter visto nossa senhora escaparam e lá morreram antes de tempo! Com a fundação do Estado Novo, tivemos que suportar o fascismo salazarista durante longos e pesados 48 anos. Fomos obrigados a fazer a guerra colonial em três frentes de África, com milhares de mortos e mais ainda de mutilados. Desde há anos a esta parte, morrem nas estradas de Portugal, cada ano, largas centenas de pessoas, a maior parte, ainda na força da vida, em acidentes de viação, e ficam milhares de outras feridas com maior ou menor gravidade. Ainda ontem, foram mais quatro jovens mortos, apenas num único acidente! A juntar aos quatro bombeiros de Coimbra que morreram, quando andavam em arriscado serviço em prol de todas, todos nós. Há ainda poucos anos, foi a tragédia da Ponte de Entre-os-Rios, no concelho de Castelo de Paiva, com todo aquele cortejo de mortos e de desaparecidos. Por outro lado, como país, não há maneira de descolarmos da cauda da Europa. E é notório que hoje sofremos duma depressão nacional, com desemprego em massa e pobreza imerecida, que ainda ninguém sabe como poderá ser superada com êxito.
Tudo isto e muito mais, sem que a senhora de Fátima, saloiamente, cantada como “rainha de Portugal”, valha aos seus devotos “súbditos”. Aliás, diga-se em abono da verdade que foi sempre timbre das rainhas e dos reis, quando e lá onde os houve, viverem à custa dos respectivos súbditos. Exactamente, como acontece, desde 1917, em Portugal com a senhora de Fátima que leva aos seus devotos e devotas o que elas e eles têm e o que não têm! Para lá da sua dignidade de pessoas humanas.
É minha convicção que muita da nossa desgraça nacional vem precisamente da senhora de Fátima. O seu culto em público e em privado é manifestamente causa de alienação e de depressão generalizadas. O cheiro a cera queimada que emana daquele recinto de horrores e de humilhação da pessoa humana empesta, física e simbolicamente, o ar que respiramos e faz de nós um povo persistentemente adoentado, triste, deprimido, resignado, alienado, sempre à espera de milagres que nunca acontecem nem nunca acontecerão, a não ser que nós os façamos com o nosso engenho e arte, com a nossa inteligência e o nosso esforço individual e colectivo.
Por isso, digo e sublinho com todo o vigor da minha Fé cristã jesuânica: Se queremos ser alguém na vida, como pessoas e como país, fujamos de Fátima e da sua senhora cega, surda e muda. Evitemos até aproximar-nos daquela serra cada vez mais contaminada por semelhante peste religiosa nos antípodas do Evangelho de Jesus e da Fé de Jesus. Visitar aqueles locais, mesmo por curiosidade, ou morar lá, é correr o risco de ficarmos semelhantes à imagem que lá é idolatrada: cegos para o essencial, surdos uns para os outros e mudos. Numa palavra, mortos. Paralisados. Inactivos. Um povo infantilizado, amedrontado e eternamente adiado.
Antigamente, a nossa Igreja católica perguntava, aos baptizandos e nos actos públicos de Profissão de Fé: “Renunciais a Satanás, a todas as suas pompas e vaidades?” Pois bem: Hoje, esta pergunta poderá e deverá ser actualizada e formulada assim: Renunciais à senhora de Fátima, a todas as suas mentiras e a todos os seus cultos idolátricos?
Felizes de nós, se, como pessoas e como povo, respondermos: Sim, renunciamos! Porque, uma vez libertas, libertos de Fátima e da sua cruel senhora, poderemos, finalmente, ousar ser nós próprias, nós próprios, mulheres e homens ao jeito de Jesus. Também ao jeito de Maria de Nazaré, na medida em que ela soube passar de sua mãe carnal, a sua exemplar discípula! O resto virá por acréscimo.
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L. Boff (Brasil)
RICOS EPULÕES E POBRES LÁZAROS
O Forum Económico Mundial de Davos e o Forum Social Mundial de Porto Alegre actualizam, de certa forma, a parábola evangélica do rico epulão e do pobre lázaro.
Em Davos predominam o económico, os bens materiais e o dinheiro. Até recente data, lá se reuniam os epulões do mundo para discutir moedas, juros, mercados, inflação e principalmente ganhos. Eram cegos e surdos ao clamor que subia da Terra por causa do destino trágico dos pobres e da devastação da natureza.
Em Porto Alegre predominam o social, os bens não materiais e a aposta de que outro mundo é possível. Aí se reúnem os representantes dos pobres lázaros do mundo inteiro. Em sua agenda estão bens espirituais e humanitários como a solidariedade, o respeito à diversidade, a compaixão, o cuidado para com a natureza, a rejeição a todo tipo de violência e à guerra, o empenho pela paz duradoura, o ecumenismo entre as religiões e a democracia social sem fim.
Davos e Porto Alegre mostram a humanidade sob a ameaça de bifurcação: de um lado, aquele um terço com acesso a todos os meios de vida, sonhando viver até 130 anos que é a idade das células; e de outro, aqueles dois terços, sobrevivendo como podem com os parcos recursos que lhes sobram, atingindo, quem sabe, os sessenta anos.
Como manter a humanidade unida, como espécie e como família, morando na mesma Casa Comum, pois não temos outra para habitar? Esse constitui um desafio ético e humanístico para todo o poder político, para as religiões e Igrejas, para os intelectuais, para os militantes por um mundo melhor e para todos humanos que se conscientizaram desta tragédia que pode se abater sobre a humanidade.
O significado maior do Presidente Lula ao participar nos dois Forums reside neste significado transcendente: estabelecer pontes, criar as condições de um diálogo necessário sobre o futuro da Terra e da Humanidade, partindo das demandas do Forum Social Mundial e destarte impedir a bifurcação. Ele introduziu em Davos o escândalo da fome e da exclusão. A porta de entrada não pode ser a economia capitalista, orientada pela acumulação sem limites dentro da lógica da competição. Nesta só o mais forte ganha a preço de altíssima taxa de iniquidade social e ambiental.
Se entrarmos por aí legitimamos os ricos epulões, apenas sensíveis às cifras e ao brilho do vil metal. Devemos entrar pela porta do social, porque ai, de imediato, encontramos os milhões de outros com seus rostos marcados e a natureza depredada. E diante do outro surge a questão ética: como tratar humanamente os humanos e com cuidado a natureza?
Ao responder a estas questões que nos queimam por dentro, somos urgidos a hierarquizar as instâncias: a economia deve servir à política que, por sua vez, deve-se submeter à ética que, por sua vez, deve-se inspirar numa compreensão integradora e espiritual do ser humano.
Quer dizer, os meios de vida económicos servem para garantir uma boa convivência social e política que se rege por valores éticos de justiça, equidade, participação e respeito aos direitos no contexto de uma aura espiritual que fornece as motivações maiores que dão sentido transcendente à vida.
Davos e Porto Alegre exigem-se mutuamente. Chegará o dia em que se abraçarão?
Basta sermos razoáveis. Então não haverá mais ricos epulões e pobres lázaros, mas cidadãos que descobriram a alegria de conviverem fraternalmente e em paz, também com a natureza.
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