Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 159, de Outubro/Dezembro 2005

DESTAQUE

Morre-se, e depois?

Morre-se, e depois? Não falta por aí quem, mesmo entre as populações católicas, responda assim a esta pergunta: “Morre-se e vai-se para o buraco. E acaba-se tudo”. Outras pessoas, marcadas certamente pelas antigas catequeses fortemente moralistas e aterradoras que foram obrigadas a frequentar em criança, adiantam: “Só o corpo é que morre e vai para debaixo da terra, onde fica a aguardar a ressurreição, no fim do mundo; a alma não morre, é imortal, por isso, é levada de imediato diante de Deus para ser julgada por Ele. E depois do julgamento, ou fica para sempre junto de Deus no Céu, se se tiver portado bem, enquanto esteve no corpo; ou fica no inferno para sempre, se se tiver portado mal”. Curiosamente, esta resposta é muito semelhante àquela que nos oferece o Catecismo da Igreja Católica (cf. n.os 1020-1060), neste início do século XXI e do terceiro milénio. Acrescenta-lhe apenas mais este pormenor não menos aterrador que os anteriores: Mesmo a alma que conseguir escapar às eternas penas do inferno, dificilmente escapará a um processo mais ou menos longo de purificação pelo fogo, no chamado Purgatório, até vir a ser considerada digna de ficar para sempre junto de Deus!!! E qual será a resposta de Jesus de Nazaré a esta mesma questão? Subscreve todo este moralismo rançoso e de vómitos do Catecismo da sua Igreja, a qual, entretanto, não hesita em correr a fazer da pretensa salvação das almas um chorudo negócio, ou, pelo contrário, abre-nos a impensáveis horizontes de vida, que só mesmo o Deus de Vivos que o ressuscitou a ele como o primogénito de todos os demais seres humanos, é capaz, e tudo por pura Graça sua, sem querer saber para nada de qualquer mérito nosso?

A resposta que o Catecismo da Igre­ja Católica adianta é puramente deísta e pagã. Em tudo igual à resposta que as diferentes religiões têm repeti­do através dos tempos, desde as mais primitivas às mais contemporâneas, to­das elas ópio e terror para populações que se sentem oprimidas e impotentes num mundo e numa História que de mo­do algum conseguem controlar, mui­to menos, dirigir. Por isso, é uma res­pos­ta que nos dá mais do mesmo, bem nos antípodas do Evangelho, ou Boa Notícia do Deus de Vivos que se nos revelou em Jesus de Nazaré.

Ora, uma Igreja como a Católica, que responde à grande questão dos seres humanos – “Morre-se e depois?” – nos termos em que o seu Catecismo o faz, só pode ser uma Igreja que vive situada fora da influência do Sopro ou Espírito de Deus, por isso, nos antípo­das de Jesus. Consequentemente, nem sequer é credora da confiança da Hu­manidade. É sal que perdeu a força. Vive instalada na rotina dos dias e na mais crassa preguiça teológica. Há muito que deixou de ser sinal ou sa­cramento do Deus de vivos que traba­lha continuamente para levar por di­ante e ao seu termo a criação de inter­lo­cu­tores seus, mulheres e homens, cons­tituídos em estado de maioridade e fecundamente criadores na História, que lhes cumpre acompanhar e huma­ni­zar, para se converter em mais uma empresa multinacional de religião, com estações de serviço religioso a funcio­nar a toda a hora nos mais variados lo­cais onde vivem as pessoas.

Por isso aquela sua resposta só pode ser feita de mentira, do tipo en­gana-meninos-tira-lhes-o-pão. É uma resposta que serve às mil maravilhas para manter as populações cativas e resignadas dentro da presente Ordem económica mundial injusta. É uma res­posta destinada a castrar as popula­ções e a mantê-las castradas durante o breve período de tempo em que so­mos chamados a viver na História. É uma resposta destinada a acorrentar as consciências, a fazer das popula­ções mais bestas de carga do que se­res humanos criadores e protagonistas. É uma resposta concebida para desmo­bilizar as populações dos grandes com­bates históricos pelo Pão e pela Justi­ça, pela Liberdade e pela Paz, ou, na lin­guagem dos Evangelhos Sinópticos, dos grandes combates pelo Reino/Rei­nado de Deus dentro da História. É uma resposta que condena as popula­ções a sentir-se encurraladas na Histó­ria, como prisioneiras numa caverna, de onde só se conseguem libertar no momento da morte do corpo.

Mas o mais sádico da resposta do Catecismo da Igreja Católica é ela afir­mar, sem pestanejar, que a libertação da alma do corpo, no momento da mor­te deste, longe de ser uma garantia de libertação para a liberdade, é, na maior parte dos casos, a passagem duma ca­verna – o corpo humano– para outra ca­verna infinitamente pior, chamada pur­gatório, ou inferno. E, no caso do inferno, uma caverna com inimagináveis penas que nunca mais terão fim!...

É claro que se a vida dos seres hu­manos fosse para se resumir a este breve inferno histórico, que é o viver aqui e agora da esmagadora maioria da Humanidade, logo seguido do infer­no eterno, então melhor seria nunca ter­mos nascido. Nem nos venham a correr dizer que a mesma Igreja, que es­tes horrores ensinou e ensina, está também apetrechada dos meios de sal­vação, e que bastará que as pessoas a integrem durante o tempo do seu viver histórico, e recorram, sempre que necessário, aos meios que ela põe à sua disposição para garantirem a salvação das suas almas. Porque então uma Igre­ja assim é o cúmulo da crueldade humana. Primeiro, anuncia horrores sem conta nem medida às pessoas; e de­pois de as ter totalmente à sua mer­cê, submissas e humilhadas, ainda as obriga a manter os cordões da sua bol­sa sempre abertos para pagarem, du­rante toda a vida e mesmo depois de morrerem, os meios da salvação das suas almas!... Reconheça-se que como sistema pode ser engenhoso. Mas a ver­dade é que tem tanto de engenhoso como de perverso.

Morre-se, e depois? A resposta à pergunta interessa a todos os seres hu­manos. Mas quem hoje está melhor co­lo­cado perante a pergunta são precisa­mente os ateus e os agnósticos. Os cren­tes das distintas religiões e Igrejas, incluídos os que fazem sua a resposta do Catecismo da Igreja Católica são, neste particular, os mais infelizes dos seres humanos. Porque a resposta que foram levados a interiorizar é uma res­pos­ta feita de mentira. Ora, é melhor não ter resposta nenhuma, do que ter uma resposta feita de mentira.

De resto, é sempre muito mais sau­dável para os seres humanos vivermos toda a vida confrontados com aquela pergunta que tem tudo a ver com o sen­tido último da nossa existência, mesmo que nunca cheguemos a encontrar uma convincente resposta para ela, do que, incomodados pela ausência duma res­posta concreta, corrermos à estação re­ligiosa ou eclesiástica de serviço mais próxima a adquirir a resposta mentirosa que lá é dada a quem se fizer seu utente permanente.

Não nos deixemos enganar. Basta de infantilismos e de horrores em nome de Deus ou de Nossa Senhora de Fá­tima (não se diz oficialmente urbi et orbi que a senhora de Fátima veio propositadamente a Portugal mostrar o in­ferno a três crianças precocemente guar­dadoras de rebanhos, e que ele é assim como uma caverna de fogo, para onde, segundo ela, vão as almas dos pobres pecadores depois da mor­te?!). Basta de submissão aos manipu­la­dores do medo e aos comerciantes de Deus ou de Jesus Cristo, habilmente disfarçados de clérigos, reitores de santuários e de pastores de Igrejas. Fuja­mos de uns e de outros a sete pés.

As respostas que eles e as suas Religiões e suas Igrejas dão, sem pes­tanejar, à pergunta – Morremos, e de­pois? e a algumas perguntas mais (por exemplo, Donde vimos? Para onde va­mos?) são todas respostas menti­rosas. Pelo simples facto de serem res­pos­tas interesseiras. Vejam como todas elas exigem, como condição para ha­ver garantia de salvação, a adesão das pessoas à respectiva instituição, com as inerentes obrigações do pagamento do dízimo e a frequência regular nos seus cultos, as quais , no seu conjunto, con­tribuirão para as fazer crescer em poder e influência na sociedade onde elas estão implantadas. Respostas as­sim são sempre mentirosas. Só a Graça é verdade. E a Liberdade. Quando há interesses, fora do âmbito da Graça e da Liberdade, as respostas avançadas pelas instituições beneficiadas são sem­pre mentirosas.

É por isso que Jesus de Nazaré não encaixa em nenhuma Igreja, nem em nenhuma religião.Sempre será per­­se­guido, condenado e, finalmente, cru­ci­ficado por todas elas. Nem que se­ja pa­ra depois elas o proclamarem como o seu Deus, mas sempre e só à maneira de um ídolo, que elas podem manipular à von­ta­de e em proveito pró­prio.

É com Jesus, e Jesus crucificado, que aprendemos que a pergunta – Morremos, e depois? tem muito pouco a ver connosco, enquanto seres humanos responsáveis pela His­tória e uns pelos outros. Es­sa pergunta tem mais a ver com os nossos medos perante a História e perante os outros. São os nossos medos perante a História e perante os outros que nos impedem de sermos mulheres, homens em plenitu­de, criadores, rebeldes, insur­re­ctos, libertários, irmãos e com­panheiros dos demais, su­jeitos, protagonistas, e tudo isto na dimensão e na intensi­dade em que Jesus de Nazaré se atreveu a ser, no seu tem­po e país.

Quando nos libertarmos des­tes nossos medos e formos mulheres, homens assim, como Jesus, nunca mais andaremos aflitos com a questão – Morre­mos, e depois?, mas com es­tou­tra, bem mais subversiva e revolucionária, portanto, histo­ri­ca­mente mais verdadeira: Nascemos/vivemos, e depois? Isto é: O que fazemos com a vida que nos foi dada? Ao ser­viço de quem a colocamos todos os dias? Quem está a beneficiar com a nos­sa vida, enquanto estamos na Histó­ria? A quem vai aproveitar tudo o que sou e tenho e que me foi dado para eu desenvolver e dar também?

Quando assim é, já não é mais a morte que nos preocupa, mas a vida. Para que a vida não seja um morrer to­dos os dias para as grandes e as pe­quenas Causas da Humanidade e do Universo. Seja, sim, um viver cada vez mais comprometido com as grandes e as pequenas Causas da Humanidade e do Universo. Porque, então, quando a Morte nos acontecer, será simulta­neamente o fim de tudo e o Começo de tudo, como sucede com toda a ex­plosão, nomeadamente, a do grão de trigo. É o fim de tudo, na perspectiva do nosso aqui e agora, mas não para cairmos no nada. É o fim de tudo, mas ao modo do grão de trigo que é lança­do à terra e morre para dar muito fruto. É o fim de tudo, mas para PASSARMOS (Páscoa) a um Viver Novo, em moldes e dimensões e qualidade, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração alguma vez conseguirá imaginar.

A Morte, para quem vive para as grandes e as pequenas Causas da Hu­ma­nidade e do Universo, tem o condão de nos reduzir ao Essencial. Por isso, torna-nos invisíveis aos olhos. Tudo o que, nesse momento, houver em nós de mentiroso, de idólatra, de perverso, de inumano, de ódio, de medo, de in­fan­tilista, de cruel, de prepotente, de ti­rânico, de opressor, de explorador não aguenta a explosão final da vida que é a Morte e desaparece como por encanto. A Morte põe fim a tudo o que não é Essencial. Como acontece com o grão de trigo que morre, que explode sob a terra. O Novo Corpo que resulta dessa explosão será vida na Vida, rio no Mar, ser criado no Criador. Porque Deus que nos criou na evolução, tam­bém nos ressuscita no instante do nosso morrer, precisamente porque é Deus de vivos, não de mortos. E tudo isto Ele realiza por pura Graça sua, sem querer saber para nada de méritos ou deméritos nossos.

Felizes, por isso, as mulheres, os homens que, como meninas, meninos, aco­lhermos esta Boa Notícia testemu­nhada e revelada no viver/morrer de Jesus de Nazaré. E, como ele, vivermos todos os dias da nossa vida na História em coerência com ela. E mais felizes ainda, se todos os dias nos deixarmos impulsionar pelo seu Sopro libertador, misteriosa e gratuitamente, presente no mais íntimo de nós. Como Sopro de Graça e de Verdade que é, liberta-nos dos nossos medos perante a História e perante os outros seres humanos, e faz-nos viver para as grandes e as pe­quenas Causas da Humanidade e do Uni­verso. Cresceremos então em sabe­doria, em graça, em liberdade e, sobretudo, em entrega aos demais e às grandes e às pequenas Causas da Hu­ma­nidade e do Universo, à medida que também crescemos em anos. E quando, finalmente, a Morte nos acontecer, ela será aquela explosão que ainda nos faltava para sermos definitivamente re­duzidos ao Essencial, por isso, vivos no mesmo Deus de Vivos que um dia nos chamou pelo nome para que fôsse­mos suas filhas muito amadas, seus filhos muito amados. Pois bem, que então o nosso viver na História seja sempre um viver bem à altura da Graça que nos está reservada.


DESTAQUE 2

Congresso sobre Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo

Todos os Bispos católicos faltaram à chamada!

Os tempos são de pós-Modernidade, mas as Igrejas continuam pré-modernas

Na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar estive presente, do primeiro ao último dia, no Congresso sobre “Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo”, realizado entre os dias 8 e 11 de Setembro, nas instalações do Seminário Boa Nova em Valadares, VN Gaia, promovido pela Sociedade Missionária Boa Nova. O Congresso foi uma das múltiplas iniciativas, porventura, a mais significativa de todas, já realizadas e a realizar por esta instituição católica, no âmbito das comemorações dos seus 75 anos de existência. Para mim, foi uma excelente oportunidade para rever e ouvir ao vivo amigos e companheiros de longa data nestas martiriais e duélicas lides da criar e difundir a Teologia da libertação em que, também eu, ao meu jeito e capacidade, sempre tenho andado envolvido, desde que me tornei presbítero da Igreja do Porto, e com maior incidência, desde que, em Janeiro de 1975, me tornei também jornalista profissional. Sobretudo, desde que, vai para 19 anos, comecei a dirigir o Jornal Fraternizar.

Foi uma enorme consolação espi­ritual poder abraçar de novo e ouvir com o coração e os ouvidos Andrés Tor­res Queiruga e Enrique Dus­sel, dois dos maiores teólogos da actu­a­lidade, oriundos, respectivamente da Galiza e do México, por sinal, quase nunca reconhecidos, muito menos acarinhados pela generalidade da hierar­quia da Igreja católica, mas a quem a Humanidade, particularmente, a mais oprimida e empobrecida muito deve, pois que ambos têm contribuído decisiva­mente para a sua libertação e para a sua felicidade efectiva, longe da alie­nação em que a religião continua a querer mantê-la subjugada e oprimida.

Mas não só. Também gostei de rever e de ouvir mais uma vez o nosso querido Frei Bento Domingues, do­mi­ni­cano residente em Lisboa, e o meu que­rido amigo Pe. Anselmo Bor­ges, sem dúvida, o cérebro que concebeu todo o Congresso e conse­guiu congre­gar em seu redor um impressionante conjunto de especialistas, os quais, um após outro (neste uni­verso de homens, houve apenas uma mu­lher, a minha ami­ga Teresa Marti­nho Toldy, o que perfaz uma grave lacuna que nem a pro­fundidade e a lu­cidez do seu pen­sar e do seu dizer teológicos feministas conseguiram dis­farçar e que constitui sem dúvida a prin­cipal debilidade des­ta empolgante iniciativa no nosso país) puderam partilhar do seu saber e das suas in­qui­etações com os cerca de 200 par­ticipantes, oriundos, muitos deles, pro­fessores e alunos, de Faculdades de Filosofia do nosso país.

O momento de maior expectativa colectiva no Congresso foi para a pre­sen­ça ao vivo de Johann Baptist Metz, o teólogo alemão que figura hoje como o maior entre os maiores teólo­gos da Europa, e a quem coube proferir a última conferência sobre “O futuro do Cristianismo na Europa do século XXI”. Na sua total incapacidade para se expressar em português, pudemos ouvi-lo, quase todo o tempo, excepção feita ao começo e ao final, através da voz do seu incondicional admirador, Pe Anselmo Borges.

O Congresso foi uma ocasião úni­ca para as Igrejas que estão em Por­tugal poderem confrontar-se com o que de melhor lhes anda a dizer o pensa­mento filosófico e teológico, assim co­mo com o que de melhor lhes anda a dizer a Ciência, nos seus diversos cam­pos específicos, com destaque para o campo de nós próprios, os seres hu­ma­nos, nomeadamente, sobre os nos­sos genes e os nossos cérebros e cujo conhecimento, à medida que progride, deita por terra muitos dos pressupos­tos em que se tem apoiado a acção pas­toral de todas elas. Infelizmente, as Igrejas, pelo menos, ao nível dos seus responsáveis maiores, os bispos, não quiseram saber do Congresso e dei­xaram fugir esta oportunidade úni­ca. Apenas me foi dado ver entre os par­ticipantes o Bispo da Igreja Lusita­na, do ramo anglicano, sedeada em VN de Gaia. Da Igreja católica, nenhum bispo foi capaz de aparecer – padres também muito poucos, podiam contar-se pelos dedos das mãos – nem sequer da Diocese do Porto, em cujo território o Congresso decorreu, quase a dois pas­sos da Casa episcopal onde o Bispo titular e os seus diversos auxiliares re­si­dem. A iniciativa passou-lhes comple­ta­mente ao lado, ocupados que anda­rão com a administração rotineira do Crisma nas paróquias, certamente, na convicção – infantil e ingénua, diga-se – de que sem esse rito sacramental o Espírito de Deus não acontece no viver das pessoas que um dia foram baptiza­das. Não vêem os Bispos, ou não que­rem ver que, perseverar nesse tipo de pastoral é enterrar a cabeça na areia, sem nunca chegarem a perceber os si­nais dos tempos. O Espírito está a gritar em toda a parte, nos acontecimentos de que é feita a nossa actualidade, mas parece que só os Bispos e os párocos residentes não se dão conta de nada. Vai daí, insistem em acções pastorais no estilo de outras épocas, por isso, com­ple­tamente desfasadas do nosso hoje e aqui, em constante mutação. Tornam-se assim, por preguiça teoló­gica e por resistência ao Espírito San­to, guias cegos que conduzem as res­pectivas Igrejas locais para o barranco – a expressão é violenta, mas remonta a Jesus no Evangelho – sem coragem e lucidez bastantes para pararem a perguntar-se: isto que fazemos é o que o Espírito de Deus Vivo quer que faça­mos? Que resulta de mais humano entre as populações daquilo que faze­mos? As populações das paróquias fi­cam mais em missão libertadora, depois que as crismámos? Tornam-se mais Igre­ja viva para o mundo, ou apenas mais beatas e eclesiásticas? A nossa generosidade episcopal andará cen­tra­da no essencial, ou no acessório, no que se pode chamar folclore cató­lico? Que frutos de libertação e de hu­ma­nidade resultam das visitas pasto­rais que fazemos às paróquias? Os padres/presbíteros que ordenamos e as cristãs, os cristãos que crismamos, em que causas concretas da Humani­dade se envolvem depois? Podemos dizer que foram crismados e ordenados no Espírito Santo, se depois se limitam a ser funcionários do religioso e do ecle­siástico, sem audácia para dialo­garem os sinais dos tempos e para dis­cernirem os novos caminhos por onde há-de avançar a Igreja, se ela quiser ser o fermento na massa, o sal da terra, a luz do mundo e a sentinela na cidade?

O Congresso teve momentos de den­sidade/profundidade teológica que dificilmente serão esquecidos por quem nele participou. As palavras teológicas, cheias de profecia, do meu amigo Torres Queiruga mais pareceram um terre­moto ou tsunami na consciência de alguns participantes, nomeadamente, dos que estão aí a presidir às Comuni­dades e às celebrações eucarísticas dominicais. O mesmo, ainda que noutra dimensão, sucedeu com as palavras teológicas do meu amigo E. Dussel, a quem eu já não via há vários anos, mas cujas sucessivas obras tenho tido a felicidade de poder acompanhar de perto, sempre com muito proveito espi­ritual.

Com estes dois teólogos e suas intervenções no Congresso, até eu me senti muito mais confirmado na Teolo­gia que vivo, desenvolvo e difundo no Jornal Fraternizar, nos meus livros, nos debates televisivos em que tenho sido convidado a participar e na minha pági­na na Internet. Os meus opositores, para não dizer os meus inimigos, have­riam de os ouvir com humildade. Não poderiam deixar de concluir que ainda vivem na pré-Modernidade, quando as nossas sociedades, pelo menos, em redor dos principais centros de decisão do mundo, já estão na pós-Modernida­de. É, pois, a ignorância teológica que os leva a insurgir-se contra mim, contra os meus livros e contra o meu modo de viver e de anunciar a Fé cristã jesu­â­nica.

Ficou claro, com as intervenções destes dois teólogos – foi pena E. Dus­sel não ter podido dispor de mais tempo no Congresso; aliás, houve quem dissesse que se a sua conferência ti­vesse durado seis horas, nem assim arre­daria pé do auditório – que não bas­ta falarmos de Deus, é preciso saber de que Deus é que falamos; não basta falarmos de Cristianismo, é preciso fa­lar concretamente do Cristianismo de Jesus de Nazaré. Neste particular, foi fácil perceber que nem todos os inter­ve­nientes no Congresso, assim como nem todos os que nele se inscreveram e participaram, se movimentam já nesta mesma profundidade teológica. Deu para perceber que a esmagadora mai­o­ria dos nossos católicos, mulheres e ho­mens, mesmo de ambientes universi­tários e com elevada formação acadé­mica, compreendem e vivem um Cristia­nismo sem Jesus de Nazaré, portanto, um Cristianismo assumidamente religi­o­so, não o Cristianismo jesuânico, que é assumidamente político. E de Deus, têm quase sempre uma concepção puramente deísta, por isso, em última análise, idolátrica, a mesma que, por exemplo, o presidente Bush, assassino e explorador do mundo, ostensiva­men­te tem, na condução do Império norte-americano. Na verdade, só um Cristia­nis­mo assim, sem Jesus de Nazaré, sem vítimas históricas e sem verdugos ou carrascos históricos, é que pode ser invocado por ele para justificar o injus­ti­ficável que são os seus horrendos crimes de lesa-Humanidade e, assim, tentar sossegar a sua consciência.

Até um cego vê que um Cristianis­mo sem Jesus não é mais do que a actu­a­li­zação do Cristianismo do impera­dor Constantino, no século IV, e que casa às mil maravilhas com todos os di­ta­dores cristãos e católicos, como, por exemplo, Salazar e Franco, Hitler e Pi­no­chet. Mas não é, nunca foi, nunca será este o Cristianismo de Jesus.

Também o meu amigo Pe. Anselmo Borges foi duma lucidez teológica a toda a prova, logo na abertura do Con­gresso. Disse as palavras teológicas e éticas certas para o nosso aqui e agora. Fê-lo ao modo de enunciado, como quem abriu portas e janelas para os seus convidados franquearem depois, nas suas intervenções. Felizmente, as suas palavras, como todas as outras, sob a forma de conferência, que nos foram dadas ouvir neste Congresso, se­rão publicadas na íntegra, nas chama­das Actas do Congresso. Será uma boa oportunidade para quem não foi capaz de participar, correr a adquiri-las (devem ser publicadas em volume ainda antes do Natal de calendário que já se aproxima) e a estudá-las, porven­tura, até a organizar com amigas, com amigos uma espécie de mini-Congres­so, para as lerem e escutarem em gru­po e as debaterem com profundidade.

Entretanto, não posso deixar de dizer, a este propósito, que o zelo que o meu amigo Pe. Anselmo Borges co­locou na apropriação em exclusivo dos textos das conferências, em ordem à sua publicação em volume como Actas do Congresso, levou-o a não dispo­nibilizar nenhuma cópia de nenhuma delas aos jornalistas presentes, nem sequer a mim, director de um pequeno jornal trimestral, assumidamente teoló­gico na sua linha editorial. Terá sido, quanto a mim, um zelo excessivo que tornou ainda mais difícil a missão de informar com objectividade dos poucos jornalistas presentes. No meu caso, impede-me por completo de divulgar si­gnificativos extractos das reflexões teológicas libertadoras produzidas no decorrer do Congresso e que ajuda­riam a manter viva e actuante, no mun­do-cão da globalização em que pre­sen­te­mente vivemos, a Fé das discí­pulas, dos discípulos de Jesus. A única Fé que, à medida que é vivida por elas, por eles na História contemporânea, do mesmo jeito que Jesus a viveu no seu tempo e país, liberta e salva, levanta e humaniza o nosso mundo.

Do meu ponto de vista de profis­sional da comunicação social, este terá sido, porventura, o aspecto mais criti­cá­vel do Congresso. E tanto mais difícil de compreender, quando se pensa que o Congresso aconteceu no âmbito das comemorações dos 75 anos da Socie­dade Missionária Boa Nova, a que per­ten­ce o próprio meu amigo Pe. Ansel­mo Borges. A Missão, na peugada de Jesus de Nazaré, exige que tudo se dis­ponibilize, que sejamos mãos aber­tas, que partilhemos tudo o que somos e temos, para edificação da sociedade e do ser humano novos, segundo o mes­mo Espírito que o animou e condu­ziu a ele. De resto, a divulgação de ex­tra­ctos das conferências, para lá de dar a conhecer a sã Teologia cristã jesuânica que pode ajudar a salvar o mundo, revelar-se-ia como um estímulo mais, junto das pessoas, para que elas corressem pelas Actas do Congresso, quando tivessem a notícia da sua publi­cação em volume. Pelo menos, é assim que vejo as coisas.

Fica, pois, aqui esta fraterna e ami­ga advertência para futuras iniciati­vas como a deste Congresso. A Verda­de que liberta é para ser apregoada, oportuna e inoportunamente, sobre os telhados, inclusive, os da rede na net, e não para ficar escondida sob um qual­quer alqueire, ou em prateleiras de pe­sa­das e cada vez menos frequentadas bibliotecas.

P. S. Por mim, teria também gos­tado de ver todos os interve­nientes, os meus amigos teólogos incluídos, com mais cuidado na linguagem teológica com que habitualmente se exprimem. É que a Religião não é a via do Cris­tianismo de Jesus de Nazaré, só do Cristianismo sem Jesus. Se a Religião fosse a via do Cris­tianismo de Jesus de Nazaré, nunca os líderes religiosos o te­ri­am odiado e, finalmente, as­sas­sinado. A via de Jesus de Nazaré é a da Fé que ele faz des­pertar maieuticamente nas pes­soas, para que elas se tornem conscientes, lúcidas, insurrectas, revolucionárias, numa palavra, humanas e com entranhas de hu­manidade. A Religião acomoda as pessoas e as populações. Leva ao adormecimento e à resigna­ção. A Religião constitui o esfor­ço dos seres humanos para alcan­çarem Deus e, desse modo, O ma­ni­pularem segundo os seus in­teresses, quase sempre egoís­tas e dominadores. Porém, o Deus que a Religião tem como re­ferência última não passa de um ídolo que nos oprime e coi­sifica. Nunca liberta. A via de Je­sus - a comunhão na sua Fé libertadora que se vive histori­ca­mente em forma de serviço martirial e duélico - ao contrário da Religião faz dos seres huma­nos protagonistas e sujeitos, in­submissos perante a Ordem Eco­nómica mundial estabelecida, que retém a Verdade cativa na injustiça. As discípulas, os discí­pulos de Jesus vão sempre por ca­minhos que a Religião desco­nhe­ce e desaconselha e até tem como subversivos. São os cami­nhos sócio-políticos, longe dos tem­plos e dos altares, que levam ao Pobre e ao Oprimido e, tam­bém, ao Verdugo ou Carrasco e aos seus Sistemas de morte. Para sermos, por um lado, unha e carne com o Pobre e o Oprimido. E, por outro lado, como Espada de dois gumes frente aos Siste­mas, Religião incluída, que idolatram os Verdugos ou Car­ras­cos. Não para os matar, evi­dentemente, mas para os derru­bar dos seus tronos, os libertar de raiz e fazer com que se tornem simplesmente humanos e irmãos dos demais seres humanos. Te­nho de reconhecer que, mesmo neste Congresso, esta distinção não foi feita, muito menos subli­nha­da e que inclusive os meus ami­gos teólogos de renome mun­dial continuam a navegar na am­bi­guidade destas águas. O que não fez Jesus de Nazaré, no decorrer da sua missão pública. Nem fez o Cristianismo das Co­mu­nidades primitivas de Jerusa­lém lideradas por Estêvão, proto-mártir da Igreja, de quem até os Actos dos Apóstolos dão pertur­bador testemunho. Tão perturba­dor, que ainda hoje continua praticamente sem seguidoras, sem seguidores na Igreja oficial, aliás, como o testemunho do pró­prio Jesus de Nazaré, cuja me­mória é sempre subversiva e perigosa, quando a fazemos fora e longe de contextos religiosos. Por isso, é uma via com muito pou­cas seguidoras, muito pou­cos seguidores. Decididamente, o Cristianismo sem Jesus de Na­za­ré, próprio de Bush e do Esta­do do Vaticano, é o que continua aí a dar cartas e a render fortunas aos respectivos pastores e cléri­gos. Até serve para abençoar as multinacionais da nossa desgraça. E é também graças a ele que os Impérios de turno conseguem afirmar-se e perpetuar-se por su­cessivas gerações. Não é por ele que vou. Só pelo de Jesus de Nazaré. Venham daí também!

O sofrimento das pessoas e dos povos,

ainda antes dos seus pecados

Antes de ver o pecado das pessoas e das populações, Jesus vê o sofrimento que as aflige e oprime. É com o sofrimento delas que ele se escandaliza e indigna. E logo se levanta como um furacão contra ele. O exemplo mais eloquente desta postura de Jesus vem no relato teológico do Evangelho de João (capítulo 9) sobre um homem – representa a Humanidade, todos os seres humanos, mulheres e homens – que havia nascido cego. Ao vê-lo, os discípulos de Jesus, ainda marcados pela teologia dos fariseus, indagam sobre quem pecou, ele ou os seus pais, para que nascesse cego. Não se preocupam nada com a situação do homem que sofre. Jesus, pelo contrário, não quer saber dessa questão para nada. Toda a sua atenção concentra-se em ver como há-de libertá-lo da sua cegueira, para que ele seja um homem em plenitude de funções, constituído na dignidade.

O teólogo alemão Johann Bap­tist Metz não contou este episódio, mas poderia ter contado, para ilustrar a boa notícia que trouxe ao Congresso sobre Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo, e que é esta: As segui­doras, os seguidores do Cristia­nis­mo de Jesus não saem por aí à caça dos pe­cados das pessoas e das popula­ções, ao jeito do que já faziam os fari­seus do seu tempo e país. Com o que as seguidoras, os seguidores do Cristi­anismo de Jesus se têm que preocupar é com o sofrimento das pessoas e das populações, para o erradicarem quanto antes sem contemplações, nem que, por causa disso, deixem furiosos os respon­sáveis pelos sistemas e pelas institui­ções que o provocam e se aproveitam dele. Do que se trata, para Jesus e su­as discípulas, seus discípulos, em todos os tempos e lugares, é de erradicar o so­frimento que afecta e humilha a Hu­ma­nidade. Por isso, uma Igreja que hoje ande mais preocupada com o pecado das pessoas e das populações, do que com combater o sofrimento que as afli­ge, é uma Igreja ao jeito dos fariseus, não ao jeito de Jesus.

Quando terminou a sua douta con­fe­rência, o eminente teólogo latino-ame­ricano E. Dussel que também esta­va na sala a escutá-la com manifesta atenção crítica, aproveitou o curto es­paço de tempo concedido para formular possíveis perguntas/dar achegas sobre o acabado de escutar e ousou avançar com uma outra boa notícia complemen­tar à que havíamos acabado de escutar, e que terá escapado ao eminente teó­lo­go europeu. Disse: Não basta uma Teo­logia da Compaixão, como a que acaba de ser defendida por Metz; temos que cultivar também, em com­plementaridade com ela, uma Teologia da Responsabilidade/Corresponsabili­da­de do Outro, hoje, milhões e milhões de vítimas humanas e não só. E expli­cou: as vítimas não aparecem por gera­ção espontânea. Há verdugos – pesso­as, sistemas e instituições – que as pro­duzem, tal como produzem sofrimento em massa. Ora, sem uma Teologia da Responsabilidade/Corresponsabilida­de, que leve as vítimas e nós com elas, a combater/erradicar o sofrimento e a denunciar/enfrentar os Verdugos que as fabricam, não há Cristianismo de Je­sus.

Nos seus 76 anos de idade, o teó­logo Metz, apesar de não ter conse­guido esconder alguma surpresa e per­plexidade, quando o informaram, na hora, de quem era a voz que se havia disponibilizado para dar aquela impor­tante achega teológica à sua conferên­cia) concordou de imediato com o seu ami­go Dussel. Deste modo, os congres­sistas puderam partir do Congresso ainda mais enriquecidos. Também mui­to mais responsabilizados. A partir de então, não podem dizer que nunca haviam pensado nestas coisas.

Ficou também claro para todas, todos que não basta falar de Cristianis­mo. Temos que falar sempre de Cristia­nismo de Jesus, o único que, se for vivi­do, contribuirá decisivamente para le­var por diante e ao seu termo a Criação dos seres humanos, ainda em curso na História. E, se o Cristianismo do século XXI quiser ter futuro, terá mesmo que ser o Cristianismo de Jesus. Por isso, um Cristianismo de olhos postos nas ví­timas, solidário e companheiro das vítimas, contra os verdugos, não para os matar, evidentemente, mas para lhes resistir e ajudar a libertar.

No que respeita à sua visão da Eu­ropa, Metz contou com a concordância de E. Dussel, quando defendeu “a exis­tência duma Europa pluralista contra uma Europa laicista”. E reconheceu que o Cristianismo, se quiser afirmar-se nu­ma Europa assim e contribuir para o de­senvolvimento duma cultura de paz, só tem um caminho a seguir: manter vi­va a memoria passionis, ser uma es­pécie de sentinela na cidade, que es­cuta, sem desfalecimento, os sofrimen­tos das pessoas e dos povos, e “empur­ra” as sociedades e seus governos para políticas económicas e sociais concre­tas e eficazes que visem a integração de todos na mesa comum.

Manifesta­mente, não é com Igrejas como as que presentemente estão no terreno, ocupadas com cultos religiosos em série, que o Cristianismo terá futuro. Por isso, é urgente a conversão das Igrejas ao Evangelho de Jesus e ao próprio Jesus.

Também o teólogo Andrés Torres Queiruga foi chamado a responder a uma questão muito concreta, quando o Congresso avançava já para o fim. O eminente teólogo residente na Galiza já havia proferido duas conferências, mas fez questão de acompanhar o de­senrolar dos trabalhos do princípio ao fim, como um participante mais, coisa rara, diga-se, entre teólogos profissio­nais. Deste modo, os congressistas puderam privar de perto com ele, no de­correr do Congresso e ele teve oportu­nidade de esclarecer muitas das dú­vidas e inquietações que as suas pala­vras, de tão novas, inevitavelmente de­sencadearam.

A pergunta foi-lhe directamente formulada pelo Pe. Anselmo Borges, mas no jeito de quem se faz porta-voz de muitos dos participantes. Assim: O dualismo antropológico (entenda-se: um ser humano concebido como um composto de alma imortal e de corpo mortal) é impensável hoje. O que suge­re então o teólogo sobre a identidade da pessoa humana? Permanece, mes­mo depois da morte do indivíduo?

Foi impressionante a humildade do teólogo, mai-la sua resposta. Começou por responder com novas perguntas: É possível manter a identidade noutro tipo de vida? Será que a identidade da pessoa humana pode acabar de re­pente num estúpido acidente de carro na estrada, ou no rebentamento duma bomba, no contexto duma acção política violenta? Leva tanto tempo e tanta dedicação a criar uma vida humana com identidade, e acaba assim tudo num ins­tante? Citou depois a Poesia em abono do seu testemunho de teólogo que tenta viver/dizer a Fé em contexto de pós-Modernidade, como é hoje o nosso: “Amar alguém é dizer-lhe: Tu não podes morrer!”. Ora – acrescentou – se somos o resultado do amor criador de Deus Vivo, temos que reconhecer que este amor que nos criou também nos ressuscitará. Sobre o modo não me perguntem, que eu não sei, nem nin­guém sabe! E sublinhou, de maneira ainda mais humilde: A mim, pessoal­men­te, custa-me mais crer na ressur­reição (dos mortos) do que crer em Deus! Mas creio na ressurreição, exa­ctamente, porque creio em Deus que me/nos ama infinitamente e, por isso, nos ressuscitará como só Ele sabe fazer.

A teóloga feminista Teresa Marti­nho Toldy partilhou connosco uma con­ferência sobre “A democracia e o fe­minino na Igreja”. Analisou a Carta Apostólica de João Paulo II, sobre a di­gni­dade da mulher (Mulieris Dignita­tem) e não deixou dela pedra sobre pedra, entenda-se, letra sobre letra. Para a teóloga portuguesa, as palavras do Papa nasceram no contexto dos pre­conceitos patriarcais por que as so­cie­dades se têm regido nas suas diver­sas vertentes. Por isso, não contêm E­vangelho de Jesus, ou Boa Notícia de Deus. São mais do mesmo. E ofendem as mulheres de carne e osso. Ofendem igualmente os homens que as aceitem como palavras definitivas, ou de Deus.

Hoje – advertiu a teóloga feminista – as mulheres já não abandonam a Igre­ja com estrondo, como fizeram, há anos, várias teólogas católicas feminis­tas. No final duma missa de domingo, di­rigiram-se ao microfone da assem­bleia e anunciaram: Aqui não há lugar para nós, mulheres. Por isso, a partir de hoje, deixamos de fazer parte da Igreja. O gesto quis ser profético e po­de tê-lo sido. Inaugurou o que essas mesmas teólogas chamam de era pós-cristã. A instituição católica fez, mais uma vez, orelhas moucas, mas, nessa medida, está condenada a desapare­cer progressivamente de cena. Uma Igre­ja que não ouve os gritos das suas pró­prias vítimas, dos seus próprios mar­ginalizados, não tem em si o Sopro ou Espírito de Jesus. É autista. Autoritá­ria. Patriarcalista. Cruel. Ou se converte radicalmente a Jesus e ao seu Evange­lho, ou desaparecerá. E quanto mais depressa desaparecer melhor, para não continuar aí a fazer das suas, estragos sobre estragos, e a causar sofrimento sobre sofrimento.

Teresa chegou a dizer que se Deus é Pai, ontologicamente, então não há lugar para as mulheres no Cristianismo. Mas também não haverá, se Deus é Pai, apenas simbolicamente. Porque é com símbolos que nos entendemos ou de­sentendemos, que comunicamos ou incomunicamos. Nem simbolicamente Deus pode ser apresentado como Pai. Ou é Mãe/Pai, simbolicamente, ou as mulheres ficam sempre de fora.

Mas a verdade é radicalmente ou­tra: Uma Teologia, como a do Vaticano, que fundamenta a exclusão das mulhe­res dos ministérios ordenados na Igreja é que se pensa e vive fora de Deus. É uma teologia demoníaca, feita de men­tira. Mas é essa teologia que subjaz à Carta Apostólica, de João Paulo II. Uma Carta que há-de ser deitada fora como o sal que perdeu a força de salgar. Contém palavras que brotam, não da fonte de Vida que é o Espírito ou Sopro de Deus vivo, mas dos preconceitos pa­triarcais que continuam a manter a verdade cativa na injustiça.

Somos, por isso, uma Igreja cató­lica em estado de pecado mortal. Pior, uma Igreja homicida. Uma Igreja que mata as pessoas que a integram. É uma Igreja que deixa morrer os seus mem­bros por falta do Pão e do Vinho Euca­rís­ticos, só porque teima em excluir as mulheres dos ministérios ordenados e em continuar a impor aos homens, a ser or­de­nados de presbítero, a inumana lei do celibato obrigatório. Uma Igreja assim é uma Igreja assassina. É uma Igreja que recusa converter-se ao Evan­gelho de Jesus. Em vez disso, prefere seguir um Cristianismo sem Jesus de Nazaré, herdado do Império romano e de César de Roma, dos quais é a su­ces­sora e a continuadora.

“É preciso ler Marx, para enten­dermos Deus. E a Economia. E a Eu­caristia”. Só o eminente teólogo da li­bertação que é E. Dussel pode sub­s­crever esta afirmação. Porque é um teólogo de olhos abertos. Porque alia Teologia e Profecia. Porque cultiva uma Teologia libertadora que tem como im­pe­rativo ético: Liberta o Oprimido e o Pobre, para que se assumam com su­jeitos na História.

Na sua Teologia, aparece uma e outra vez a referência ao exemplo do dominicano Frei Bartolomeu de Las Ca­sas, quando, no tempo das “descober­tas e conquistas”, recusou celebrar a Eucaristia na presença dos conquista­do­res que eram simultaneamente, ex­ploradores e assassinos dos índios.

A decisão ainda hoje tem força de profecia. E carece de Igrejas cristãs jesuânicas que lhe dêem corpo no cor­po dos seus membros. Como podem as Igrejas continuar a Partir o Pão e a be­ber o Cálice do Senhor Jesus que foi crucificado, se, fora da celebração, o Pão não chega às pessoas e aos povos segundo as suas necessidades, enquanto elas não querem saber desse sofrimento e dessa injustiça para nada? Continuar impávido e sereno a proce­der assim, não é expor as pessoas que comungam a comer e a beber a sua própria condenação?

Um Deus que se agrada de Euca­ristias, como as que as Igrejas realizam todos os dias da semana, com destaque para os domingos, só pode ser um ído­lo. Primeiro, entrega o próprio Filho aos Verdugos, para que o matem e, desse modo cruel e sádico, fique saldada a dívida que a Humanidade pecadora contraiu para com Ele, quando, no iní­cio comeu uma simples maçã contra a  vontade dele. É, por isso um Deus filicida. Um monstro! Depois, não sa­tis­feito, ainda se agrada de liturgias múl­tiplas, nas quais lhe oferecem Pão e Vinho, frutos da terra e do trabalho dos seres humanos, sem se importar para nada dos milhões e milhões de seres humanos que continuam, estrutural e violentamente, impedidos de ter acesso ao estritamente indispensável para poderem desenvolver com digni­dade e em plenitude todas as suas ca­pa­cidades humanas.

À imagem e seme­lhança deste Deus cruel são também as Igrejas que organizam tais liturgias, sem jamais me­xe­rem uma palha em ordem a der­rubar os Sistemas económicos que fa­zem com que as coisas tenham que ser assim cruéis e inumanas e não de outro jeito, bem mais humano e sororal/fra­ter­no, solidário e comunitário.

Entretanto, a este coro de denún­cias de E. Dussel, havemos de acres­centar as do teólogo Torres Queiruga nas suas conferências. As liturgias que fazemos – diz Queiruga – continuam a recorrer a esquemas e a conceitos pré-modernos e nessa medida são causa de ateísmo em massa. Porque um Deus, como aquele a quem as orações das Missas de domingo se dirigem, só pode ser um monstro. Dirigimo-nos a ele, na convicção de que ele pode aca­bar com a fome e com o sofrimento no mundo, mas a verdade é que ele não o faz, nem mesmo quando as pessoas e os povos lhe pedem dia a noite. Deci­didamente, é um Deus que não escuta nenhuma dessas inúmeras orações de petição e tão pouco tem piedade de nós! Ora, se Deus é assim como as ora­ções de petição das Igrejas dizem que é, então consegue ser ainda pior do que as suas criaturas! Daí o ateísmo em massa, como expressão pública de sanidade mental e como manifestação de dignidade humana.

Porém, o que deveria suceder, não é o ateísmo em massa, mas o abando­no em massa das Igrejas que assim se comportam, assim celebram, assim se exprimem teologicamente. Porque são Igrejas caídas na idolatria, nas quais já não há lugar para a Fé, nem para a Es­pe­rança, muito menos para o Amor-Agapê, como é o amor de Jesus de Na­zaré, que trabalha continuamente para levar ao seu termo a Criação ainda em curso. Em tais Igrejas, já só há lugar para o Terror. Para a Opressão. Para a Alienação.

Infelizes, pois, dos povos, entre os quais um dia vierem a desembarcar, como aconteceu no passado, missio­nár­ios oriundos de Igrejas assim. Ou esses povos resistem activamente a tais enviados, ou, passados alguns anos, o estado deles é muito pior do que an­tes. Aos medos ancestrais em que já vi­viam, acabarão por ter de juntar ou­tros ainda piores, à mistura com mora­lismos rançosos, leis canónicas roma­nas imorais e uma teologia deista feita de mentira que os remete para um Deus sem Reino e sem História, amigo de Verdugos e tiranos, de ditadores e de privilegiados, de sacerdotes e de mis­sas sem um pingo de profecia, mas com muita solenidade litúrgica.

A presença e a expressão bem-humorada no Congresso do nosso que­rido Frei Bento Domingues, ainda mais do que as suas sábias palavras, disse às Igrejas todas e não apenas aos con­gres­sistas, que contra um tipo de mis­são assim, faz falta, como de pão para a boca, uma moratória, por tempo in­de­ter­minado. Cá por mim, na qualida­de de director do Jornal Fraternizar, direi ainda mais: um tipo de missão as­sim é um grave caso de polícia interna­cional. A ser levado ao Tribunal Mun­dial dos Povos. Assim haja coragem.

O tempo é de acção. Mas, para já, que avancem os grandes media. Em lugar de intoxicarem as populações, des­pertem-nas para as grandes Causas da Humanidade constituída na dignida­de e mobilizem-nas. Será a salutar re­vo­lução que se deseja, depois de termos escutado, neste Congresso, as sá­bias palavras do companheiro e ami­go Manuel Pinto, da Universidade do Minho. É hora!


EDITORIAL

Pela Política, contra o Poder

Se quisermos salvar o nosso país e o mundo em geral, precisamos de re­­gressar urgentemente à Política. Mas à política, enquanto coisa de mulheres, mais do que coisa de homens.

É manifesto que a Política, há mui­to, saiu de cena no nosso país e no mun­­do em geral. Em seu lugar ficou o poder que é a negação da Política. E ficou nas suas múltiplas variedades.

Com o desaparecimento da polí­ti­ca, também desapareceram as mulhe­res da vida pública. Em seu lugar fica­ram os homens. E nem estaria muito mal que eles ti­ves­sem ficado na vida pú­bli­ca, se per­manecessem humanos, seres dotados de entranhas de huma­nidade e de mi­se­ricórdia, se­res cultos, ternos, e com capacidade para sentir dores de parto pelos de­mais e para cui­dar da vida. Nu­ma pala­vra, seres onde o feminino continuasse como o grande princípio activo. Infeliz­mente, tal quase nunca aconteceu no passado, nem acontece quase nunca no hoje do nosso país e do mundo em geral.

To­dos os gran­des centros de deci­são do nosso país e do mundo em ge­ral estão nas mãos dos homens, não das mulhe­res. O que é um desastre em ter­mos de humanidade. É o triunfo da selva so­bre o ser humano, concreta­men­te, o triunfo da violência, da guerra, do im­pe­rialismo, do neo-liberalismo, da ex­plo­ra­ção desenfreada, da ideologia ma­chista sem coração, do moralismo sem misericórdia.

Política é coisa de mulheres. Sem­pre foi. Até o termo “política” é feminino. Também é coisa de homens, mas de ho­­mens que permaneçam fiéis ao prin­cípio feminino, entenda-se, ao princípio da Ternura e da Compaixão, que é o que caracteriza os seres humanos en­quanto tais. O Poder, ao contrário da Po­lítica, é a perversão dos huma­nos. O próprio termo “poder” é mascu­lino.

Os homens, muito mais do que a ge­neralidade das mulheres, sentem-se atraídos pelo poder e são raros os que não acabam seduzidos e "apanhados" por ele. Quando se entregam ao poder, logo se pervertem. Mesmo que come­cem com a melhor das intenções, se se man­tiverem no poder, pervertem-se todos. O poder perverte. O poder é o gran­de pecado do mundo. É o Pecado! O anti-Deus Vivo. O ídolo por antono­másia.

Só a Política praticada humani­za. O poder praticado desumaniza. Trans­forma os homens em caciques, corru­ptos, opressores, imperialistas. E em agentes de corrupção.

Do poder nunca se pode esperar coisa boa. Só da Política. Mas poder e não política, é o que hoje existe nas socie­da­des. Do nosso país e do mundo em ge­ral. A política acabou por ser es­cor­ra­çada e expulsa. Em seu lugar, fi­cou o poder como senhor. Cada vez mais absoluto. Cada vez mais concen­trado. Cada vez mais coisa de homens! Corruptos. Ou em vias de o serem.

O resultado, objectivamente de­sastroso, está bem à vista de toda a gente. E não há nada a fazer, enquan­to permanecermos neste modelo de sociedade estruturada segundo os interesses do poder. Se calhar, só acor­daremos e pararemos para pensar, quando ba­termos no fundo.

É por isso que pre­cisamos urgen­te­mente de mu­dar de rumo e de re­gres­sar urgente­men­te à política. E quem diz regressar à Política, diz re­gressar às mulheres. Precisamos ur­gen­temente de regressar às mulheres. Este início de milénio é uma boa oca­sião para isso. É uma boa ocasião para abandonarmos a presente ordem mun­dial inde­cen­te e perversa em que nas­ce­mos e vivemos. E batermo-nos por uma outra, decente e justa, toda ela concebida como um útero onde a vida tenha todas as possibilidades de vin­gar e de se de­senvolver até à plenitude em todos os seus membros.

Temos, então, que regressar à Po­lí­tica. E às mulheres. Porque a política é coisa de mulheres. Política tem tudo a ver com a arte de cuidar. Cuidar da vida, em todas as suas manifestações, tanto a vida humana, como a vida ani­mal, como a vida vegetal e o próprio uni­ver­so onde gira o nosso planeta.

Ora, cuidar, e cuidar da vida é o que as mulheres mais sabem fazer. As mulheres são peritas em cuidar da vida. O princípio feminino sempre foi o prin­cí­pio a favor da vida. E é este princípio que está presente em força na genera­lidade das mulhe­res. Com as mulheres nos principais centros de decisão do mundo, a vida, e vida de qualidade, estará sempre primeiro. Em todos os povos. A partir, precisamente, dos mais carenciados e dos mais fragilizados.

Entrem as mulheres na Política, dêem as mulheres corpo à Política, e o poder que oprime, infantiliza, cor­rom­pe, mente e assassina, logo recua­rá. Ao poder, as mulheres não lhe dão guarida. Nas mulheres, a vida fala sem­pre mais alto. As mulheres são incapa­zes de confundir fecundidade com efi­cácia, Política com poder, graça e ver­dade com dominação e subalterni­za­ção das pessoas. Com as mulheres nos principais centros de decisão, a vida, a fecundidade, a graça e a verda­de, numa palavra, a Política, terão todas as oportunidades. Agora e no futuro.

Não assim com os homens, com a generalidade dos homens. Na sua vai­dade de pavão e de macho, e na sua obsessão pela eficácia a qualquer pre­ço, vendem-se ao poder, nem que seja por um almoço ou uma caneca de cer­ve­ja. Contanto que ele lhes acene com a possibilidade duma carreira de su­ces­so, logo eles deixam tudo e vão. “Tudo te da­rei, se prostrado me adora­res”. A esta voz do Tentador, os ho­mens quase nunca resistem. A começar pelos homens das religiões e das Igre­jas. Ajoelham-se e, num ápice, trocam tudo, até a própria família e a própria identi­dade, pelo poder. Com isso, per­dem-se e contri­buem decisivamente para a perdição do mundo.

A entrega ao poder, por parte dos homens, geralmente, é sem regresso: De corrupção em corrupção, acabam pro­­fissionais em corrupção. Especialis­tas em corrupção. Doutorados em cor­rupção. Tornam ao mesmo tempo cor­ru­ptos e agentes de corrupção. Peças fundamentais do actual sistema de do­mi­na­ção. Elogiados e aplaudidos por quantos tirarem algum proveito dessa sua trai­ção.

O terceiro milénio que está no seu começo, tem que ser o milénio das mu­lheres. E da Política, realizada e con­du­zida pelas mulheres. Basta de poder. E de homens de cócoras a adorá-lo e a servi-lo com mais ou menos cruelda­de. Basta desta Ordem mun­dial do Po­der em que todas, todos nós nascemos, e na qual quase só os ho­mens têm a palavra e a vez.

Esta tem que ser a hora das mulhe­res. Tal como há muitos milhares de anos atrás, no princípio da Huma­ni­dade, quando as mulheres estiveram na condução dos destinos colectivos.

E quem vai convencer as mulheres a sair da esfera do privado e da sombra dos maridos, para fazerem da Política o seu corpo? (chega a dar sufoco ver as chamadas esposas dos chefes de estado e de governo a acompanhá-los para todo o lado, sem outro papel que não seja o de dama de companhia e de “consolo” dos respectivos maridos, no meio de todo o desconforto que o po­der inevitavelmente acarreta a quem o serve). Quem vai despertar as mulhe­res para a Política? Quem vai convencer as mulheres que a Política é coisa de­las, e o que não é nada delas é o Po­der? Quem vai estimular as mu­lhe­res a dar o salto para a Política, para, desse modo, servirem maieutica­mente o nosso país e o mundo em ge­ral?

Por mim, não vejo outra maneira  que não seja esta: Convidar as mulhe­res a con­templarem o estado em que se encontra hoje o nosso país e o mun­do em ge­ral, até que toda a realidade do sofri­mento hu­ma­no e toda a degra­da­­ção em que um e outro se encontram, as atinja em cheio nas próprias entra­nhas. Qu­an­­do este choque se der, as mu­lheres con­cluirão, finalmente, que o nosso país e o mundo em geral estão como estão, por­que os homens, arrasta­dos pela sua vaidade e pela sua incon­trolável sede de poder, assim o fizeram. À revelia e em guerra aberta contra o projecto de Deus vivo que criou o Uni­verso pela via da evolução.

Nesse momento, o apelo a que as mulheres se ergam e se metam directa­mente na Política não deixará de se fa­zer sentir e ouvir por elas. As mulhe­res pas­sarão então para a primeira li­nha do com­bate político contra o poder e pelos povos todos sem excepção, um combate que elas assumirão como dué­lico e martirial, ao mesmo tempo, e que sa­berão conduzir com o vigor e a fecun­di­­dade da Ternura e do Afecto. Numa rede sororal, à escala mundial, entre to­das, e que incluirá também todos os homens com entranhas de humani­dade.

Mulheres, minhas irmãs: Até agora, têm sido os estéreis espinheiros do apó­logo bí­blico (Juízes 9, 7-15) que têm man­ti­do o nosso país e o mundo em ge­­ral sob a tirania do poder, feito de violência e de crueldade. É hora de dar­des o vosso corpo à Política, para que a vida, e vida de qualidade, tenha futuro. Como Maria de Nazaré, dizei: Eis-me/nos aqui!

Vosso companheiro e irmão,

Mário, presbítero da Igreja do Porto.


ESPAÇO ABERTO

Leonardo Boff (Teólogo brasileiro)

Ética e Espiritualidade

Face a situações-limite de vida e de morte

Estamos em tempos de transversa­li­dade dos discursos, buscando conver­gên­cias nas diversidades, em benefício da qualidade humana, espiritual e cívi­ca dos seres humanos.

Hoje temos consciência clara sobre o limite e o alcance da medicina e da lei com referência ao complexo proble­ma dos doentes terminais e da morte. Pessoalmente estimo que essa questão comporta, logicamente, dimensões ci­en­tí­ficas, técnicas e jurídicas, mas tam­bém nos remete a questões de nature­za cultural e filosófica: qual a imagem que temos do ser humano? Que visão projectamos da vida cuja compreensão mais profunda vem sendo elaborada no interior das ciências biológicas, da mo­derna cosmologia e de uma compre­en­são ampliada do processo da evolu­ção ascendente? Uma nova óptica pro­voca uma nova ética.

1. O cuidado: essência concreta do ser humano

Sobre isso gostaria de reflectir no sentido de levar avante a discussão com a eventual contribuição da filo­so­fia, nomeadamente da ética. Gostaria de articular a reflexão ao redor do te­ma do cuidado, tão essencial à vida, especialmente à vida humana em seu limite extremo de doença e de morte.

A ética do cuidado é conatural aos médicos e enfermeiros e também aos pro­motores do direito e da justiça na sociedade. No meu livro, Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Ter­ra, tentei vertebrar um pensamento que aco­lhesse essas questões e as apro­fun­­dasse no arco de uma visão mais arqui­tectónica, própria da filosofia e da ética. Parti de uma conhecida fábula de Higi­no, um filósofo escravo egípcio-romano, na qual aparece claramente que a es­sência do ser humano não reside tanto no espírito e na liberdade, quanto no cui­dado.

O cuidado significa uma relação amorosa com a realidade. Importa um investimento de zelo, desvelo, solicitu­de, atenção e protecção para com aquilo que tem valor e interesse para nós. Tu­do o que amamos também cui­da­mos e vice-versa. Pelo facto de nos sentirmos en­volvidos e comprometidos com o que cuidamos, cuidar comporta também pre­o­cupação e inquietação.

O cuidado constitui a plataforma real que possibilita as demais dimen­sões do humano emergirem. Sem ele não guardariam sua característica hu­ma­na. Martin Heidegger, em seu Ser e Tempo, dedica alguns dos mais pro­fun­dos parágrafos a essa visão do cui­dado essencial, como a natureza con­creta do ser humano no mundo com os outros. De­vido à sua essencialidade, dizia Horácio, o poeta romano, “o cui­da­do nos acompanha como uma som­bra ao largo de toda a vida”. Tudo aquilo que fizermos com cuidado signi­fica uma for­ça contra a entropia, contra o des­gaste, pois prolongamos a vida e melhoramos as relações com a rea­lidade.

A crise da cultura mundial reside na falta de cuidado, falta clamorosa no tratamento das crianças e dos idosos, dos eco-sistemas, das relações sociais e de nossa própria profundidade. É o cuidado que salvará o amor, a vida e o nosso esplendoroso planeta Terra.

Na Carta da Terra, documento ela­borado ao longo de 8 anos, envolvendo as bases da sociedade e o melhor do pensamento ecológico, político e ético de 46 países e implicando mais de 200 mil pessoas, visando garantir o futuro do Planeta e da humanidade e recen­te­­mente acolhido pela UNESCO, o eixo estruturador é a ética do cuidado. Para as gentes da medicina e da enferma­gem, essa assunção não significa ne­nhuma surpresa, pois, como disse e repito, o cuidado é a essência da ati­tude curativa dos operadores da saú­de. Já no século passado emergia po­de­ro­samente essa perspectiva do cuidado com a famosa enfermeira in­gle­sa Florence Nightingale. Ela dei­xou a Inglaterra e foi tratar, sob a ópti­ca do cuidado, os soldados feridos na vio­lenta guerra da Crimeia. Em seis me­ses conseguiu reduzir de 42% a 2% a mortandade entre os soldados feridos. No regresso, organizou toda uma rede de hospitais que davam cen­tralidade ao cuidado. Deu origem a uma corren­te de pensamento e de éti­ca na enfer­ma­gem, articulada ao re­dor do cuida­do, hoje muito forte nos Estados Unidos e no mundo inteiro.

Particularmente a partir dos anos 70, começou-se a discutir a ética da en­fermagem utilizando a categoria cui­dado . Aí aparecia o cuidado como a aura benfazeja que deve impregnar a investigação científica e a utilização do aparato tecnológico. Estes não de­vem ser subestimados nem relativizados em nome do cuidado. Antes, devem servir à atitude de cuidado, pois só então servem à integralidade dos pacientes a serem curados ou acom­panhados em sua grande traves­sia da morte. Cuidado (âmbito mais da enfermagem) e cura (âmbito da me­di­cina) devem andar de mãos da­das, pois representam dois mo­mentos simultâneos de um mesmo pro­cesso.

Frequentemente somos confron­tados com a situação penosa de do­en­tes terminais. A medicina contem­po­rânea tem condições de prolongar por muito tempo a vida, mesmo no âmbito de situações-limite e para além de qualquer expectativa de reversibili­dade. Há situações que comportam grande dor dos pacientes e gastos al­tís­simos para a família que quase vai a falência no afã de garantir o trata­mento de seus familiares terminais. Como actuar em casos deste género? Prolongar a todo custo a vida ou dei­xar que ela siga o seu curso rumo à morte?

Tive a oportunidade de acompa­nhar a grande travessia de uma das mais brilhantes inteligências brasileiras e cristãs, o Dr. Alceu Amoroso Lima (Tris­tão de Athaide) no hospital Santa Teresa de Petrópolis. Ele foi durante toda a vida um paladino da liberdade, especialmente nos tempos de chumbo da ditadura militar. Com seus mais de 90 anos e sob muitos achaques, pade­cia ligado a muitos aparelhos e tubos. Num dado momento de distracção dos enfer­meiros, arrancou tudo e libertou-se. Cri­ou-se um impasse, para cuja so­lução fui convidado a opinar. Tratava-se de li­gar ou não ligar aqueles apare­lhos todos para permitir ao Dr. Alceu prolon­gar por um pouco mais a vida. Sus­pei­tando do impasse, ele me sus­surrou ao ouvido: “eu lutei a vida intei­ra pela li­berdade e não quero morrer sob ferros como um escravo, isso não é digno, dei­xem-me morrer em paz”.

Foi o que eu disse ao corpo médi­co: “respeitem o curso natural da vida do Dr. Alceu, porque a vida é mortal e ela precisa ser respeitada em sua quali­da­de de mortal. Ademais, o Dr. Alceu é um cristão profundamente convicto na vida eterna; a doença não lhe tira a vi­da, ele a entrega Àquele de quem a re­cebeu, a Deus; deixem-no morrer como quer, em plena liberdade”. E as­sim foi feito. E morreu com a aura de um liberto. Essa atitude significa tam­bém cuidado para com a natureza da vida, em sua finitude e mortalidade.

2.Uma compreensão mais complexa do ser humano

Essas pequenas referências nos suscitam a questão que gostaria de ra­pidamente abordar aqui: qual a com­pre­­ensão do ser humano que preside a nos­sas práticas terapêuticas? Faça­mos um ensaio de reflexão filosófica.

Antes de mais nada, importa enfati­zar que o ser humano constitui uma to­ta­lidade extremamente complexa. Quan­do dizemos “totalidade” significa que nele não existem partes justapos­tas. Tudo nele se encontra articulado formando um todo orgânico. Quando dizemos “complexa”, significa que o ser humano não é simples, mas a sin­fonia de múltiplas dimensões que coe­xistem e se interpenetram. Dentre mui­tas, dis­cernimos três dimensões funda­mentais do único ser humano, dimen­sões que ocorrem sempre juntas e arti­culadas entre si: a exterioridade (cor­po), a interioridade (mente) e a pro­fun­didade (espírito).

Essa consideração holística pro­picia-nos uma visão mais integrada que beneficia a medicina e a enferma­gem em sua missão de cura...

A exterioridade do ser humano é tudo o que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade con­­creta. Ela ganha densidade espe­cial através do cuidado, já referido an­teriormente. Sem o cuidado, eles não sobrevivem nem se desenvolvem. Por isso importa ter cuidado para com o ar que respiramos, com os alimentos que consumimos/comungamos, com a água que bebemos, com a roupas que vestimos e com as energias que vita­lizam nossa corporeidade. Normal­men­te a essa dimensão chama-se cor­po. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo inteiro, vivo, dota­do de inteligência, de sentimento, de compai­xão, de amor e de êxtase en­quanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.

A interioridade do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro e diz respeito ao universo interior, tão complexo quanto o uni­ver­so exterior. A interioridade humana cons­tela-se ao redor do consciente e do inconsciente pessoal e colectivo. Por isso não é jamais vazia mas habi­tada por instintos, paixões, imagens po­derosas, arquétipos ancestrais e prin­ci­palmente pelo desejo. O desejo cons­titui, possivelmente, a estrutura básica da interioridade humana. Sua dinâmica é ilimitada. Como seres de­se­jantes, nós humanos não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente ob­je­cto do desejo é o Ser em sua tota­lidade. Ten­ta­ção permanente consiste em iden­ti­ficar o ser com alguma de su­as mani­fes­tações. Quando isso ocorre, surge a fetichização que é a ilu­sória identifi­cação da parte com o todo, do absoluto com o relativo. O efeito é a frustração do desejo e o sentimento de irrealiza­ção. O ser hu­mano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo, para que, ao passar pelos vários objectos de sua realização, não perca a memória bem-aventurada do único grande objecto que o faz real­mente descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade fontal. A interioridade é chamada também de mente humana. Também aqui, mente, bem entendido, co­mo a totalidade do ser humano vol­tado para dentro, captando seu dina­mismo interior e também as resso­nâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.

Por fim, o ser humano possui pro­fundidade. Ele possui a capacidade de captar o que está além das aparên­cias, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exte­rio­ridade e da interioridade. Ele apreende o outro lado das coisas, sua profundi­dade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metá­foras de outra realidade que está sem­pre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo. Assim a mon­tanha não é apenas montanha. Ela tra­duz o que significa majestade. O mar, a grandio­sidade. O céu estrelado, a infinitude. Os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana.

O ser humano coloca questões fun­­damentais que estão sempre pre­sen­tes em sua agenda: de onde vie­mos, para onde vamos, como devemos viver? Que significa a doença e final­mente a mor­te? Como preservar o mun­do que nos sustenta? Quem somos nós e qual a nossa função no conjunto dos seres? Que podemos esperar e que nome dar ao mistério que subjaz a todo o univer­so e que reluz em cada coisa à nossa volta? Ao balbuciar res­postas a estas questões vitais, capta­mos valores e significados e não ape­nas constatamos factos e enumeramos acontecimentos

Na verdade, o que definitivamente conta não são as coisas que nos acon­tecem. Mas o que elas significam para a nossa vida e que experiências e vi­sões novas nos propiciam. As coisas, então, passam a ter carácter simbólico e sacramental: recordam-nos o vivido, reenviam-nos para questões mais glo­bais e, a partir daí, alimentam nossa pro­fundidade.

Colocar questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa, constitui o que se chamou de espírito. Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento pleno da nossa totalidade consciente, vivida e sentida dentro de outra totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassada: o universo das coi­sas, das energias, das pessoas, das pro­duções histórico-socias e culturais. Pelo espírito captamos o todo e a nós mesmos como parte e parcela deste todo.

Mais ainda. O espírito permite-nos fazer uma experiência de não-dualida­de. “Tu és isso tudo”, dizem os Upa­nishads da India, referindo-se ao uni­verso. Ou “tu és o todo”, dizem os Yo­gis. “O Reino de Deus está dentro de vós”, proclama Jesus. Estas afirmações nos remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte Originante. Um fio de ener­gia, de vida e de sentido perpassa to­dos os seres, constituindo-os em cos­mos e não em caos, em sinfonia e não dis­fonia.

A planta não está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância, símbolo e va­lor. Há em mim uma dimensão plan­ta, bem como uma dimensão montanha, uma di­mensão animal, e uma dimensão Deus. Sentir-se espírito não consiste em saber estas coisas. Mas em viven­ciá-las e fazer delas conteúdo de expe­riência. Quando isso ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. A partir da experi­ên­cia tudo se transfigura. Tudo vem carrega­do de veneração e sacralida­de. Não es­tamos mais sós, centrados em nosso antropocentrismo ou em nos­sa visão utilitarista das coisas. Fazemos parte da imensa comunidade cósmica. Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que empapa todo o universo e a natureza à nossa volta.

3. A morte como inteligente invenção da vida

É nesse contexto que importa co­locar o tema da morte. O sentido que damos à vida é o sentido que damos à morte e o sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. A morte pertence à vida e a vida pertence ao mistério, àquele processo misterioso de auto-organização da matéria que per­mi­te a vida eclodir, em sua imensa di­ver­sidade.

A vida, como todas as coisas, é mortal. Quando alguém é concebido já é suficientemente velho para morrer. Começa a morrer devagar, em presta­ções, e vai morrendo cada dia um pou­co até acabar de morrer.

Então a morte não vem no fim da vida, a morte está no coração da vida. Acolher a morte como parte da vida, significa tratar diferentemente a vida, acolher sua finitude e suas limitações, sem amargura e ressentimento, mas com jovialidade e sentido de realidade. Numa perspectiva evolutiva e holística, a morte é considerada uma sábia in­ven­ção da própria vida, para poder continuar num outro nível mais alto e realizar seu propósito de expansão do cuidado, do amor e da liberdade.

A morte não é entendida como um fracasso ou como uma dissolução, mas como um dos momentos da própria vi­da, tal como o momento de nascer, o momento de ficar adulto, o momento das grandes decisões, o momento de casar e outros. Assim a morte significa um momento alquímico de uma grande transformação, da grande travessia para um novo estado de consciência e de realização do projecto infinito que é cada ser humano. Na metáfora bri­lhante do Dr. Paulo César, a morte deixa de ser “fantasma escondido de­bai­xo da cama”, para se transformar na irmã que nos vem tomar pela mão para nos conduzir a uma forma mais complexa e mais alta de vida. Assim pensou e viveu S. Francisco de As­sis, que morreu literalmente cantando e saudando a irmã morte.

Essa concepção de vida e de mor­te foi historicamente trabalhada pelas religiões. Elas apresentam um sentido derradeiro para o ser humano, uma cura total de sua ânsia de infinito e de vontade de viver. Para um médico hu­manista, tais concepções devem ser tomadas a sério, porque elas actuam poderosamente sobre os pacientes no sentido de integrarem os sofrimentos e os medos face ao imponderável da gran­­de travessia. Eles querem ser acom­pa­nhados pela presença huma­na, calo­rosa e solidária e não abando­nados nas UTIs entregues à parafer­nália tecnoló­gica. Assim como entramos no mundo cercados pelo carinho hu­ma­no, quere­mos também despedir-nos dele circun­dados dos cuidados e da benquerença dos familiares e dos ami­gos.

4. Atitude ética básica face a situações terminais

Para concluir minhas reflexões, gos­taria de apresentar alguns pontos acerca das atitudes a tomar face a doentes ter­minais.

Como somos responsáveis pela nos­sa vida, assim devemos ser res­pon­sáveis também pela nossa morte.

Como temos direito a uma vida di­gna, da mesma forma temos direito a uma morte digna. Esse direito muitas vezes é-nos negado pelo fato de ser­mos obrigados a ficar presos a apare­lhos e medicamentos que nos prolon­gam a vida no sentido meramente vegetativo, o que é insuficiente para a integrali­dade da vida minimamente humana.

A vida é o melhor fruto do universo como auto-organização da matéria e, numa perspectiva espiritual, o maior dom de Deus. Mesmo assim, a vida cai sob a responsabilidade dos seres humanos. Somos responsáveis pelo co­meço da vida e também responsáveis pelo fim da vida.

Outrora, a teologia moral cristã con­denava o planeamento familiar, pois imaginava, erroneamente, que era uma intromissão no desígnio divi­no de colo­car vidas no mundo. Hoje, todas as igre­jas entendem que Deus colocou o começo da vida sob res­ponsabilidade do ser humano. Também o fim da vida foi entregue à sua res­pon­sabilidade (não à sua arbitrarie­dade).

Não cabe ao Estado assumir a fun­ção de decidir quando uma vida deve ser prolongada ou não. O eugenismo nazista alerta-nos contra essa tenta­ção. Cabe ao próprio ser humano, mor­­tal­­mente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não do seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar os familiares e os médicos. Isso im­plica:

- O médico fará tudo para curar o paciente. Não significa que use todos os métodos, meios artificiais e técnicos para postergar a morte.

- Uma terapia só tem sentido qu­ando se ordena à reabilitação e à res­tituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente a garantir uma vida vegetativa.

- O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfer­meiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdo­tes, pastores, rabinos, pais de santo, etc.), dos amigos próximos.

- Devem ser tomadas em conside­ração as crenças religiosas e espiri­tuais do paciente com referência ao sentido da vida e da morte. Caso con­trário, causamos-lhe violência, sempre no pressuposto, é claro, de que a vida é o bem supremo em nome do qual ne­nhuma visão, ideologia ou convic­ção religiosa contrária, possa preva­lecer. Para o cristianismo - a religião das maio­rias do nosso povo - a morte não é um fim puro e simples, mas um pere­grinar para a Fonte originária de toda a vida. Morrendo, acabamos de nascer. Não vivemos para morrer, mas morre­mos para ressuscitar e para viver mais e melhor. Deste modo, a morte perde seu carácter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem-aventurada para a pleni­tude da vida.

- Morrer é fazer uma despedida da vida, de forma agradecida, por aquilo que ela nos propiciou. Morrer é então fechar os olhos para ver melhor o senti­do do universo e do Mistério que o cir­cunda e perpassa.

- Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos ter­minais, pois a vida e a morte são assi­miladas num horizonte maior e trans­cendente.


À conversa com Deus

Frei Betto (Teólogo brasileiro)

Na revista Caros Amigos, de Abril deste ano publiquei o artigo “À conversa com o Diabo”. Surpreendeu-me a reper­cussão entre os leitores. Agora a con­ver­sa é mais em cima…

— Você acredita que ainda há espaço para mim?

— Que pergunta, meu Deus! O Se­nhor anda inseguro? Tem lido índices do mercado financeiro?

— É que as coisas na Terra mudam numa velocidade que custo acompa­nhar. Outrora, eu era conhecido como o Criador. Vocês agradeciam a mim o ci­clo das estações, os frutos da terra, a chuva e os ventos, as águas dos rios e os peixes do mar. Qual mesa farta, criei a natureza para o bem de vocês.

— Sim, Senhor, sei que abusamos da oferta. No início, extraíamos dela o necessário à sobrevivência. Para não faltar, respeitávamos os seus ritmos. De­pois, descobrimos como reproduzir a natureza: inventamos a agricultura e a pecuária. E o que tinha valor de uso passou a ter valor de troca. Nossa ambi­ção de riqueza transformou a dádiva em mercadoria.

— O que fazem com a inteligência que lhes incuti? – retrucou Deus. — Que diabo de avanço científico é este que deu origem à proliferação de armas nu­cle­ares, químicas e biológicas, capazes de provocar destruição em massa? Não percebem que estão destruindo a bios­fera?

— Perdão, Senhor. Andamos enras­ca­dos num paradoxo: nosso crescimen­to económico não beneficia os pobres e ainda resulta em degradação ambi­ental.

— Outrora vocês estavam submeti­dos à natureza – ponderou Deus. — Havia estreita ligação entre o ser huma­no e o seu entorno natural. Era um caso de amor. Agora o processo se inverteu: vocês adquiriram o poder de submeter a natureza.

— Não era o que o Senhor queria? No sexto dia da Criação não recebe­mos a ordem de dominar os peixes do mar, as aves do céu e os répteis que rastejam sobre a terra?

— Dominar é uma coisa; violar ou estuprar é outra – reagiu Deus. — Vocês foram longe demais: envenenaram rios e mares, poluíram a atmosfera e, ago­ra, interferem nos processos químicos que determinam o envelhecimento or­gâ­ni­co e manipulam tecnologicamente os processos genéticos. Aonde preten­dem chegar? Querem criar vida humana em laboratório e alcançar a imortalida­de?

— Somos movidos pelo lucro, Se­nhor. Tudo o que multiplica dinheiro cons­titui uma obsessão para nós.

— Vocês só sabem conjugar os verbos somar e multiplicar? E subtrair e dividir? Como ficam os pobres? – objectou Deus.

— Acabar com a fome dos pobres não traz dividendos, mas clonar seres vivos é sinónimo de muita fortuna. An­tes, a política comandava a economia. Agora a economia submete a política e escanteia a ética.

— Não percebem que a economia está pelo avesso? – exclamou Deus.

— Explica melhor, Senhor.

— Nunca se produziu tanto com tão poucos produtores. A tecnologia de pon­ta substitui o trabalho vivo, conde­nando milhões de famílias à informali­dade no sector de serviços e outras tantas à miséria. A violência globalizou-se. A dinâmica do capital acirra uma competitividade exacerbada. Ilhas de riqueza e prosperidade estão cercadas de fome e penúria por todos os lados. Vocês não se dão conta de que pro­movem o dilúvio e, desta vez, sem uma arca que possa salvá-los?

— É verdade, Senhor, toda a nossa vida social está contaminada pela mer­cantilização. Ao contrário dos antigos, já não temos uma moral que sirva de raiz à nossa visão do mundo. Nem sei se temos visão do mundo. O limite do nosso horizonte é a tela da TV. Hoje vivemos numa sociedade pluralista, onde a religião também se transforma em artigo de consumo, e a ética des­mo­rona como base de um modo de pen­sar e agir comum a todos. É cada um por si e Deus por ninguém.

— Apesar disso, continuo torcendo por todos – suspirou Deus. — Sou Pai, mas não paternalista. Não haverei de interferir de novo na história humana, como fiz ao enviar meu Filho. Dei-lhes um mundo paradisíaco – um jardim. Vocês estragaram quase tudo, poluíram o lago, cortaram as árvores, espanta­ram os pássaros, esmagaram a grama, secaram as fontes. Agora, tratem de con­sertá-lo. Encontrar fundamentos on­to­lógicos aos princípios éticos e polí­ticos capazes de pautar a vida social e pessoal. Não faz sentido a coesão social derivar da coerção oficial promo­vida pelo Estado. Criei-os livres, a pon­to de poderem rejeitar-me e fechar-se aos meus dons. Se não resgatarem a liberdade com as armas da justiça, a espiral da violência só tenderá a crescer.

Retomei o início do diálogo:

— Por que pergunta se ainda há espaço para a sua presença? Não vê que o mundo é cada vez mais religioso? Proliferam igrejas, templos, cultos, sei­tas, movimentos esotéricos. O ateísmo perde fiéis, a fé está mais viva do que nunca!

— Não é esse o espaço que busco – retrucou Deus. — Também a religião se torna fonte de lucro e poder. Minha pergunta é outra: há espaço para mim no coração humano? É a minha vontade que as pessoas buscam? Ou são atraí­das pela vaidade, pela ambição, pelo egoísmo? Quem é capaz de me reco­nhecer na face de quem tem fome, está excluído e oprimido?

— Vou ser sincero, Senhor. Nesse sentido, não há muito espaço. Nossos corações desaprendem a orar, a ter compaixão, a promover o gesto solidá­rio. Temo que, após ter rompido a co­mu­nhão com a natureza, estejamos agora esgarçando a família humana. E, de quebra, nossa sintonia com o Senhor.

— Sim, vocês me louvam com os lábios, mas não com o coração. Pres­tam-me cultos, mas não libertam o opri­mido. Amam mais a posse que o dom.

Fiquei preocupado:

— O Senhor vai deixar-nos à de­riva? Vai cancelar a sua obra, zerar a Criação?

— De modo algum. Por mais estú­pidos que vocês sejam, não deixo de amá-los. Nem pretendo abandoná-los. Vocês haverão de aprender com os pró­prios erros. Espero apenas que não demasiadamente tarde.

Antes que ele se fosse, indaguei:

— Senhor, caso queira encontrá-lo, aonde devo buscá-lo?

— Não precisa ir longe – disse ele com uma ponta de ironia. — Basta um mergulho em seu mundo interior. Estou no lado avesso de seu coração. Mas prefiro que também me encontre na face dos que sofrem.


Direito de Matar

Frei Betto (Teólogo brasileiro)

Você pula cedo da cama, veste-se apressado, sai correndo para o traba­lho. Você prometeu à velha dama ingle­sa que terminaria antes do almoço a re­visão completa no sistema de aqueci­mento da casa. O momento propício é agora, pleno verão europeu. Ela não sa­be de onde você veio. Não sabe que veio de uma terra muito mais quente, no Vale do Rio Doce, onde 30 graus à sombra é refresco. Por isso, você tem o costume de vestir a jaqueta. Pode ser que, na volta, a temperatura caia, e vo­cê não pode correr o risco de ficar do­ente, perder dias de trabalho, do seu ofício depende uma família brasileira no interior de Minas.

De repente, você escuta um estam­pido seco, a nuca arde como se um tu­mor aflorasse nos seus ombros, você tenta entender o que ocorre – tempo suficiente para que, ainda em pé, mais sete tiros lhe atinjam a cabeça. Você tomba morto.

A gentil dama inglesa ficará à espe­ra do técnico que prometeu terminar a revisão do aquecedor. Impaciente, dirá ao fundo vazio de sua xícara de chá, enquanto aperta os dedos na alça de porcelana, que não se pode mesmo con­fiar nesses estrangeiros, não gos­tam de trabalhar, basta adiantar-lhes o dinheiro para comprar as peças de reposição e eles nunca mais dão as suas caras. Aborrecida, cansada de o esperar, a velha dama liga a TV, sua companheira de solidão, e vê a notícia do atentado abortado graças à habili­da­de da polícia britânica. Antes que a bomba amarrada ao corpo fosse deto­nada, os polícias dispararam oito tiros contra a cabeça do terrorista ainda não iden­tificado. A gentil senhora sente-se aliviada, protegida, malgrado o calote daquele rapaz estrangeiro, com cara de árabe, que não cumpriu a promessa de revisar o sistema de aquecimento.

A cara é de árabe e tem jeito de ter­rorista. Por que a jaqueta em pleno ve­rão? Foi o que pensou o polícia, ao ver aquele sujeito correndo em direcção ao metro, trajando agasalho numa ma­nhã tropical em Londres. E o olhar dele aos seus companheiros de ofício bastou para conferir que os outros dois tam­bém farejaram o perigo. E sentiram igual­mente o cheiro da vultosa recom­pen­sa prometida pelo chefe de polícia a quem evitasse um ataque terrorista. Inglês aquele sujeito não é. Muito menos irlandês ou escocês. Está na cara, é afe­gão ou saudita. Se não agirmos rápido, em poucos minutos teremos a estação do metro explodindo como uma mina atulhada de dinamites e pedaços de corpos espalhados por todos os cantos.

A vida, os sonhos, o amor e o traba­lho de Jean Charles de Menezes ces­saram à boca do metro. Sete balas alojadas no cérebro e uma no ombro. Terrorista mata-se pela cabeça. Primei­ro, para não detonar os explosivos ata­dos ao corpo. Segundo, para zerar essa mente demoníaca que arquitecta a morte colectiva de inocentes e sacrifica a própria vida por uma causa sem fu­turo.

Sem futuro, mas não sem passado. O bem-pensar ocidental amestrou-nos a encarar os efeitos sem nos perguntar pelas causas. O que torna Bin Laden e seus asseclas tão abomináveis? Mais do que os métodos criminosos, é não terem em mãos um Estado po­de­roso. Estivessem sentados na pom­posa cadeira de um chefe de Estado, ninguém os acusaria de terroristas.

Fomos treinados a ter horror à ac­ção imprevisível, inesperada, ilegal, que desafia a lógica e desmoraliza to­dos os diagnósticos estratégicos. Estivessem eles acomodados num salão oval, dando o sinal verde para que duas bombas atómicas fossem atiradas sobre as pacatas populações de Hiroshima e Nagasaki, ou assi­nan­do o decreto que autoriza a CIA a subverter democracias sul-america­nas, desencadear a Operação Con­dor, prender, torturar e matar milha­res de jovens idealistas que amam os Beatles e sonham com um mundo mais justo, ninguém diria tratar-se de terrorismo.

Você já ouviu falar em Ahmad Abdullah? É um garoto de al-Qaim, pequena cidade situada a oeste de Bagdá. Ele também saiu correndo pe­las ruas. Vinha radiante da escola. Tra­zia nas mãos o boletim de final de curso. Queria mostrá-lo aos pais, havia obtido boas notas, tinha sido aprovado. Uma bala de morteiro dis­parada por um soldado made in USA interrompeu-lhe os passos. Atingiu-lhe o estômago, o fígado e o pâncre­as. Uma rajada de metralhadora fez ondular seus cabelos lisos, pretos, que adquiriram um tom escarlate. E ele tinha apenas dez anos de idade.

Assassinar no Iraque, em Guantánamo, no Afeganistão, não é crime. É legal, não provoca horror, cobre-se com eufemismos que enver­gonham a liberdade e a democracia.

O direito de matar goza da protec­ção cúmplice da nossa omissão, essa estranha cegueira que nos impede de abominar também o terrorismo de Estado.


Certo dia…

M. Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)

É do Evangelho esta parábola: Certo dia, um homem pretendeu ofe­recer aos amigos um copioso jantar. Perto da hora marcada, mandou os criados  avisar os convivas: “Vinde, o jantar está na mesa”. No entanto, um após outro, todos se escusaram. Adi­antou um: ”Comprei uma quinta e pre­ciso vê-la. Peço me dispensem”. Alegou um outro: “Comprei cinco juntas de bois e vou experimentar os animais. Não posso comparecer”. Um jovem descul­pou-se: ”Casei recentemente e não me é lícito deixar sozinha a minha mulher. Releve-me a ausência”. Amargurado pela recusa dos convidados, o promo­tor do banquete ordenou aos criados: “Ide imediatamente pelas ruas da cida­de e trazei aqui os pobres, os aleija­dos, os cegos, os excluídos pela socie­da­de”. Horas depois, o mordomo apresentou-se diante do senhor e disse-lhe: “Obedecendo às tuas ordens, a sala está cheia de estropiados e vagabun­dos, mas ainda há lugares vagos na me­sa”. O senhor respondeu-lhe: “Man­dai os servos pelos caminhos e valados e trazei todos os miseráveis, todos os incompreendidos, que vagueiam pelos campos. Deixai-os entrar para que a mi­nha casa se encha. A ceia rejeitada pelos convidados deve ser comida por eles. E que eles sejam recebidos com perfumes e música”.

É do Evangelho e não é pará­bola. Era a festa de Pentecostes, em Jerusa­lém. Os peregrinos acorriam, cantando co­nhecidas melodias, com a letra dos salmos e a cadência dos alaúdes. Acompanhavam os peregrinos um sem número de doentes que procuravam banhar-se na água milagrosa da pis­cina de Betesda. Naquele dia, um pa­ralítico arrastava-se à beira da piscina e sentiu-se incapaz de mergulhar, à hora em que se dizia que o anjo fazia ferver a água. Envelhecido e alquebra­do, corriam-lhe lágrimas de desalento. De repente, um homem bem apessoa­do e de olhar fraterno perguntou-lhe: “Queres curar-te?”. De voz ciciante, res­pondeu: “Senhor, não tenho nin­guém que, quando a água é agitada, me meta na piscina”. O desconhecido fitou-o fixamente e ordenou-lhe: “Le­van­ta-te e caminha”. O paralítico sentiu pelo corpo um ressuscitar de forças que julgara nunca mais sentir. Os seus olhos fulguraram de alegria e, de um salto, como se de um atleta se tratasse, ficou de pé. Fora de si, em explosões de contentamento, desatou a correr e a gritar: “Um homem curou-me! Um ho­mem curou-me!”. Um grupo de fariseus agarrou-o: “Como ousas transgredir o sábado, carregando o teu leito?”. E ele, frontal: “Foi o homem que me curou que me ordenou que o fizesse”. Um dos fariseus interrogou-o encolerizado: “E quem é o homem que te ordenou que praticasses tamanho pecado?”. Apon­tan­do para os lados da piscina, acres­centou: “Procurai-o por aqueles lados. Não sei quem ele é. Mas sei que me curou”...

O Evangelho é fértil em factos e acon­tecimentos em que Jesus mani­festa especial predilecção pelos doen­tes, pelas crianças, pelos excluídos pela sociedade injusta. E até pelos que se perderam numa vida insana: “Eu não fui enviado senão às ovelhas per­didas da casa de Israel”. O Evangelho é fértil em factos e acontecimentos, em que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

A vida do Padre Mário de Oli­vei­ra assemelha-se à de Jesus, no amor (que todos os dias é prática) por aque­les que são corridos e vexados pelo Ter e pelo Poder. Os livros do Padre Mário manifestam alguém que vê tudo à luz do Evangelho.

Vem de sair um livro da sua auto­ria, em nome de JESUS (Intervir/Arcas das Letras, Gondomar, 2005). Abro o livro e coube-me em sorte este magnífico pedaço: ”2004 Maio 08. O dia de hoje fica marcado pela Ceia Eu­carística mensal, prevista para o se­gundo sábado deste mês, na sala prin­cipal da Casa da Comunidade. Apesar de ter sido anunciada ao povo da fre­guesia de Macieira da Lixa, na primeira Carta Presbiteral que lhe dirigi e que foi entregue à mão em todas as casas, pode dizer-se que foram praticamente nenhumas as pessoas que apareceram na sequência desse anúncio. Entre as poucas pessoas que apareceram (...) o destaque vai  para a família Faria, melhor, as famílias Faria que nem se­quer residem na freguesia, mas nos limites dela, já do lado da freguesia de Caramos. Os elementos destas duas casas apareceram em peso e trouxe­ram com eles uma amiga ainda jovem, mas já mãe separada do marido. Fáti­ma apresentou-se com o filhinho Bru­no nos braços, um menino cem por cen­to deficiente e cujo pai, para cúmulo, não tem querido saber do filho para na­da. O menino acabou por ser, ines­pe­radamente, a grande presença de Deus nesta Ceia Eucarística, a desafiar-nos a todas, todos, para sempre irmos mais e mais além, em dedicação e en­tre­ga de nós próprios, para a edifica­ção duma humanidade e dum mundo outros”.

O que importa não é ter muitos livros, é tê-los bons. Entre os bons li­vros que, para nós, cristãos, se publica, em língua portuguesa (ou em qualquer outra língua), estão os livros do Padre Mário, pois que podemos (e devemos) fazer nosso o seu conteúdo. Os antigos diziam que temiam o homem de um li­vro só. Já não pode dizer-se o mesmo, mas pode acrescentar-se, sem receio, que o Padre Mário é, hoje, um dos gran­des profetas do cristianismo de ama­nhã, em conformidade com a socieda­de, que devemos construir, mais frater­na e mais justa. Por que não se lê este livro substancioso, opulento de dou­trina, para o nosso tempo?

Após a sua leitura, despertaram em mim tesouros escondidos de genero­sidade e entusiasmo e até de uma fé plenamente consciente. De facto, não podemos já olhar para trás como a mu­lher de Lot. Padre Mário, Frei Amizade, muito obrigado!


Que fazer com este livro?

José Viale Moutinho (Escritor)

O Padre Mário de Oliveira é o con­trário dos outros padres que atormen­taram a minha infância, ameaçando-me no post-mortem com um terrível in­ferno povoado de diabos cornudos e armados de enormes garfos com den­tes parecidos com anzóis, empurrando-me ao mínimo pecado para uns pane­lões de azeite a ferver...

Suponho que muitos dos pre­sentes passaram por esses temores e à hora da confissão, quando ajoelhá­va­mos aos pés de um abade sentado e mal encarado, decerto farto de escu­tar pe­cados de uma sacrificada e peca­dora sociedade. Perdoai-me, padre, que eu pequei e lá me caíam as lágrimas pelas faces então glabras. A gula que arra­sava as malgas de marmelada, uns tos­tões surripiados ao portamoné da mamã, uns palavrões tipo cichi, co­có e cueca de menina, puta e merda, a manipulação do sexo à conta das me­ninas que íamos espreitar à porta do respectivo colégio, os maus, que maus pensamentos!

Depois o padre erguia a caran­tonha e invectivava, bramia, inventaria­va o que me parecia então um milhão de avé-marias e padre-nossos, salve-rainhas, montes de orações de contri­ção, que, ajoelhado diante de um altar, envergonhadamente ali passava o tem­po. À porta da igreja, algum dos amigos observava: O padre quilhou-te. E eu: Pois quilhou. E lá voltávamos a rezar umas avé-marias para lavarmos aquele verbo quilhar e no dia seguinte poder­mos comungar na missa das 7 e meia.

E a recomendaçáo da catequista à hora em que se abria a boca para receber a hóstia: Cuidado menino, se trincas a hóstia o sangue de Cristo vai encher-te a boca, afogas-te nele, meu menino.

Por isso, para mim foi um descanso quando voltei as costas a todas as fór­mulas de religião, suponho que aca­bando por me transformar naquilo que o meu velho e falecido amigo Abílio José Santos rotulava de místico des­crente.

Porém, esta minha posição ante todo e qualquer deus, excepto Baco, curiosamente saudada pela edilidade portuense na Praça da República, dizia eu que nada disto me impediu de ter uns amigos padres, desde o velho pa­dre Mourinho, da Terra de Miranda, ao Lourenço Fontes, de Vilar de Perdizes, ao companheiro de criança, o padre Max, vitima de um crime indecentemen­te perfeito no Verão Quente de 75, do Edgar Silva, que na Madeira trocou o bispo pelo PCP, do Padre Martins, também meu conterrâneo, do Nuno Hi­gi­no, excelente poeta que deitou fora o cabeção! Ah, é verdade, à excepção do Maximino, com quem brinquei às mis­sas e aos caubois em criança, em Almendra, no Douro, o mais antigo dos meus padres amigos e admirados é o padre Mário de Oliveira.

Por isso, quando me telefonou a dizer que teria de vir aqui apresentar urbi e orbi o seu novo livro O outro evangelho segundo Jesus Cristo, achei natural dizer que sim ao presbítero es­critor que me ensinou a olhar de um modo diverso para D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto que bateu o pé a Salazar, alertando-me que isso só não chegava para o poder amar como meu próximo.

Aliás, na pequena novela O Bispo converteu-se, de 1976, o Padre Mário chamou-me a atenção para um outro mistério da escrita.

Desde Evangelizar os pobres, em 1970, ao Ser Jornalista é tomar partido, à narrativa Como fui expulso de capelão militar, Fátima nunca mais e E Deus disse: Do que eu gosto é de politica, não de religião até aos Cantos nas margens, de que vos leio a pág. 81:

"À senhora d'Aparecida / quem nunca mais lá quer ir? / quem já sabe que a senhora / é uma senhora a fingir

Quem procura deusas/deuses / nunca sai da alienação / tanto as rezas como as festas / reforçam a opressão.

As senhoras nos altares / são deusas sem coração / quem a elas se dirige / vive sem libertação.

"Nas doenças aflições / rezas a nos­sa senhora? / Tua vida podes crer / não melhora só piora.

Por detrás dos santuários / há co­missões fabriqueiras / comem tudo às devotas / dinheiro cordões pulseiras."

Bem, a esta hora, quer aqui o Pa­dre Mário, quer os meus amigos devem estar a perguntar ao anjo da guarda da vossa alma danada porque diacho eu não avanço pró que fui contratado.

E eu avanço, sim senhor. Aliás, nunca me afastei de cá.

O livro, como sabem, intitula-se O Outro Evangelho Segundo Jesus Cristo, edição do Campo das Letras, na sua Co­lecção Campo da Actualidade. Cu­rio­sa­mente, o livro anterior, na mesma colecção, é do antigo director do El Pais, José Luís Cebrián e trata do Fun­da­mentalismo Democrático.

Começo por dizer que eu nunca lera o Evangelho de Jesus segundo São Marcos, o mais antigo dos evan­gelhos canónicos. E parece que fiz bem em esperar, porque a nova tradução anotada da autoria do padre Mário de Oliveira é como que uma nova anuncia­ção, a ponto do seu autor aqui presen­te considerar ter valido a pena todos os seus 67 anos para agora poder dar à Humanidade este seu testemunho vivo sobre Jesus.

E que Jesus é este de que nos fala S. Marcos? O Jesus do Padre Mário?

Mas de que Jesus se trata, se nós temos milhares de outros livros da la­vra de excelsas figuras, politicamente mais correctas que o padre Mário, a dar-nos biografias muito santificadas de Jesus Cristo?

Este é o livro da vida do Padre Má­rio. É curioso como uma tradução ano­tada assume esse papel num homem que publicou mais de uma vintena de livros originais! O que é que o Padre Mário quer dizer com isso?

Neste seu testemunho que ele pre­tende vivo sobre Jesus, em pleno ofer­tó­rio da obra, originalmente escrita uma dúzia de anos após a crucificação do protagonista, decerto observada por S. Marcos. Então, como aparece aqui o Pa­dre Mário? O que ilumina as suas notas? Jesus filho de Deus? Que Je­sus? Que Deus? Quem o matou? Por­quê? Porque é que os demais evan­gelhos, sobretudo os outros dois que emparceiram com este, tiveram maior divulgação, ficando este, o mais próxi­mo do grande acontecimento, de al­gum modo apoucado?

É bem verdade que este Cristo, sen­do o mesmo, é amostrado de modo di­verso. Volto a dizer, mais politica­men­te correcto. E o Padre Mário devolve-nos o evangelho sinóptico bárbaro, des­montando, por exclusão de partes, a imagem que todos temos lá em casa, na cruz ou ao colo de santantoninho ou de sua mãe santíssima.

Foram estas, em resumo, as per­ple­xidades que me tomaram de assalto o cérebro, prejudicando de algum mo­do um certo sentido de bom senso que eu costumo ter quando falo das coisas tidas como sagradas.

Conforme me adentrava neste pe­queno livro, mais crescia a considera­ção devida ao mais recente dos seus autores.

E, depois, agora que S. Marcos está reabilitado e a sua crónica está sob o sol de Portugal, que fazer com este livro?

   

(Peço desculpa, mas achei que poderia  calar-me com esta citação do nosso velho Camões, quando andava aos papéis com o manuscrito de Os Lusíadas...)

Um abraço.


IGREJA/SOCIEDADE

XXV Congresso de Teologia de Madrid sobre Cristianismo e Violência

Excluí-las dos ministérios ordenados, é um acto de

Terrorismo da Igreja contra as mulheres

- denunciou uma participante, na sessão de encerramento do XXV Congresso de Teologia de Madrid, de imediato aplaudida pelos cerca de 1200 congressistas presentes

"Tenho 60 anos, e toda a minha vida quis ser ordenada presbítera. Mas a Igreja católica a que pertenço não permite a ordenação de mulheres e até acaba de expulsar do seu seio 9 católicas, só porque elas foram ordenadas à revelia da Cúria do Vaticano. Venho aqui dizer, alto e bom som, que este comportamento da hierarquia da Igreja é um acto de terrorismo contra as mulheres que tem que ser denunciado com vigor em todo o lado."

Estas palavras soaram como uma chicotada libertadora nos ouvidos dos 1200 con­gres­sistas que acorreram à sessão de encerramento do XXV Congresso de Teologia de Madrid, re­a­lizada no salão de actos das Comis­siones Obreras. A denúncia, proferida logo a seguir à con­fe­rência de Casiano Floristán, emérito da Universidade Pon­tifícia de Salamanca, sobre o tema, "Cristãos nu­ma sociedade violenta", recebeu de ime­­diato um estrondoso aplauso de todos os presentes. Foi proferida por uma das muitas mulheres participantes no Con­gresso. A denun­ciante poderia ter-se escondido no anonimato, mas assim não sucedeu. Para que a denúncia tivesse rosto e não apenas voz, a católica em causa fez questão de dizer o seu nome: Mer­ce­des Carrizosa.

Foi tudo inesperado, inclusive, pa­ra os promo­tores do Congresso, a As­so­ciação de Teólogos, Teólogas João XXIII, juntamente com o Colectivo das Comunidades Cristãs Populares, de to­do o Estado espanhol. Mas o grito-denúncia desta católica en­caixou per­feitamente no tema que este­ve em de­bate durante os 4 dias do Con­gresso, de 8 a 11 de Setembro últi­mo.

De resto, a violência de género, pra­­ticada no interior da generalidade das Igrejas e com mais escândalo no interior da Igreja católica, foi uma das violências apontadas também por diver­sos conferencistas. Mas nada que se parecesse com a força do grito desta mulher.

Infelizmente, nenhum bispo da I­gre­­ja católica que está em Espanha ouviu em directo o grito desta cató­lica de carne e osso que se sente e vê sa­crilegamente humilhada e discrimi­na­da pelos responsáveis duma institui­ção que, em nome de Jesus, deveria estar na vanguarda da luta pela radical igualdade entre mulheres e homens, no que respeita a direitos e deveres, a começar, evidentemente, no seu pró­prio interior.

Porém, até hoje, ne­nhum dos mui­tos bis­pos que presidem às diversas Igrejas locais do país vizinho teve coragem de se inscrever e de participar, em frater­ni­dade com os demais partici­pantes, nalgum dos 25 congres­sos de Teologia de Madrid já realizados. Por­que não são eles a promovê-los, nem ninguém a seu mando, os bispos são inc­apazes de os reconhecer como opor­­tu­nos e válidos. No seu au­tismo e pre­potência, continuam a com­portar-se em Igreja como se fossem senhores feudais e monarcas absolutos, donos da Igreja, tal como os antigos se­nho­res feudais eram os donos das ter­ras. Ainda não se abriram à co­mu­nhão efe­ctiva com todos os fiéis, muito menos já reconhecem que as Igrejas, se qui­se­rem ter Jesus de Nazaré como a re­ferência última do seu pensar, decidir e agir, terão também que ser conduzi­das não por eles, mas pelo mesmo Es­pí­rito que o conduziu a ele. Ora, o Espí­rito, na codução das Igrejas, pode muito bem surpreender-nos inesperadamente a to­das, todos com manhãs de Pente­cos­tes, em que até mulheres, como Mercedes Carrizo­sa, tomam a palavra.

Mas os nossos bispos preferem con­tinuar a fa­zer ore­lhas moucas e a pensar que o Espí­rito só fala através deles? Tanto pior para eles e para as Igrejas locais às quais eles foram cha­ma­dos a presidir no amor-serviço mai­êu­tico, não no poder. Neste caso, bom será que a assembleia de fiéis, mulhe­res e homens  baptizados, resista a bis­pos assim e trabalhe activamente para os levar à indispensável conver­são ao Evangelho, de modo que eles aceitem ser bispos em comunhão com todos os demais fiéis. Porque se tal conversão não acontecer, é caso para se concluir que deixa de haver lugar para as mu­lheres e para os homens baptiza­dos, nas Igrejas a que eles presidem. Só ha­verá lugar para eles, bispos, que aca­barão a falar sozinhos, no meio du­ma sociedade que, também ela, se qui­ser ter futu­ro, terá que ser cada vez mais uma so­ciedade em que todas as vozes se ou­vem, todas as mãos se dão, todos os esforços se conjugam para o bem de todos os povos.

O Congresso teve como pano de fundo os atentados do 11 de Setembro e do 11 de Março, bem como os do 7 de Julho, tudo datas marcadas por acções políticas violentas, realizadas por pessoas que integram a organi­za­ção Al Quaeda, de Bin Laden. A Guer­ra contra o Iraque, decidida e con­su­mada como um acto de terroris­mo do Império norte-americano e dos Estados satélites seus vassalos, conti­nua assim a marcar os quotidianos dos povos que vivem à sombra de um e de outros.

Porém, mais do que erguermo-nos em pro­testo contra a violência e o "ter­ro­rismo" feito em nome das vítimas do Império e dos Estados, importa erguer­mo-nos contra as causas que estão na origem de toda a violência. Aliás, foi por aqui que avan­çou o Congresso de Teologia de Ma­drid. O Deus de Jesus é de Paz, não de violência, muito menos de terror. Como tal, exige que quem invoca o seu nome e se reclama de suas filhas, de seus filhos, trilhe os ca­minhos da parti­lha dos bens e da liberdade para to­dos os povos, os únicos que garantem a paz na terra.

Não é assim que tem acontecido, infelizmente. E, em nome de Deus, o Ocidente sempre conquistou, roubou, massacrou, impôs a sua concepção do mundo, oprimiu. E, ainda hoje, é assim que continua a agir contra os povos, me­diante a prática de economias que fabricam pobreza e miséria em massa, aumentam o número de empobrecidos em todo o planeta, ao mesmo tempo que dão cabo do ambiente, numa es­pé­cie de esquizofrenia incontrolável que, se assim continuar, não deixará pedra sobre pedra, muito menos vidas humanas e outras sobre a terra.

De todas as conferências proferi­das no Congresso, a expectativa maior incidiu sobre a conferência proferida pela euro-deputada Emma Bonino, que reflectiu a escaldante temática "Violência de género". Mas eram igualmente aguar­­da­das com justificada expectativa as conferências sobre "Cristianismo, vio­­lên­cia e cultura em África", "Cristia­nis­­mo, violência e diálogo inter-religio­so na Ásia" e "Cristianismo, violência e li­ber­tação na América Latina", a car­go, respectivamente, do missionário Donato Lwiyando, do teólogo jesuíta J. Ma­siá e do salvado­renho, R. Cardenal.

As expectativas não saíram defrau­dadas, embora o sentir geral dos parti­ci­pantes é que o Congesso, este ano, apesar de ser o das "Bodas de Prata", foi um tudo nada mais frouxo do que outros, em anos anteriores.

Jornal Fraternizar partilha, a se­guir e quase na íntegra, a conferência de R. Car­de­nal, da UCA. Não percam.


A violência é um dos grandes pecados mortais destes tempos

Conferência de Rodolfo Cardenal, da UCA de El Salvador

"Do ponto de vista evangélico, a violência é sempre um mal e “um mal maior do que se pensa” (I. Ellacuría). Em consequência, a violência é pecado e não qualquer pecado, mas um dos grandes pecados mortais destes tempos, devido à massiva quantidade de vítimas que produz." São do prof. Rodolfo Cardenal, de El Salvador, estas palavras. Com elas, Jornal Fraternizar pretende chamar a atenção para o conteúdo teológico libertador e duma actualidade indiscutível, com que ele teceu a conferência que veio proferir ao Congresso de Teologia de Madrid. É um documento imperdível. É um mergulho na realidade teológica das vítimas da injustiça e da violência, que o Ocidente e as Igrejas que estão no Ocidente deverão ter a humildade de escutar, acolher e deixar-se fazer por ele. Para deixarmos de ser idólatras e pagãos, sob a capa de cristãos. Ninguém deixe de ler-estudar-difundir.

1. A realidade da violência

América Latina já não é apenas um continente pobre. É também um conti­nen­te violento. À pobreza generaliza­da, juntou-se a violência social. E as duas fazem elevado número de vítimas.

Não falta quem defenda que o de­senvolvimento do capitalismo actual, nas suas modalidades, globalização e democracia, é um bom caminho para su­perar os problemas estruturais do con­tinente. De modo que o ra­dicalismo das mudanças sócio-económicas e da teologia da libertação seriam coisa do passado. A verdade é que sem esse ra­di­ca­lismo, América Latina, América Central e El Salvador desapareceram dos media.

Mas enquanto houver pobres, ex­cluí­dos e vítimas, há o dever ético e evan­gélico de lutar para libertar a histó­ria destes males, os quais, na perspe­cti­va do Evangelho, são pecado. Este dever é hoje mais urgente, pois as víti­mas deste pecado são cada vez mais e a sua existência não é negociável, por ser contrária ao plano de Deus e aos princípios básicos do seu reinado.

Na última década, a violência ad­qui­riu proporções escandalosas, tanto que os especialistas consideram-na já uma epidemia, isto é, uma questão de saúde pública. Não obedece a motiva­ções patológicas, próprias de indiví­duos. É um fenómeno social, criado pe­los seres humanos e o resultado duma determinada ordem estabelecida.

A vítima desta violência não é ape­nas individual. Existem também vítimas colectivas. Vítima é toda a pessoa ou colectividade que sofre um dano físico, mental, emocional, económico ou so­cial. Todo o acto violento inclui o po­der, a dominação ou a supremacia.

A violência não é um fenómeno abs­­tracto. Tem rosto. Nestes nossos tem­pos ataca com especial intensidade e crueldade três grupos sociais: as cri­anças, as mulheres e os jovens/adoles­centes.

O abuso sexual é o que ataca mais as crianças. As mulheres são hoje as vítimas preferenciais da violência. Até já se distingue entre o homicídio, cuja vítima é um homem e aquele cuja vítima é uma mulher.

A violência de género causa mais morte e deficiência entre as mulheres, do que certo tipo de doenças como o cancro, ou os acidentes de trânsito ou mesmo as guerras. O agressor é quase sempre o cônjuge, ou o companheiro.

Uma elevada proporção de gravi­de­zes das adolescentes resultam de violações. Os indivíduos entre os 15 e os 35 anos são as vítimas mais nume­ro­sas de homicídio. E os jovens são eles próprios, com frequência, os ho­micidas. Não são os únicos. Mas da fama já não se livram.

Em números: No continente latino-americano, são assassinadas, cada ano, entre 110 mil e 120 mil pessoas. Entre os países mais violentos, encontram-se Colômbia, El Salvador, Guatemala e México.

2 Uma realidade injusta: ambiguidade do progresso

As vítimas da pobreza e da violên­cia são esquecidas com bastante facili­dade. São um fenómeno indesejável, mas olhado quase como coisa normal num mundo como o nosso. E só são vi­si­bilizadas, quando ocorrem catástro­fes de grandes proporções. E mesmo assim, nem em todas as catástrofes. As que ocorrem em países que não figu­ram no mapa de interesses do Ocidente capitalista, não chegam a ser notícia, ou são-no por pouco tempo.

O progresso da humanidade, indis­cutível em alguns âmbitos e mais pro­nun­ciado nalguns países e regiões do que noutros, não pode continuar como se não produzisse vítimas. Por isso, te­mos que apontar alguns temas que no Ocidente de hoje, não são politicamen­te “correctos”. Eis:

A tragédia das vítimas deve ser re­cuperada como o primeiro passo para evitar que haja mais vítimas. O segundo passo é lutar contra essa realidade que, por mais dinâmica que seja, é in­jus­ta. A recuperação da tragédia das ví­timas, como observa Jon Sobrino, exi­ge recuperar, simultaneamente, a lin­guagem de injustiça e justiça, a qual, juntamente com elas, também foi retira­da e substituída por outra, que prefere no­mear a negatividade da história com uma terminologia que suaviza essa tragédia. É por isso que hoje se fala mais de “países emergentes”, de “clas­ses menos favorecidas”, de “não-po­bres”.

Ao resgatar a linguagem de injus­tiça e justiça, recuperam-se também os conceitos opressão e libertação, impe­rialismo e liberdade, pecado e graça, profetismo e utopia.

O habitual hoje é olhar a his­tória apartir dos poucos que tri­unfam. O seu êxito é medido pela quantidade de ca­pi­tal acumulado, pelo luxo e comodida­de e pela ostentação do dinheiro e do po­der. Este critério é sumamente egoís­ta, mundano. E contrário ao Evangelho.

A linguagem da injustiça é intole­rável para este mundo, por­que des­mas­cara a tragédia e a verdade deste mundo. E a lin­guagem da justiça expri­me a ra­di­calidade, a urgência e a ulti­mi­dade da responsabilidade da huma­ni­dade. Ao Ocidente rico e poderoso é muito duro ter que viver no meio da realidade sofrida do mundo. Por isso, faz-se rodear de ambientes artificiais de como­didade e de abundância, onde o clamor das vítimas não chega. Mas é inútil toda esta habilidade, porque o so­frimento suportado pelas vítimas é uma denúncia profética permanente.

Diante da existência massiva de vítimas é inevitável perguntar porquê o poder aniquila de maneira tão de­vastadora e cruel pessoas e colectivi­da­des, na sua maioria inocentes, e que nem chegam a levantar-se contra ele.

A questão é ainda mais crítica, quando acontece num mundo como o nos­so, que conta com tanto desenvol­vi­mento científico e te­cno­lógico, econó­mico e democrático, intercomunicado e globalizado. A injustiça da história sur­ge aqui em toda a sua crueza e põe em causa um poder que parecia absoluto. Pelos vistos, é uma história que, a julgar pelos factos, não consegue pro­gredir sem produzir vítimas.

Ora, quando a história é olhada a partir da injustiça, salta à vista a neces­sidade de a reverter, a partir da justiça e da libertação, mesmo quando estas, apa­rentemente, tenham poucas possibilidades de êxito.

O poder da injustiça não só se apresenta como absoluto, mas também faz vir ao de cima a impotência pe­rante a sua força destruidora. Esta sensação de impotência e de aban­­dono tem feito desanimar a não poucos, os quais pre­fe­rem aceitar a in­justiça como inevitável e, com rapidez surpreendente, apren­de­ram a viver com ela. A comodidade que o progres­so oferece é uma espécie de tranquili­zante eficaz para quem ainda pudesse ficar de má consciência pe­rante as vítimas.

3. A redenção da violência

 Do ponto de vista evangélico, a violência é sempre um mal e “um mal maior do que se pensa” (I. Ellacuría). Em consequência, a violência é pecado e não qualquer pecado, mas um dos grandes pecados mortais destes tem­pos, devido à massiva quantidade de vítimas que produz. É o lado mais obs­curo da humanidade, o qual tem poder para configurar a história, como, de resto, já S. Paulo o denunciou (Col 3, 5). O mesmo Paulo observou que o seu dinamismo procede da cobiça ou da concupiscência do dinheiro e da con­cupiscência do poder. O resultado ine­vitável é o predomínio da injustiça e o atropelo do débil, um pecado muito fus­tigado nos dois Testamentos bíblicos.

A resposta cristã à espiral de vio­lência é a redenção, portanto, a cruz. Ellacuría advertia que é erróneo, tanto do ponto de vista sociológico como teo­lógico, pensar noutra espécie de res­pos­ta. A redenção da violência começa pela conversão. Quando a mensagem profética denuncia o pecado, exige a con­versão radical do coração. Ao cora­ção que faz da posse e do poder o seu deus, exige-lhe a troca por um outro, dedi­ca­­do ao serviço e ao amor. Sem uma trans­formação da mente e do coração é impossível esperar uma mu­dan­ça dos comportamentos e das es­truturas injus­tas. Esta conversão de­semboca na e­x­piação e na penitência, entendidas como entrega e abertura radical aos de­mais, sobretudo aos mais pobres e abandonados.

A vida do seguidor de Jesus é tão aberta e à intempérie, que facilita que os demais a possam arrebatar ou até tirar. Como aconteceu com Jesus, a quem não tiraram a vida, contra a sua vontade, porque ele é que a entregou a quem lha queria tirar.

Os detentores do poder injusto só podem converter-se, isto é, chegar a ser cristãos, fazendo-se violência radi­cal, isto é, a violência da cruz. Não é qual­quer espécie de violência, mas uma violência redentora, configurada crista­mente e, por isso mesmo, muito diferen­te da violência-crime. O Evangelho exor­ta a renunciar à posse da riqueza e ao Ter concupiscente. Em consequên­cia, a autenticidade cristã dos actuais detentores da ordem estabelecida é mui­to questionável.

A violência redentora compreende a responsabilidade pessoal, a humani­za­ção da pessoa e a transformação das estruturas pecaminosas que predis­põem ao exercício da violência, e que a tole­ram e justificam. Estas estruturas são injustas e contrárias ao Evangelho. É também inegável a existência de um pecado histórico, o pecado dos tem­pos, o do poder injusto.

A conversão pessoal é difícil, mas a colectiva é impossível, se não for for­çada pelas circunstâncias. Isto obriga a exigir a conversão contra a vontade injusta dos detentores do poder que violenta o débil e lhe negam uma vida pessoal, portanto, cristã. A dificuldade da conversão radica em que ela não é pos­ssível sem algum tipo de morte.

Converter-se é morrer para a vida ante­rior, ou, em termos mais tradicio­nais, morrer para o pecado. E, como qual­quer morte, também esta é muito dolorosa e tem muito de abandono. É o que Ellacría chama uma “morte cru­cificada”.

Não é fácil falar nestes termos tão duros e estranhos a um mundo oci­dental que vive bem. Mas é esta ma­neira de falar que aprendi de Mons. Romero e, em particular, de I. Ellacu­ría. Mas ainda mais radical é a manei­ra de falar do Novo Testamento.

A conversão colectiva, como a pes­soal, é uma transformação do co­ração. A luta deve travar-se dentro da história e sem fazer violência, nem criar mais vítimas. O mundo e a violên­cia só podem redimir-se penetrando nas suas profun­didades, lá onde se decidem as encru­zilhadas da história.

Assumir o pecado da violência des­ta maneira activa arrasta consigo um risco muito grande, porque quem o faz expõe-se a ser triturado por ele. Este risco de sucumbir ao poder do pecado que se combate não deve ser assumido como o preço social a pagar para cons­truir uma convivência pací­fica. Possui um sentido teológico pro­fun­do. Carregar com a violência injus­ta, e fazê-lo a partir duma postura de não-defesa, tem valor salvífico, é a re­denção da hybris e da mística da vio­lência.

Não se trata de buscar o sacrifício no que ele tem de efusão de sangue. A tradição cristã afirma que sem der­ra­mamento de sangue não há reden­ção, ou, em palavras mais actuais, o pecado não se erradica sem se carre­gar com ele. De facto, o sangue dos már­tires latino-americanos, simboliza­dos em Mons. Romero, foi muito. Ne­nhum deles buscou de forma directa o sacrifício. Veio-lhes por acréscimo e como consequência da sua luta insu­bornável contra o pecado do mundo. Todos eles entraram nas  en­tranhas do pecado do mundo com a in­tenção de o redimir. Mas ele matou-os.

Cabe aqui fazer memória da Ella­curía e seus companheiros da UCA de San Salvador. E com eles, de todos os mártires do povo salvadorenho e centro-americano. Nem mesmo Jesus buscou derramar o seu sangue na cruz como um fim em si mesmo. Não veio para ser crucificado, mas para pregar o Reino de Deus, chamar à conversão e ofere­cer a salvação. O seu ofereci­mento não foi aceite pelos poderosos do seu tem­po. A sua fidelidade à mis­são recebida do Pai, converteu esta rejeição em sal­vação. Esta veio pela redenção cruenta, expressada em ter­mos de sacrifício, cruz e sangue.

Jesus Cristo ensinou-nos que o ca­minho da redenção passa pela encar­na­ção entre aqueles que se pretende redimir. A sua encarnação e a de tantos discípulos que o seguiram mostra que, em palavras da Carta aos Hebreus, “segundo a lei, quase todas as coisas devem ser purificadas com sabgue e sem efusão de sangue não há remis­são” (9, 22). A violência social é o resul­tado da tremenda eficácia do predomí­nio desta lei injusta e pecaminosa.

Esta “efusão de sangue” não deve ser entendida de maneira literal. Con­tudo, a imagem é válida para mostrar a intensidade com a qual a redenção da violência exige a purificação e a re­no­vação. À objecção, muito racional, certamente, que rejeita a encarnação e os seus riscos e, portanto, a redenção da violência, por as considerar a ambas um fracasso anunciado de antemão, é preciso responder que o sofrimento e a morte não se esgotam em si mesmos. Apontam mais longe, à ressurreição, embora esta passagem da morte à res­surreição só seja possível por um difícil acto de fé, que descobre a vida sob a forma de negatividade histórica absolu­ta.

Isaías, nos cantos do Servo, di-lo com muita força, “Aos que me batiam apresentei as espáduas, e a face aos que me arrancavam a barba; não des­viei o meu rosto dos que me ultrajavam e cuspiam".

Jesus deixou que a violência des­car­re­gasse toda a sua força contra ele, até a esgotar, segundo a interpretação paulina, para a qual remetem exegetas como Xavier Alegre. Na cruz de Jesus, segundo a metáfora utilizada por estes exegetas, a violência e o pecado des­car­regaram toda a sua fúria sobre ele, de tal maneira que uma e outro acaba­ram por ficar sem força. E assim ficaram derrotados.

Jesus também viu a luz, quando Deus o levantou de entre os mortos, o exaltou e o sentou à sua direita. A res­surreição é a esperança da morte re­den­tora. É uma esperança que não só aguarda um céu novo, mas também uma terra nova, uma das aspirações mais anigas e genuinas da humani­da­de crente.

O fazer novos o céu e a terra é o culminar da encarnação de Deus, na humanidade. Projectar esta nova terra para depois da história é negá-la. Je­sus ensinou aos discípulos que o Reino de Deus já se encontra no meio da hu­manidade, embora de forma misteriosa. Mas é assim que deve começar a dar fruto.

A dor e a morte das vítimas devem abrir passagem à verdade, à justiça e à paz. A existência de vítimas é uma das questões limite da experiência hu­mana. Além disso, é um limite insupe­rável, porque a humanidade anseia que o verdugo não triunfe sobre a sua víti­ma. As vítimas são o lado mais obscuro da história, mas ao mesmo tempo abrem a possibilidade para a esperan­ça com a chegada da libertação.

Aos defensores da liberdade sem mais, é pre­ciso recordar-lhes que uma liberdade sem verdade e sem justiça, uma liberdade sem libertação, não pas­sa duma fórmula sem conteúdo. Costu­ma ser um privilégio para os poucos que vivem no luxo e na tranquilidade, à custa do despojo e da opressão da maior parte da humanidade.

Os primeiros e mais determinados na luta contra o pecado da violência e da pobreza deveriam ser os cristãos e as cristãs, mas sem chegarem a fazer uso da violência. O testemunho cristão não se dá através da violência, mas isto não significa que tenhamos que ficar resignados a aguardar tempos mais justos e pacíficos. Tão pouco se deve deixar o trabalho “sujo” a outros, per­manecendo à margem entre os “pu­ros”, entre os que nunca sujam as mãos.

O testemunho pleno de que a vida está por cima da morte, de que o amor está por cima do ódio, é a nossa ma­neira de tentar redimir a violência. Ao cristão, como a todo o ser humano, cabe-lhe combater toda a forma de in­jus­tiça. Mas o específico do cristão é ser ele o primeiro e o mais determina­do nessa luta, até dar a própria vida, se for necessário, e usar sempre meios que exprimam a supremacia da vida sobre a morte. Esta disposição é a que lhe outorga credibilidade diante dos demais.

4. Fé, esperança e ressurreição

O risco de que a força destruidora do pecado do mundo se volte contra quem carrega com ele e inclusive o des­trua, como aconteceu com Jesus e os mártires, só pode ser assumido des­de esse acto de fé profundo que vê a luz e a salvação mais para lá das con­se­quências que a entrega incondicional aos demais pode trazer.

A vida não termina com a morte do redentor ou do mártir. Quando a morte não é apenas consequência de limitações biológicas, nem tão pouco do desgaste produzido pelo esforço de manter a própria vida, mas é também consequência da entrega por amor aos outros e ao combate ao que neles há de opressão e de injustiça, dá-se uma analogia com a vida e a morte de Je­sus. Então, e apenas então, subli­nha Jon Sobrino, se participa na espe­rança da ressurreição.

Sem comunhão com o crucificado, a ressurreição é apenas uma possibili­dade de sobrevivência, uma referência ambígua, pois pode tanto pode ser para a salvação como para a condenação. A esperança na sobrevivência salvífica participa primeiro na cruz de Jesus e, por derivação, nas cruzes da história.

Ao ser uma esperança crucificada, isto é, que se abandona de forma in­con­dicional, é uma esperança contra a esperança, tal como adverte Paulo. A esperança cristã está crucificada, não só porque possui a sua própria obscu­ridade, mas porque, por agora, a injus­tiça mata e porque o seu poder  de matar parece não ter fim.

O grande escândalo da história é este poder que aniquila de forma cruel e devastadora pessoas e colectividades e a própria criação.

O escândalo primá­rio da humani­da­de não é a morte em si mesma, um destino universal, mas o assassinato do justo e a possibilidade, sempre aber­ta, de lhe dar a morte. O modo cristão de enfrentar este grande es­cândalo é o mesmo que se põe com a morte pessoal. Porém, antes de ter que se confrontar com a sua própria morte, o cristão e a cristã têm que se confron­tar com a morte injusta do outro. Deste confronto, o seguidor de Jesus tira va­lor para esperar a própria ressurreição, pois é o mesmo valor com que espera a superação da morte do inocente.

Não se trata, pois, como no recorda Jon Sobrino, duma esperança para lá da morte, mas duma esperança contra a morte das vítimas. Por isso é uma es­perança crucificada com elas e contra a esperança. É uma esperança que não se fixa em si mesma, mas que se es­que­ce de si para recobrar-se na morte dos povos crucificados, tal como cha­mou Ellacuría às vítimas colectivas da injustiça, as quais se contam por cente­nas de milhar.

O sentir mais elementar de hu­ma­ni­dade e o sentir cristão mais pro­fundo não pactuam com esta morte. Mais, condenam-na como facto escanda­loso. Porém, não se contentam com a indi­gna­­ção e a compaixão à distância. Quem está animado desse sentir, sente-se obrigado a abandonar a sua como­di­d­­a­de e a sua tranquilidade, mesmo que legítimas, para assumir a defesa do inocente e para esforçar-se por bai­xá-lo da cruz e dedicar a sua vida a evitar que haja mais cruzes.

Para o cristão, este escândalo his­tó­rico converte-se na mediação do que de escândalo ele encontra na sua pró­pria morte. Dito de forma positiva: a es­perança na própria ressurreição vive da esperança na ressurreição das víti­mas da injustiça. Assim pois a ressur­reição de Jesus coloca, como primeira exigência, a esperança para as vítimas e a participação activa nela. Daí a se­gunda exigência: apropriar-se dessa es­perança duma forma activa, esfor­çando-se por evitar mais mortes inocen­tes, mesmo quando se corra o risco de se converter numa vítima mais, tal como testemunha a pléiada de mártires cristãos e, em particular, os latino-ame­ricanos.

Portanto, o anúncio da ressurrei­ção de Jesus não pode ser substituído por outros símbolos de esperança para lá da morte, que proliferam por aí nas religiões e correntes filosóficas, passa­das e presentes.

A solidariedade radical com as víti­mas abre, pois, o caminho para en­contrar a esperança pessoal na res­sur­­reição de Jesus. A compaixão e o amor que a movem  desde as profun­didades do coração, predispõem a tra­balhar para acabar com o poder maligno da his­tória.

Não é uma esperança fácil, uma vez que passa pelo escândalo de se apropriar da realidade das vítimas. Mais. O triunfo momentâneo do verdu­go e a pergunta sobre o destino final das suas vítimas tornam-se mais críticos quando se descobre um Deus próximo, carinhoso e a favor delas.

A esperança nunca foi fácil, porém esta é uma esperança real. Só aquele que penetra no centro da iniquidade humana, encontra a luz que lhe permi­te compreender com clareza a trama pro­funda da história, porque a luz que irra­dia o Servo sofredor de Isaías des­cobre as profundidades do coração humano, o melhor e o pior.

Assim, pois, é legítimo esperar que o verdugo não triunfe sobre a vítima e é legítimo esperar a ressurreição da vítima e também a nossa, se tivermos sido solidários com o seu destino. Vista assim, a esperança é um dom que as vítimas nos entregam, desde a nega­ção e o abandono aparentes da histó­ria. Abre-nos à transcendência. Porém, para recebermos este dom, temos que colocar-nos do lado delas.

Encontrar este lugar é relativa­men­te fácil. Não é um sítio excepcional, mas o mais comum da humanidade de todos os tempos, o mundo dos crucificados, ou melhor ainda, dos povos crucificados.

A cruz de Jesus, antes de se con­verter “na” cruz, foi uma cruz como as muitas que houve antes e depois dele. As vítimas às quais é dada morte violenta, são homens e mulheres cruci­fi­ca­dos; outras vítimas morrem de lenta crucifixão, por causa da injustiça.

Por isso a cruz é o sítio onde a es­pe­rança se torna universal e a res­surreição se converte num sinal, na medida em que participamos, de forma análoga, na vida e na morte das víti­mas.

É-nos permitido esperar também que o poder de Deus aniquilará o po­der destruidor do pecado do mundo. Não esqueçamos que a novidade e o es­cândalo da mensagem da páscoa cristã é que o condenado, o crucificado e abandonado é o mesmo que foi le­van­tado de entre os mortos, antes que todos os outros, pelo poder de Deus.

A esperança suscitada pela res­surreição de Jesus abre-nos o futuro ao Reino de Deus. Ela, ainda mais do que as políticas económicas e a demo­cracia, embora tudo isso possa ser mui­to útil, mas como meio ou instrumento. 

A esperança suscitada pela res­surreição de Jesus hoje brota nas ví­ti­mas condenadas à morte, rápida ou lentamente, e abandonadas à sua sorte, por um mundo que nem sequer  guarda memória delas.

A esperança verdadeira é que não haja mais vítimas e que a justiça e a paz sejam realidades quotidianas.

Para quem está do lado das víti­mas, a esperança é mais forte que os impulsos primários do verdugo. São as vítimas quem nos ajuda a crer e a cons­truir a esperança.

O futuro não pode construir-se so­bre mais violência e mais vítimas, mes­mo quando se trate de violência con­tra os verdugos. A força da espe­rança não está na aniquilação, mas numa nova forma de vida.

Sem fé, sem esperança, sem dis­posição para pedir perdão e para re­ce­ber perdão, sem superar o egoísmo, individual e colectivo, sem abertura à família humana, ao gozo de sermos humanos umas com os outros e sem a transcedência para onde nos atiram o Reino de Deus e a ressurreição - não haverá possibilidade duma vida nova, humana e verdadeiramente cristã.


Mensagem do XXV Congresso de Teologia

Redigida e lida pelo teólogo JJ. Tamayo Acosta

1. A paz é um dos bens mais apre­ciados e desejados pela humanidade, mas é também um dos mais frágeis e ame­a­çados. Se percorrermos as etapas da história humana à procura de um estado de paz, em vão o procurare­mos. A humanidade parece seguir a pa­lavra de ordem: “Se queres a paz, prepara a guerra”.

Para a causa da guerra total, está a contribuir hoje o choque de civili­za­ções, que constitui o guião da política internacional e espera das religiões a função ideológica de legitimar o con­fronto entre civilizações e culturas. Ou­tro obstáculo para o êxito da paz no mundo são os diferentes terrorismos: o de Estado e do Império que, em aras do seu omnímodo poder, agride socie­da­des inteiras; o ecológico, que defen­de as façanhas tecnológicas mais des­lumbrantes, gerando morte à sua volta, sem resolver o problema da pobreza; o terrorismo de massas que, por vezes, surge da miséria e da marginalização; o terrorismo de raiz religiosa que apela à imagem de um Deus violento, muito presente na maioria das religiões e nos teísmos políticos, para justificar as ac­ções terroristas, as agressões bélicas e as invasões de outros países.

2. Não podemos ignorar outra das mais graves manifestações da violência: a que gera desigualdade e pobreza: 2.500 milhões de seres humanos so­bre­vivem com menos de dois euros por dia; 35.000 meninos e meninas morrem de fome; as 500 pessoas mais ricas do planeta dispõem, sozinhas, de mais ri­queza que os 416 milhões de pessoas mais pobres; 18 países, com um total 460 milhões de habitantes, pioraram o seu nível de vida nos últimos 15 anos; em Espanha, há mais de 8 milhões de pobres. É escandaloso que se condene a violência do terrorismo e se silencie a violência que sofrem os pobres.

3. A violência contra as mulheres na sociedade e nas religiões foi obje­cto de análise no Congresso. As religi­ões nunca souberam lidar com as mu­lheres, especialmente a Igreja católica, cuja hierarquia não costuma condenar a violência de género e, nalguns casos, até a fomenta e pratica. A violência está também muito presente no desporto e na educação; clama ao céu a violência que se exerce contra as crianças, como demonstra a terrível situação das crian­ças escravas em África.

4. Ao actual clima de violência, jun­ta-se o incremento nas despesas milita­res que, em 2004, ascendeu a mil mi­lhões de dólares em todo o mundo, e cujas principais consequências são: a sobredimensão das forças armadas, a potenciação da indústria de armas e do seu comércio e a investigação cien­tí­fica orientada para fins militares.

5. Após a análise, procuramos en­contrar as raízes das diferentes formas de violência, já que só vendo as causas se pode indicar o remédio para com­ba­ter os seus efeitos perversos. E estas são as seguintes: antropológica: a agres­sividade é tão inata ao ser huma­no como a fome, o sexo e o medo; eco­nó­mica: o sistema neo-liberal vi­gen­te hoje na maioria das sociedades é estruturalmente injusto e gerador de pobreza e de exclusão; o sistema pa­triarcal, que exerce sistematicamente a violência de género contra as mulhe­res; as próprias religiões: exis­te uma falta de sintonia entre as men­sa­gens de paz que as religiões ofe­recem e algumas das suas manifes­ta­ções his­tóricas violentas através das quais con­se­guiram impor-se pela força das ar­mas. O cristianismo fomentou e prati­cou a violência para converter os cren­tes de outras religiões, conquistar terri­tó­ri­os e impor a sua fé. Inclusive, a dou­tri­na social da Igreja elaborou uma teo­lo­­gia da guerra justa sem se preo­cupar em elaborar uma teologia da paz. Não foi esse o espírito de Je­sus de Na­zaré, o qual continua os pas­sos do pa­cifismo dos profetas, inscreve-se no ca­minho da sabedoria, trata Deus com o carinho­so nome de Abbá e foi ele pró­prio víti­ma da violência por de­nunciar um sta­tus político-religioso injusto e violento.

6. Depois da análise da violência e das suas causas, o Congresso quer oferecer algumas propostas concretas:

* Julgamos necessário transferir recursos com as despesas militares para as necessidades sociais, o que exi­girá, entre outras práticas: a destrui­ção generalizada dos arsenais nuclea­res e convencionais, a reconversão da indústria militar para as produções ci­vis, e o desaparecimento das alianças militares, juntamente com acções de responsabilidade individual e colectiva, como as objecções fiscal, científica e financeira.

* Somos defensores do método da não-violência activa libertadora, defen­dida pela maioria dos líderes religiosos e morais que trabalham por um mundo reconciliado, sem guerras, dominações e terrorismos, embora reconheçamos as enormes limitações que o método tem. Na tradição cristã nunca faltaram minorias críticas para com a violência e defensoras da paz, baseadas no Ser­mão da Montanha, como Francisco de Assis, os mennonitas (séc. XVI), o Movi­mento dos Irmãos (séc. XVII) e os Nin­guéns (séc. XVIII). Os teólogos da liber­ta­ção também deram importantes con­tri­bu­tos neste campo.

* É necessário passar da actual glo­balização da violência à mundiali­za­ção da paz, o que implica a solução dos conflitos através do diálogo, e subs­tituir a actual teologia da guerra justa por uma teologia da paz. Isso exige com­prometer-se com a causa da recon­ci­liação para fomentar uma convivência pacífica e um desenvolvimento justo e sustentável, e criar uma cultura da paz em todos os âmbitos da realidade: a educação, a família, as religiões, o des­porto...

Numa palavra, a alternativa à vio­lência é o diálogo entre culturas e reli­giões e o trabalho pela justiça. Não há paz social sem justiça económica e ecológica. Como afirma o salmo, “a jus­tiça e a paz beijam-se”

Madrid, 11 de Setembro de 2005.


CEBs do Brasil realizaram 11.º encontro nacional

Frei Gilvander Moreira

Uma Igreja toda ministerial

e aberta aos novos desafios

O 11.o Intereclesial das CEBs (Co­munidades Eclesiais de Base) ocorrido de 19 a 23 de julho de 2005, em Ipatin­ga/Mato Grosso, foi um evento histó­rico para o Vale do Aço, para Minas Gerais e para o Brasil em geral.  O te­ma foi a Espiritualidade Libertadora. E o lema, Seguir Jesus Cristo no com­pro­misso com os Excluídos.

As CEBs têm uma origem próxima e uma origem remota; são um jeito muito moderno e muito antigo da Igreja ser Povo de Deus.

As CEBs são filhas de Abraão e Sa­ra, um casal de sem terra que entrou para a história como pai e mãe das três maiores religiões monoteístas:  Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. No movimento das mulheres e das partei­ras do Egipto, já estavam sendo gesta­das. Quando as parteiras fizeram greve e promoveram desobediência civil, tor­naram possível a existência de Moisés, um dos libertadores do povo hebreu das garras do império dos faraós.

 As CEBs estavam nascendo no mo­vimento de Jesus de Nazaré que, ao optar pelos pobres e excluídos, teste­mu­nhou um jeito de viver libertário. As­sim são filhas das Primeiras Comunida­des Cristãs que, sob a liderança dos He­­lenistas e das mulheres, foram vi­venciando o projecto do Evangelho de Jesus que é óptima notícia para os po­bres,mas péssima para os opressores.

No Brasil, na história mais próxima, podemos dizer que, nascidas na déca­da de 60 do século passado, as CEBs foram um celeiro de vocações libertá­rias, políticas e sindicalistas. No 11.º Intereclesial das CEBs, o que mais ex­pressa a alegria dos participantes é a música: “Que sabedoria é essa, que vem do meu povo? É o Espírito Santo agindo de novo”. Dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra, entusiasma-se: “É um grande Pen­te­costes!”

Alguns números revelam a magni­tu­de do encontro: 3.806 participantes, dos quais 3.219 eram representantes de CEBs de todo o Brasil, 112 assesso­res, 89 indígenas representantes de 32 nações indígenas; aproximadamente 3.000 leigos e leigas, 420 religiosas e re­ligiosos, 380 padres, 50 bispos cató­li­cos e 2 bispos anglicanos, 70 pessoas vin­das de outros países, 288 convida­dos, 48 pessoas de outras onze Igrejas cris­tãs, das quais 23 pastoras e pas­tores.

 Da Carta Final do 11.o Intereclesial às CEBs de todo o Brasil e à sociedade em geral podemos destacar:

“Acreditamos na vocação profética das CEBs, contribuindo para que a Igreja em suas estruturas se torne mais circular, colegial, acolhedora, inclusiva nas suas relações de género, como pro­pu­se­mos no X.º Intereclesial em Ilhéus: “Sonhamos com uma igreja participa­tiva, toda ministerial, unida no respeito pela diversidade, missionária, uma i­gre­ja mãe, acolhedora, defensora dos pobres e excluídos, aberta aos novos desafios. Uma igreja onde o poder seja mais partilhado, abrindo espaço para a participação das mulheres em todas as suas instâncias de serviços e deci­sões”.(...)

O actual modelo económico é into­lerável. Ele subordina nosso país ao capital financeiro e desestrutura nossa sociedade. É urgente o esclarecimento dos factos de corrupção política ocor­ridos no actual governo e nos anterio­res, punindo-se exemplarmente os res­pon­sáveis. Exigimos o restabelecendo da transparência e da ética na esfera política e social. Comprometemo-nos a seguir somando forças com os movi­mentos populares, sindicais e outras instituições da sociedade civil e a mo­bilizar-nos para mudarmos esta situa­ção, engrossando o mutirão ‘Por um Novo Brasil’, a que nos chama a IV Se­mana Social Brasileira.”

Os 52 bispos presentes no encon­tro, além do testemunho de suas pre­senças, dedicaram uma mensagem ao povo das CEBs: “Testemunhamos a importância das CEBs na vida da Igreja e da sociedade. As CEBs foram gestadas no contexto do Vaticano II. Amadurece­ram e se multiplicaram no Brasil, na A­mé­rica Latina e Caribe, sendo lugar de evangelização e promotoras de li­ber­tação, (...) O 11.º Intereclesial das CEBs reafirma que a Igreja deve ser Po­vo de Deus, incentiva a prática da comunhão e participação; impulsiona a evangelização libertadora, com uma visão ecuménica e aberta ao diálogo inter-religioso e faz memória dos nos­sos mártires.(...) Nós nos compromete­mos a encaminhar para nossas dioce­ses as aspirações levantadas a partir das reflexões em torno da temática do encontro, “espiritualidade libertadora”, e a dar o nosso apoio a todos e todas que se colocam a servir Jesus Cristo na opção pelos Excluídos. Pedimos aos irmãos no episcopado que apoiem as CEBs de maneira corajosa; orientem os padres, seminaristas e agentes de pas­to­ral para que assumam sua cami­nhada.”

As CEBs ajudam o povo a passar da consciência ingénua para a cons­ciência crítica e criativa. São fermento, sal e luz. Da massa da população bra­sileira, as CEBs formam um povo: grupo consciente e organizado que tem um projecto de vida. São uma maneira de se perceber que a igreja cristã vem das bases.

O trém das CEBs segue seu percur­so, rumo a Porto Velho, em Rondônia, onde em 2.009, acontecerá o 12.o In­te­reclesial. A missão continua. Cantan­do, celebrando, reflectindo, informando e assumindo compromissos, aprende­mos a peneirar sofrimentos e alegrias, de­safios e conquistas, misturando fé e vida. No seguimento de Jesus Cristo e dos pobres, somos enviados pelo Es­pírito para servir vida e liberdade a to­dos os homens e mulheres. Invocamos a bênção da Trindade, a melhor comu­nidade.

Até o 12.o Intereclesial das CEBs vamos, no dia-a-dia, nas lutas, nos en­contros de CEBs diocesanos, em nos­sas comunidades, construindo o proje­cto de Jesus que é o projecto do Deus dos pobres e dos pobres de Deus. AMÉM! AXÉ! AWERÊ! ALELUIA! UAI!


O pensamento do novo Papa

José I. González Faus (Teólogo de Cristianisme i Justicia)

Desejo oferecer uma aproximação jornalística ao pensamento do novo papa, útil a crentes e não crentes, que talvez não saibam o que pensar a partir de tudo o que ouvem e também não são capazes de ler a sua extensa obra. Vou sistematizar alguns textos, tirados da obra “O novo povo de Deus”. A maioria deles são comentários ao Concílio Vaticano II. Vou sistematizá-los em seis capítulos de grande actualidade.

1. O cristão. Para explicar a iden­tidade cristã, Ratzinger combina duas respostas que outros teólogos se em­pe­nham em contrapor: “A primeira diz: Quem tem o Amor tem tudo. O Amor é suficiente. Quem tem o Amor é cristão de maneira completa, simples e abso­luta... O «sacramento do irmão» apa­rece aqui como o único caminho sufi­ciente de salvação. É no próximo, como a «incógnita de Deus», que se decide o destino de cada pessoa. O que salva não é que alguém conheça o nome do Senhor (Mt 7, 21); o que se pede a ca­da pessoa é que trate humanamente Deus misteriosamente escondido no ser humano” (p. 391).

O problema desta resposta tão exa­cta é que “ninguém tem realmente o Amor (cf. Romanos 3, 23). Todo o nos­so amor anda reiteradamente corrom­pi­do, deformado pelo egoísmo”. Preci­sa­mente por isso “aqui surge a segun­da resposta do Novo Testamento que diz: Só uma coisa é necessária: que abramos as mãos e aceitemos o dom da Sua (de Deus) misericórdia. S. Paulo chama «fé» a este movimento de nos abrirmos para recebermos o dom do amor representativo do Senhor.

“Esta resposta deixa claro que há uma fé de prática de vida, que é an­terior à fé de conteúdos (uma «fé antes da fé», chama-lhe Ratzinger), e que “é o contrário daquela prática que os an­tigos chamavam hibris, portanto, que não tem nada a ver com a auto-com­pla­cência farisaica, nem com uma santi­da­de conseguida a pulso” (p. 392).

É por isso que “o Novo Testamento diz ao mesmo tempo que “o Amor só por si basta” e que “a fé só por si bas­ta”... As duas afirmações juntas apon­tam para uma prática que exige sairmos de nós mesmos, vivermos de costas pa­ra o egoísmo, e de frente para o outro.

Por isso o irmão, o próximo, é o ver­dadeiro campo de prova desta disposi­ção de espírito; no “tu” do próximo vem a cada um de nós, de forma incógnita ou escondida, o “tu” de Deus (p. 393).

Brota daqui uma conclusão funda­mental: “ninguém é cristão para si mes­mo, mas para os outros, ou melhor: só se é [cristão] para si mesmo, quando se é homem/mulher para os demais” (397).

2. A Igreja. De acordo com esta vi­são do cristianismo, a primeira coisa que a Igreja deve saber antes de mais é que “a divinização do sistema e das ins­tituições é falsa. Nem o sistema nem a obediência a um sistema salvam o ser humano; só o que está sempre aci­ma de todos os sistemas: o amor e a fé” (p.394).

Daqui se segue que “a Igreja, como sinal do amor divino, não pode ser um círculo esotérico, mas essencialmente um espaço aberto... uma realidade di­nâ­mica” (399). Precisamente “o não estar ligada a nenhuma forma deste mun­do, dá à Igreja a força para ela se dirigir a todo o mundo” (p.422). Como se vê, estas são observações muito per­tinentes perante a ingente tarefa de se desocidentalizar o cristianismo.

Mas por serem assim as coisas, en­tão “o que a Igreja de hoje e de todos os tempos verdadeiramente precisa não é de panegiristas do que existe, mas de pessoas... que a amem mais do que à comodidade e à intangibili­dade do seu destino pessoal”. Pois “a verdadeira obediência não é a dos a­du­la­dores... que evitam todo o conflito e põem a sua intangível comodidade acima de todas as coisas” (p.292).

Por isso pergunta-se Ratzinger se o facto de não haver pessoas na Igreja que se atrevam a falar com liberdade “é sinal de melhores tempos, ou sinal de um minguado amor, próprio de quem já não se lhe queima o coração pela causa de Deus neste mundo... um amor que se deixou cair na rotina e já não é capaz de sofrer pela amada” (p.290).

Movido por um amor assim autên­tico, pergunta-se Ratzinger se à Igreja de hoje “não haverá que a reprovar, por ela, num excesso de zelo, ter feito tantos pronunciamentos e ter imposto tantas normas; é que tantas normas e pronunciamentos contribuíram para a­ban­donar ainda mais o mundo à sua in­credulidade, do que para o salvar da sua incredulidade... Por outras pala­vras: por vezes, a Igreja põe tão pouca confiança na força vitoriosa da verda­de..., entrincheira-se em falsas segu­ran­ças, em lugar de confiar na verdade que vive na liberdade e que não precisa de semelhantes precauções” (p.294-295).

Ratzinger sabe também que uma das tarefas de hoje é descentralizar o papado: “A Igreja, que é o povo uno de Deus, compõe-se de muitos povos deste mundo que... trazem a riqueza dos seus diversos dons à cidade única e escatológica de Deus... A Igreja una compõe-se de muitas «igrejas» nos lu­ga­­res e regiões do mundo, e só a va­rie­dade das igrejas que mantêm a mú­tua comunhão no vínculo da unidade, da caridade e da paz, constitui a uni­dade realizada da Igreja católica” (p. 423).

Esta tese “leva à intuição concreta da mútua responsabilidade das igrejas particulares entre si: a responsabili­da­de pelos membros não é assumida uni­ca­mente pela cabeça (neste caso, o papa e a igreja principal de Roma), mas também pelos próprios membros, isto é, as igrejas particulares assumem a responsabilidade umas pelas outras” (p.424).

3. O mundo. O Vaticano II pediu à Igreja uma tríplice abertura: “às fon­tes, aos outros cristãos e às interroga­ções da Humanidade inteira” (p. 321). Por isso, “a Igreja deve falar, pensar e ser de maneira que os outros possam perceber e entender a palavra que ela lhes dirige (p.318).

Ratzinger insiste com frequência em que o esquema bíblico da fé no ju­deo-cristianismo é: “uns poucos a favor de muitos (ou de todos)”. De acordo com isso, “o mundo deve ser aceite e respeitado como tal pela Igreja... pela simples razão de que a Igreja não é Cristo”. Por isso “não é possível enten­dê-la como fim em si mesma, pois ela pertence essencialmente à ordem dos meios... Por isso, a autoridade eclesiás­tica não pode suprir os peritos nas res­pe­ctivas ordens da realidade, mas unicamente reconhecê-los... Tão pouco pode suprir a competência científica da teologia, mas deve também reconhecê-la e dar-lhe ouvidos como tal” (p. 330).

4. A teologia. Uma palavra sobre a teologia. Em primeiro lugar, “a mensa­gem cristã diz-se sempre em lingua­gem humana... O que pressupõe repen­sar a palavra divina em categorias hu­ma­nas; não se diz nunca na sua abso­luta e incontaminada pureza divina...

No kerigma (mensagem transmitida) há sempre algo que em realidade não é kerigma, mas uma elaboração huma­na”. Por isso, “impõe-se em cada época a escuta paciente do que a humani­dade sabe de facto” (327).

Precisamente por isso, “quase to­dos os documentos [do Vaticano II]” mostram uma abertura que ultrapassa o que Ratzinger chama “teologia de encíclicas”: uma forma de teologia em que a tradição parece reduzir-se lenta­mente às últimas tomadas de posição do magistério papal”. Frente a essa ten­dência, o desejo do Concílio foi: “não olhar as fontes [cristãs] unicamente à luz da interpretação oficial dos últimos cem anos, mas lê-las e entendê-las em si mesmas,... escutar as reais interrogações do Homem de hoje e, a partir de­las, repensar a teologia. Sobretudo, es­cutar a realidade, «a coisa mesma», e aceitar as suas lições” (p. 318)-319).

Por isso, um ensino do magistério ecle­siástico “que nascesse do medo do risco da verdade histórica ou do medo do risco da realidade como tal, seria no seu todo, logo à partida, uma teo­lo­gia diminuída, uma teologia de pouca fé” (p. 320).

5. A reforma litúrgica. Não ca­bem aqui as respostas que Ratzinger dá aos que dentro da Igreja estão em­pe­nhados em regressar ao latim na litur­gia. Porém, podemos notar que essas respostas derivam duma determinada concepção da liturgia: “O culto divino mais autêntico da cristandade é o Amor” (p.346). Por esta razão, “a liturgia não tem por fim encher-nos, entre temor e tremor, do sentimento do santo, mas co­locar-nos frente a frente com a espada cortante da palavra de Deus. A liturgia não tem por fim assegurar um marco be­lo e festivo para o recolhimento silen­cioso e para a meditação, mas introdu­zir-nos no “Nós” de filhos de Deus e, com isso, no esvaziamento de Deus que desceu até ao ordinário... (p. 341). E isto significa que “para a reforma litúr­gica requer-se uma grande capacidade de tolerância dentro da Igreja... O supor­tar-se mutuamente... a largueza da caridade, são os únicos meios que podem criar o espaço em que o culto cristão ama­dureça em verdadeira renovação” (p. 346).

5. As religiões da terra. Mas não apenas espaços para o culto: tam­bém para a convivência entre religiões: “Para o cristão de hoje é algo inconce­bível que o cristianismo, mais exacta­mente, a Igreja católica seja o único ca­minho de salvação; com isso tornou-se problemático no seu interior o absolutismo da Igreja... Que todos os ho­mens «bons» se salvam é hoje um dado evidente”. E isso por uma razão que bro­ta da mais antiga tradição cristã: “a salvação do Homem consiste em ser amado por Deus. Ora, para o amor não há nenhum título jurídico, nem tão pou­co o amor se apoia em excelências mo­rais ou de outro tipo” (p. 367-369).

“As religiões do mundo converteram-se em interrogações ao cristianismo, o qual deve ser repensado perante elas, na sua pretensão, e receber delas, pe­lo menos, um serviço de purificação” (p. 402).

Tudo o que acaba de ser dito funda­menta-se no que significa Jesus Cristo e o que ele revela de Deus. Vejamo-lo então para concluir.

7. Jesus Cristo e Deus.

7. 1. Na sua introdução ao cristia­nismo, Ratzinger havia escrito que “a pessoa de Jesus é a sua doutrina, e a sua doutrina é ele mesmo”. Pois bem: sobre essa pessoa escreve agora: “a orientação existencial de Jesus, a sua verdadeira essência caracteriza-se pelo «a favor de». Se a salvação con­sis­te em fazermos como ele, então de­ve apresentar-se concretamente como participação nesse a favor de” (p. 396).

Ratzinger retoma aqui, para falar de Jesus Cristo, o termo teológico de “pro-existência”, que provém do protes­tante D. Bonhoeffer (“Jesus o homem para os demais”) e do católico da Ale­manha Oriental, H. Schürmann; e que é também fundamental por exemplo na cristologia de Jon Sobrino.

7. 2. “O primeiro grande ensaio du­ma teologia cristã, o discurso do diá­cono Estêvão, em Actos 7, faz ver que Deus não toma partido pela instituição, mas pelos que sofrem e são persegui­dos no decurso da História; e demons­tra cabalmente a legitimidade de Jesus Cristo, ao inseri-lo na linha dos perse­guidos, dos profetas da História” (p. 279).

Conclusão: eis aqui uma apre­sen­tação da fé que é fiel e aberta ao diálogo. Talvez alguém argumente que esta visão é do Ratzinger “jovem”, que hoje mudou o seu modo de ver. A essa argumentação dou duas respostas:

Em primeiro lugar, é difícil pensar que Ratzinger tenha mudado, precisa­mente nos textos aqui citados, porque quase todos eles são comentários ao Concílio Vaticano II (foi por isso que os escolhi); e creio que não se lhe fará nenhum favor, se se disser que ele aban­donou o Concílio Vaticano II.

Em segundo lugar, no caso de que o hoje papa Bento XVI já não pense assim, nem por isso deixa de continuar a ser verdade que, quando Ratzinger pensava assim, era um teólogo católico autorizado, muito reconhecido e total­men­te ortodoxo. Portanto, hoje, é abso­lutamente legítimo professar essas mes­mas opiniões teológicas no seio da Igreja!...



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