|
DESTAQUE
Tanta catequese nas paróquias para quê?
Já o mês de Maio 2005 ia para o fim, quando entra na minha caixa de correio electrónico uma mensagem enviada por um pai residente com a respectiva família a mulher, uma filha e um filho numa cidade do norte do país. Mostra-se preocupado com o que ultimamente algumas pessoas católicas andam a dizer à sua filhinha de 10 anos que não é baptizada, nem frequenta a catequese da Paróquia católica. Nas suas conversas com a filha, falou-lhe de mim e do Evangelho de Jesus que procuro viver e anunciar e conseguiu, inclusive, que a menina escrevesse na mensagem enviada por ele algumas das perguntas que gostaria de me fazer pessoalmente. Porque tanto a mensagem recebida, onde se incluem as perguntas da menina, como a resposta que sem demora enderecei directamente à própria menina me parecem um bom ponto de partida para uma reflexão teológico-pastoral sobre catequese, o tema de Destaque desta edição n.º 158 do FRATERNIZAR, aqui divulgo uma e outra na íntegra. Omito apenas o nome da cidade, e atribuo nomes supostos às pessoas directamente envolvidas. Façam o favor de ler/meditar/divulgar/debater. E de comentar, se assim o entenderem, para a local “Outras Cartas”, do nosso Fraternizar. Eis.
“A minha filha Zélia tem 10 anos e não foi baptizada nem frequenta as «mentirosas catequeses». Tomei essa decisão, porque acho que devo ser eu a falar-lhe de Cristo e da sua mensagem. Na verdade, a maneira que eu tenho para lhe falar Dele é como você o faz: sem mistérios, fáceis milagres, sem mentira...
Passa-se que, como vivemos em sociedade, a pequena tem sentido algumas pressões, quer de colegas, quer de adultos (o que é mais lamentável) em relação à nossa forma de receber Jesus, «o revolucionário e político».
Como eu lhe tenho falado muito do «meu amigo Padre Mário», ela veio perguntar-me se você achava que era verdade o que lhe disseram : «...que ela não tinha nome, pois não era baptizada, e que não iriam nunca para o céu.» Disse-me que queria falar consigo para lhe fazer umas perguntas e eu respondi-lhe que lhe poderíamos enviar este e-mail. Assim sendo, segue o texto que ela escreveu. Da minha parte um grande abraço! Por favor responda e anote o meu novo e-mail.
AS PERGUNTAS:
1. Porque é que os padres não se podem casar?
2. Um dia uma senhora disse-me que eu não tinha nome se não fosse baptizada, e depois ao meu irmão que apenas tem 21 meses e não percebe nada do que lhe dizem, que ele não se chamava Jorge, se não fosse baptizado. Senti um nó na garganta da raiva que sentia. Porque é que toda a gente me fala disso?
3. Vou dizer-lhe uma coisa: eu posso ver as nuvens da cor que eu quiser, e você consegue? Toda a gente me diz que não!
4. O signo da mãe de Jesus era virgem? Se não é, como pode ter engravidado virgem?
Aqui acabam as minhas perguntas.
Um abraço, Padre Mário; aguardamos a sua resposta, e obrigado, Zacarias. (Em anexo, seguem duas fotos: uma da nossa família pequena , outra é um pôr-do-sol que a Zélia fotografou e lhe quis oferecer.”
AS MINHAS RESPOSTAS
Querida Zélia:
Fico feliz por não frequentares a catequese da paróquia. E, sobretudo, por teres uma mãe e um pai que se preocupam contigo, também nesta dimensão da tua educação na Fé. Fossem todas as mães, todos os pais assim e o mundo seria bem mais decente. E a Igreja também. Felizmente, também eu tive a sorte de ter podido despertar para a Fé de Jesus, graças ao testemunho de vida da minha Mãe, uma mulher pobre que nunca quis enriquecer. Tal e qual como Jesus, que também nunca quis enriquecer. Apenas quis ser plenamente humano, solidário e fraterno, até à doação da própria vida pela vida do mundo.
A catequese da Paróquia tem muito de “obrigação”. As catequistas comportam-se como funcionárias eclesiásticas. As meninas, os meninos são obrigados a ir à catequese. E depressa têm que passar a frequentar as missas como as pessoas adultas. E depois há aquelas “festas da catequese”, ao longo de cada ano, até se chegar à Comunhão Solene e ao Crisma, as quais mais parecem uma passagem de modelos. Felizmente, estás dispensada dessa feira de vaidades. Deves ter gosto e muita alegria perante as tuas companheiras, os teus companheiros, por seres diferente. És ainda menina, mas já és dissidente. Só posso alegrar-me contigo. Um dia ainda hei-de conhecer-te e envolver-te no meu abraço amigo e companheiro. Seremos grandes amigos, se tu assim quiseres. Eu quero.
E agora, vou directo às tuas perguntas com as minhas respostas.
1. Porque é que os padres não se podem casar? Olha, Zélia, lá poderem casar, os padres podem. Só que se o fizerem, têm que renunciar ao exercício do ministério. Na prática, ficam como se não fossem padres. Continuam a ser padres, mas não podem exercer como tal na Igreja oficial. Isto é assim, porque os que mandam na Igreja católica do Ocidente decidiram, há muitos séculos, que quem aceitasse ser padre tinha que viver em celibato, o que na prática significa, viver sem casar. Esta decisão não vem de Deus, nem de Jesus de Nazaré. É uma lei inventada pelos que mandam na Igreja, a chamada hierarquia, concretamente, o Papa e os Bispos. Mas é uma lei perversa, que tem que ser combatida, até ser abolida. É o que eu faço há bastantes anos. Para que, finalmente, na Igreja o celibato seja não imposto, como agora é, mas opcional, isto é, resulte da escolha de cada padre. Enquanto não chegarmos aqui, temos que continuar a exigir do Papa e dos Bispos que acabem com a lei do celibato obrigatório para os padres. Tu própria já podes entrar nesta luta pela liberdade. Que tal se escrevesses ao Bispo da tua diocese? E ao Papa Bento XVI? E se convidasses as tuas amigas, os teus amigos a fazerem outro tanto?
2. O que essa senhora te disse sobre os nomes das crianças sem baptismo foi um disparate de todo tamanho. Antigamente, os clérigos ensinaram esses disparates às populações analfabetas. Para as obrigarem a baptizar as filhas, os filhos, diziam-lhes que era o baptismo que dava a alma e o nome às crianças. Portanto, sem a água do baptismo, elas não teriam nem nome, nem alma. Mas esta doutrina é pura mentira. E faz parte do terrorismo que muitos clérigos utilizaram para melhor terem as populações nas mãos. Por isso, não te deixes impressionar com esses ditos de certas senhoras devotas. E procura esclarecê-las com a tua simplicidade. São pessoas ignorantes que precisam de quem as ajude a libertar-se da ignorância. Aliás, o Baptismo, como sacramento da Igreja, só deverá ser celebrado com pessoas adultas, e depois delas terem sido correctamente evangelizadas. Nas Comunidades cristãs de Base, que tenho acompanhado, as mães e os pais mais conscientes já não baptizam as filhas, os filhos em pequeno. Ajudam-nos a crescer e deixam que elas, eles, um dia decidam se hão-de ser baptizados ou não. De resto, o verdadeiro baptismo nem é o de água, mas o Baptismo no Espírito Santo. Mas esse as paróquias católicas não são capazes de o fazer acontecer. As Paróquias católicas são demasiado legalistas e rotineiras, e nem sequer chegam a ser capazes de entender o que seja baptizar no Espírito Santo. Tomara eu que tu, Zélia, venhas um dia a ser baptizada, mas no Espírito Santo. Saberemos se sim, pelos efeitos, pelo estilo de vida que tu passes a adoptar para ti. Quanto mais te pareceres com Jesus, o de Nazaré, mais saberemos que foste baptizada no Espírito Santo, tal como ele foi.
3. Não és só tu que consegues ver as nuvens da cor que tu quiseres. Todas as meninas, todos os meninos conseguem. E eu também consigo, na medida em que me mantiver menino. Quando deixar de conseguir ver as nuvens da cor que eu quiser, é sinal de que deixei de ser como um menino. E, nesse dia, deixarei de ser humano, para ser outra coisa, por exemplo, um senhor importante, mas muito infeliz.
4. Quanto ao signo da mãe de Jesus ninguém sabe, porque ninguém sabe o dia em que ela nasceu. Também não interessa. O que te posso dizer é que ela, para poder ser a mãe de Jesus, também deixou de ser fisicamente virgem, tal como sucede com qualquer outra mulher que se torna mãe. O que não é uma desonra, mas uma mais valia para as mulheres. E digo-te ainda mais: Quando os Evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas falam de Maria, como virgem, eles não estão a dizer nada sobre a mãe de Jesus, mas sobre o seu filho Jesus. Querem dizer-nos, com recurso a essa linguagem, que Jesus, o filho de Maria, é sobretudo filho de Deus, é Deus entre-nós-e-connosco, é a definitiva revelação de Deus no meio de nós. Infelizmente, as catequeses das paróquias católicas não têm sabido interpretar os Evangelhos e andam há séculos a ensinar mentiras e disparates às populações, como essa mentira e esse disparate de que Maria é fisicamente virgem antes do parto, durante o parto e depois do parto. Felizmente, tu, Zélia, estás a crescer longe dessas mentiras e desses disparates. E eu só posso alegrar-me contigo.
Antes de terminar, aproveito para te agradecer teres-me enviado a tua mensagem. E por teres confiado em mim, mesmo antes de me conheceres cara a cara. Fiquei com muita pena por não ter conseguido abrir o anexo, para te ver em fotografia e à tua família. Diz ao pai que tente outra vez, mas agora com recurso a outro programa, que não o “pageMaker”.
Abraço-te e à mãe e ao pai. Dá um beijinho meu ao teu mano Rodrigo.
Mário
DEZ ANOS É MUITO TEMPO
Ao contrário desta menina de 10 anos duma cidade do norte do país, as crianças/adolescentes filhas/filhos de mães e pais católicos tradicionais continuam a ter que frequentar, se quiserem cumprir à risca o que está determinado pela nossa Igreja católica, 10 anos de catequese paroquial, dada a partir de um catecismo diferente em cada ano. O que pressupõe a existência de um verdadeiro exército de catequistas em todo o país, uma vez que a catequese é ministrada em pequenos grupos autónomos e separados por anos.
O que é mais de espantar é que todo este exército de catequistas é constituído, na sua esmagadora maioria, por adolescentes e jovens, que se alistam totalmente de graça e que, ao longo de cada ano, cumprem escrupulosamente com essa “obrigação” semanal. Uma "greve" geral a este serviço de voluntários paralisaria por completo a catequese nas paróquias católicas. Mas não há memória de nenhum caso de "greve" de catequistas em Portugal e nem é sequer provável que algum dia tal venha a acontecer. São pessoas demasiado jovens e de consciência muito pouco crítica, todas elas formadas pela mesma escola católica que fomenta a reverência ao clero e impede o aparecimento de consciências críticas e não pode suportar a existência de dissidentes nas suas fileiras.
Basta atentar nos títulos dos catecismos aprovados pela autoridade eclesiástica católica e ainda em vigor no nosso país, para se perceber que a catequese ministrada através deles é uma catequese totalmente inofensiva, esvaziada de profecia e do Sopro fecundamente libertador e saudavelmente dissidente de Jesus de Nazaré, o Catequista por antonomásia de Deus Criador, que é simultaneamente o Deus do Reino, que ele fez presente e anunciou com a sua prática dissidente e a sua palavra libertadora. Em todos os milhares de sessões de catequese semanal não há nunca notícia de nenhum desacato, nem de nenhum conflito, suscitados pela catequese. Nem as crianças/adolescentes que a frequentam, nem as catequistas que a ministram sob o comando e o controlo dos párocos (são sobretudo mulheres, não homens, quem mais se presta a este voluntariado paroquial, o que não deixa de ser significativo), nem as mães nem os pais das crianças/adolescentes que a frequentam, alguma vez foram protagonistas de desacatos e de conflitos, no jeito daqueles que o Evangelho de Jesus, nas suas quatro versões canónicas, regista como desencadeados pelo “catequista” Jesus e pelas suas catequeses. Nas catequeses semanais das paróquias católicas não acontece de semelhante. É tudo muito conforme à Ordem estabelecida, onde os párocos continuam a ter lugar de destaque, é tudo muito de acordo com as orientações dos párocos e do respectivo bispo diocesano, é tudo muito dentro dos cânones moralistas emanados da Cúria Romana e das Cúrias diocesanas. Numa palavra, é tudo muito domesticado, muito eclesiástico, muito previsível, sem nenhum lugar para a sempre imprevisível Boa Notícia de Deus, o de Jesus.
São estes os 10 títulos dos catecismos ainda em vigor: 1. Jesus gosta de mim. 2. Estou com Jesus. 3. Queremos seguir-te. 4. Ficamos contigo. 5. Eu sou o vosso Deus. 6. Jesus Cristo é o Senhor. 7. Ele caminha connosco. 8. Somos um Povo. 9. Urgente viver. 10. Ousar crer.
MAS QUE JESUS?
Para elaborar este destaque, debrucei-me com especial atenção, sobre o catecismo do 2.º ano, para meninas/meninos de 7-8 anos de idade. O catecismo está centrado em Jesus, o que, à primeira vista, é positivo, uma vez que Jesus é o rosto definitivo de Deus e tudo o que possamos pensar e dizer de Deus, fora de Jesus, é sempre idolatria.
Mas que Jesus é que, semana a semana, se apresenta às crianças, ao longo de todo um ano, com este catecismo? Tanto os textos, como as gravuras remetem-nos para um Jesus que não é o do Evangelho, mas um Jesus eclesiástico, clerical, mais parecido com os párocos e os bispos católicos! Trata-se de um Jesus metido nos templos, perdido com missas ritualizadas, representado e controlado por sacerdotes que pontificam nos altares, um Jesus milagreiro, sem conflitos, sem História, sem Reino de Deus, zelador dos egoísmos e dos mesquinhos interesses daquelas, daqueles que frequentam as missas de domingo. Tudo está orientado para levar as crianças da catequese a frequentar as missas de domingo e a saber responder ao ritual. Visa preparar adultas, adultos eclesiásticos, misseiros, em lugar de cidadãs, cidadãos políticos, bem metidos no mundo e na História, como obreiros e militantes do Reino de Deus, ao jeito de Jesus de Nazaré.
Um exemplo: o tema n.º 2 titula-se: “Que bom estar com Jesus”. Mas, depois, a ilustração que acompanha o texto é uma igreja sem casas à volta, no género das tradicionais igrejas paroquiais, que as meninas, os meninos da catequese já conhecem e frequentam. O que levará as crianças a concluir, mas erradamente, que para estarem com Jesus, ao longo da sua vida, têm que frequentar a igreja da paróquia, pois é lá que ele mora! Ora, isto é uma mentira pegada! E um insulto à memória de Jesus. Estamos com Jesus, quando nos reunimos em seu nome. E reunimo-nos em seu nome, quando nos reunimos para nos darmos à Humanidade e às suas causas. O que tem tudo a ver com a Política e nada a ver com os templos das paróquias, quase todos eles casas de alienação, de opressão, de beatice, de missas por mortos, de meninas, meninos de coro, e até covis de ladrões.
Outro exemplo: O tema n.º 10 deste mesmo catecismo tem por título: “Jesus é amigo de todos”. E tanto o texto como as ilustrações do tema sugerem apenas situações mais ou menos cor de rosa, sem conflitos de nenhuma espécie. Mas então Jesus não teve inimigos? Não suscitou ódios de morte contra ele? Os sacerdotes e os doutores da Lei, mais os escribas e os fariseus não o perseguiram, não o caluniaram e, finalmente, não o mataram? Onde aparece neste tipo de catecismo e de catequese a dimensão política da missão de Jesus? Onde as referências às suas lutas duélicas contra os detentores dos privilégios? Onde a referência às suas solidariedades até ao fim, até à morte, com as vítimas dos poderosos e dos ricos, dos sacerdotes e dos fariseus/santos?
Perante tamanho cinzentismo ao nível dos catecismos e das catequeses que se ministram por essas paróquias católicas fora, é então caso para levar mais longe e mais fundo estes questionamentos e perguntar: Mas, afinal, o que se pretende com tantos anos de catequese e com tanta gente mobilizada para a tornar realidade, semana após semana e ano após ano, em cada paróquia? pretende-se fazer despertar em cada criança/adolescente a fé de Jesus, ou, ao contrário, fazer despertar a fé em Jesus? Mas será que, em Igreja, ainda nem sequer nos demos conta que mais do que termos mulheres, homens que crêem em Jesus, é decisivo para o futuro do mundo e da Humanidade termos mulheres, homens com a mesma fé de Jesus?
|
|
Editorial
Outro País. Outra Igreja
1. O nosso país está à beira de bater no fundo, em consequência da política sem Espírito e sem entranhas de humanidade, o mesmo é dizer, sem sabedoria e sem competência dos políticos profissionais que nos têm governado. Todos eles - ministros, presidentes da República, deputados, autarcas - cada qual ao seu jeito e ao seu modo, vivem cada vez mais de cócoras perante os poderes económicos e financeiros, cujos rostos nem eles conhecem e, talvez por isso, tratam como se fossem outras tantas divindades diante das quais não se atrevem a resistir-lhes, muito menos a contrariar as suas desmedidas ambições de lucro e de domínio absoluto e global.
Mas o pior de tudo ainda é termos de constatar que os políticos profissionais têm vindo progressivamente a poder contar com a cumplicidade de todas, todos nós que delegamos neles a condução dos nossos destinos colectivos, para assim, livres de toda e qualquer responsabilidade política, podermos dedicar-nos a encher regularmente os estádios de futebol, ou a ver novelas umas atrás das outras, juntamente com sucessivas emissões da quinta das famosas nulidades, ou a fazer intermináveis filas de carros em direcção às praias, mal o sol dá um ar da sua graça de calor, ou a encher as bermas das estradas com inumanas peregrinações a pé a Fátima, à Santa Rita ou ao S. Bentinho da Porta Aberta, ou a queimar o tempo do desemprego e da reforma pelos bancos dos cafés e dos jardins, em jogos de cartas, que não levam a nenhum lado, senão à degradação, à alienação, ao desânimo e, finalmente, à morte.
Trabalhar no duro faz calos e hoje já não se usa. Quando muito, deixa-se isso para os imigrantes que insistem em vir viver no meio de nós. Estudar, ser disciplinado, aplicar-se, fazer esforço pessoal, cuidar dos campos, desistir do litoral e regressar às aldeias do interior do país, reaprender a regar os campos com o suor do nosso rosto, ler livros, debater ideias, ir ao teatro, fazer teatro, ouvir os poetas, escrever poemas, ir a concertos, escrever música, numa palavra, cultivarmo-nos como povo, para mais e melhor podermos assumir a Política como um serviço colectivo, são tudo acções que já não entram nas nossas agendas quotidianas ou semanais, nem nos nos nossos tempos comuns de cidadãs, de cidadãos. Aliás, as nossas casas nem sequer prevêem uma sala para livros e para repousadas e fecundas leituras de livros. E o nosso dia de 24 horas tão pouco contempla qualquer disponibilidade para tertúlias, para leituras de grupo, dialogadas e debatidas, para encontros em que se façam lúcidas análises económicas, financeiras, políticas, culturais, religiosas e teológicas do país. Limitamo-nos a ser simplesmente consumidoras compulsivas, consumidores compulsivos. Em consequência, até o carro que já não conseguimos dispensar e que é assim como o nosso cartão de identidade individual, já quase só conhece o caminho rumo às grandes superfícies, aos médios centros comerciais e aos locais de lazer/prazer e de alienação. A Política continua a ficar com os profissionais da dita. E, se estes forem corruptos, tanto melhor, porque assim nunca lhes passará pela cabeça demitir-se e devolver o país às cidadãs, aos cidadãos. Quando estiverem fartos de "gamar", passam o testemunho da corrupção a outros iguais ou piores que eles, até cairmos todos, um dia, no abismo. Um desastre que, pelo andar da carruagem, já não estará assim tão distante.
Reconheço que o retrato que acabo de fazer me saiu muito a preto e branco. Mas a realidade, provavelmente, ainda será pior. Só daremos conta, quando batermos no fundo. Até lá, cantamos e rimos, ou gememos e choramos, conforme a realidade concreta de cada pessoa e de cada família. Duma coisa podemos ter a certeza: Se não invertermos depressa a presente situação, será cada vez maior o número daquelas, daqueles que gememos e choramos.
O que eu então mais posso desejar é que, quando acordarmos desta letargia e desta alienação colectivas, não desesperemos nem entremos pela estéril revolta. Pelo contrário, ousemos com lucidez e coragem dar à volta à situação, a começar por nós próprias, nós próprios. Porque um país é o que for o conjunto do seu povo. Não o que forem os seus políticos profissionais.
Uma coisa temos que meter bem na cabeça e na prática de vida de todos os dias: A Política não é coisa de profissionais. A Política é para ser assumida por todo povo. Só a Política nos faz cidadãs, cidadãos de corpo inteiro. Quando nos demitimos da Política e corremos a entregá-la aos profissionais da dita, ela corrompe-se em Poder, que progressivamente perverte tudo e todos. E é assim que, com o passar dos anos, as populações crescem em alienação e em mediocridade, quando deveriam crescer em sabedoria e em graça. E lá acabamos todos mais ou menos corruptos. Não é verdade que um pouco de fermento corruptor corrompe toda a massa, todo um país? É por isso hora de dizermos/fazermos stop. E nascermos de novo como povo!
Para quando então a primeira grande Insurreição Cívica nacional? E a primeira grande Insurreição Cívica europeia?
2. O cardeal Ratzinger mudou de nome. Agora é papa Bento XVI. Por escolha do Espírito/Sopro de Deus? Ou por escolha do espírito/sopro do Medo? Todo o Poder alimenta-se do medo. E o Poder absoluto, como continua a ser o poder do papa, alimenta-se do medo absoluto. Por outro lado, o medo criou os deuses. E a Religião, cujos sacerdotes deverão promover-lhes reiteradas sessões de culto, destinadas a apaziguar os deuses e a torná-los favoráveis às pretensões do Poder. A Cúria Romana não foge à regra, ou ela não fosse a sucessora do Império, que a antecedeu no Poder de dominação do mundo.
Só que tudo isto que acabo de referir é do reino do Demoníaco, não é do Reino de Deus, anunciado por Jesus, o de Nazaré, a quem o Poder absoluto do Império e do Templo matou na cruz como o maldito dos malditos. Do Reino de Deus, anunciado por Jesus, é a Liberdade, sem qualquer lugar para o Medo.
Ora, é de Liberdade, não de Medo, que precisamos a todo o instante para sermos seres humanos. O Medo sempre faz abortar os seres humanos. E converte-os em escravos, súbditos, subservientes, vassalos, menores. Que é o que hoje mais abunda na Igreja católica e nas sociedades controladas pelo seu Moralismo e pela sua Religião.
A Liberdade, ao contrário, gera seres humanos da estatura de Jesus de Nazaré, o Ser Humano integral que enfrentou o Império e o Templo - os dois pais do Medo - e só se dá por satisfeita quando vê as mulheres, os homens assumir-se na História como sujeitos, protagonistas, por isso, constitutivamente políticos, não religiosos.
Como presbítero da Igreja católica que está no Porto, também eu reconheço o papa Bento XVI, evidentemente. Mas tal como Paulo reconheceu Pedro, no início da Igreja. Reconheço-o, para lhe resistir activamente, sempre que as suas palavras e as suas decisões não trouxerem as marcas da Liberdade, mas as marcas do Medo. Previsivelmente, terei de viver em estado de resistência activa ao seu magistério. Enquanto Bento XVI se mantiver no estatuto de Poder absoluto, as suas palavras e decisões serão marcadas pelo espírito ou sopro do Medo. Resistir-lhe activamente, será então a única maneira de me manter humano e presbítero da Igreja. Será também a melhor forma de lhe manifestar o meu amor de irmão, de amigo e de companheiro.
Onde houver Poder absoluto, também há Medo absoluto. É por isso que a Igreja católica, com o cardeal Ratzinger/Bento XVI à frente dos seus destinos, é hoje a grande instituição geradora de Medo. Ai então de quem não se atrever a resistir activamente a Bento XVI e à sua Cúria Romana. Ai dos Bispos que, na sua relação com Bento XVI, não tiverem a audácia de Paulo na sua relação com Pedro. Deixarão de ser pastores, para serem mercenários, executantes de ordens, de normas, de decretos, de cânones, de catecismos, de Moralismos, de disciplinas eclesiásticas. Em lugar de homens livres, por isso, responsáveis, serão correias de transmissão dos interesses do Poder absoluto de Bento XVI e da sua demoníaca Cúria Romana.
É dura esta linguagem? É a linguagem da Verdade. E do Amor. Por mim, não conheço outro jeito de ser Igreja. E que ninguém me queira obrigar a identificar Igreja com a Cúria Romana, os seus cardeais, os seus conclaves gerontocráticos cheios de Medo, onde não sopra nem o fortíssimo Vento juvenil, nem a mais leve brisa feminina!
Mário,presbítero da Igreja do Porto
|
|
ESPAÇO ABERTO
Editorial COM ESPERANÇA
É grande a minha esperança. Nas recentes eleições legislativas antecipadas para a Assembleia da República, mobilizámo-nos como país e, com o nosso voto depositado nas urnas, corremos politicamente com o desgovernado governo de Paulo Portas e de Santana Lopes. Pelo caminho, ainda demos mais força e mais voz aos Partidos políticos que defendem os valores da Esquerda, indubitavelmente, mais próximos dos valores do Reino/Reinado de Deus, e já empossámos o novo Governo, encabeçado por José Sócrates, do PS, o qual, felizmente, resistiu à tentação de acolher no seu seio certos vícios políticos do aparelho partidário, de onde emana, ao mesmo tempo que teve a audácia de se abrir à sociedade civil, da qual o seu Governo também emana, e ainda mais do que do aparelho partidário.
Estas mudanças, só por si, são fonte de esperança, porque um Governo pior do que o imediatamente anterior seria de todo impossível. É verdade que as mulheres estão muito pouco presentes no novo Governo. E as poucas que estão, aparecem colocadas à frente de ministérios de menor peso político.
Este facto, que aqui registo com desagrado e bastante perplexidade, constitui uma falha substancial que pode vir a revelar-se irreparável, ao longo do mandato.
Mesmo assim, prefiro sublinhar, nesta hora, o óbvio, isto é, que ninguém, mulher ou homem, foi ou está a ser impedido de participar politicamente no processo de recuperação do país. Para este processo, todas, todos, podemos e devemos continuar mobilizados, tanto ou mais que os deputados no novo Parlamento e que os ministros e os secretários de Estado no novo Governo.
O que quero dizer com isto é que a mobilização a que fomos capazes de dar corpo nestas eleições legislativas antecipadas de modo nenhum é para suspender agora. Pelo contrário, tem que prosseguir, sem desfalecimentos. Com muita imaginação. Muita inteligência. Muita vigilância. E também com muita confiança. Muita alegria. Muita determinação.
Não basta termos mudado o Parlamento e o Governo. Foi bom, muito bom, mas é insuficiente. É imperioso que mudemos também o país. Digo mais: É imperioso que nos mudemos também a nós próprias, a nós próprios, como povo português.
E aqui é que as mulheres que foram perigosamente subalternizadas pelo primeiro-ministro na formação do XVII Governo constitucional, têm um insubstituível papel a desempenhar, provavelmente, ainda mais decisivo do que o dos membros do Parlamento e do Governo.
Se tal vier a acontecer e tem que acontecer, sob pena de falharmos como país, e não apenas como Parlamento e como Governo então acabaremos por reconhecer que até terá sido bom as mulheres terem ficado tão pouco presentes no Governo e no Parlamento, embora, neste, as mulheres tenham sido tidas mais em conta por parte dos partidos de Esquerda, do que pelos partidos da Direita.
Tenho para mim que é a Política, não o Poder, que muda o mundo e que salva a Humanidade. Embora, desde que existe mundo, os poderosos sempre nos tenham querido convencer - e com êxito, reconheça-se - que é o Poder que muda o mundo e que salva a Humanidade. Não é. Chegou-se inclusive ao cúmulo do descaramento de ensinar e nisso as Igrejas ajudaram os poderosos com ambas as mãos e com uma teologia feita de mentira e de idolatria!... que todo o Poder vem de Deus. Uma completa barbaridade teológica, pelo menos, no âmbito da teologia jesuânica, de consequências tremendas na História da Humanidade, a pior das quais, é, porventura, a reiterada sacralização dos sempre cruéis e perversos Impérios de turno, sem esquecer o Império eclesiástico católico romano.
Com essa sua mentirosa propaganda, ensinada até nas Universidades católicas como Evangelho de Deus, os poderosos têm conseguido assegurar e até aumentar sem grandes custos os seus inúmeros privilégios e justificar todos os seus crimes.
Aliás, na boca deles, nunca são crimes. São sempre acções/intervenções necessárias e oportunas, destinadas a manter a Ordem estabelecida e a paz de cada Império de turno, a qual, como é manifesto, nunca coincide, nem nunca poderá coincidir com aquela paz por que aspira a Humanidade e que só pode ser a Paz que vive casada e aos beijos com a Justiça, com o Pão em todos os lares e com a Liberdade a ser protagonizada por todas as pessoas e por todos os povos.
O Poder corrompe. Perverte. Mente. Exclui. Tudo compra, até consciências. Tudo vende, até a honra e a palavra dada. Submete. Infantiliza. Humilha. Oprime. Aterroriza. E, no limite, mata. Nunca olha a meios para atingir os seus fins, os quais nunca andam dissociados dos privilégios dos poderosos.
Não é assim a Política, nomeadamente, quando ela vive descasada do Poder e recusa liminarmente andar de mão dada com o Poder. A Política, só por si, diz com poesia e profecia. E com cuidado. E com vida. E com ternura. E com afectos. E com bem-estar. E com felicidade das pessoas e dos povos.
Lá, onde o Poder exclui, a Política integra. Onde o Poder oprime, aterroriza e infantiliza pessoas e povos, a Política liberta, desperta potencialidades e faz nascer sujeitos. Lá, onde o Poder faz caridadezinha social, para melhor se perpetuar, a Política faz nascer protagonismos pessoais e comunitários que podem, um dia oxalá não seja muito distante chegar a dispensar o Poder que hoje, disparatadamente, ainda temos como insubstituível, porque ele, habilmente, sempre se tem feito passar por Política, quando, efectivamente, é a sua sibilina negação.
Se a Política vem de Deus, melhor, se a Política é o próprio Deus-em-acção-no-mundo-e-na-História, o Poder vem do Demoníaco, melhor, é o Demoníaco ou o anti-Deus, ou a anti-fraternidade/sororidade-em-acção-no-mundo.
A Política é Força criadora e libertadora na História, cujo Sopro vem sempre de fora dos circuitos do Poder e, por isso, é sempre fecundo, é gerador de Fraternidade/sororidade universal. O Poder é uma criação dos seres humanos, nomeadamente, daqueles que vêem nos demais seres humanos, não irmãs e irmãos a quem amar, mas rivais, concorrentes, inimigos a neutralizar, dominar ou mesmo abater. É uma criação, não do Espírito do Deus vivo nos seres humanos, como a Política, mas da dimensão cainítica dos seres humanos e das instituições por eles criadas e mantidas ao longo dos séculos (a mais antiga de todas é, sem dúvida, a religião!), como pesos mortos, nem que, para as defender e conservar, eles tenham que roubar, matar e destruir sem dó nem piedade não só os seus opositores, mas o próprio planeta que nos serve de casa a todas, todos.
De Jesus, o de Nazaré, sabemos que sempre recusou o Poder, não a Política, evidentemente. Na sua percepção do Real, Jesus sempre colocou o Poder no âmbito do Demoníaco, por isso, no âmbito da Tentação, melhor, do Tentador que sempre está interessado em tornar inumanos os seres humanos. Em consequência, Jesus nunca aceitou ir pelo Poder. Nem fez jamais qualquer pacto com ele. “A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Isto é: Ao Poder o que é do Poder, e à Política o que é da Política.
Enquanto durar a História, sempre teremos Poder e Política. O Poder puro mata tudo o que tocar. O que o torna suportável e tolerável é que ele sempre procura actuar vestido de Política. Mas só até ao ponto em que nunca ninguém ouse provocá-lo até ao limite, ou desmascará-lo por completo. Jesus, o de Nazaré, atreveu-se a fazê-lo e logo foi morto na cruz, como o maldito por antonomásia.
Do novo Governo, espero que tenha a sabedoria e a coragem de ser mais político do que poder. Que tome decisões lúcidas e corajosas destinadas a cuidar da vida das pessoas, das populações e da Natureza. Que enfrente o Poder, lá onde ele está alojado e não suporta sequer a ideia de vir a perder privilégios adquiridos.
Mas para que o Governo possa realizar esta ingente Acção Política, nas múltiplas frentes em que essa Acção tem que realizar-se para dar fruto, é de todo necessário que o país que se mobilizou para votar, agora não desmobilize politicamente nunca mais. A começar pelas mulheres. As poucas que estão no Governo e a quase totalidade das outras que estão fora do Governo, mas não estão fora do País. Nem podem estar de fora da Política. É hora!
Deixemo-nos de lamúrias, de crendices, de beatices, de fatimices, de milagrices. Recusemos o Poder e os privilégios com que ele sempre tenta comprar as pessoas e as suas almas. Mas vivamos em cheio a Política, ao jeito de Jesus. Veremos o país a passar (Páscoa) da depressão para a festa da vida. Vosso companheiro e irmão
Mário, presbítero da Igreja do Porto.
|
|
Espaço Aberto
González Faus (Teólogo ibérico)
Carta ao novo Papa
Querido irmão no Senhor Jesus:
Ao entrar no Conclave de onde saíste eleito, juraste ser fiel ao “ministério de Pedro”. Esta é uma das características mais importantes de toda a parafernália destes últimos dias, embora os meios de comunicação social quase nem tenham dado por isso.
Juraste ser fiel ao ministério de Pedro, não ao de Pio, ou de Gregório, ou de Alexandre... Seguramente, o ministério de Pedro necessita hoje de um restauro semelhante ao das pinturas de Miguel Ângelo, da Capela Sistina, para recuperar a frescura da sua primitiva cor. Mas não só o ministério de Pedro: os nossos políticos esqueceram já que a palavra ministério significa etimologicamente serviço. E esse facto dá-me a oportunidade para comentar contigo algumas características desse serviço.
1. Pedro não foi um chefe de Estado. Por pequeno que seja, o Estado confere uma categoria e uns poderes que não são de nenhum modo evangélicos (lembra-te do Mónaco ou de Andorra que também são Estados minúsculos).
Creio que, neste ponto, deverias parecer-te mais com Pedro que com muitos dos seus sucessores, para não mereceres a repreensão que há quase 10 séculos S. Bernardo dirigiu a Eugénio, teu antecessor: “Em muitas coisas não pareces sucessor de Pedro, mas de Constantino”.
2. Pedro foi muito querido na primitiva Igreja: quando esteve preso, rezou-se continuamente por ele. Mas ele nunca quis envolver esse apreço numa atmosfera de sacralidade. Não se fez chamar Santidade, nem santo padre, nem vigário de Cristo, mas, como Jesus, despojou-se da sua categoria e procurou “apresentar-se como um homem qualquer” (Filipenses 2, 7). E quando Cornélio quis prostrar-se diante dele, logo o impediu dizendo: “Levanta-te, que eu também sou um homem” (Actos 10, 26).
3. Pedro exerceu o seu serviço de um modo conciliador: depressa teve que enfrentar uma facção de direita em Jerusalém, capitaneada por Tiago, irmão do Senhor, e uma outra, libertadora, congregada à volta de Paulo. Apesar dos fervores iniciais, os enfrentamentos foram de tal modo grandes, que S. Lucas, propenso a idealizar, teve que reconhecer que houve “altercações violentas” (Actos15, 2).
Pedro actuou como mediador entre ambas as igrejas, e viu com bons olhos que se reunisse uma assembleia na qual ele se limitou a perguntar à facção mais integrista: “Porque tentais a Deus, impondo aos discípulos uma carga que nem os nossos pais nem nós próprios aguentamos?” (Actos 15,10).
4. Todavia, neste conflito, Pedro, Tiago e João deram plena confiança ao sector “liberal” de Paulo, impondo-lhe uma única condição: “que não se esquecessem dos pobres” (Gálatas 2, 10). A causa dos pobres passou assim a ser, por sua vez, critério da verdadeira liberdade e factor de unidade para a Igreja. Creio que estaremos de acordo em que esta é uma das características mais belas do ministério petrino.
5. Pedro foi em alguns pontos mais longe que o próprio Jesus: abriu as portas judaicas da Igreja ao mundo, apesar do próprio Jesus ter dito que havia sido enviado apenas “às ovelhas perdidas da Casa de Israel”. Mas Pedro não esqueceu que a vida do Mestre estava cheia de gestos que tornavam evidente esse critério, e actuou na convicção de que não atraiçoava o Mestre, pelo contrário, se deixava guiar pelo seu Espírito (Actos 10).
6. Por agir assim, Pedro foi criticado pelos primeiros cristãos de Jerusalém. Mas nem por isso os excomungou, antes se reuniu a conversar com eles e a explicar-lhes os seus temores humanos e as suas razões de crente: “O Espírito disse-me que fosse ter com eles, deixando de lado toda a hesitação” (Actos 11, 1 sgs). Foi essa sua audácia que salvou a Igreja, caso contrário o medo tê-la-ia tornado estéril por muitos séculos.
7. Pedro teve as suas hesitações: era intuitivo e impulsivo, mas cobarde. E em certo momento, para evitar complicações, retrocedeu na abertura aos não judeus, quando antes ele próprio a tinha possibilitado. Paulo, como um ciclone, criticou-o publicamente por isso. E Pedro deu uma grande lição de humildade, ao aceitar a crítica. E não privou Paulo da palavra.
Recordarás certamente o que, a este propósito, Santo Agostinho comentou mais tarde: “Atrevo-me a dizer que mais exemplar que a valentia de Paulo, foi a humildade de Pedro”.
8. Pedro afirmou na cara das autoridades que é necessário obedecer a Deus, antes que aos homens (Act 5,29). Esta frase, tão forte como perigosa (pelo poder que nós, humanos, temos de a manipular), tem um sentido muito mais profundo, quando é proferida por uma pessoa investida de autoridade, do que quando é utilizada por um simples soldado raso.
Por isso te peço que a não esqueças nunca, porque hoje é impossível exercer um serviço cristão sem enfrentar os poderes deste mundo; e também porque é muito possível que alguns dos teus fiéis achem que devem recorrer a ela, para, com ela, te dizerem algo de importante. Será então outra vez o momento de procurarmos, juntos, a vontade de Deus.
9. Pedro foi educado pelo Ressuscitado a saber respeitar e a não controlar o carisma do discípulo amado que parecia por vezes andar em roda livre e encarnar aquela advertência do Senhor de que “o Espírito sopra onde quer” (e não onde a autoridade quer).
Repara como à pergunta preocupada de Pedro (“E que vai ser deste?”), o Senhor respondeu: “E que tens tu com isso? Tu vem e segue-me” (João 21, 21). Amar e seguir mais a Jesus do que os outros é o mais importante do ministério de Pedro.
10. Nos seus discursos, Pedro anunciou, primária e quase exclusivamente, a vida entregue, o assassinato e a Ressurreição de Jesus e que, através dessa vida, Deus perdoou inclusive aos seus verdugos e se reconciliou definitivamente com toda a humanidade (Actos 2 e 3), porque “Deus não faz acepção de pessoas” (Actos 10, 34).
Outros problemas de índole prática (a circuncisão ou a vigência da Lei antiga) Pedro não quis resolvê-los de imediato, antes deixou que fossem resolvidos pelo contacto entre as diversas igrejas.
11. Segundo o evangelista Mateus, a Igreja está fundada sobre a fé de Pedro. Quando esta fé olhava Jesus a partir de Deus, foi classificada pelo Senhor como uma “rocha”. Mas Pedro foi também chamado “Satanás” por Jesus, quando pensou Deus em termos de poder e de triunfo e não em termos de vida entregue (Mateus 16, 18 e 23).
12. O poder de atar e desatar que Pedro recebeu (Mateus 16, 19) receberam-no igualmente os outros apóstolos directamente de Jesus (idem 18, 18). Portanto, Pedro não é nada sem o colégio apostólico do qual é cabeça, mas sem jamais o suplantar.
13. A historiografia confirma que o ministério de Pedro não teve nos seus começos uma presença e uma projecção tão universais e constantes como hoje, embora a Igreja fosse à época mais jovem e mais frágil. Pedro era, antes de mais, bispo de Roma. E foi o exemplo da Igreja romana, na pureza da sua fé, no seu cuidado dos pobres e na sua relação com as demais Igrejas, que fez que estas olhassem cada vez mais para Roma. A perda desse exemplo foi mais tarde causa de separações absurdas entre as Igrejas, contrárias à vontade de Deus. O ministério de Pedro é um ministério de unidade que não pode suportar essa divisão e deveria recuperar a sua imagem primitiva.
14. Tu sabes bem que, ao longo da história, Pedro negou Jesus mais de três vezes. E sabes também que isso não é razão para desanimar, mas apenas e só para “chorar amargamente” (Lucas 22, 62) e amar ainda mais o Senhor. Só assim “confirmarás na fé os teus irmãos” (Lucas 22, 32). E isto é o mais sublime do ministério petrino.
15. Finalmente, Pedro, o pescador inculto de uma aldeia perdida, teve o mérito de deixar a capital religiosa da época para ir para a capital do futuro, cosmopolita e desconhecida dele. Não sei bem o que isso poderia significar hoje, mas suspeito que quer dizer-nos alguma coisa.
Irmão Pedro:
No meu pobre entender, estas são algumas das coisas às quais juraste fidelidade. A hora actual do cristianismo, por difícil que seja, não é mais séria nem mais complicada que a da primeira Igreja. Todos os que temos a imensa felicidade de crer em Jesus Cristo queremos sair ao teu encontro com aquela incessante oração da primitiva Igreja, que conseguiu para Pedro que “lhe caíssem as cadeias das mãos” (Actos 12, 5 e 7). Dominus tecum! (O Senhor esteja contigo!).
|
|
Frei Betto (Teólogo brasileiro)
D. Pedro Casaldáliga, santo e herói
O Brasil é um país de santos e heróis, embora poucos alcancem reconhecimento público. Talvez seja efeito de nossa baixa autoestima, tão evidente que, hoje, induz o governo federal a promover campanha publicitária para que o nosso povo sinta orgulho do que é e do que faz.
Durante séculos, de costas para a América Latina, miramos no espelho dos brancos europeus e norte-americanos. O que víamos não era o nosso rosto indígena, negro, mestiço. Era a imagem paradigmática do colonizador a convencer-nos de que somos atrasados, feios, improdutivos e inferiores. Por isso, nossos avós almejavam “purificar-se” dessa fétida brasilidade contraindo matrimónio com imigrantes brancos.
Quantos brancos casados com negras? Quantos negros das classes A e B casados com negras? Impedidas pelo preconceito e pela pobreza de frequentar escola, as negras servem para trabalhos domésticos, onde a chibata é substituída, em geral, por um salário ínfimo. E as mestiças, identificadas às mulas, tratadas de mulatas, tornaram-se símbolos do hedonismo carnavalesco e dos atractivos turísticos voltados à prostituição farta e barata.
Abrigamos no Brasil o mais longo período de escravidão das três Américas 358 anos e ainda culminámos o processo da abolição com a exclusão dos negros libertos do direito de acesso à terra, entregue aos colonos europeus que aqui aportaram empurrados pelo desemprego causado pela revolução industrial do século XIX e a acelerada urbanização do Continente europeu.
Restrita a nação ao convés da primeira classe, perdemos de vista nossos santos e heróis, embora proliferem entre nós tantos artistas, atletas, intelectuais, e também inventores como Santos Dumont.
Não tão conhecido como mereceria, há no Brasil um santo e herói: Pedro María Casaldáliga. Santo por sua fidelidade radical (no sentido etimológico de ir às raízes) ao Evangelho, e herói pelos riscos de vida enfrentados e as adversidades sofridas.
Catalão de Barcelona, onde nasceu em 1928, a 16 de fevereiro, Casaldáliga ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões, onde foi ordenado sacerdote em 1943. Impregnado da espiritualidade dos Cursilhos de Cristandade, veio para o Brasil e, em 1968, mergulhou na Amazónia. Em 1971, nomearam-no bispo de uma prelazia amazónica, à beira do sumptuoso rio Araguaia: São Félix do Araguaia. Adoptou como divisa princípios que haveriam de nortear literalmente sua actividade pastoral: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”. No dedo, como insígnia episcopal, um anel de tucum, que se tornou símbolo da espiritualidade dos adeptos da Teologia da Libertação.
São Félix é um município amazónico do Mato Grosso, situado em frente à Ilha do Bananal, numa área de 36.643 km2. Na década de 1970, a ditadura militar (1964-1985) ampliou a ferro e fogo as fronteiras agropecuárias do Brasil, devastando parte da Amazónia e atraindo para ali empresas latifundiárias empenhadas em derrubar árvores para abrir pastos ao rebanho bovino. Casaldáliga, pastor de um povo sem rumo e ameaçado pelo trabalho escravo, tomou-lhe a defesa, entrando em choque com os grandes fazendeiros; as empresas agropecuárias, mineradoras e madeireiras; os políticos que, em troca de apoio financeiro e votos, acobertavam a degradação do meio ambiente e legalizavam a dilatação fundiária sem exigir respeito às leis trabalhistas.
Dom Pedro tem sido alvo de inúmeras ameaças de morte. A mais grave em 1976, em Ribeirão Bonito, no dia 12 de outubro festa da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Ao chegar àquela localidade em companhia do missionário e indigenista jesuíta João Bosco Penido Burnier, souberam que na delegacia duas mulheres estavam sendo torturadas. Foram até lá e travaram forte discussão com os policiais militares.
Quando o padre Burnier ameaçou denunciar às autoridades o que ali ocorria, um dos soldados esbofeteou-o, deu-lhe uma coronhada e, em seguida, um tiro na nuca. Em poucas horas, o mártir de Ribeirão Bonito faleceu. Nove dias depois, o povo invadiu a delegacia, soltou os presos, quebrou tudo, derrubou as paredes e pôs fogo. No local, ergue-se hoje uma igreja.
Cinco vezes réu em processos de expulsão do Brasil, Casaldáliga mora em São Félix num casebre simples, sem outro esquema de segurança senão o que lhe asseguram três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calçando apenas sandálias de dedo e uma roupa tão vulgar como a dos peões que circulam pela cidade, Casaldáliga amplia sua irradiação apostólica através de intensa actividade literária. Poeta renomado, traz a alma sintonizada com as grandes conquistas populares na Pátria Grande latino-americana. Ergue sua pena e sua voz em protestos contra o FMI, a ingerência da Casa Branca nos países do Continente, a defesa da Revolução cubana e, anos atrás, em solidariedade à Revolução sandinista, ou para denunciar os crimes dos militares de El Salvador e da Guatemala. Hoje, inquietam-lhe a demora do governo Lula em realizar a reforma agrária e o lastro de miséria e destruição que o agronegócio deixa em terras do Mato Grosso.
Dom Pedro tornou-se também pastor dos negros e dos indígenas, introduzindo suas riquezas culturais nas liturgias que celebra. Em sua prelazia habitam os índios Tapirapé, salvos da extinção graças aos cuidados tomados pelo bispo.
Convocado às visitas periódicas (ad limina) que todos os bispos devem fazer ao Vaticano para prestar contas, Casaldáliga faltou a inúmeras, por considerar os gastos de viagem incompatíveis com a pobreza de sua gente. No entanto, remeteu aos papas cartas proféticas, exortando-os à opção pelos pobres e ao compromisso com a libertação dos oprimidos.
Certa ocasião fez uma longa viagem a cavalo para visitar a família de um posseiro que se encontrava preso. Chegou sem aviso prévio. Diante de um prato de arroz branco e outro de bananas, a filha mais velha, constrangida, desculpou-se à hora do almoço: “Se soubéssemos que viria o bispo teríamos feito outra comida”. A pequena Eva, de sete anos, reagiu: “Ué, bispo não é mais melhor que nós!” Esta uma lição que ele guardou. E sempre praticou, evitando privilégios e mordomias.
Fundador da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário, Casaldáliga admite que a sabedoria popular tem sido a sua grande mestra. Indagou a um posseiro o que ele esperava para seus filhos. O homem respondeu: “Quero apenas o mais ou menos para todos”. Pedro guardou a lição, lutando por um mundo em que todos tenham direito ao “mais ou menos”. Nem de mais, nem de menos.
Em setembro de 1985 viajei a Cuba com os irmãos e teólogos Leonardo e Clodovis Boff. Falámos com Fidel que dom Pedro se encontrava em Manágua, participando da Jornada de Oração pela Paz, e o líder cubano insistiu para que o trouxéssemos a Havana. Tão logo desembarcou na capital de Cuba, a 11 de setembro, o bispo foi conduzido directamente ao gabinete de Fidel. Este mostrava-se interessado na literatura sobre a Teologia da Libertação. Dom Pedro observou com a sua fina ironia:
Para a direita é preferível ter o papa contra a Teologia da Libertação do que Fidel a favor.
Na mesma noite, Casaldáliga discursou na abertura de um congresso mundial juvenil sobre a dívida externa:
Não é só imoral cobrar a dívida externa, também é imoral pagá-la, porque, fatalmente, significará endividar progressivamente os nossos povos.
Ao reparar que os sapatos do prelado estavam em péssimo estado, o secretário de Fidel ofereceu-lhe um par novo de botas.
Deixo os meus sapatos ao Museu da Revolução brincou dom Pedro.
Fomos juntos para a Nicarágua no dia 13. Ali Dom Pedro participou de inúmeros actos contra a agressão do governo dos EUA à obra sandinista e baptizou o quarto filho de Daniel Ortega, Maurice Facundo.
Na sua segunda viagem a Cuba, em fevereiro de 1999, Casaldáliga declarou em público, em Pinar del Río:
O capitalismo é um pecado capital. O socialismo pode ser uma virtude cardeal: somos irmãos e irmãs, a terra é para todos e, como repetia Jesus de Nazaré, não se pode servir a dois senhores, e o outro senhor é precisamente o capital. Quando o capital é neoliberal, de lucro omnímodo, de mercado total, de exclusão de imensas maiorias, então o pecado capital é abertamente mortal.
E enfatizou:
Não haverá paz na Terra, não haverá democracia que mereça resgatar este nome profanado, se não houver socialização da terra no campo e do solo na cidade, da saúde e da educação, da comunicação e da ciência.
Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldágica apresentou seu pedido de renúncia à prelazia, como exige o Vaticano de todos os bispos, excepto ao de Roma, o papa. Só agora, em 2005, o Vaticano nomeou-lhe um sucessor. Antes, porém, enviou-lhe um bispo que, em nome de Roma, pediu que ele se afastasse da prelazia, de modo a não constranger o novo prelado. Dom Pedro não gostou do apelo e, coerente com o seu esforço de tornar mais democrático e transparente o processo de escolha de bispos, recusou-se a atendê-lo. O novo bispo, frei Leonardo Ulrich Steiner, pôs fim ao impasse, ao declarar que dom Pedro é bem-vindo em São Félix.
|
|
JJ. Tamayo Acosta (Teólogo ibérico)
João Paulo II e a Opus Dei
A relação entre Karol Wojtyla e a Opus Dei inicia-se nos anos sessenta do século passado, consolida-se na década seguinte e chega ao seu zénite nos anos 80-90, com a imparável ascensão da Obra até à cúpula do Vaticano, a partir de onde, após ocupar os mais influentes lugares de chefia, interveio activamente, primeiro, no planeamento e, depois, na execução do processo de restauração da Igreja católica sob o protagonismo do Papa e a orientação teológica do cardeal alemão Ratzinger.
Ao longo do último quarto de século, o catolicismo configurou-se à imagem e semelhança da organização de Escrivá de Balaguer. A Opus começou a mimar Karol Wojtyla, quando ele era arcebispo de Cracóvia. Como? Organizando viagens por todo o mundo para ele, convidando-o a participar em congressos da Obra em Roma e a proferir conferências no Centro Romano de Encontros Sacerdotais (CRIS).
Uma dessas conferências, dentro da mais pura tendência espiritualista da Opus, tinha por título, “A evangelização e o homem interior”, e foi pronunciada em Outubro de 1974, no mesmo ano em que Paulo VI publicava a encíclica Evangellii nuntiandi, que sublinhava a relação entre a evangelização e a promoção humana. A sintonia foi fácil desde o início, já que partilhavam a mesma ou parecida concepção da Igreja e da política: devoção mariana, conservadorismo teológico, anti-comunismo, confessionalidade das instituições temporais, rigorismo moral, autoritarismo eclesiástico, etc.
Como demonstraram os “Discípulos da Verdade”, na sua documentada obra “A sombra do papa enfermo”, a Opus planeou com grande precisão a estratégia para a eleição papal de Wojtyla, com a colaboração decisiva do arcebispo de Munique, José Ratzinger, os cardeais norte-americanos próximos da Obra, J. Joseph Krol e J. Patrick Cody, e o arcebispo de Viena, cardeal Franz König, então entusiasta da Obra. O centro de operações da dita estratégia foi Villa Tevere, quartel general da Opus Dei em Roma, onde Wojtyla rezou diante do túmulo de monsenhor Escrivá de Balaguer, antes de entrar no conclave, do qual sairia Papa, e onde voltaria para rezar diante do cadáver de monsenhor Álvaro del Portillo, primeiro bispo da prelatura pessoal.
Durante os seus quase 27 anos de pontificado, o Papa pôs em prática a concepção de Igreja própria da Opus Dei, sem nunca se afastar do guião, a não ser na questão social: desactivação da linha renovadora do Concílio Vaticano II, no qual ele, ainda arcebispo de Cracóvia, tinha alinhado pelos sectores mais conservadores; cruzada anti-comunista frente aos partidários da chamada ostpolitik, posta em marcha durante o pontificado de Paulo VI; condenação da modernidade, na linha de Pio IX e Pio X, por a considerar inimiga do cristianismo; “restauração” da Cristandade através da “nova evangelização”.
Tratava-se de um programa maximalista que a Obra já tinha querido desenvolver no Vaticano durante os pontificados de João XXIII e Paulo VI, mas sem êxito, já que não gozava da simpatia de nenhum deles. Com João Paulo II como Papa, sim, podiam levá-lo a cabo, já que, além de bom entendimento, havia convergência de objectivos, de interesses e de estratégia entre eles.
A Opus é uma organização católica elitista implantada em todo o mundo, com uma estrutura hierárquica rígida, enorme poder económico, disciplina férrea acompanhada de terminologia militarista (“uma milícia armada da melhor maneira para a batalha espiritual, graças a uma mais severa disciplina”), forte componente proselitista e tendência doutrinal, ao jeito de “lavagem ao cérebro”. Por trás da sua aparente imagem laica, esconde-se uma organização clerical-eclesiástica.
Em seguida, começaram as nomeações de eclesiásticos próximos da Opus, para postos chave do Vaticano. O espanhol Martínez Somalo, antes núncio na Colômbia, de tendência conservadora com ligações directas à Opus, foi nomeado substituto da Secretaria de Estado, uma espécie de ministro da Presidência. O cardeal Pietro Palazzini, ligado à Obra, ocupou o cargo de prefeito da Congregação das Causas dos Santos, o que acelerou o processo de beatificação de Escrivá, iniciado em Maio de 1981, apenas seis anos depois da sua morte.
Um salto qualitativo no protagonismo da Opus dentro do Vaticano foi a nomeação como director do gabinete de imprensa da Santa Sé do médico espanhol Joaquín Navarro-Valls, membro numerário da Obra, que contou com uma forte resistência na Cúria. O controlo opusdeísta do poder mediático da Igreja católica garantia o êxito do programa restaurador do Papa polaco.
Navarro-Valls agiu durante quase quatro lustros como a única e mais autorizada voz do Papa e chegou a vetar a participação de determinados jornalistas nas viagens papais. Foi o caso de Domenico del Rio, do diário romano La Repubblica - acusado pelo director de L’Osservatore Romano de “rançoso, autista e sórdido anti-clericalismo” e de “novo integrismo radical-laicista” - que em Janeiro de 1985 se viu excluído do voo que levava João Paulo II à Venezuela, Perú e Equador.
O controlo pleno do poder por parte da Opus produziu-se em 1990, com a nomeação de Angelo Sodano como secretário de Estado, uma espécie de chefe de Governo do Vaticano, depois te ter sido aceite a demissão do cardeal Casaroli, da tendência liberal dentro da Cúria.
Sodano tinha entrado no serviço diplomático da Santa Sé em 1961, foi núncio no Chile durante a ditadura de Pinochet e amigo pessoal do ditador, preparou cuidadosamente a viagem de João Paulo II ao Chile em 1987 - que se converteu num acto de legitimação religiosa do general - e intercedeu junto do Governo britânico para que colocasse em liberdade Pinochet e lhe permitisse regressar ao Chile, quando ele estava preso em Londres, devido ao pedido de extradição que o juiz espanhol Baltasar Garzón fez. Entretanto, recordo aqui a resposta do mesmo cardeal Sodano no aeroporto de Barajas, quando foi confrontado pelos jornalistas com a secularização do teólogo brasileiro, L. Boff: “Não estranho; também entre os 12 apóstolos houve um traidor”. Vejam só: O franciscano Boff comparado com Judas!
A influência da Opus fez-se sentir de modo especial na política de nomeações de bispos, arcebispos e cardeais. Os bispos renovadores nomeados por Paulo VI ou na linha do Concílio Vaticano II foram substituídos por hierarcas “da restauração” do pontificado de João Paulo II, que são a maioria hoje na Igreja católica e ocupam as sedes episcopais mais importantes e influentes da cristandade, tanto no Primeiro Mundo como no Terceiro Mundo.
Mas as duas actuações que expressam bem a sintonia entre o Papa e a Opus foram a elevação desta à categoria de “Prelatura pessoal”, o que a converte, para todos os efeitos, numa diocese supra-territorial, não sujeita à jurisdição dos bispos locais; e a canonização de Escrivá de Balaguer. A primeira foi um facto sem precedentes em toda a história do cristianismo. A “milícia opusdeiísta” e os seus dirigentes respondem por seus actos apenas perante o Papa e perante Deus. Nenhuma outra autoridade pode pedir-lhes contas.
A mudança de estatuto jurídico da Opus teve uma ampla contestação dentro da Igreja católica, não só entre os sectores progressistas, mas até na cúria e entre os bispos de todo o mundo, espanhóis incluídos, que foram os mais activos. E não era para menos. A decisão “pessoal” do Papa era considerada perigosa para o ordenamento hierárquico e para a unidade católica, já que mudava a obediência aos bispos pela submissão ao chefe de fila da Obra. Temia-se além disso que, uma vez subtraída à obediência aos bispos locais, a Obra se convertesse numa seita. E o temor não demorou a ser realidade.
De então para cá, a Opus é e opera como “uma Igreja dentro da Igreja”. Para cúmulo, com Escrivá de Balaguer, “o Pai” e o fundador, elevado aos altares e convertido num exemplo a imitar! A canonização consumou-se com a oposição de amplos sectores católicos, cardeais incluídos, arcebispos e bispos, e num tempo recorde de 27 anos, enquanto outras personalidades reconhecidas como santos pelo povo cristão, como João XXIII e monsenhor Romero ficavam para trás.
Enquanto o Vaticano enchia de favores e de privilégios a Opus Dei, João Paulo II consumava actuações repressivas contra organizações e tendências eclesiais renovadoras. Duas das mais “badaladas” foram a “purga” da Companhia de Jesus e a “campanha” contra a Teologia da Libertação que Tad Szulc, biógrafo de João Paulo II, relaciona estreitamente entre si. Esta última, personificada na admoestação pública a Ernesto Cardenal, ministro da Cultura do Governo sandinista, e nas condenações contra o teólogo brasileiro L. Boff.
O questionamento do Papa contra a Teologia da Libertação começou em 1979, na II Conferência do Episcopado Latino-americano e foi atiçada por monsenhor Alfonso López Trujillo, secretário geral, primeiro, e depois presidente da referida Conferência e um próximo da Opus Dei, com uma influência crescente na Cúria romana, onde actualmente ocupa o cargo de presidente da Congregação para a Família.
Na campanha anti-liberacionista da Teologia jogou um papel relevante a Opus Dei através de influentes teólogos e bispos latino-americanos simpatizantes ou numerários, que marginalizaram - e inclusive perseguiram - nas suas respectivas dioceses, leigos, sacerdotes, religiosos/as e comunidades de base, líderes comprometidos socialmente na luta contra a injustiça estrutural, e denunciaram perante o Vaticano teólogos e teólogas da libertação.
Entre os mais fiéis ao fundador e mais críticos da Teologia da Libertação há que referir o cardeal Cipriani, arcebispo de Lima, e monsenhor Sáenz Lacalle, arcebispo de S. Salvador.
A “purga” da Companhia de Jesus parece ter relação directa ou indirecta com a imparável ascensão da Opus no Vaticano. Quanto mais degraus subia na cúpula romana, mais se apertava o cerco aos jesuítas que, a partir da sua Congregação Geral XXXII (“decreto IV: Nossa missão hoje: Serviço da fé e promoção da justiça”), deram um giro copernicano nas suas prioridades evangelizadoras: compromisso com a justiça, diálogo com a secularização; evangelização libertadora; inculturação da fé.
O Papa proibiu ao padre Arrupe, superior geral da Companhia de Jesus a convocatória da Congregação Geral de 1981, onde ele pensava apresentar a sua demissão: “Não quero que convoque esta Congregação nem que se demita, para bem da Igreja e para bem da sua própria Ordem”, disse-lhe de forma taxativa. Logo a seguir, em Agosto do mesmo ano, Arrupe sofreu um grave ataque, que João Paulo II aproveitou para dar um golpe de mestre na Companhia de Jesus. Encarregou a direcção da mesma ao padre Paolo Dezza, jesuíta italiano octogenário, com a ajuda do padre Pittau, provincial da Companhia no Japão, ambos descontentes com a abertura de Arrupe.
Razões invocadas para a intervenção papal? A confusão que os jesuítas estavam a criar no povo de Deus; a sua desmedida implicação na actividade sócio-política, com a consequente perda da dimensão religiosa; o seu vínculo com a Teologia da Libertação, sobretudo na América Central; tendências secularizantes no seio da Companhia; formação excessivamente liberacionista dos jovens jesuítas.
Subscrevo, a concluir, o que escreveu Juan Arias, um dos melhores conhecedores do último pontificado: a história dirá se Wojtyla foi o Papa da Opus Dei, ou se a Opus Dei foi quem preparou os caminhos do arcebispo de Cracóvia, embora também possa acontecer que as partes da alternativa sejam ambas verdadeiras. O que eu penso é que Opus e Wojtyla contribuíram para esvaziar as esperanças postas no Concílio Vaticano II duma reforma da Igreja, por parte de milhões de cristãos, crentes de outras confissões religiosas e não crentes. Com o concílio, a Igreja católica iniciou um novo caminho ao ritmo da história e em chave de libertação. Mas a Opus e João Paulo II acabaram por inverter o sentido da marcha.
|
|
Frei Betto (Teólogo brasileiro)
À conversa com o Diabo
Você existe mesmo?
Ora, não se lembra do que disse o cardeal Ratzinger? “Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica”.
Talvez concorde com o último predicado.
Por quê? perguntou o Diabo.
Porque símbolo [sim-bolos], reza a etimologia da palavra grega, é o que une, agrega. O antónimo é dia-bolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.
Em mim ou no cardeal?
Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabo de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?
Não esqueça, fui criado por Deus.
Não como demónio, mas como anjo, observei.
Sim, agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para o resgatar.
Não me venha com esse papo de Mel Gibson, reagi. Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão do reino do mal sem precisar de mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual é o pai que se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio ensinar-nos o amor como prática de justiça. E foi vítima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.
Deus tentou enganar-me. Manteve em segredo o nascimento de Jesus. Mas à medida que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. E quis tê-lo do meu lado.
Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extraordinários.
Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.
Mas ele ressuscitou, venceu o mal, frisei.
Sim, Deus enganou-me.
Como assim?
O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Quando percebi isso, era tarde demais.
Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
Isso é um segredo entre mim e Deus.
Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
Eu sou a contradição de Deus, vangloriou-se o Diabo.
Você já leu Robinson Crusoé? Lembra-se da “catequese” que ele tentou impingir a Sexta-Feira? Este indagou: “Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?” Crusoé confirmou. Então Sexta-Feira concluiu: “Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?” Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
O que você responderia?, indagou o Diabo.
Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos actuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
Mas eu figuro na Bíblia!, exaltou-se ele.
O que não significa que de facto exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa “terra” e Eva, “vida”. A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstractos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor, há liberdade, inclusive de se fechar a Ele.
E no inferno, você acredita?
Fico com Dostoievski, “o inferno é a incapacidade de não poder mais amar”. Borges frisa que “é uma irreligiosidade” crer no inferno.
Mas eu sou real, insistiu o Diabo.
Deus não tem concorrente, rebati. Nós inventamos você para nos eximirmos das nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre correspondermos ao que Deus espera de nós.
|
|
Leonardo Boff (Teólogo brasileiro)
Corrupção e Poder
“O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Esta é a famosa frase de Lord John Emerich Edward Dalberg-Acton (1843-1902) sempre citada em contextos de corrupção. De família aristocrática anglo-italo-alemã, foi professor de história em Cambridge. Católico e adepto do liberalismo, opunha-se duramente ao reaccionarismo do Papa Pio IX. A 5 de Abril de 1887 escreveu uma carta a seu colega Mandell Creighton que havia publicado cinco tomos sobre a história dos Papas do tempo da Reforma protestante. Aí mostrou como eles, contrariamente aos princípios cristãos, abusavam de sua posição de poder e justificavam suas acções imorais apelando para a sua função religiosa, pois, nas palavras de Dalberg-Acton “a função santifica o seu portador”. Este facto levou-o a afirmar que o poder absoluto corrompe absolutamente. Não sei se por pessimismo ou por realismo afirmava também: "Meu dogma é a geral maldade dos homens com autoridade”.
Como católico, o Lorde via na corrupção a presença do pecado original. Esta expressão, não a realidade, foi criada por Santo Agostinho em 416. Por ela queria expressar a visão bíblica segundo a qual “a tendência do coração é má desde a infância”(Gn 8,21). Por esta razão, em lugar de pecado original a tradição cristã usava a expressão corrupção no seu sentido etimológico: ter um coração(cor) rompido(ruptus) ou simplesmente ser homo corruptus.
O filósofo Kant não pensava outra coisa quando dizia metaforicamente: “somos um lenho torto do qual não se podem tirar tábuas rectas”. Em outras palavras, há no ser humano uma corrupção básica que se manifesta maximamente nos portadores de poder. Porquê exactamente neles? Ninguém melhor que Thomas Hobbes para nos responder em seu Leviatã (1651): “assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e de mais poder que cessa apenas com a morte; a razão disso reside no facto de que não se pode garantir o poder senão buscando mais poder ainda”.
Há, portanto, uma ligação estreita entre poder e corrupção. Corrupção é usar do poder em benefício próprio. O benefício pode ser dinheiro, influência, projecção, tratamento especial. Fundamental é o segredo das transacções porque são ou imorais ou ilegais. Usam-se passiva ou activamente presentes, pressões, fraudes, subornos e nepotismo. Corrupto é quem suborna ou aceita ser subornado para garantir benefícios para si ou para o partido ou para o governo. O ponto central é o abuso da posição de poder.
Como superar a corrupção? De princípio, sempre confiar-desconfiando do ser humano, porque nunca é imune a abusar do poder. Nada de dar cheques em branco. Depois, evitar a concentração de poder. A divisão dos poderes foi pensada para evitar a corrupção possível. Em seguida, o controlo da sociedade usando especialmente os multimedia. Exigir sempre transparência em todos os procedimentos. Por fim punir os corruptos políticos com penas pesadas por terem cometido um delito especialmente grave que é lesar a colectividade.
|
|
Diário Aberto do Pe. Mário
Bento XVI: Sucessor de Pedro,
ou de César de Roma?
No dia a seguir à entronização do Papa Bento XVI, Jornal Fraternizar foi espreitar o sítio do seu Director (www.padremariodemacieira.com.sapo.pt) e encontrou lá
esta reflexão teológica no "Diário Aberto". Aqui a partilha tal e qual. Deixem-se escandalizar. E trabalhemos pelo advento duma Igreja outra, só de irmãs/irmãos.
Bento XVI foi ontem, domingo, 24 de Abril, entronizado como Papa. A cerimónia foi transmitida em directo pelas televisões urbi et orbi. Foi uma estopada de todo o tamanho, ao longo de quase três horas. Tudo se resumiu a mais uma missa super-solene convertida em mais um festival de vaidades e numa manifestação de Poder eclesiástico monárquico absoluto, saudado e aclamado por muitas palmas de vassalagem da parte de muitos dos grandes deste mundo que não resistiram a marcar presença na cerimónia, e também da parte de muitos súbditos católicos (como pode haver ainda tantas católicas que aplaudem um papa, como este, quando ele as reduz à humilhante condição de menores na Igreja, as discrimina e as atira para a margem, para a condição de zeladoras de altar, ou para a condição de cozinheiras e de serventes dos seus próprios aposentos, sem nunca as reconhecer como dignas de agir sacramentalmente “in persona Christi”, concretamente, exercer o ministério ordenado de presbítero e de bispo?). Até o nosso primeiro ministro fez questão de ir a correr colocar-se entre os grandes do mundo que lá estiveram e, como eles, também não resistiu ao preito de vassalagem, no final da missa, quando todos, em fila indiana, lha foram prestar. A cena não podia ser mais terrivelmente eloquente e mais anti-Evangelho de Jesus: o Papa sentado na sua cátedra dogmática e os grandes do mundo, um de cada vez, a cumprimentá-lo de pé (e vá lá que agora já não se usa ajoelhar-se diante dele e beijar-lhe os pés).
A cerimónia foi bem, do princípio ao fim, o que eu mais temia que fosse: uma manifestação de ostentação, de riqueza, de poder sem limites, de idolatria de um homem, por isso, uma cerimónia feita de mentira, fonte de desumanização. Depois do que, ontem, nos foi dado a ver, temos que concluir que o Império romano continua vivo e recomenda-se. E os cultos religiosos do Paganismo que reclama(va)m as bênçãos e os favores das deusas e dos deuses para o seu representante máximo na terra, o imperador de Roma, também. Mas é claro que tudo se apresentou travestido de Igreja, desta Igreja católica romana que temos. Entre este festival católico romano de vaidades e os festivais que se organizavam há 20 séculos, nesta mesma Roma, por ocasião da entronização dos imperadores, que diferenças haverá? Na essência, é tudo a mesma coisa. Nada se alterou. Por isso, o papa, embora oficialmente se reclame de Jesus e de Pedro, é ao imperador de Roma que ele efectivamente representa. Com todo este fausto, exibido em directo pelas televisões urbi et orbi, ele continua a dar a César o que é de César, quando mentirosamente diz que está a dar a Deus o que é de Deus.
Entre Deus e César, a incompatibilidade é total. Até Jesus, o de Nazaré, a Humanidade não conhecia esta Boa Notícia, este Evangelho, e era levada a pensar que entre Deus e César havia total coincidência, assim como entre o sumo sacerdote do Templo de Jerusalém e Deus. Jesus é quem nos revelou a mentira de tudo isto, a total incompatibilidade entre Deus e César, entre o sumo sacerdote e Deus. Exactamente como entre Deus e o Dinheiro, sempre que este é erigido como o Absoluto, ao qual se sacrificam e imolam as pessoas e os povos, tal como sucede actualmente com as economias capitalistas e neo-liberais das multinacionais do nosso tempo. É certo que Jesus teve que pagar com a própria vida esta revelação, esta Boa Notícia, mas foi aí que teve início a radical libertação da Humanidade.
Por isso, Jesus se constituiu no nosso Libertador mais radical e no nosso Salvador universal. Por ele, com ele e nele, somos libertas, libertos para a liberdade, na medida em que ousamos acolher a Luz/a Verdade que ele é e, sobretudo, na medida em que ousamos ser mulheres, homens do mesmo jeito dele, e agir em todas as nossas circunstâncias como ele agiu nas dele. O que, infelizmente, ainda não é assim tão frequente, na Humanidade em geral. Ou a liberdade para a qual Jesus nos libertou, não seja a dimensão da vida humana mais difícil para os seres humanos. Efectivamente, do que as pessoas e os povos gostam, ainda agora, é sobretudo de Segurança e de “Alguém, ou de Alguma Coisa que nos domine”, como tantas vezes se ouve por aí de bocas humanas. E do que as pessoas e os povos têm mais medo é da Liberdade. E da Responsabilidade que dela decorre.
Nada em Bento XVI, no decorrer desta cerimónia, nos fez lembrar Jesus, o de Nazaré. Tudo nos fez lembrar César de Roma, o imperador. Até aquelas suas palavras, na homilia, que os comentadores dos media, ingenuamente se apressaram a classificar como uma pública expressão de humildade. Nada disso. O Poder nunca pode ser humilde. Poder e Humildade são sempre incompatíveis. A humildade é própria de mulheres, de homens. Nunca do Poder, muito menos do Poder eclesiástico católico romano.
Quando Bento XVI pediu que rezássemos por ele, mais não fez do que repetir o que sempre fazem os poderosos do mundo que, como se sabe, nunca são ateus, mas deístas. Só que o Deus que invocam é uma projecção deles próprios, uma espécie de alter ego deles, lá longe, nos infinitos céus. Porque o Deus a sério, aqui na Terra, são eles, que põem e dispõem da vida dos seus súbditos a seu bel-prazer. Não é isto que faz, hoje, o presidente Bush, com o aval dos demais poderosos do mundo? Não é isso que fazem os Papas de Roma, sobretudo, nos domínios da consciência das pessoas e dos povos? Quando Bento XVI pede para rezarmos por ele, é para que ele leve por diante e por muitos anos a função em que aceitou ser investido, e que até Deus esteja ao seu serviço. Fossem humildes estes homens da Igreja e de imediato renunciariam a essa função, assassinariam o Poder. Seriam anti-papas. Se a Humanidade não pode viver sem Política, já pode muito bem viver sem Poder. É o Poder é que nos impede de crescermos como pessoas livres e responsáveis e de sermos humanos. Inclusive, o Poder apodera-se da Política e não nos deixa ser protagonistas na História. Sempre nos reduz à condição de seus vassalos, seus servos, seus súbditos, seus fiéis incondicionais.
Não é assim a Humildade. Onde ela estiver, sempre diminui, para que as pessoas e os povos cresçam. Essa é a sua alegria. Essa é também a alegria de Deus, do Deus de Jesus. Do Deus dos poderosos, também do Papa, a alegria maior é a humilhação das pessoas e dos povos, que é o que os poderosos sempre fazem. O Papa João Paulo II, por exemplo, não cresceu até à idolatria mais aberrante de milhões e milhões de súbditos em todo o mundo, ao mesmo tempo que humilhou até ao abismo dos abismos teólogos da libertação, como o franciscano de gema que é o nosso querido Leonardo Boff? Dizem alguns, agora, que não foi ele quem assim agiu com L. Boff, mas o Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger, agora Bento XVI. Como não foi ele? Acaso algum dia João Paulo II destituiu Ratzinger dessas funções e correu ao Brasil abraçar o teólogo humilhado e reduzido ao silêncio? Pelo contrário, não sancionou todas as decisões de Ratzinger e, finalmente, antes de morrer, não sugeriu o nome dele para seu sucessor?
Em determinada altura da sua homilia, Bento XVI ainda disse que são os crucificados que redimem o mundo, não os crucificadores. Esta afirmação faz parte da Boa Notícia de Deus, do Evangelho de Jesus. Mas que importa esta afirmação, se é dita por ele, o homem do Poder eclesiástico católico romano? Também o sumo sacerdote Caifás, do país de Jesus, profetizou, a propósito da acção subversiva e radicalmente libertadora deste, que era melhor morrer um só homem pelo povo, do que perecer a nação inteira. Porém, não reza a História (e o Evangelho de João) que foi ele, na sua condição de sumo sacerdote, o Poder, portanto, que nos dias seguintes, negociou com Pilatos e fez morrer de imediato Jesus na cruz? Que importa que Bento XVI tenha proferido aquela afirmação, como parte constitutiva do Evangelho de Jesus, se, entretanto, continua aí como monarca absoluto e, por isso, como um crucificador? Só os do Poder são crucificadores. Todos os mais são suas vítimas, crucificados, duma ou de outra maneira. À luz daquela afirmação de Bento XVI, temos que dizer que o humilhado/crucificado Leonardo Boff está a redimir a Humanidade, enquanto que o seu verdugo, agora Papa entronizado, seu crucificador, está a desgraçar a Humanidade. São os L. Boff de todo o mundo, as vítimas humanas de todo o mundo, que redimem/humanizam a Humanidade, não os poderosos, seus verdugos, vistam de presidente dos EUA, ou de Papa!...
E que dizer da solene investidura do pálio e do anel petrino? Vaidade das vaidades e tudo é vaidade! São assim os crucificados? Ou os crucificadores? O próprio Bento XVI deixou a sua boca fugir para a verdade, quando, ao tentar explicar o simbolismo de um e de outro, reconheceu que o pálio nos ombros dos Papas de Roma, é uma insígnia de Poder que remonta ao século IV. Só lhe faltou acrescentar que tal se ficava a dever ao imperador de Roma, certamente, como uma das múltiplas compensações com que ele agradeceu à Igreja católica a aliança que ela fez com o Império romano. Por outras palavras, o pálio faz parte dos “30 dinheiros” da traição da Igreja!... Por sua vez, ao anel com a efígie de Pedro e as chaves, chamam-lhe “anel petrino”. Mas a quem é que Bento XVI e os homens da Cúria Romana pensam que enganam? Acaso Pedro, depois que se converteu a Jesus e ao seu projecto do Reino/Reinado de Deus, foi a correr gravar um anel para deixar aos seus sucessores? Mas Pedro alguma vez teve sucessores? Acaso a Igreja de Jesus é uma monarquia? Pior, uma monarquia absoluta? Mas então, se é uma monarquia absoluta, a Igreja é uma Igreja de crucificados ou de crucificadores? Quem manda gravar em exclusivo anéis petrinos ou outros, para assinalar o seu poder sobre os demais, só pode ser do número dos crucificadores, não dos crucificados.
Também não posso esquecer a insistência com que, mais uma vez, se falou no decorrer desta cerimónia, do “poder das chaves”. Do “poder de ligar e de desligar”. Trata-se de um poder do Papa sobre o próprio Deus! É mesmo uma obsessão eclesiástica, nomeadamente, dos seus chefes maiores e mesmo dos clérigos em geral, párocos incluídos. É uma doença. Uma esquizofrenia. Neste contexto, vir depois dizer, como Bento XVI disse, que, como Papa, é “o servo dos servos de Deus”, só pode ser escutado pela Humanidade ilustrada e evangelizada como anedota, como uma afirmação de humor negro!... Ou talvez não, mas então o Deus a que se refere a afirmação não é o Deus do Servo Sofredor de Javé, paradigmaticamente protagonizado por Jesus crucificado, mas o Deus do Império Romano e da Cúria Romana, sua sucessora, por isso, o Deus dos crucificadores! Só o servo dos servos de um Deus assim pode viver em semelhante luxo, em semelhante fausto, como esta cerimónia revelou ao mundo. Mas nada disto tem a ver com Jesus e o seu Evangelho. As discípulas, os discípulos de Jesus, não cuidam nunca em ser servos dos servos de Deus. Basta-lhes, para serem os mais humanos dos seres humanos, ser servos dos servos das mulheres e dos homens, a começar pelos mais empobrecidos e mais oprimidos.
Finalmente, uma palavra sobre a exegese bíblica que Bento XVI fez na sua homilia. O Evangelho que foi proclamado na cerimónia litúrgica foi extraído do apêndice do Evangelho de S. João. Por isso, embora apresente Pedro e mais seis companheiros na faina da pesca e, concretamente, refira a pesca de 153 grandes peixes, e faça convergir toda a acção teológica para uma comida eucarística que acontece na praia, imediatamente antes de Jesus se dirigir a Pedro com aquela pergunta, três vezes repetida “Tu amas-me mais do que estes?”, nunca este relato, para ser correctamente interpretado, pode ser posto em relação com o relato de outra pesca, concretamente, com aquele que aparece no Evangelho de S. Lucas, que também tem Pedro como principal protagonista. O episódio com que teria de ser relacionado é com uma outra comida de pão e peixe, nas margens do Lago de Tiberíades, também relatada pelo mesmo Evangelho de S. João, no extenso capítulo 6. Deste modo - é assim que se há-de proceder exegeticamente no respeito pela Palavra de Deus - a mensagem que salta da relação entre estes dois relatos é totalmente distinta daquela que o Papa fez ressaltar na sua homilia! Mas ao Papa Bento XVI, o que nesta circunstância concreta lhe interessava, era ressaltar o “Poder” que Jesus teria confiado a Pedro e, nele, é claro, a ele próprio, Bento XVI. E para isso, nem sequer hesitou em trocar as voltas à exegese!
Só que no meio de tudo isto, o Papa esqueceu-se dum pormenor que faz toda a diferença. E qual é? É que Jesus nunca teve poder nenhum para confiar a ninguém! Jesus foi a vítima maior do Poder. Como poderia então confiar a Pedro o que ele próprio nunca teve e até considerou como algo demoníaco e que sempre recusou ao longo da sua missão histórica? O que o relato do Evangelho de João que foi proclamado nesta cerimónia de entronização de Bento XVI quer ressaltar é que Simão (Pedro), ao contrário do que sempre têm dito e repetido todas as catequeses católicas, também esta homilia de Bento XVI, só naquele momento final, portanto, bastante tempo depois da morte crucificada de Jesus e da Fé no Ressuscitado Jesus, deu a sua adesão pessoal a Jesus e ao seu projecto político do Reino de Deus. Só por isso é que o relato evangélico conclui com aquela palavra de ordem de Jesus: “Segue-me!”, a qual, no Evangelho de S. João, nunca antes havia sido dita por Jesus a Simão Pedro.
Deste modo, meu caro Bento XVI, tudo é distinto do que tu disseste urbi et orbi, neste dia da tua entronização como Papa. O que disseste é mentira, a juntar a tanta outra mentira que tem sido ensinada como verdade, ao longo destes últimos dezasseis séculos de Igreja católica romana. Sabes bem que, no princípio, com Jesus e as comunidades cristãs que nos legaram o Evangelho de S. Marcos, não foi nada assim. Poder, foi coisa que nunca entrou na Igreja de Jesus, enquanto ela foi simplesmente comunidade de comunidades de irmãs e irmãos, em radical igualdade. Muito menos, o Poder de um só homem sobre todos os demais. Isso é demoníaco, meu irmão! E temos todas, todos que lhe resistir. Tu também. Em nome de Jesus. Em nome do Evangelho!
Mas não é mentira apenas o que tu disseste durante a tua entronização. É mentira também tudo aquilo que fizeste e mostraste no decorrer da cerimónia. Isto, é claro, se quisermos fazer passar a mensagem, como é notório que tu quiseste, que o Evangelho de Jesus é por aí que vai. Não é! Sabes bem que não é. O que vai por aí é o anti-Evangelho do Império romano e de todos os demais impérios. Por isso, o que a tua entronização mostrou ao mundo foi o poder e poder absoluto, o fausto, a tirania, a opressão, o dogmatismo, o patriarcalismo, a vaidade, o luxo, a corte do Império Romano e, agora, também da Igreja católica romana, sua sucessora. Por isso, as pessoas que lá estiveram presentes e os muitos milhões de pessoas que terão assistido via tv em todo o mundo, entre as quais também eu me incluo, ficámos tristes e oprimidos. A menos que tenhamos estado vigilantes (foi assim que procurei estar), como aquelas “virgens sábias” da parábola do Evangelho de S. Mateus. E como o próprio Paulo de Tarso, no princípio da Igreja, quando entre os antioquenos (cf. Gálatas 2, 11-14), corajosamente, resistiu a Pedro na cara, quando ele começou a meter os pés pelas mãos, no intuito de agradar aos judaizantes, em lugar de se manter fiel à Verdade do Evangelho que liberta.
Esta tua entronização, querido Papa Bento XVI, foi concebida e realizada para te aclamar como o maior, como o monarca absoluto da Igreja! Por isso, todas as pessoas que não lhe tiverem resistido e, pelo contrário, se tiverem deixado levar pelo envenenado sopro que nela se fez sentir, terão passado a ser teus súbditos, teus vassalos, teus servos, quando, pelo menos em Igreja, todas, todos devemos ser simplesmente irmãs, irmãos, em radical igualdade. Perdoa, por isso, que te diga, mas com esta tua entronização, tu foste para o mundo o rosto do Império de Roma, e da Igreja católica romana que lhe sucedeu, não foste, em momento algum, o rosto de Jesus. Nem mesmo, quando Partiste o Pão e Derramaste o Vinho em memória de Jesus. Pela simples razão de que Jesus é o Crucificado em comunhão com todos os crucificados da Terra e tu, nesta tua entronização, vestiste a roupa e assumiste o papel de todos os crucificadores.
|
|
Bispo Pedro Casaldáliga
É mais uma Circular
Durante toda essa maré eclesiástica (morte de João Paulo II, eleição de Bento XVI, nomeação do novo bispo de São Félix do Araguaia), temos recebido aqui, na Prelazia, muitas cartas, muitas mensagens, de solidariedade. E também, com elas, perguntas, indignadas ou ansiosas e declarações de amizade e de esperança, a pesar de certos pesares...
Em meu nome pessoal e em nome desta pequena Igreja, agradeço a todos, a cada um, a cada uma. Somos comunhão e a inter-solidariedade nos alimenta na caminhada.
Temos um novo papa. Já se tem falado muito sobre o assunto. Papa é Bento XVI e com ele seguirá a Igreja, que é maior que o papa e seguirá, sobretudo o Reino de Deus, que é maior que a Igreja. Sejamos corresponsáveis, fielmente livres, militantes da Grande Esperança.
Socialmente falando, frente a essa nefasta política neoliberal, contra todas as ditaduras da economia e das armas e da mentira, prossigamos com a nossa diária e comunitária participação. O Espírito do Ressuscitado nos acompanha e nos impulsiona e é a nossa garantia.
Aqui, em São Félix, o irmão bispo, Leonardo Ulrich Steiner (fotos), chegou muito franciscanamente e já começou a mergulhar na vida do povo. Sua primeira visita pastoral foi a Ribeirão Cascalheira, onde está o Santuário dos Mártires, aos assentamentos de posseiros de Querência e à aldeia Xavante Marãwatsedé acuada pelos invasores e num lerdíssimo processo judicial.
Um sertanejo me fazia do bispo Leonardo este elogio maior: “O novo bispo é um homem natural”. É o melhor modo de ser sobrenaturalmente evangélico... Na solene missa da posse, em nome desta Igreja que ele assumia, eu lhe dei um anel de tucum, símbolo da aliança com as causas da Prelazia de São Félix do Araguaia: A opção pelos Pobres, a Terra, os Povos Indígenas, as Comunidades de fé, corresponsáveis e comprometidas, a Inter-solidariedade, a Pátria Grande... E recebeu também Leonardo três chaves emblemáticas: a da Catedral (matriz da Prelazia), a do Arquivo (símbolo da Memória, sobretudo do Martírio) e a da Administração (símbolo da partilha solidária na pobreza).
Estamos felizes, numa comunhão crescente e numa inamovível esperança. E continuaremos contando com todos e todas vocês, com cada um, com cada uma. Sempre caminhando para esse Outro Mundo Possível, construindo essa Igreja Outra, levados pelo vento do Espírito, Reino afora.
Como a gente diz aqui, damos a todos, todas, um beijo no coração. E a paz d’Aquele que é a nossa paz.
Pedro Casaldáliga
|
|
Outras Cartas
Jornal Fraternizar:
um desassombro que me delicia
E-mail. Ronaldo: Caro Padre Mário de Oliveira: Quero enviar-lhe as minhas felicitações pelo último número do nosso Fraternizar. Como sempre, trata de temas da maior relevância na perspectiva da luta dos povos por um mundo mais humano, livre da exploração e da alienação. Porém, nesse número há que realçar (além das habituais e valiosas contribuições de Manuel Sérgio, Frei Betto, Leonardo Boff, etc) as duas importantes contribuições de D. Pedro de Casaldáliga e de Ernesto Cardenal. Eles são não apenas dois símbolos, mas dois pilares da luta revolucionária dos povos latino-americanos, na tradição do saudoso padre Camilo Torres.
A referência que o jornal faz ao forum da teologia da libertação em Porto Alegre é também muito importante e só é pena que não haja espaço para publicar as comunicações e debates deste forum. Talvez fosse possível ir publicando uma de cada vez.
Mas o certo é que o Fraternizar necessitaria de ter outra periodicidade. Para isso seria importante que a grande maioria dos assinantes do Le Monde Diplomatique se tornasse também assinante do Fraternizar, cujo papel esclarecedor e progressista vai num sentido convergente.
Pessoalmente (como marxista e não-crente) penso que as convergências entre o marxismo (vivo, dialéctico, revolucionário, não dogmático) e a Teologia da Libertação são muito mais importantes e fecundas do que as divergências. Bastaria referir que este ramo interpretativo do cristianismo (porventura o mais profundo) aceita como fundamental o papel das massas trabalhadoras na história, aceita a luta de classes (e não aquela caridade que humilha) como um meio legítimo e necessário para que as massas humanas oprimidas alcancem a sua libertação contra as elites opressoras e o imperialismo.
Ora, essa é também a base fundamental da concepção marxista da história da sociedade humana e a sua perspectiva de superação de todo o tipo de opressão.
Lenine, nos seus “Cadernos sobre a Dialéctica de Hegel” já referia o marxismo como um entrelaçamento dialéctico e mutuamente fecundante entre o “materialismo inteligente e o idealismo inteligente”, criticando o materialismo primário e mecanicista. O diálogo entre cristãos e marxistas continua a frutificar na América Latina e o MST (Movimento dos Sem-Terra) é disso um exemplo. Um forte abraço e continuação de bom trabalho.
Sertã. L. Pires: Aqui fica o pagamento em atraso da assinatura do FRATERNIZAR, que suponho ser referente aos anos 2004 e 2005. Os restantes 10 euros são para o Barracão de Cultura. Não é muito, mas sei que poderão ser úteis.
Conheço e leio o FRATERNIZAR há alguns anos (cinco). Leio, hoje como sempre, com um desassombro que me delicia e ajuda a ter um pouco de esperança. Desta vez, o artigo sobre a Venezuela elevou-me o espírito o espiritual e o prático. Sabe? É que ninguém fala assim da Venezuela e eu até pensava que Chávez era um lunático… Afinal, ainda há quem trabalhe com prazer.
Tenho pouco a dizer: sou mais uma daquelas pessoas que tentou, batalhou, acreditou em projectos de humanidade de mãos dadas, onde a distribuição da riqueza era igualitária, os “bons” ajudavam os “menos bons” a crescer para a autonomia e o conhecimento que contribuísse para a diminuição da pobreza. Pouco a pouco fui desistindo e sofrendo, diga-se. Hoje, não tenho outra religião que não seja a das dúvidas e, embora pratique o não fazer mal, estou mais calada, mais silenciada. Por isso a minha admiração não o conseguiram calar. Prossiga, por favor! Com muito afecto,
Lourosa. Victor Neves: Que felicidade senti ao ler no “nosso” Jornal n.º 157, de Abril/Junho, a reportagem de Ernesto Cardenal, VENEZUELA, A REVOLUÇÃO SILENCIADA!... É maravilhoso que o FRATERNIZAR tenha contributos deste nível, os quais põem a nu aquilo que o Poder económico internacional tenta por todos os meios ao seu alcance silenciar. Que maravilha ficar a ter conhecimento que a governação de Hugo Chávez tem visado os mais humildes dos cidadãos venezuelanos! No campo da saúde, onde dos 25 milhões de habitantes, 17 milhões estavam excluídos.
Na era Chávez, 85% da população tem acesso à saúde pública. Nos pontos mais recônditos da Venezuela, há serviços médicos com a respectiva assistência, tudo de graça para todos; nos mercados populares onde os bens essenciais são 40% mais baixos; haver farmácias com medicamentos 85% abaixo do preço; no campo da educação, a alfabetização para milhão e meio de analfabetos, enquanto que no anterior regime qualquer tipo de ensino estava fora do alcance dos pobres.
Na era Chávez, 13 milhões de venezuelanos estão a estudar; a nacionalização do petróleo: que alegria me deu o que dizia aquela mulher: “o petróleo já é dos venezuelanos, nadávamos em petróleo e não sabíamos o preço do barril”; os militares do tempo de Chávez, tal como ele, eram pobres. É ver a sua postura na sociedade! Não há preso político na Venezuela! Que bom saber isso! Pois quando o ser humano não esquece as suas origens, tem uma postura outra no seu quotidiano. E quando exerce funções públicas, ele põe em prática a justiça, sobretudo de forma a ter em conta os mais pobres! Não foi isto que Jesus nos deu como testemunho?
Outras considerações havia a fazer. Refiro só mais esta: A professora em Espanha que perguntava como é que sendo ela professora universitária não sabia nada da revolução na Venezuela? Também a mim me surpreendeu a resposta que lhe foi dada pelo Padre Ernesto Cardenal: que era por causa das fontes de informação que ela tinha, visto que 9 transnacionais da informação produzem 90% da informação mundial. É obra!
Logo é mais que óbvio os interesses que estão por trás de tudo isto, já que os filhos das trevas são mais espertos que os da luz. Pois os grandes monopólios internacionais não estão nada interessados que esta mensagem da realidade venezuelana da era Chávez passe para a opinião pública mundial, pode-se pegar!...
Daí a esperteza dos senhores dos grandes impérios que tudo fazem para sufocar todas as iniciativas que visem ter em linha de conta os sem-voz e sem-vez, dando-lhes condições para uma vida digna e vida em abundância, segundo ele, Jesus Cristo.
Estes senhores não podem, não conseguem viver sem pobres à face do planeta Terra. Há todo o interesse e empenho da parte desses senhores em mantê-los vivos na sua maior pobreza e na mais ínfima miséria, visto que assim eles conseguem reinar. Logo, eles não poupam, não perdoam a todo aquele que ouse ter o atrevimento de contribuir para a sua abolição.
Mas bem-hajam todos os poucos que ousam pautar a sua conduta no quotidiano por esses caminhos. Já que é dele: Bem-aventurados sereis todos vós, quando por minha causa vos insultarem, vos caluniarem e contra vós disserem toda a espécie de mal. Alegrai-vos e exultai, que é grande nos céus a vossa recompensa. E também é dele: Ai de vós, quando todos disserem bem de vós.
Bem-haja quem anda por estes caminhos. Pessoalmente, continuo no esforço quotidiano por lhe ser o mais fiel possível, visto que é ele quem me dá o ânimo e o alento suficientes para prosseguir na caminhada.
Coragem, Mário. Sempre em frente. Um abraço fraterno.
|
|
DOCUMENTO
Reflexão teológica de Pablo Richard (Doutor em Bíblia e em Sociologia da Religião, director do DEI, Costa Rica)
Crise irreversível na Igreja Católica
Desde há bastantes anos que o teólogo PABLO RICHARD é amigo do Jornal Fraternizar. O "documento" que aqui se apresenta foi enviado directamente por ele para as nossas leitoras, os nossos leitores em Portugal. Leiam-no com o carinho e a atenção que só as amigas, os amigos são capazes. Verão que é uma reflexão cheia de Espírito Santo e de Fé.
Introdução:
A eleição de José Ratzinger como sucessor de João Paulo II mostrou finalmente onde está e qual é a crise que a Igreja católica realmente vive, mas ao mesmo tempo clarificou qual é a nossa proposta positiva para construir uma nova maneira de ser Igreja.
Na actualidade, há dois modelos ou duas maneiras diferentes de ser Igreja. “A Igreja” é apenas um conceito teológico que não existe na realidade; o que existe historicamente são modelos, tendências ou maneiras diferentes de ser Igreja. De forma simples e provisória, poderíamos distinguir hoje uma maneira conservadora de ser Igreja e outra maneira diferente, alternativa, libertadora. Não falamos aqui de duas Igrejas, mas de duas maneiras ou dois modelos no interior da mesma Igreja Católica.
A interpretação crítica que aqui proponho da eleição do Cardeal Ratzinger como Papa é que esta foi planeada especialmente para dar continuidade aos 26 anos do pontificado do Papa João Paulo II. O teólogo Ratzinger, braço direito de João Paulo II para questões doutrinárias e Prefeito durante 23 anos da Congregação para a Doutrina da Fé, é eleito para dar continuidade teológica e dogmática ao modelo construído por João Paulo II. O mais importante na minha interpretação é que esta continuidade entre João Paulo II e Bento XVI confirma e torna evidente uma crise irreversível e final do actual modelo conservador de Igreja.
Crise “irreversível” significa uma crise que já não pode ser ultrapassada com reformas parciais ou com mudanças puramente teológicas ou de linguagem. Uma crise irreversível é uma crise final. Não há marcha atrás, o seu aperfeiçoamento só consegue apressar a sua morte.
Toda a tendência conservadora ou o processo de contra-reforma na Igreja gera a longo prazo uma Igreja em estado permanente de crise. Não sabemos quanto tempo durará a crise. Nem é importante, pois no interior da própria Igreja podem verificar-se duas tendências ou maneiras diferentes de ser Igreja: uma conservadora em processo permanente de crise e outro modelo alternativo e libertador de Igreja que cresce com a sua força espiritual e profética que lhe é própria. Os dois modelos não são paralelos, mas entrecruzam-se. A crise irreversível de um modelo determinado de Igreja não impede que surja outra maneira de ser Igreja. Haverá tensões, mas não necessariamente divisões. Quanto mais consciência temos que a crise da Igreja actual é já irreversível, tanto mais evidente se torna a necessidade de construir uma nova maneira de ser Igreja e discernir qual é a força que temos para a construir.
Creio que a eleição (designação) de Ratzinger como Papa foi uma decisão errada, motivada pela necessidade de dar continuidade ao projecto eclesial já existente e motivada também pelo medo ao “relativismo”. Como o próprio cardeal Ratzinger disse na sua homilia no início do conclave, existe o perigo que a Igreja ande à deriva, arrastada por qualquer vento de doutrina. É já um sinal de crise que a eleição de um Papa tenha sido por uma necessidade de continuidade e por medo à autêntica diversidade e à pluralidade.
A minha proposta positiva e construtiva, neste momento de crise irrersível da Igreja católica, é a possibilidade real de construir outra maneira de ser Igreja, outro modelo de Igreja, alternativo e libertador, no interior da Igreja ctualmente existente. Temos a força teológica e espiritual suficiente para construir essa nova maneira de ser Igreja. Não creio que a solução seja sair da Igreja, mas criar uma nova maneira de ser Igreja no interior dela. A motivação para continuar a lutar dentro da Igreja não é o medo a a necessidade, mas a responsabilidade pastoral de caminhar com o povo pobre e excluído, para o qual muitas vezes a Igreja é a sua única esperança. Seria muito fácil abandonar agora a Igreja, quando o Povo de Deus mais do que nunca carece de Teólogos da libertação e de Pastores comprometidos. O próprio Povo de Deus tem esta intuição: quando estávamos a celebrar no dia 2 de Abril o 25º aniversário de Mons. Romero, alguém disse: “Morreu um Papa, mas ressuscitou um Profeta no povo salvadorenho.”
A minha interpretação negativa da eleição de Ratzinger como Papa pode ser apelidada de radical. A minha proposta positiva de construir uma nova maneira de ser igreja no interior da Igreja actual, pode ser apelidada de utópica. Não importa, pois muitas vezes a radicalidade e a utopia andam juntas.
João Paulo II e Bento XVI: Crise irreversível na Igreja Católica
É uma constante na história do Cristianismo a confrontação entre movimentos de reforma e contra-reforma no interior da Igreja. O Concílio Vaticano II (1962-1965), interpretado por nós a partir das Conferências Gerais do Episcopado latino-americano em Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), constitui um autêntico movimento de reforma na Igreja Católica.
Com João Paulo II /1978-2005) e agora com maior razão com José Ratzinger, chamado Bento XVI, está a consolidar-se uma clara tendência de contra-reforma na Igreja. De modo semelhante, no passado, deu-se uma contradição entre a reforma protestante (Lutero 1483-1546) e o Concílio de Trento (1545-1563), um concílio de contra-reforma, aperfeiçoado posteriormente pelo Concílio Vaticano I (1869-1870). O Papa João XXIII, com a convocação do Concílio Vaticano II, rompeu com estes 400 anos de contra-reforma e propôs um novo programa de reforma da Igreja.
O que dizemos da Igreja, podemos dizê-lo também da assim chamada “civilização ocidental e cristã”, confrontada na actualidade com o oriente não-cristão. Esta situação agudizou-se com a guerra preventiva do ocidente “cristão” contra o Iraque islâmico e a sua ameaça constante contra todos os povos orientais não cristãos. Esta crise de civilização por sua vez nota-se na realidade ainda maior de um Império, cujo centro está nos Estados Unidos. O Império mais poderoso do mundo identifica-se explicitamente a si próprio como um “Império cristão”. O seu presidente foi eleito por uma maioria cristã, tanto evangélica como católica. A história ensina-nos que o triunfo de um Império Cristão significou sempre o fracasso do Cristianismo.
O que provoca a crise do modelo conservador da Igreja na situação actual é, em primeiro lugar, o seu eurocentrismo. Para João Paulo II, a Europa “converteu-se no grande centro da evangelização do mundo e, apesar de todas as crises, não deixou de o ser até hoje” («Memória e Identidade», p. 132). O Papa insiste no carácter cristão da Europa contra o facto evidente da sua acelerada descristianização.
É desconcertante a notícia de que o Cardeal Ratzinger se opõe à entrada da Turquia na União Europeia. A razão é simples: ele não quer que os muçulmanos invadam a Europa “cristã”. É muito difícil para nós, latino-americanos, aceitar que a Europa seja, segundo João Paulo II, o centro da evangelização do mundo, não só no passado, mas também no presente. Não podemos esquecer que o cristianismo chegou à América e Caribe com a expansão do colonialismo europeu. Não negamos os méritos da Evangelização, os seus missionários e os seus profetas, mas não podemos esquecer que o colonialismo europeu saqueou os nossos recursos naturais, destruiu cruelmente os nossos povos indígenas e na actualidade condena-nos à morte através do pagamento injusto da dívida externa e do neo-colonialismo das companhias transnacionais.
Outro facto evidente é que a Igreja conservadora tem ainda como horizonte o conflito Este-Oeste e não o conflito Norte-Sul. O Sul não existe. Sempre se diz, de forma triunfalista, que a maioria dos católicos está na América Latina, mas depois ignora-se a trágica situação de pobreza e de exclusão que se vive no nosso continente “católico”.
É evidente que a Igreja na Europa, especialmente na Polónia, ficou marcada pela experiência cruel do nazismo e do comunismo. O Papa classifica um e outro como “as ideologias do mal”, como a “força do mal”, como o “furor bestial” que ameaçou de morte toda a Europa. Mas entretanto não se classificam como “ideologias do mal” a “Doutrina da Segurança Nacional”, que inspirou todas as ditaduras militares “católicas” na América Latina, nem a ideologia “neo-liberal” actual, que oculta e justifica a pobreza e a exclusão de 60% da nossa população. Tão pouco se toma consciência e se faz a consequente denúncia profética do actual sistema de livre mercado, apesar dele ser uma “força brutal” que destrói o nosso continente “católico”.
João Paulo II e José Ratzinger nunca entenderam a Teologia da Libertação. Para ambos e para toda a cúria vaticana, a Teologia da Libertação favorece a expansão do marxismo na América Latina. Por isso declarou-se pública e oficialmente a morte do comunismo, do marxismo e também da Teologia da Libertação.
Com esta atitude a hierarquia romana quis ver-se livre da Teologia da Libertação. A Igreja tem medo dela, porque sabe que a Teologia da Libertação diz a verdade e tem razão.
Nunca o Vaticano canonizou os milhares de mártires que morreram na luta pela vida e pela justiça na América Latina. O Papa nunca os canonizou, não fosse com isso legitimar uma nova concepção de evangelização e de Igreja e uma nova maneira de fazer teologia. Que, por exemplo, não se tenha canonizado Mons. Romero é um escândalo para nós, mas é também um sinal de fraqueza da cúria romana.
José Ratzinger denunciou reiteradamente o que ele chama “a ditadura do relativismo” e a necessidade de ter “uma fé clara segundo o Credo da Igreja”. Mas o problema central é o contrário: a ditadura do Dogma, da Lei e do Poder central da Igreja que impede todo o diálogo ecuménico e inter-religioso.
Um claro exemplo disto é o documento da Congregação para a Doutrina da Fé intitulado “Dominus Iesus”, cujo autor principal é José Ratzinger. Esquece-se também que a “fé clara segundo o Credo da Igreja” está nas Sagradas Escrituras, especialmente nos 4 Evangelhos, que são a Memória, o Cânon e o Credo da nossa fé cristã.
O medo do relativismo é no fundo o medo da pluralidade religiosa e cultural, o medo da diversidade de opções, o medo das teologias de género que criticam o patriarcado, o medo do ressurgimento das religiões do Terceiro Mundo.
Na sua homilia, ao iniciar o Conclave, o cardeal Ratzinger fala do relativismo dos diversos modos de pensar: liberalismo, individualismo, vago misticismo religioso, agnosticismo, sincretismo e outros. Mas este relativismo decorre sobretudo da crise da modernidade, da desintegração do ocidente “cristão” e da decadência espiritual e ética do mundo desenvolvido. Mais importante é o “relativismo” de valores éticos que permite a mercantilização da vida humana e cósmica.
O novo Papa está mais preocupado com as “correntes ideológicas e modos de pensar”, que com o genocídio dos pobres do mundo, onde a vida parece ter perdido todo o valor.
As viagens do Papa João Paulo II pela América Latina e Caribe foram uma manifestação impressionante do poder religioso da Igreja. Não nego muitos aspectos positivos destas viagens, mas o seu efeito a médio e longo prazo não foi nem evangelizador nem libertador. A evangelização na América Latina não passa pelo exercício do poder, mas pela defesa da vida e pela construção duma sociedade onde todos e todas tenham lugar, em harmonia com a natureza. Os verdadeiros evangelizadores na América Latina são esses milhares e milhares de sacerdotes, religiosas e leigos anónimos que trabalham no mundo dos pobres.
A Igreja conservadora é autocrática e opressora, o que provoca dentro dela um espírito de medo generalizado: os leigos e leigas praticantes têm medo dos párocos, os párocos têm medo dos bispos, os bispos têm medo da cúria vaticana e este tem medo da Teologia da Libertação.
Em geral, a Igreja conservadora está mais preocupada com o aborto e o casamento dos homossexuais, que com os milhões de seres humanos que morrem de fome no Terceiro Mundo. A Igreja preocupa-se com a vida antes do nascimento ou com a vida eterna depois da morte, mas não com a vida presente da humanidade.
A Igreja não abre um espaço onde se discutam abertamente os problemas éticos da vida humana, como o aborto, as opções sexuais, os métodos anticonceptivos e todos os problemas da bioética. Muitos destes temas não estão resolvidos e não serão resolvidos nunca, se a Igreja impuser de modo autoritário uma opinião única que não pode ser discutida.
Porque é que o povo gosta tanto de João Paulo II? E porque é que Bento XVI precisa de melhorar a sua imagem?
Poderíamos deslegitimar o nosso pensamento crítico como o pensamento típico dos pequenos grupos intelectuais, isolados do sentir e do pensar do povo simples. Esta é uma maneira muito tradicional de desclassificar toda a análise crítica e ocultar a utilização que se faz da exaltação de actos religiosos para interesses institucionais da Igreja.
É um facto evidente que os meios de comunicação deram uma cobertura invulgar a todos os actos relativos à doença, morte e funeral de João Paulo II e à exibição magestosa dos cardeais que no conclave elegeram José Ratzinger como Papa. Foi uma verdadeira apoteose mediática. Isto teve necessariamente uma influência directa e eficaz na opinião popular.
Os meios de comunicação que exaltaram todos os actos “pontifícios” deste período foram na sua maioria os meios mais poderosos e influentes no poderoso sistema económico actual. Porquê esta exaltação desse actos?
A minha hipótese é que era necessário responder à carência no sistema actual de globalização de um líder espiritual forte e reconhecido universalmente. Os grandes líderes políticos do mundo actual são profundamente corruptos, ambiciosos, violentos, sem valores éticos e sem nenhuma preocupação pela maioria pobre e excluída no sistema actual de livre mercado.
Ninguém nega a santidade pessoal e o carisma de João Paulo II, os seus valores éticos e as suas intervenções proféticas em momentos difíceis da história moderna. Um exemplo foi a sua oposição à guerra do Iraque, a sua visita solidária a Cuba e a sua preocupação pela paz no Médio Oriente, onde procurou destruir muros e construir pontes.
Mas outra coisa é a manipulação que fazem os meios globais de comunicação da figura de João Paulo II como o líder que derrotou o comunismo e o defensor dos valores éticos que a humanidade actual carece. Com esta manipulação pretendem construir o líder espiritual que o sistema actual de globalização necessita para funcionar.
Esta manipulação está contra as intenções e o ser espiritual de João Paulo II. Também é escandaloso como as Igrejas locais aproveitam esta apoteose manipuladora dos meios de comunicação para os seus próprios interesses institucionais. Muitas Igrejas sentem-se agora importantes, ao ser incluídas nas necessidades “espirituais” da globalização e da construção de um “Império cristão”.
O impacto dos meios de comunicação na Igreja como Povo de Deus também se deve à falta de condução espiritual. A geração de bispos profetas, chamada a geração do Concílio Vaticano II e das Conferências episcopais de Medellín e Puebla, que alguns também chamam “os Padres da Igreja latino-americana”, é uma geração que está a desaparecer, simplesmente devido à idade. Esses bispos foram programaticamente substituídos por bispos contrários à tradição profética e renovadora da Igreja de Medellín e Puebla.
Outro factor que influuenciou na carência de condução espiritual na Igreja foi o silenciamento de mais de 140 teólogos e teólogas da Libertação, realizado pela Congregação da Doutrina da Fé que o actual Papa José Ratzinger conduziu durante 23 anos.
Foi também negativo o regresso à estrutura tridentina de poder na Igreja: o Papa em Roma, o Bispo na sua diocese e o pároco na sua paróquia. Os leigos marginalizados para tarefas cada vez menos importantes e as leigas quase nem existem.
Bento XVI terá que fazer um esforço importante para mudar a sua imagem negativa de “guardião da ortodoxia”, para ganhar a simpatia do Povo de Deus. Nunca um inquisidor foi popular.
Por último, a atracção por João Paulo II, especialmente nas massas católicas, responde à necessidade de um poder espiritual e global que os represente e com a qual se sentem identificados. João Paulo II, pelo seu carisma pessoal, pelas suas viagens e pelos seus gestos muito significativos grangeou um reconhecimento universal.
Todo o povo precisa de ter um Papa, um Rei, um símbolo de poder. É paradigmático o caso bíblico no 1.º Livro de Samuel, cap. 8, em que o povo pede a Samuel um rei. Depois de 200 anos que o povo viveu feliz sem rei, sem templo, sem exército permanente, agora quer ter um rei como os outros povos. Samuel lembra-lhe tudo o que tem de negativo ter um rei, mas o povo insiste em ter um rei. Nasce assim a monarquia em Israel que durará mais de 400 anos e que será, salvo algumas poucas excepções, uma experiência negativa e fortemente criticada pelos profetas.
Pressupostos para a construção duma nova maneira de ser Igreja
Já dissemos que a crise irreversível da Igreja Católica e da contra-reforma contra a reforma realizada pelo Concílio Vaticano II e pelos acontecimentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo não nega a possibilidade de construir uma nova maneira de ser Igreja, um novo modelo de Igreja ou uma nova tendência dentro da Igreja. Agora veremos os pressupostos para esta reconstrução e a força que a torna possível.
Primeiro: será muito importante a ruptura com o eurocentrismo da Igreja e com o mito duma Europa cristã evangelizadora. Isto não significa romper a nossa comunhão com o bispo de Roma, como centro de unidade de toda a Igreja Católica.
Segundo: O novo modelo de Igreja terá como espaço fundamental o Terceiro Mundo, definido pela contradição Norte-Sul. Para nós o Sul existe e a relação Sul-Sul afirma a nossa identidade. O horizonte da nova maneira de ser Igreja será América Latina, Caribe, África, Ásia e Oceania.
Terceiro: o novo modelo será radicalmente ecuménico. Só com uma profunda solidariedade ecuménica poderemos resistir à crise do modelo conservador de contra-reforma na Igreja católica; solidariedade com as Igrejas protestantes e outras Igrejas cristãs do Oriente e todas aquelas que têm uma dimensão ecuménica; o ecumenismo é um espaço de liberdade e de diálogo, onde se respeita a pluralidade de tradições e de confissões. O ecumenismo recupera a pluralidade das Igrejas que os Apóstolos nos deixaram.
Quarto: o diálogo inter-religioso, especialmente com o Judaísmo e o Islão, as três religiões assim chamadas abraâmicas; diálogo também com outras religiões importantes da Ásia, África e religiões autóctones da América Latina. O diálogo inter-religioso mais que “diálogo”, será uma profunda comunhão espiritual e solidária. Os temas do diálogo inter-religioso não serão temas dogmáticos, mas temas de vida ou de morte, como a paz, a guerra, a fome e outros. O objectivo principal da “missão” já não será a “conversão” do outro, mas juntar forças na construção da paz. “Sincretismo” não significa relativismo ou confusão, mas literalmente “juntar forças” em função da paz. Por isso o diálogo inter-religioso pratica o sincretismo, a oração em comum, a solidariedade e o respeito mútuo.
Quinto: fidelidade sem limites ao Concílio Ecuménico Vaticano II (1962-1965). Recordemos aqui alguns temas teológicos mínimos, para não os esquecermos, ou para os darmos a conhecer a muitos a quem eles nunca foram dados a conhecer. Estes temas são: a Igreja é o Povo de Deus, não só a sua estrutura hierárquica; a sua razão de ser não é ela própria, mas o Reino de Deus; a Igreja subsiste na Igreja católica; sacerdócio comum dos fieis, dotados de múltiplos carismas; colegialidade episcopal (Lumen Gentium); a Sagrada Escritura é o fundamento da Igreja e a alma da teologia; o Magistério não está por cima da Palavra de Deus, mas totalmente ao seu serviço; a Igreja, mais que possuir a verdade, caminha para a plenitude da verdade (Dei Verbum); a Igreja tem o seu lugar próprio no mundo, aberta à modernidade e ao humanismo contemporâneo; autonomia do temporal frente à Igreja (Gaudium et Spes).
Outros temas importantes no Concílio são: a reforma litúrgica, o ecumenismo, a liberdade religiosa, os meios de comunicação e os Direitos Humanos.
Sexto: fidelidade à Segunda Conferência do Episcopado latino-americano em Medellín (1968). Recordemos alguns textos: “Os principais culpados da dependência dos nossos países são aquelas forças que, inspiradas no lucro sem freio, conduzem à ditadura económica e ao imperialismo internacional do dinheiro”; “situação de injustiça que pode chamar-se violência institucionalizada”; “educação libertadora: a que converte o educando em sujeito do seu próprio desenvolvimento”; “um surdo clamor brota de milhões de homens, pedindo aos seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte”; “Na nossa missão pastoral, confiaremos antes de mais na força da Palavra de Deus”; “A comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial... célula inicial de estruturação eclesial, e foco da evangelização, e actualmente factor primordial de promoção humana e de desenvolvimento”.
Sétimo: fidelidade à Terceira Conferência do Episcopado latino-americano em Puebla (1979). Pro-memória em alguns textos: “A situação de extrema pobreza generalizada adquire na vida real rostos muito concretos nos quais deveríamos reconhecer os traços sofredores de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela“; “está a subir até ao céu um clamor cada vez mais tumultuoso e impressionante. É o grito de um povo que sofre e que pede justiça...”; A Igreja assume “uma clara e profética opção pelos pobres”; “afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, com vistas à sua libertação integral”; “O compromisso com os pobres e os oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres”; “Exigência evangélica da pobreza como solidariedade com o pobre e como rejeição da situação em que vive a maioria do continente”.
O Concílio Vaticano II e as Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo foram um momento de graça e uma oportunidade única que Deus nos deu (um kairós) para uma autêntica reforma da Igreja católica. Esta reforma foi iniciada pelos próprios bispos que têm a responsabilidade de a manter viva e de desenvolver esta tradição na Igreja. Só a nossa fidelidade à Reforma da Igreja a tornará possível.
Onde está a nossa força para construir um novo modelo de Igreja?
A nossa prática fundamental para construir um novo modelo de Igreja ou uma nova maneira de ser Igreja não será a confrontação com o modelo conservador, actualmente dominante e em crise irreversível na Igreja, mas uma prática positiva de crescimento, no interior da Igreja, justamente aí onde está de verdade a nossa força. Mas onde está em concreto a nossa força? Só enumeramos:
Primeiro: na opção pelos pobres, pelos excluídos e na opção pela vida da terra e da água. Na opção por uma sociedade onde todos e todas tenham lugar em harmonia com a natureza. Na crítica radical ao actual modelo de mercado global de inspiração neo-liberal. Na esperança de que outro mundo é possível e que é possível construir o sujeito capaz de o tornar possível.
Segundo: numa espiritualidade libertadora e numa ética da vida (“a Glória de Deus é o ser humano vivo; a glória do ser humano é a Visão de Deus”: St.º Ireneu).
Terceiro: na Leitura Popular da Bíblia, chamada também leitura pastoral ou comunitária da Bíblia. Todo o movimento de reforma da Igreja começou quando se devolveu a Bíblia ao Povo de Deus, quando pusemos a Bíblia nas mãos, no coração e na mente do Povo.
Quarto: na Teologia da Libertação. A Teologia é uma força, sobretudo quando constatamos que o modelo conservador de Igreja está justamente em crise por ter muito poder e pouca teologia. A Teologia da Libertação construída pelos novos sujeitos: mulheres, afro-americanos, indígenas, camponeses, jovens, meninos da Rua, indigentes, os duma outra opção sexual, etc. Novos sujeitos todos unidos numa crítica radical ao sistema actual de dominação.
Quinto: na construção de Comunidades Eclesiais de Base e organizações similares. Na renovação da vida religiosa. Nos movimentos apostólicos com um claro sentido de participação e libertação na Igreja.
Sexto: Na formação de agentes de pastoral dentro da Igreja e de líderes cristãos militantes nos Movimentos Sociais e políticos. Participação prioritária da mulher em todos os espaços, níveis e lideranças, na Igreja e na sociedade.
Sétimo: na Igreja concebida fundamentalmente como Povo de Deus, com uma forte participação de homens e de mulheres em todos os níveis eclesiais e pastorais. Multiplicação dos carismas e ministérios laicais dentro da Igreja. Celibato como carisma voluntário e universal, não integrado necessariamente no ministério presbiteral ou episcopal.
Oitavo: nos profetas, tanto dentro da Igreja como fora dela. Com o desaparecimento progressivo da geração dos bispos profetas de Medellín e Puebla, surgem agora também profetas leigos fora da Igreja, no âmbito da economia, da política e da cultura.
Terminamos, repetindo o que dissemos no início: a eleição de José Ratzinger como sucessor de João Paulo II revelou-nos finalmente qual é a crise que a Igreja católica realmente vive, mas ao mesmo tempo clarificou qual é a nossa proposta positiva para construir uma nova maneira de ser Igreja.
Com o que fica dito, é agora claro que esse outro modelo de ser Igreja é possível e que temos a força para o construir. A crise do modelo conservador de Igreja, que agora se tornou irreversível, insere-se no contexto maior de crise da civilização ocidental e cristã e de crise de um Império que se define como Cristão. É uma crise que nos enche de perplexidade, temor, angústia e desespero. Mas a possibilidade histórica e real de construir um novo modelo ou uma nova maneira de ser Igreja enche-nos de esperança e de alegria.
|
|
SOCIEDADE/IGREJA
Carta Aberta ao Bispo Carlos Azevedo
Jamais sirvas o Sistema!
Caro Bispo Carlos Azevedo:
Não estive na tua ordenação episcopal, dia 2 de Abril de 2005, realizada no interior da igreja da Trindade, no Porto. Sou presbítero da Igreja, tal como tu agora és bispo, mas desde há muitos anos que deixei de gostar desses locais pretensamente sagrados e passei a gostar mais dos caminhos e das ruas, dos montes e das praias, e, sobretudo, das casas das pessoas, em cujas mesas a Palavra e o Pão podem circular sem entraves nem temores, numa expressão profundamente humana de intimidade e de liberdade. Templos e altares, são invenções das religiões, dos sacerdotes, das suas deusas e dos seus deuses, não de Deus, o de Jesus. Como tal, não bebem a sua inspiração em Jesus, o de Nazaré, expulso da Sinagoga e destruidor, pelo menos, simbolicamente, do Templo do seu país.
Como sabes, também Jesus preferiu as ruas e os caminhos, os montes e as praias, e, sobretudo, as casas das pessoas, nomeadamente, aquelas pessoas que a teologia do Templo do seu país perseguia e excluía com o rótulo de pecadores públicos e de gente desprezível, por isso, a ser evitada pelos “puros”.
Mas não penses que a tua ordenação como bispo da Igreja me passou ao lado. Nada do que é eclesial me passa ao lado. Muito menos, a tua ordenação episcopal. Ou não fosses tu meu conterrâneo, nas terras de Santa Maria da Feira. Ainda recordo aquele encontro de presbíteros do concelho, em que tu também estiveste presente e até presidiste à Eucaristia. Houve, na altura, conterrâneos padres que se manifestaram contra a minha presença, como se eu, padre sem templo nem altar, constituísse uma profanação e uma afronta. Felizmente, foste uma das poucas vozes sensatas e tolerantes que lembrou aos meus opositores a largueza do Reino de Deus, onde quem exclui acaba excluído.
Bem sei que a Igreja, esta nossa Igreja tem muita dificuldade em fazer suas as fronteiras sem fronteira do Reino de Deus, uma postura que, se for levada às últimas consequências, pode acabar por a colocar fora do Reino de Deus, coisa que já terá ocorrido no passado, mas que, nestes tempos pós-Concílio Vaticano II, é de crer que não volte a suceder nunca mais.
Surpreendeu-me, devo confessar, que Roma te chamasse ao ministério episcopal. O Papa João Paulo II estava já então muito debilitado, quando assinou o decreto, e isso pode ter facilitado as coisas. As malhas do crivo romano estavam menos rígidas, o que não acontece agora com Bento XVI que lhe sucedeu, pelos vistos, também com surpresa (desagradável surpresa) para ti.
Mas devo confessar também que não me surpreendeu menos que tu aceitasses ser ordenado bispo. E a minha surpresa cresceu ainda mais, depois que pude ler as primeiras palavras que proferiste como Bispo acabado de ordenar, e que constituem uma espécie de programa de vida episcopal. Tal como estão as coisas na nossa Igreja, é um programa martirial. Descobrirás, com o passar dos meses e dos anos, que as dificuldades maiores para se ser bispo ao serviço do Evangelho de Deus, revelado em Jesus de Nazaré, o Crucificado, vêm sobretudo do interior da nossa Igreja. Basta que te mantenhas fiel ao Espírito que te inspirou aquele programa de vida, para chegares a essa conclusão. Verdade e Justiça são conceitos muito badalados dentro da nossa Igreja, mas não passam de meros conceitos. Para que tivessem consistência, carne e sangue, era preciso que o Estado do Vaticano, a Cúria Romana e as Cúrias diocesanas implodissem todas simultaneamente. Verás já terás começado a ver, ao fim destas poucas semanas de exercício do teu ministério episcopal que as “potências contrárias” à Verdade e à Justiça também integram o Sistema eclesiástico. Ele próprio é uma dessas potências, talvez a mais perigosa, já que, mentirosamente, se faz passar por “santo” e trata os seus gestores maiores também como santos. Repara como todos eles vestem diferente, como frequentam locais diferentes, como falam diferente, como têm costumes diferentes, numa palavra, como são diferentes. Mas sempre foram assim os fariseus! Tu próprio, viste-te obrigado a começar por aceitar as regras do jogo, apesar do programa que enunciaste para o teu ministério. Compreendo que não poderias começar de outro modo, certamente. Só espero que depressa saltes fora do sistema e sejas bispo de todas as mulheres, de todos os homens, de preferência daquelas, daqueles que, felizmente, já não frequentam os templos nem querem nada com os altares, tal como Deus, o de Jesus que do que gosta é de Política, não de Religião.
Meu caro Bispo Carlos Azevedo: Para que nunca esqueças o programa que enunciaste diante dos teus irmãos bispos, logo após teres sido ordenado, aqui o registo e divulgo com alegria, já a seguir. Uma coisa te peço-te: Não me defraudes nunca! Não nos defraudes, nunca! Se estás mesmo disposto a fazer frente às Potências que se opõem à Verdade e à Justiça e a ser solidário como Jesus com todas as suas vítimas, então começa pelo próprio Sistema eclesiástico. Jamais o sirvas. E jamais confundas os interesses dele com as causas da Verdade e da Justiça.
E agora, aqui registo e divulgo as tuas palavras-programa, que muito me alegraram no Espírito Santo:
“Escolhi o apelo de Cristo: «Quem Me serve, siga-Me!» (Jo 12, 26), como lema da missão presbiteral e renovo-a no início desta dimensão pastoral.
Eis-me aqui para servir, seguindo o estilo do Belo Pastor, com desejo humilde e determinado a pautar os meus passos no seguimento de Cristo, princípio, centro e fim do pensar e do agir em Igreja.
Quero começar por dizer-vos que nunca como hoje entrego a Deus, Pastor da humanidade, a minha vida toda. Ainda não consigo dar-lhe graças, com o coração todo, pela nova missão a que a Igreja me chama..., mas pela força do seu Espírito entrego-me totalmente ao seu querer para que me faça sinal da sua bondade misericordiosa, tudo para todos, sobretudo para os atingidos pela maldade do mundo, para que me faça defensor da verdade e da justiça perante as potências contrárias, para que me faça ponte e elo de comunhão que o Espírito quer construir dentro da Igreja católica, entre as Igrejas, entre os crentes, na sociedade.
Desejo profundamente ser anunciador do Deus de Jesus, que tanto nos ama. Com crescente maturidade apostólica, deixe passar pelo coração e pela vida, um Deus pobre e humilde, que nos respeita na nossa liberdade com amor criador e materno; um Deus que nos espera sempre, nos aguarda com paciência e é garantia absoluta da esperança humana; um Deus que vive na plenitude da caridade e rompe as distâncias e as seguranças aparentes porque firme no amor verdadeiro;um Deus de uma alegria nova, que não olha do alto o sofrimento mas passa por ele, fundado na compaixão, porque vê os filhos passar mal, a andar perdidos e oferece-lhes saídas de metanóia e libertação.
Estou pronto para seguir Jesus, na coragem de homem livre para um amor maior, livre de si mesmo, livre dos bens, livre dos outros em obediência total ao Pai. Seguir Jesus que, servo incondicionado da missão, se aproximou de todos, não para os possuir ou instrumentalizar, mas para os servir tal como são, atento às situações de cada um, sem preconceitos ou temores, com a forte exigência e a ternura suave do amor. Servir por amor é autêntica fonte de sentido, motor da unidade e razão da força da vida pastoral na Igreja.
A todos imploro: não permitais que o ser constituído para estar perante vós, me dispense de ser fiel discípulo de Cristo, em confiante abandono à acção interior do Espírito. Não deixeis que ao ser para vós, me desenraíze do estar convosco, de partilhar a dureza e o encanto da realidade e de ser aí sentinela vigilante. Proporcionai formas de corresponsabilidade, que sou chamado a animar e a guiar como manifestação de sermos um povo sacerdotal, sem nunca perder a circularidade da participação comunitária.”
Macieira da Lixa, Maio 2005
Mário, presbítero da Igreja do Porto
|
|
|
|