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DESTAQUE
Morre-se, e depois?
Morre-se, e depois? Não falta por aí quem, mesmo entre as populações católicas, responda assim a esta pergunta: “Morre-se e vai-se para o buraco. E acaba-se tudo”. Outras pessoas, marcadas certamente pelas antigas catequeses fortemente moralistas e aterradoras que foram obrigadas a frequentar em criança, adiantam: “Só o corpo é que morre e vai para debaixo da terra, onde fica a aguardar a ressurreição, no fim do mundo; a alma não morre, é imortal, por isso, é levada de imediato diante de Deus para ser julgada por Ele. E depois do julgamento, ou fica para sempre junto de Deus no Céu, se se tiver portado bem, enquanto esteve no corpo; ou fica no inferno para sempre, se se tiver portado mal”. Curiosamente, esta resposta é muito semelhante àquela que nos oferece o Catecismo da Igreja Católica (cf. n.os 1020-1060), neste início do século XXI e do terceiro milénio. Acrescenta-lhe apenas mais este pormenor não menos aterrador que os anteriores: Mesmo a alma que conseguir escapar às eternas penas do inferno, dificilmente escapará a um processo mais ou menos longo de purificação pelo fogo, no chamado Purgatório, até vir a ser considerada digna de ficar para sempre junto de Deus!!! E qual será a resposta de Jesus de Nazaré a esta mesma questão? Subscreve todo este moralismo rançoso e de vómitos do Catecismo da sua Igreja, a qual, entretanto, não hesita em correr a fazer da pretensa salvação das almas um chorudo negócio, ou, pelo contrário, abre-nos a impensáveis horizontes de vida, que só mesmo o Deus de Vivos que o ressuscitou a ele como o primogénito de todos os demais seres humanos, é capaz, e tudo por pura Graça sua, sem querer saber para nada de qualquer mérito nosso?
A resposta que o Catecismo da Igreja Católica adianta é puramente deísta e pagã. Em tudo igual à resposta que as diferentes religiões têm repetido através dos tempos, desde as mais primitivas às mais contemporâneas, todas elas ópio e terror para populações que se sentem oprimidas e impotentes num mundo e numa História que de modo algum conseguem controlar, muito menos, dirigir. Por isso, é uma resposta que nos dá mais do mesmo, bem nos antípodas do Evangelho, ou Boa Notícia do Deus de Vivos que se nos revelou em Jesus de Nazaré.
Ora, uma Igreja como a Católica, que responde à grande questão dos seres humanos “Morre-se e depois?” nos termos em que o seu Catecismo o faz, só pode ser uma Igreja que vive situada fora da influência do Sopro ou Espírito de Deus, por isso, nos antípodas de Jesus. Consequentemente, nem sequer é credora da confiança da Humanidade. É sal que perdeu a força. Vive instalada na rotina dos dias e na mais crassa preguiça teológica. Há muito que deixou de ser sinal ou sacramento do Deus de vivos que trabalha continuamente para levar por diante e ao seu termo a criação de interlocutores seus, mulheres e homens, constituídos em estado de maioridade e fecundamente criadores na História, que lhes cumpre acompanhar e humanizar, para se converter em mais uma empresa multinacional de religião, com estações de serviço religioso a funcionar a toda a hora nos mais variados locais onde vivem as pessoas.
Por isso aquela sua resposta só pode ser feita de mentira, do tipo engana-meninos-tira-lhes-o-pão. É uma resposta que serve às mil maravilhas para manter as populações cativas e resignadas dentro da presente Ordem económica mundial injusta. É uma resposta destinada a castrar as populações e a mantê-las castradas durante o breve período de tempo em que somos chamados a viver na História. É uma resposta destinada a acorrentar as consciências, a fazer das populações mais bestas de carga do que seres humanos criadores e protagonistas. É uma resposta concebida para desmobilizar as populações dos grandes combates históricos pelo Pão e pela Justiça, pela Liberdade e pela Paz, ou, na linguagem dos Evangelhos Sinópticos, dos grandes combates pelo Reino/Reinado de Deus dentro da História. É uma resposta que condena as populações a sentir-se encurraladas na História, como prisioneiras numa caverna, de onde só se conseguem libertar no momento da morte do corpo.
Mas o mais sádico da resposta do Catecismo da Igreja Católica é ela afirmar, sem pestanejar, que a libertação da alma do corpo, no momento da morte deste, longe de ser uma garantia de libertação para a liberdade, é, na maior parte dos casos, a passagem duma caverna o corpo humano para outra caverna infinitamente pior, chamada purgatório, ou inferno. E, no caso do inferno, uma caverna com inimagináveis penas que nunca mais terão fim!...
É claro que se a vida dos seres humanos fosse para se resumir a este breve inferno histórico, que é o viver aqui e agora da esmagadora maioria da Humanidade, logo seguido do inferno eterno, então melhor seria nunca termos nascido. Nem nos venham a correr dizer que a mesma Igreja, que estes horrores ensinou e ensina, está também apetrechada dos meios de salvação, e que bastará que as pessoas a integrem durante o tempo do seu viver histórico, e recorram, sempre que necessário, aos meios que ela põe à sua disposição para garantirem a salvação das suas almas. Porque então uma Igreja assim é o cúmulo da crueldade humana. Primeiro, anuncia horrores sem conta nem medida às pessoas; e depois de as ter totalmente à sua mercê, submissas e humilhadas, ainda as obriga a manter os cordões da sua bolsa sempre abertos para pagarem, durante toda a vida e mesmo depois de morrerem, os meios da salvação das suas almas!... Reconheça-se que como sistema pode ser engenhoso. Mas a verdade é que tem tanto de engenhoso como de perverso.
Morre-se, e depois? A resposta à pergunta interessa a todos os seres humanos. Mas quem hoje está melhor colocado perante a pergunta são precisamente os ateus e os agnósticos. Os crentes das distintas religiões e Igrejas, incluídos os que fazem sua a resposta do Catecismo da Igreja Católica são, neste particular, os mais infelizes dos seres humanos. Porque a resposta que foram levados a interiorizar é uma resposta feita de mentira. Ora, é melhor não ter resposta nenhuma, do que ter uma resposta feita de mentira.
De resto, é sempre muito mais saudável para os seres humanos vivermos toda a vida confrontados com aquela pergunta que tem tudo a ver com o sentido último da nossa existência, mesmo que nunca cheguemos a encontrar uma convincente resposta para ela, do que, incomodados pela ausência duma resposta concreta, corrermos à estação religiosa ou eclesiástica de serviço mais próxima a adquirir a resposta mentirosa que lá é dada a quem se fizer seu utente permanente.
Não nos deixemos enganar. Basta de infantilismos e de horrores em nome de Deus ou de Nossa Senhora de Fátima (não se diz oficialmente urbi et orbi que a senhora de Fátima veio propositadamente a Portugal mostrar o inferno a três crianças precocemente guardadoras de rebanhos, e que ele é assim como uma caverna de fogo, para onde, segundo ela, vão as almas dos pobres pecadores depois da morte?!). Basta de submissão aos manipuladores do medo e aos comerciantes de Deus ou de Jesus Cristo, habilmente disfarçados de clérigos, reitores de santuários e de pastores de Igrejas. Fujamos de uns e de outros a sete pés.
As respostas que eles e as suas Religiões e suas Igrejas dão, sem pestanejar, à pergunta Morremos, e depois? e a algumas perguntas mais (por exemplo, Donde vimos? Para onde vamos?) são todas respostas mentirosas. Pelo simples facto de serem respostas interesseiras. Vejam como todas elas exigem, como condição para haver garantia de salvação, a adesão das pessoas à respectiva instituição, com as inerentes obrigações do pagamento do dízimo e a frequência regular nos seus cultos, as quais , no seu conjunto, contribuirão para as fazer crescer em poder e influência na sociedade onde elas estão implantadas. Respostas assim são sempre mentirosas. Só a Graça é verdade. E a Liberdade. Quando há interesses, fora do âmbito da Graça e da Liberdade, as respostas avançadas pelas instituições beneficiadas são sempre mentirosas.
É por isso que Jesus de Nazaré não encaixa em nenhuma Igreja, nem em nenhuma religião.Sempre será perseguido, condenado e, finalmente, crucificado por todas elas. Nem que seja para depois elas o proclamarem como o seu Deus, mas sempre e só à maneira de um ídolo, que elas podem manipular à vontade e em proveito próprio.
É com Jesus, e Jesus crucificado, que aprendemos que a pergunta Morremos, e depois? tem muito pouco a ver connosco, enquanto seres humanos responsáveis pela História e uns pelos outros. Essa pergunta tem mais a ver com os nossos medos perante a História e perante os outros. São os nossos medos perante a História e perante os outros que nos impedem de sermos mulheres, homens em plenitude, criadores, rebeldes, insurrectos, libertários, irmãos e companheiros dos demais, sujeitos, protagonistas, e tudo isto na dimensão e na intensidade em que Jesus de Nazaré se atreveu a ser, no seu tempo e país.
Quando nos libertarmos destes nossos medos e formos mulheres, homens assim, como Jesus, nunca mais andaremos aflitos com a questão Morremos, e depois?, mas com estoutra, bem mais subversiva e revolucionária, portanto, historicamente mais verdadeira: Nascemos/vivemos, e depois? Isto é: O que fazemos com a vida que nos foi dada? Ao serviço de quem a colocamos todos os dias? Quem está a beneficiar com a nossa vida, enquanto estamos na História? A quem vai aproveitar tudo o que sou e tenho e que me foi dado para eu desenvolver e dar também?
Quando assim é, já não é mais a morte que nos preocupa, mas a vida. Para que a vida não seja um morrer todos os dias para as grandes e as pequenas Causas da Humanidade e do Universo. Seja, sim, um viver cada vez mais comprometido com as grandes e as pequenas Causas da Humanidade e do Universo. Porque, então, quando a Morte nos acontecer, será simultaneamente o fim de tudo e o Começo de tudo, como sucede com toda a explosão, nomeadamente, a do grão de trigo. É o fim de tudo, na perspectiva do nosso aqui e agora, mas não para cairmos no nada. É o fim de tudo, mas ao modo do grão de trigo que é lançado à terra e morre para dar muito fruto. É o fim de tudo, mas para PASSARMOS (Páscoa) a um Viver Novo, em moldes e dimensões e qualidade, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração alguma vez conseguirá imaginar.
A Morte, para quem vive para as grandes e as pequenas Causas da Humanidade e do Universo, tem o condão de nos reduzir ao Essencial. Por isso, torna-nos invisíveis aos olhos. Tudo o que, nesse momento, houver em nós de mentiroso, de idólatra, de perverso, de inumano, de ódio, de medo, de infantilista, de cruel, de prepotente, de tirânico, de opressor, de explorador não aguenta a explosão final da vida que é a Morte e desaparece como por encanto. A Morte põe fim a tudo o que não é Essencial. Como acontece com o grão de trigo que morre, que explode sob a terra. O Novo Corpo que resulta dessa explosão será vida na Vida, rio no Mar, ser criado no Criador. Porque Deus que nos criou na evolução, também nos ressuscita no instante do nosso morrer, precisamente porque é Deus de vivos, não de mortos. E tudo isto Ele realiza por pura Graça sua, sem querer saber para nada de méritos ou deméritos nossos.
Felizes, por isso, as mulheres, os homens que, como meninas, meninos, acolhermos esta Boa Notícia testemunhada e revelada no viver/morrer de Jesus de Nazaré. E, como ele, vivermos todos os dias da nossa vida na História em coerência com ela. E mais felizes ainda, se todos os dias nos deixarmos impulsionar pelo seu Sopro libertador, misteriosa e gratuitamente, presente no mais íntimo de nós. Como Sopro de Graça e de Verdade que é, liberta-nos dos nossos medos perante a História e perante os outros seres humanos, e faz-nos viver para as grandes e as pequenas Causas da Humanidade e do Universo. Cresceremos então em sabedoria, em graça, em liberdade e, sobretudo, em entrega aos demais e às grandes e às pequenas Causas da Humanidade e do Universo, à medida que também crescemos em anos. E quando, finalmente, a Morte nos acontecer, ela será aquela explosão que ainda nos faltava para sermos definitivamente reduzidos ao Essencial, por isso, vivos no mesmo Deus de Vivos que um dia nos chamou pelo nome para que fôssemos suas filhas muito amadas, seus filhos muito amados. Pois bem, que então o nosso viver na História seja sempre um viver bem à altura da Graça que nos está reservada.
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DESTAQUE 2
Congresso sobre Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo
Todos os Bispos católicos faltaram à chamada!
Os tempos são de pós-Modernidade, mas as Igrejas continuam pré-modernas
Na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar estive presente, do primeiro ao último dia, no Congresso sobre “Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo”, realizado entre os dias 8 e 11 de Setembro, nas instalações do Seminário Boa Nova em Valadares, VN Gaia, promovido pela Sociedade Missionária Boa Nova. O Congresso foi uma das múltiplas iniciativas, porventura, a mais significativa de todas, já realizadas e a realizar por esta instituição católica, no âmbito das comemorações dos seus 75 anos de existência. Para mim, foi uma excelente oportunidade para rever e ouvir ao vivo amigos e companheiros de longa data nestas martiriais e duélicas lides da criar e difundir a Teologia da libertação em que, também eu, ao meu jeito e capacidade, sempre tenho andado envolvido, desde que me tornei presbítero da Igreja do Porto, e com maior incidência, desde que, em Janeiro de 1975, me tornei também jornalista profissional. Sobretudo, desde que, vai para 19 anos, comecei a dirigir o Jornal Fraternizar.
Foi uma enorme consolação espiritual poder abraçar de novo e ouvir com o coração e os ouvidos Andrés Torres Queiruga e Enrique Dussel, dois dos maiores teólogos da actualidade, oriundos, respectivamente da Galiza e do México, por sinal, quase nunca reconhecidos, muito menos acarinhados pela generalidade da hierarquia da Igreja católica, mas a quem a Humanidade, particularmente, a mais oprimida e empobrecida muito deve, pois que ambos têm contribuído decisivamente para a sua libertação e para a sua felicidade efectiva, longe da alienação em que a religião continua a querer mantê-la subjugada e oprimida.
Mas não só. Também gostei de rever e de ouvir mais uma vez o nosso querido Frei Bento Domingues, dominicano residente em Lisboa, e o meu querido amigo Pe. Anselmo Borges, sem dúvida, o cérebro que concebeu todo o Congresso e conseguiu congregar em seu redor um impressionante conjunto de especialistas, os quais, um após outro (neste universo de homens, houve apenas uma mulher, a minha amiga Teresa Martinho Toldy, o que perfaz uma grave lacuna que nem a profundidade e a lucidez do seu pensar e do seu dizer teológicos feministas conseguiram disfarçar e que constitui sem dúvida a principal debilidade desta empolgante iniciativa no nosso país) puderam partilhar do seu saber e das suas inquietações com os cerca de 200 participantes, oriundos, muitos deles, professores e alunos, de Faculdades de Filosofia do nosso país.
O momento de maior expectativa colectiva no Congresso foi para a presença ao vivo de Johann Baptist Metz, o teólogo alemão que figura hoje como o maior entre os maiores teólogos da Europa, e a quem coube proferir a última conferência sobre “O futuro do Cristianismo na Europa do século XXI”. Na sua total incapacidade para se expressar em português, pudemos ouvi-lo, quase todo o tempo, excepção feita ao começo e ao final, através da voz do seu incondicional admirador, Pe Anselmo Borges.
O Congresso foi uma ocasião única para as Igrejas que estão em Portugal poderem confrontar-se com o que de melhor lhes anda a dizer o pensamento filosófico e teológico, assim como com o que de melhor lhes anda a dizer a Ciência, nos seus diversos campos específicos, com destaque para o campo de nós próprios, os seres humanos, nomeadamente, sobre os nossos genes e os nossos cérebros e cujo conhecimento, à medida que progride, deita por terra muitos dos pressupostos em que se tem apoiado a acção pastoral de todas elas. Infelizmente, as Igrejas, pelo menos, ao nível dos seus responsáveis maiores, os bispos, não quiseram saber do Congresso e deixaram fugir esta oportunidade única. Apenas me foi dado ver entre os participantes o Bispo da Igreja Lusitana, do ramo anglicano, sedeada em VN de Gaia. Da Igreja católica, nenhum bispo foi capaz de aparecer padres também muito poucos, podiam contar-se pelos dedos das mãos nem sequer da Diocese do Porto, em cujo território o Congresso decorreu, quase a dois passos da Casa episcopal onde o Bispo titular e os seus diversos auxiliares residem. A iniciativa passou-lhes completamente ao lado, ocupados que andarão com a administração rotineira do Crisma nas paróquias, certamente, na convicção infantil e ingénua, diga-se de que sem esse rito sacramental o Espírito de Deus não acontece no viver das pessoas que um dia foram baptizadas. Não vêem os Bispos, ou não querem ver que, perseverar nesse tipo de pastoral é enterrar a cabeça na areia, sem nunca chegarem a perceber os sinais dos tempos. O Espírito está a gritar em toda a parte, nos acontecimentos de que é feita a nossa actualidade, mas parece que só os Bispos e os párocos residentes não se dão conta de nada. Vai daí, insistem em acções pastorais no estilo de outras épocas, por isso, completamente desfasadas do nosso hoje e aqui, em constante mutação. Tornam-se assim, por preguiça teológica e por resistência ao Espírito Santo, guias cegos que conduzem as respectivas Igrejas locais para o barranco a expressão é violenta, mas remonta a Jesus no Evangelho sem coragem e lucidez bastantes para pararem a perguntar-se: isto que fazemos é o que o Espírito de Deus Vivo quer que façamos? Que resulta de mais humano entre as populações daquilo que fazemos? As populações das paróquias ficam mais em missão libertadora, depois que as crismámos? Tornam-se mais Igreja viva para o mundo, ou apenas mais beatas e eclesiásticas? A nossa generosidade episcopal andará centrada no essencial, ou no acessório, no que se pode chamar folclore católico? Que frutos de libertação e de humanidade resultam das visitas pastorais que fazemos às paróquias? Os padres/presbíteros que ordenamos e as cristãs, os cristãos que crismamos, em que causas concretas da Humanidade se envolvem depois? Podemos dizer que foram crismados e ordenados no Espírito Santo, se depois se limitam a ser funcionários do religioso e do eclesiástico, sem audácia para dialogarem os sinais dos tempos e para discernirem os novos caminhos por onde há-de avançar a Igreja, se ela quiser ser o fermento na massa, o sal da terra, a luz do mundo e a sentinela na cidade?
O Congresso teve momentos de densidade/profundidade teológica que dificilmente serão esquecidos por quem nele participou. As palavras teológicas, cheias de profecia, do meu amigo Torres Queiruga mais pareceram um terremoto ou tsunami na consciência de alguns participantes, nomeadamente, dos que estão aí a presidir às Comunidades e às celebrações eucarísticas dominicais. O mesmo, ainda que noutra dimensão, sucedeu com as palavras teológicas do meu amigo E. Dussel, a quem eu já não via há vários anos, mas cujas sucessivas obras tenho tido a felicidade de poder acompanhar de perto, sempre com muito proveito espiritual.
Com estes dois teólogos e suas intervenções no Congresso, até eu me senti muito mais confirmado na Teologia que vivo, desenvolvo e difundo no Jornal Fraternizar, nos meus livros, nos debates televisivos em que tenho sido convidado a participar e na minha página na Internet. Os meus opositores, para não dizer os meus inimigos, haveriam de os ouvir com humildade. Não poderiam deixar de concluir que ainda vivem na pré-Modernidade, quando as nossas sociedades, pelo menos, em redor dos principais centros de decisão do mundo, já estão na pós-Modernidade. É, pois, a ignorância teológica que os leva a insurgir-se contra mim, contra os meus livros e contra o meu modo de viver e de anunciar a Fé cristã jesuânica.
Ficou claro, com as intervenções destes dois teólogos foi pena E. Dussel não ter podido dispor de mais tempo no Congresso; aliás, houve quem dissesse que se a sua conferência tivesse durado seis horas, nem assim arredaria pé do auditório que não basta falarmos de Deus, é preciso saber de que Deus é que falamos; não basta falarmos de Cristianismo, é preciso falar concretamente do Cristianismo de Jesus de Nazaré. Neste particular, foi fácil perceber que nem todos os intervenientes no Congresso, assim como nem todos os que nele se inscreveram e participaram, se movimentam já nesta mesma profundidade teológica. Deu para perceber que a esmagadora maioria dos nossos católicos, mulheres e homens, mesmo de ambientes universitários e com elevada formação académica, compreendem e vivem um Cristianismo sem Jesus de Nazaré, portanto, um Cristianismo assumidamente religioso, não o Cristianismo jesuânico, que é assumidamente político. E de Deus, têm quase sempre uma concepção puramente deísta, por isso, em última análise, idolátrica, a mesma que, por exemplo, o presidente Bush, assassino e explorador do mundo, ostensivamente tem, na condução do Império norte-americano. Na verdade, só um Cristianismo assim, sem Jesus de Nazaré, sem vítimas históricas e sem verdugos ou carrascos históricos, é que pode ser invocado por ele para justificar o injustificável que são os seus horrendos crimes de lesa-Humanidade e, assim, tentar sossegar a sua consciência.
Até um cego vê que um Cristianismo sem Jesus não é mais do que a actualização do Cristianismo do imperador Constantino, no século IV, e que casa às mil maravilhas com todos os ditadores cristãos e católicos, como, por exemplo, Salazar e Franco, Hitler e Pinochet. Mas não é, nunca foi, nunca será este o Cristianismo de Jesus.
Também o meu amigo Pe. Anselmo Borges foi duma lucidez teológica a toda a prova, logo na abertura do Congresso. Disse as palavras teológicas e éticas certas para o nosso aqui e agora. Fê-lo ao modo de enunciado, como quem abriu portas e janelas para os seus convidados franquearem depois, nas suas intervenções. Felizmente, as suas palavras, como todas as outras, sob a forma de conferência, que nos foram dadas ouvir neste Congresso, serão publicadas na íntegra, nas chamadas Actas do Congresso. Será uma boa oportunidade para quem não foi capaz de participar, correr a adquiri-las (devem ser publicadas em volume ainda antes do Natal de calendário que já se aproxima) e a estudá-las, porventura, até a organizar com amigas, com amigos uma espécie de mini-Congresso, para as lerem e escutarem em grupo e as debaterem com profundidade.
Entretanto, não posso deixar de dizer, a este propósito, que o zelo que o meu amigo Pe. Anselmo Borges colocou na apropriação em exclusivo dos textos das conferências, em ordem à sua publicação em volume como Actas do Congresso, levou-o a não disponibilizar nenhuma cópia de nenhuma delas aos jornalistas presentes, nem sequer a mim, director de um pequeno jornal trimestral, assumidamente teológico na sua linha editorial. Terá sido, quanto a mim, um zelo excessivo que tornou ainda mais difícil a missão de informar com objectividade dos poucos jornalistas presentes. No meu caso, impede-me por completo de divulgar significativos extractos das reflexões teológicas libertadoras produzidas no decorrer do Congresso e que ajudariam a manter viva e actuante, no mundo-cão da globalização em que presentemente vivemos, a Fé das discípulas, dos discípulos de Jesus. A única Fé que, à medida que é vivida por elas, por eles na História contemporânea, do mesmo jeito que Jesus a viveu no seu tempo e país, liberta e salva, levanta e humaniza o nosso mundo.
Do meu ponto de vista de profissional da comunicação social, este terá sido, porventura, o aspecto mais criticável do Congresso. E tanto mais difícil de compreender, quando se pensa que o Congresso aconteceu no âmbito das comemorações dos 75 anos da Sociedade Missionária Boa Nova, a que pertence o próprio meu amigo Pe. Anselmo Borges. A Missão, na peugada de Jesus de Nazaré, exige que tudo se disponibilize, que sejamos mãos abertas, que partilhemos tudo o que somos e temos, para edificação da sociedade e do ser humano novos, segundo o mesmo Espírito que o animou e conduziu a ele. De resto, a divulgação de extractos das conferências, para lá de dar a conhecer a sã Teologia cristã jesuânica que pode ajudar a salvar o mundo, revelar-se-ia como um estímulo mais, junto das pessoas, para que elas corressem pelas Actas do Congresso, quando tivessem a notícia da sua publicação em volume. Pelo menos, é assim que vejo as coisas.
Fica, pois, aqui esta fraterna e amiga advertência para futuras iniciativas como a deste Congresso. A Verdade que liberta é para ser apregoada, oportuna e inoportunamente, sobre os telhados, inclusive, os da rede na net, e não para ficar escondida sob um qualquer alqueire, ou em prateleiras de pesadas e cada vez menos frequentadas bibliotecas.
P. S. Por mim, teria também gostado de ver todos os intervenientes, os meus amigos teólogos incluídos, com mais cuidado na linguagem teológica com que habitualmente se exprimem. É que a Religião não é a via do Cristianismo de Jesus de Nazaré, só do Cristianismo sem Jesus. Se a Religião fosse a via do Cristianismo de Jesus de Nazaré, nunca os líderes religiosos o teriam odiado e, finalmente, assassinado. A via de Jesus de Nazaré é a da Fé que ele faz despertar maieuticamente nas pessoas, para que elas se tornem conscientes, lúcidas, insurrectas, revolucionárias, numa palavra, humanas e com entranhas de humanidade. A Religião acomoda as pessoas e as populações. Leva ao adormecimento e à resignação. A Religião constitui o esforço dos seres humanos para alcançarem Deus e, desse modo, O manipularem segundo os seus interesses, quase sempre egoístas e dominadores. Porém, o Deus que a Religião tem como referência última não passa de um ídolo que nos oprime e coisifica. Nunca liberta. A via de Jesus - a comunhão na sua Fé libertadora que se vive historicamente em forma de serviço martirial e duélico - ao contrário da Religião faz dos seres humanos protagonistas e sujeitos, insubmissos perante a Ordem Económica mundial estabelecida, que retém a Verdade cativa na injustiça. As discípulas, os discípulos de Jesus vão sempre por caminhos que a Religião desconhece e desaconselha e até tem como subversivos. São os caminhos sócio-políticos, longe dos templos e dos altares, que levam ao Pobre e ao Oprimido e, também, ao Verdugo ou Carrasco e aos seus Sistemas de morte. Para sermos, por um lado, unha e carne com o Pobre e o Oprimido. E, por outro lado, como Espada de dois gumes frente aos Sistemas, Religião incluída, que idolatram os Verdugos ou Carrascos. Não para os matar, evidentemente, mas para os derrubar dos seus tronos, os libertar de raiz e fazer com que se tornem simplesmente humanos e irmãos dos demais seres humanos. Tenho de reconhecer que, mesmo neste Congresso, esta distinção não foi feita, muito menos sublinhada e que inclusive os meus amigos teólogos de renome mundial continuam a navegar na ambiguidade destas águas. O que não fez Jesus de Nazaré, no decorrer da sua missão pública. Nem fez o Cristianismo das Comunidades primitivas de Jerusalém lideradas por Estêvão, proto-mártir da Igreja, de quem até os Actos dos Apóstolos dão perturbador testemunho. Tão perturbador, que ainda hoje continua praticamente sem seguidoras, sem seguidores na Igreja oficial, aliás, como o testemunho do próprio Jesus de Nazaré, cuja memória é sempre subversiva e perigosa, quando a fazemos fora e longe de contextos religiosos. Por isso, é uma via com muito poucas seguidoras, muito poucos seguidores. Decididamente, o Cristianismo sem Jesus de Nazaré, próprio de Bush e do Estado do Vaticano, é o que continua aí a dar cartas e a render fortunas aos respectivos pastores e clérigos. Até serve para abençoar as multinacionais da nossa desgraça. E é também graças a ele que os Impérios de turno conseguem afirmar-se e perpetuar-se por sucessivas gerações. Não é por ele que vou. Só pelo de Jesus de Nazaré. Venham daí também!
O sofrimento das pessoas e dos povos,
ainda antes dos seus pecados
Antes de ver o pecado das pessoas e das populações, Jesus vê o sofrimento que as aflige e oprime. É com o sofrimento delas que ele se escandaliza e indigna. E logo se levanta como um furacão contra ele. O exemplo mais eloquente desta postura de Jesus vem no relato teológico do Evangelho de João (capítulo 9) sobre um homem representa a Humanidade, todos os seres humanos, mulheres e homens que havia nascido cego. Ao vê-lo, os discípulos de Jesus, ainda marcados pela teologia dos fariseus, indagam sobre quem pecou, ele ou os seus pais, para que nascesse cego. Não se preocupam nada com a situação do homem que sofre. Jesus, pelo contrário, não quer saber dessa questão para nada. Toda a sua atenção concentra-se em ver como há-de libertá-lo da sua cegueira, para que ele seja um homem em plenitude de funções, constituído na dignidade.
O teólogo alemão Johann Baptist Metz não contou este episódio, mas poderia ter contado, para ilustrar a boa notícia que trouxe ao Congresso sobre Deus no século XXI e o futuro do Cristianismo, e que é esta: As seguidoras, os seguidores do Cristianismo de Jesus não saem por aí à caça dos pecados das pessoas e das populações, ao jeito do que já faziam os fariseus do seu tempo e país. Com o que as seguidoras, os seguidores do Cristianismo de Jesus se têm que preocupar é com o sofrimento das pessoas e das populações, para o erradicarem quanto antes sem contemplações, nem que, por causa disso, deixem furiosos os responsáveis pelos sistemas e pelas instituições que o provocam e se aproveitam dele. Do que se trata, para Jesus e suas discípulas, seus discípulos, em todos os tempos e lugares, é de erradicar o sofrimento que afecta e humilha a Humanidade. Por isso, uma Igreja que hoje ande mais preocupada com o pecado das pessoas e das populações, do que com combater o sofrimento que as aflige, é uma Igreja ao jeito dos fariseus, não ao jeito de Jesus.
Quando terminou a sua douta conferência, o eminente teólogo latino-americano E. Dussel que também estava na sala a escutá-la com manifesta atenção crítica, aproveitou o curto espaço de tempo concedido para formular possíveis perguntas/dar achegas sobre o acabado de escutar e ousou avançar com uma outra boa notícia complementar à que havíamos acabado de escutar, e que terá escapado ao eminente teólogo europeu. Disse: Não basta uma Teologia da Compaixão, como a que acaba de ser defendida por Metz; temos que cultivar também, em complementaridade com ela, uma Teologia da Responsabilidade/Corresponsabilidade do Outro, hoje, milhões e milhões de vítimas humanas e não só. E explicou: as vítimas não aparecem por geração espontânea. Há verdugos pessoas, sistemas e instituições que as produzem, tal como produzem sofrimento em massa. Ora, sem uma Teologia da Responsabilidade/Corresponsabilidade, que leve as vítimas e nós com elas, a combater/erradicar o sofrimento e a denunciar/enfrentar os Verdugos que as fabricam, não há Cristianismo de Jesus.
Nos seus 76 anos de idade, o teólogo Metz, apesar de não ter conseguido esconder alguma surpresa e perplexidade, quando o informaram, na hora, de quem era a voz que se havia disponibilizado para dar aquela importante achega teológica à sua conferência) concordou de imediato com o seu amigo Dussel. Deste modo, os congressistas puderam partir do Congresso ainda mais enriquecidos. Também muito mais responsabilizados. A partir de então, não podem dizer que nunca haviam pensado nestas coisas.
Ficou também claro para todas, todos que não basta falar de Cristianismo. Temos que falar sempre de Cristianismo de Jesus, o único que, se for vivido, contribuirá decisivamente para levar por diante e ao seu termo a Criação dos seres humanos, ainda em curso na História. E, se o Cristianismo do século XXI quiser ter futuro, terá mesmo que ser o Cristianismo de Jesus. Por isso, um Cristianismo de olhos postos nas vítimas, solidário e companheiro das vítimas, contra os verdugos, não para os matar, evidentemente, mas para lhes resistir e ajudar a libertar.
No que respeita à sua visão da Europa, Metz contou com a concordância de E. Dussel, quando defendeu “a existência duma Europa pluralista contra uma Europa laicista”. E reconheceu que o Cristianismo, se quiser afirmar-se numa Europa assim e contribuir para o desenvolvimento duma cultura de paz, só tem um caminho a seguir: manter viva a memoria passionis, ser uma espécie de sentinela na cidade, que escuta, sem desfalecimento, os sofrimentos das pessoas e dos povos, e “empurra” as sociedades e seus governos para políticas económicas e sociais concretas e eficazes que visem a integração de todos na mesa comum.
Manifestamente, não é com Igrejas como as que presentemente estão no terreno, ocupadas com cultos religiosos em série, que o Cristianismo terá futuro. Por isso, é urgente a conversão das Igrejas ao Evangelho de Jesus e ao próprio Jesus.
Também o teólogo Andrés Torres Queiruga foi chamado a responder a uma questão muito concreta, quando o Congresso avançava já para o fim. O eminente teólogo residente na Galiza já havia proferido duas conferências, mas fez questão de acompanhar o desenrolar dos trabalhos do princípio ao fim, como um participante mais, coisa rara, diga-se, entre teólogos profissionais. Deste modo, os congressistas puderam privar de perto com ele, no decorrer do Congresso e ele teve oportunidade de esclarecer muitas das dúvidas e inquietações que as suas palavras, de tão novas, inevitavelmente desencadearam.
A pergunta foi-lhe directamente formulada pelo Pe. Anselmo Borges, mas no jeito de quem se faz porta-voz de muitos dos participantes. Assim: O dualismo antropológico (entenda-se: um ser humano concebido como um composto de alma imortal e de corpo mortal) é impensável hoje. O que sugere então o teólogo sobre a identidade da pessoa humana? Permanece, mesmo depois da morte do indivíduo?
Foi impressionante a humildade do teólogo, mai-la sua resposta. Começou por responder com novas perguntas: É possível manter a identidade noutro tipo de vida? Será que a identidade da pessoa humana pode acabar de repente num estúpido acidente de carro na estrada, ou no rebentamento duma bomba, no contexto duma acção política violenta? Leva tanto tempo e tanta dedicação a criar uma vida humana com identidade, e acaba assim tudo num instante? Citou depois a Poesia em abono do seu testemunho de teólogo que tenta viver/dizer a Fé em contexto de pós-Modernidade, como é hoje o nosso: “Amar alguém é dizer-lhe: Tu não podes morrer!”. Ora acrescentou se somos o resultado do amor criador de Deus Vivo, temos que reconhecer que este amor que nos criou também nos ressuscitará. Sobre o modo não me perguntem, que eu não sei, nem ninguém sabe! E sublinhou, de maneira ainda mais humilde: A mim, pessoalmente, custa-me mais crer na ressurreição (dos mortos) do que crer em Deus! Mas creio na ressurreição, exactamente, porque creio em Deus que me/nos ama infinitamente e, por isso, nos ressuscitará como só Ele sabe fazer.
A teóloga feminista Teresa Martinho Toldy partilhou connosco uma conferência sobre “A democracia e o feminino na Igreja”. Analisou a Carta Apostólica de João Paulo II, sobre a dignidade da mulher (Mulieris Dignitatem) e não deixou dela pedra sobre pedra, entenda-se, letra sobre letra. Para a teóloga portuguesa, as palavras do Papa nasceram no contexto dos preconceitos patriarcais por que as sociedades se têm regido nas suas diversas vertentes. Por isso, não contêm Evangelho de Jesus, ou Boa Notícia de Deus. São mais do mesmo. E ofendem as mulheres de carne e osso. Ofendem igualmente os homens que as aceitem como palavras definitivas, ou de Deus.
Hoje advertiu a teóloga feminista as mulheres já não abandonam a Igreja com estrondo, como fizeram, há anos, várias teólogas católicas feministas. No final duma missa de domingo, dirigiram-se ao microfone da assembleia e anunciaram: Aqui não há lugar para nós, mulheres. Por isso, a partir de hoje, deixamos de fazer parte da Igreja. O gesto quis ser profético e pode tê-lo sido. Inaugurou o que essas mesmas teólogas chamam de era pós-cristã. A instituição católica fez, mais uma vez, orelhas moucas, mas, nessa medida, está condenada a desaparecer progressivamente de cena. Uma Igreja que não ouve os gritos das suas próprias vítimas, dos seus próprios marginalizados, não tem em si o Sopro ou Espírito de Jesus. É autista. Autoritária. Patriarcalista. Cruel. Ou se converte radicalmente a Jesus e ao seu Evangelho, ou desaparecerá. E quanto mais depressa desaparecer melhor, para não continuar aí a fazer das suas, estragos sobre estragos, e a causar sofrimento sobre sofrimento.
Teresa chegou a dizer que se Deus é Pai, ontologicamente, então não há lugar para as mulheres no Cristianismo. Mas também não haverá, se Deus é Pai, apenas simbolicamente. Porque é com símbolos que nos entendemos ou desentendemos, que comunicamos ou incomunicamos. Nem simbolicamente Deus pode ser apresentado como Pai. Ou é Mãe/Pai, simbolicamente, ou as mulheres ficam sempre de fora.
Mas a verdade é radicalmente outra: Uma Teologia, como a do Vaticano, que fundamenta a exclusão das mulheres dos ministérios ordenados na Igreja é que se pensa e vive fora de Deus. É uma teologia demoníaca, feita de mentira. Mas é essa teologia que subjaz à Carta Apostólica, de João Paulo II. Uma Carta que há-de ser deitada fora como o sal que perdeu a força de salgar. Contém palavras que brotam, não da fonte de Vida que é o Espírito ou Sopro de Deus vivo, mas dos preconceitos patriarcais que continuam a manter a verdade cativa na injustiça.
Somos, por isso, uma Igreja católica em estado de pecado mortal. Pior, uma Igreja homicida. Uma Igreja que mata as pessoas que a integram. É uma Igreja que deixa morrer os seus membros por falta do Pão e do Vinho Eucarísticos, só porque teima em excluir as mulheres dos ministérios ordenados e em continuar a impor aos homens, a ser ordenados de presbítero, a inumana lei do celibato obrigatório. Uma Igreja assim é uma Igreja assassina. É uma Igreja que recusa converter-se ao Evangelho de Jesus. Em vez disso, prefere seguir um Cristianismo sem Jesus de Nazaré, herdado do Império romano e de César de Roma, dos quais é a sucessora e a continuadora.
“É preciso ler Marx, para entendermos Deus. E a Economia. E a Eucaristia”. Só o eminente teólogo da libertação que é E. Dussel pode subscrever esta afirmação. Porque é um teólogo de olhos abertos. Porque alia Teologia e Profecia. Porque cultiva uma Teologia libertadora que tem como imperativo ético: Liberta o Oprimido e o Pobre, para que se assumam com sujeitos na História.
Na sua Teologia, aparece uma e outra vez a referência ao exemplo do dominicano Frei Bartolomeu de Las Casas, quando, no tempo das “descobertas e conquistas”, recusou celebrar a Eucaristia na presença dos conquistadores que eram simultaneamente, exploradores e assassinos dos índios.
A decisão ainda hoje tem força de profecia. E carece de Igrejas cristãs jesuânicas que lhe dêem corpo no corpo dos seus membros. Como podem as Igrejas continuar a Partir o Pão e a beber o Cálice do Senhor Jesus que foi crucificado, se, fora da celebração, o Pão não chega às pessoas e aos povos segundo as suas necessidades, enquanto elas não querem saber desse sofrimento e dessa injustiça para nada? Continuar impávido e sereno a proceder assim, não é expor as pessoas que comungam a comer e a beber a sua própria condenação?
Um Deus que se agrada de Eucaristias, como as que as Igrejas realizam todos os dias da semana, com destaque para os domingos, só pode ser um ídolo. Primeiro, entrega o próprio Filho aos Verdugos, para que o matem e, desse modo cruel e sádico, fique saldada a dívida que a Humanidade pecadora contraiu para com Ele, quando, no início comeu uma simples maçã contra a vontade dele. É, por isso um Deus filicida. Um monstro! Depois, não satisfeito, ainda se agrada de liturgias múltiplas, nas quais lhe oferecem Pão e Vinho, frutos da terra e do trabalho dos seres humanos, sem se importar para nada dos milhões e milhões de seres humanos que continuam, estrutural e violentamente, impedidos de ter acesso ao estritamente indispensável para poderem desenvolver com dignidade e em plenitude todas as suas capacidades humanas.
À imagem e semelhança deste Deus cruel são também as Igrejas que organizam tais liturgias, sem jamais mexerem uma palha em ordem a derrubar os Sistemas económicos que fazem com que as coisas tenham que ser assim cruéis e inumanas e não de outro jeito, bem mais humano e sororal/fraterno, solidário e comunitário.
Entretanto, a este coro de denúncias de E. Dussel, havemos de acrescentar as do teólogo Torres Queiruga nas suas conferências. As liturgias que fazemos diz Queiruga continuam a recorrer a esquemas e a conceitos pré-modernos e nessa medida são causa de ateísmo em massa. Porque um Deus, como aquele a quem as orações das Missas de domingo se dirigem, só pode ser um monstro. Dirigimo-nos a ele, na convicção de que ele pode acabar com a fome e com o sofrimento no mundo, mas a verdade é que ele não o faz, nem mesmo quando as pessoas e os povos lhe pedem dia a noite. Decididamente, é um Deus que não escuta nenhuma dessas inúmeras orações de petição e tão pouco tem piedade de nós! Ora, se Deus é assim como as orações de petição das Igrejas dizem que é, então consegue ser ainda pior do que as suas criaturas! Daí o ateísmo em massa, como expressão pública de sanidade mental e como manifestação de dignidade humana.
Porém, o que deveria suceder, não é o ateísmo em massa, mas o abandono em massa das Igrejas que assim se comportam, assim celebram, assim se exprimem teologicamente. Porque são Igrejas caídas na idolatria, nas quais já não há lugar para a Fé, nem para a Esperança, muito menos para o Amor-Agapê, como é o amor de Jesus de Nazaré, que trabalha continuamente para levar ao seu termo a Criação ainda em curso. Em tais Igrejas, já só há lugar para o Terror. Para a Opressão. Para a Alienação.
Infelizes, pois, dos povos, entre os quais um dia vierem a desembarcar, como aconteceu no passado, missionários oriundos de Igrejas assim. Ou esses povos resistem activamente a tais enviados, ou, passados alguns anos, o estado deles é muito pior do que antes. Aos medos ancestrais em que já viviam, acabarão por ter de juntar outros ainda piores, à mistura com moralismos rançosos, leis canónicas romanas imorais e uma teologia deista feita de mentira que os remete para um Deus sem Reino e sem História, amigo de Verdugos e tiranos, de ditadores e de privilegiados, de sacerdotes e de missas sem um pingo de profecia, mas com muita solenidade litúrgica.
A presença e a expressão bem-humorada no Congresso do nosso querido Frei Bento Domingues, ainda mais do que as suas sábias palavras, disse às Igrejas todas e não apenas aos congressistas, que contra um tipo de missão assim, faz falta, como de pão para a boca, uma moratória, por tempo indeterminado. Cá por mim, na qualidade de director do Jornal Fraternizar, direi ainda mais: um tipo de missão assim é um grave caso de polícia internacional. A ser levado ao Tribunal Mundial dos Povos. Assim haja coragem.
O tempo é de acção. Mas, para já, que avancem os grandes media. Em lugar de intoxicarem as populações, despertem-nas para as grandes Causas da Humanidade constituída na dignidade e mobilizem-nas. Será a salutar revolução que se deseja, depois de termos escutado, neste Congresso, as sábias palavras do companheiro e amigo Manuel Pinto, da Universidade do Minho. É hora!
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EDITORIAL
Pela Política, contra o Poder
Se quisermos salvar o nosso país e o mundo em geral, precisamos de regressar urgentemente à Política. Mas à política, enquanto coisa de mulheres, mais do que coisa de homens.
É manifesto que a Política, há muito, saiu de cena no nosso país e no mundo em geral. Em seu lugar ficou o poder que é a negação da Política. E ficou nas suas múltiplas variedades.
Com o desaparecimento da política, também desapareceram as mulheres da vida pública. Em seu lugar ficaram os homens. E nem estaria muito mal que eles tivessem ficado na vida pública, se permanecessem humanos, seres dotados de entranhas de humanidade e de misericórdia, seres cultos, ternos, e com capacidade para sentir dores de parto pelos demais e para cuidar da vida. Numa palavra, seres onde o feminino continuasse como o grande princípio activo. Infelizmente, tal quase nunca aconteceu no passado, nem acontece quase nunca no hoje do nosso país e do mundo em geral.
Todos os grandes centros de decisão do nosso país e do mundo em geral estão nas mãos dos homens, não das mulheres. O que é um desastre em termos de humanidade. É o triunfo da selva sobre o ser humano, concretamente, o triunfo da violência, da guerra, do imperialismo, do neo-liberalismo, da exploração desenfreada, da ideologia machista sem coração, do moralismo sem misericórdia.
Política é coisa de mulheres. Sempre foi. Até o termo “política” é feminino. Também é coisa de homens, mas de homens que permaneçam fiéis ao princípio feminino, entenda-se, ao princípio da Ternura e da Compaixão, que é o que caracteriza os seres humanos enquanto tais. O Poder, ao contrário da Política, é a perversão dos humanos. O próprio termo “poder” é masculino.
Os homens, muito mais do que a generalidade das mulheres, sentem-se atraídos pelo poder e são raros os que não acabam seduzidos e "apanhados" por ele. Quando se entregam ao poder, logo se pervertem. Mesmo que comecem com a melhor das intenções, se se mantiverem no poder, pervertem-se todos. O poder perverte. O poder é o grande pecado do mundo. É o Pecado! O anti-Deus Vivo. O ídolo por antonomásia.
Só a Política praticada humaniza. O poder praticado desumaniza. Transforma os homens em caciques, corruptos, opressores, imperialistas. E em agentes de corrupção.
Do poder nunca se pode esperar coisa boa. Só da Política. Mas poder e não política, é o que hoje existe nas sociedades. Do nosso país e do mundo em geral. A política acabou por ser escorraçada e expulsa. Em seu lugar, ficou o poder como senhor. Cada vez mais absoluto. Cada vez mais concentrado. Cada vez mais coisa de homens! Corruptos. Ou em vias de o serem.
O resultado, objectivamente desastroso, está bem à vista de toda a gente. E não há nada a fazer, enquanto permanecermos neste modelo de sociedade estruturada segundo os interesses do poder. Se calhar, só acordaremos e pararemos para pensar, quando batermos no fundo.
É por isso que precisamos urgentemente de mudar de rumo e de regressar urgentemente à política. E quem diz regressar à Política, diz regressar às mulheres. Precisamos urgentemente de regressar às mulheres. Este início de milénio é uma boa ocasião para isso. É uma boa ocasião para abandonarmos a presente ordem mundial indecente e perversa em que nascemos e vivemos. E batermo-nos por uma outra, decente e justa, toda ela concebida como um útero onde a vida tenha todas as possibilidades de vingar e de se desenvolver até à plenitude em todos os seus membros.
Temos, então, que regressar à Política. E às mulheres. Porque a política é coisa de mulheres. Política tem tudo a ver com a arte de cuidar. Cuidar da vida, em todas as suas manifestações, tanto a vida humana, como a vida animal, como a vida vegetal e o próprio universo onde gira o nosso planeta.
Ora, cuidar, e cuidar da vida é o que as mulheres mais sabem fazer. As mulheres são peritas em cuidar da vida. O princípio feminino sempre foi o princípio a favor da vida. E é este princípio que está presente em força na generalidade das mulheres. Com as mulheres nos principais centros de decisão do mundo, a vida, e vida de qualidade, estará sempre primeiro. Em todos os povos. A partir, precisamente, dos mais carenciados e dos mais fragilizados.
Entrem as mulheres na Política, dêem as mulheres corpo à Política, e o poder que oprime, infantiliza, corrompe, mente e assassina, logo recuará. Ao poder, as mulheres não lhe dão guarida. Nas mulheres, a vida fala sempre mais alto. As mulheres são incapazes de confundir fecundidade com eficácia, Política com poder, graça e verdade com dominação e subalternização das pessoas. Com as mulheres nos principais centros de decisão, a vida, a fecundidade, a graça e a verdade, numa palavra, a Política, terão todas as oportunidades. Agora e no futuro.
Não assim com os homens, com a generalidade dos homens. Na sua vaidade de pavão e de macho, e na sua obsessão pela eficácia a qualquer preço, vendem-se ao poder, nem que seja por um almoço ou uma caneca de cerveja. Contanto que ele lhes acene com a possibilidade duma carreira de sucesso, logo eles deixam tudo e vão. “Tudo te darei, se prostrado me adorares”. A esta voz do Tentador, os homens quase nunca resistem. A começar pelos homens das religiões e das Igrejas. Ajoelham-se e, num ápice, trocam tudo, até a própria família e a própria identidade, pelo poder. Com isso, perdem-se e contribuem decisivamente para a perdição do mundo.
A entrega ao poder, por parte dos homens, geralmente, é sem regresso: De corrupção em corrupção, acabam profissionais em corrupção. Especialistas em corrupção. Doutorados em corrupção. Tornam ao mesmo tempo corruptos e agentes de corrupção. Peças fundamentais do actual sistema de dominação. Elogiados e aplaudidos por quantos tirarem algum proveito dessa sua traição.
O terceiro milénio que está no seu começo, tem que ser o milénio das mulheres. E da Política, realizada e conduzida pelas mulheres. Basta de poder. E de homens de cócoras a adorá-lo e a servi-lo com mais ou menos crueldade. Basta desta Ordem mundial do Poder em que todas, todos nós nascemos, e na qual quase só os homens têm a palavra e a vez.
Esta tem que ser a hora das mulheres. Tal como há muitos milhares de anos atrás, no princípio da Humanidade, quando as mulheres estiveram na condução dos destinos colectivos.
E quem vai convencer as mulheres a sair da esfera do privado e da sombra dos maridos, para fazerem da Política o seu corpo? (chega a dar sufoco ver as chamadas esposas dos chefes de estado e de governo a acompanhá-los para todo o lado, sem outro papel que não seja o de dama de companhia e de “consolo” dos respectivos maridos, no meio de todo o desconforto que o poder inevitavelmente acarreta a quem o serve). Quem vai despertar as mulheres para a Política? Quem vai convencer as mulheres que a Política é coisa delas, e o que não é nada delas é o Poder? Quem vai estimular as mulheres a dar o salto para a Política, para, desse modo, servirem maieuticamente o nosso país e o mundo em geral?
Por mim, não vejo outra maneira que não seja esta: Convidar as mulheres a contemplarem o estado em que se encontra hoje o nosso país e o mundo em geral, até que toda a realidade do sofrimento humano e toda a degradação em que um e outro se encontram, as atinja em cheio nas próprias entranhas. Quando este choque se der, as mulheres concluirão, finalmente, que o nosso país e o mundo em geral estão como estão, porque os homens, arrastados pela sua vaidade e pela sua incontrolável sede de poder, assim o fizeram. À revelia e em guerra aberta contra o projecto de Deus vivo que criou o Universo pela via da evolução.
Nesse momento, o apelo a que as mulheres se ergam e se metam directamente na Política não deixará de se fazer sentir e ouvir por elas. As mulheres passarão então para a primeira linha do combate político contra o poder e pelos povos todos sem excepção, um combate que elas assumirão como duélico e martirial, ao mesmo tempo, e que saberão conduzir com o vigor e a fecundidade da Ternura e do Afecto. Numa rede sororal, à escala mundial, entre todas, e que incluirá também todos os homens com entranhas de humanidade.
Mulheres, minhas irmãs: Até agora, têm sido os estéreis espinheiros do apólogo bíblico (Juízes 9, 7-15) que têm mantido o nosso país e o mundo em geral sob a tirania do poder, feito de violência e de crueldade. É hora de dardes o vosso corpo à Política, para que a vida, e vida de qualidade, tenha futuro. Como Maria de Nazaré, dizei: Eis-me/nos aqui!
Vosso companheiro e irmão,
Mário, presbítero da Igreja do Porto.
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ESPAÇO ABERTO
Leonardo Boff (Teólogo brasileiro)
Ética e Espiritualidade
Face a situações-limite de vida e de morte
Estamos em tempos de transversalidade dos discursos, buscando convergências nas diversidades, em benefício da qualidade humana, espiritual e cívica dos seres humanos.
Hoje temos consciência clara sobre o limite e o alcance da medicina e da lei com referência ao complexo problema dos doentes terminais e da morte. Pessoalmente estimo que essa questão comporta, logicamente, dimensões científicas, técnicas e jurídicas, mas também nos remete a questões de natureza cultural e filosófica: qual a imagem que temos do ser humano? Que visão projectamos da vida cuja compreensão mais profunda vem sendo elaborada no interior das ciências biológicas, da moderna cosmologia e de uma compreensão ampliada do processo da evolução ascendente? Uma nova óptica provoca uma nova ética.
1. O cuidado: essência concreta do ser humano
Sobre isso gostaria de reflectir no sentido de levar avante a discussão com a eventual contribuição da filosofia, nomeadamente da ética. Gostaria de articular a reflexão ao redor do tema do cuidado, tão essencial à vida, especialmente à vida humana em seu limite extremo de doença e de morte.
A ética do cuidado é conatural aos médicos e enfermeiros e também aos promotores do direito e da justiça na sociedade. No meu livro, Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, tentei vertebrar um pensamento que acolhesse essas questões e as aprofundasse no arco de uma visão mais arquitectónica, própria da filosofia e da ética. Parti de uma conhecida fábula de Higino, um filósofo escravo egípcio-romano, na qual aparece claramente que a essência do ser humano não reside tanto no espírito e na liberdade, quanto no cuidado.
O cuidado significa uma relação amorosa com a realidade. Importa um investimento de zelo, desvelo, solicitude, atenção e protecção para com aquilo que tem valor e interesse para nós. Tudo o que amamos também cuidamos e vice-versa. Pelo facto de nos sentirmos envolvidos e comprometidos com o que cuidamos, cuidar comporta também preocupação e inquietação.
O cuidado constitui a plataforma real que possibilita as demais dimensões do humano emergirem. Sem ele não guardariam sua característica humana. Martin Heidegger, em seu Ser e Tempo, dedica alguns dos mais profundos parágrafos a essa visão do cuidado essencial, como a natureza concreta do ser humano no mundo com os outros. Devido à sua essencialidade, dizia Horácio, o poeta romano, “o cuidado nos acompanha como uma sombra ao largo de toda a vida”. Tudo aquilo que fizermos com cuidado significa uma força contra a entropia, contra o desgaste, pois prolongamos a vida e melhoramos as relações com a realidade.
A crise da cultura mundial reside na falta de cuidado, falta clamorosa no tratamento das crianças e dos idosos, dos eco-sistemas, das relações sociais e de nossa própria profundidade. É o cuidado que salvará o amor, a vida e o nosso esplendoroso planeta Terra.
Na Carta da Terra, documento elaborado ao longo de 8 anos, envolvendo as bases da sociedade e o melhor do pensamento ecológico, político e ético de 46 países e implicando mais de 200 mil pessoas, visando garantir o futuro do Planeta e da humanidade e recentemente acolhido pela UNESCO, o eixo estruturador é a ética do cuidado. Para as gentes da medicina e da enfermagem, essa assunção não significa nenhuma surpresa, pois, como disse e repito, o cuidado é a essência da atitude curativa dos operadores da saúde. Já no século passado emergia poderosamente essa perspectiva do cuidado com a famosa enfermeira inglesa Florence Nightingale. Ela deixou a Inglaterra e foi tratar, sob a óptica do cuidado, os soldados feridos na violenta guerra da Crimeia. Em seis meses conseguiu reduzir de 42% a 2% a mortandade entre os soldados feridos. No regresso, organizou toda uma rede de hospitais que davam centralidade ao cuidado. Deu origem a uma corrente de pensamento e de ética na enfermagem, articulada ao redor do cuidado, hoje muito forte nos Estados Unidos e no mundo inteiro.
Particularmente a partir dos anos 70, começou-se a discutir a ética da enfermagem utilizando a categoria cuidado . Aí aparecia o cuidado como a aura benfazeja que deve impregnar a investigação científica e a utilização do aparato tecnológico. Estes não devem ser subestimados nem relativizados em nome do cuidado. Antes, devem servir à atitude de cuidado, pois só então servem à integralidade dos pacientes a serem curados ou acompanhados em sua grande travessia da morte. Cuidado (âmbito mais da enfermagem) e cura (âmbito da medicina) devem andar de mãos dadas, pois representam dois momentos simultâneos de um mesmo processo.
Frequentemente somos confrontados com a situação penosa de doentes terminais. A medicina contemporânea tem condições de prolongar por muito tempo a vida, mesmo no âmbito de situações-limite e para além de qualquer expectativa de reversibilidade. Há situações que comportam grande dor dos pacientes e gastos altíssimos para a família que quase vai a falência no afã de garantir o tratamento de seus familiares terminais. Como actuar em casos deste género? Prolongar a todo custo a vida ou deixar que ela siga o seu curso rumo à morte?
Tive a oportunidade de acompanhar a grande travessia de uma das mais brilhantes inteligências brasileiras e cristãs, o Dr. Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaide) no hospital Santa Teresa de Petrópolis. Ele foi durante toda a vida um paladino da liberdade, especialmente nos tempos de chumbo da ditadura militar. Com seus mais de 90 anos e sob muitos achaques, padecia ligado a muitos aparelhos e tubos. Num dado momento de distracção dos enfermeiros, arrancou tudo e libertou-se. Criou-se um impasse, para cuja solução fui convidado a opinar. Tratava-se de ligar ou não ligar aqueles aparelhos todos para permitir ao Dr. Alceu prolongar por um pouco mais a vida. Suspeitando do impasse, ele me sussurrou ao ouvido: “eu lutei a vida inteira pela liberdade e não quero morrer sob ferros como um escravo, isso não é digno, deixem-me morrer em paz”.
Foi o que eu disse ao corpo médico: “respeitem o curso natural da vida do Dr. Alceu, porque a vida é mortal e ela precisa ser respeitada em sua qualidade de mortal. Ademais, o Dr. Alceu é um cristão profundamente convicto na vida eterna; a doença não lhe tira a vida, ele a entrega Àquele de quem a recebeu, a Deus; deixem-no morrer como quer, em plena liberdade”. E assim foi feito. E morreu com a aura de um liberto. Essa atitude significa também cuidado para com a natureza da vida, em sua finitude e mortalidade.
2.Uma compreensão mais complexa do ser humano
Essas pequenas referências nos suscitam a questão que gostaria de rapidamente abordar aqui: qual a compreensão do ser humano que preside a nossas práticas terapêuticas? Façamos um ensaio de reflexão filosófica.
Antes de mais nada, importa enfatizar que o ser humano constitui uma totalidade extremamente complexa. Quando dizemos “totalidade” significa que nele não existem partes justapostas. Tudo nele se encontra articulado formando um todo orgânico. Quando dizemos “complexa”, significa que o ser humano não é simples, mas a sinfonia de múltiplas dimensões que coexistem e se interpenetram. Dentre muitas, discernimos três dimensões fundamentais do único ser humano, dimensões que ocorrem sempre juntas e articuladas entre si: a exterioridade (corpo), a interioridade (mente) e a profundidade (espírito).
Essa consideração holística propicia-nos uma visão mais integrada que beneficia a medicina e a enfermagem em sua missão de cura...
A exterioridade do ser humano é tudo o que diz respeito ao conjunto de suas relações com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua própria realidade concreta. Ela ganha densidade especial através do cuidado, já referido anteriormente. Sem o cuidado, eles não sobrevivem nem se desenvolvem. Por isso importa ter cuidado para com o ar que respiramos, com os alimentos que consumimos/comungamos, com a água que bebemos, com a roupas que vestimos e com as energias que vitalizam nossa corporeidade. Normalmente a essa dimensão chama-se corpo. Mas bem entendido: corpo como o ser humano todo inteiro, vivo, dotado de inteligência, de sentimento, de compaixão, de amor e de êxtase enquanto se relaciona para fora e para além de si mesmo.
A interioridade do ser humano vem constituída por tudo o que é voltado para dentro e diz respeito ao universo interior, tão complexo quanto o universo exterior. A interioridade humana constela-se ao redor do consciente e do inconsciente pessoal e colectivo. Por isso não é jamais vazia mas habitada por instintos, paixões, imagens poderosas, arquétipos ancestrais e principalmente pelo desejo. O desejo constitui, possivelmente, a estrutura básica da interioridade humana. Sua dinâmica é ilimitada. Como seres desejantes, nós humanos não desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente objecto do desejo é o Ser em sua totalidade. Tentação permanente consiste em identificar o ser com alguma de suas manifestações. Quando isso ocorre, surge a fetichização que é a ilusória identificação da parte com o todo, do absoluto com o relativo. O efeito é a frustração do desejo e o sentimento de irrealização. O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo, para que, ao passar pelos vários objectos de sua realização, não perca a memória bem-aventurada do único grande objecto que o faz realmente descansar: o Ser, a Totalidade e a Realidade fontal. A interioridade é chamada também de mente humana. Também aqui, mente, bem entendido, como a totalidade do ser humano voltado para dentro, captando seu dinamismo interior e também as ressonâncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.
Por fim, o ser humano possui profundidade. Ele possui a capacidade de captar o que está além das aparências, daquilo que se vê, se escuta, se pensa e se ama com os sentidos da exterioridade e da interioridade. Ele apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas não são apenas coisas. São símbolos e metáforas de outra realidade que está sempre além e que nos remete a um nível cada vez mais profundo. Assim a montanha não é apenas montanha. Ela traduz o que significa majestade. O mar, a grandiosidade. O céu estrelado, a infinitude. Os olhos profundos de uma criança, o mistério da vida humana.
O ser humano coloca questões fundamentais que estão sempre presentes em sua agenda: de onde viemos, para onde vamos, como devemos viver? Que significa a doença e finalmente a morte? Como preservar o mundo que nos sustenta? Quem somos nós e qual a nossa função no conjunto dos seres? Que podemos esperar e que nome dar ao mistério que subjaz a todo o universo e que reluz em cada coisa à nossa volta? Ao balbuciar respostas a estas questões vitais, captamos valores e significados e não apenas constatamos factos e enumeramos acontecimentos
Na verdade, o que definitivamente conta não são as coisas que nos acontecem. Mas o que elas significam para a nossa vida e que experiências e visões novas nos propiciam. As coisas, então, passam a ter carácter simbólico e sacramental: recordam-nos o vivido, reenviam-nos para questões mais globais e, a partir daí, alimentam nossa profundidade.
Colocar questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa, constitui o que se chamou de espírito. Espírito não é uma parte do ser humano. É aquele momento pleno da nossa totalidade consciente, vivida e sentida dentro de outra totalidade maior que nos envolve e nos ultrapassada: o universo das coisas, das energias, das pessoas, das produções histórico-socias e culturais. Pelo espírito captamos o todo e a nós mesmos como parte e parcela deste todo.
Mais ainda. O espírito permite-nos fazer uma experiência de não-dualidade. “Tu és isso tudo”, dizem os Upanishads da India, referindo-se ao universo. Ou “tu és o todo”, dizem os Yogis. “O Reino de Deus está dentro de vós”, proclama Jesus. Estas afirmações nos remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é de que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à totalidade e à sua Fonte Originante. Um fio de energia, de vida e de sentido perpassa todos os seres, constituindo-os em cosmos e não em caos, em sinfonia e não disfonia.
A planta não está apenas diante de mim. Ela está também dentro de mim, como ressonância, símbolo e valor. Há em mim uma dimensão planta, bem como uma dimensão montanha, uma dimensão animal, e uma dimensão Deus. Sentir-se espírito não consiste em saber estas coisas. Mas em vivenciá-las e fazer delas conteúdo de experiência. Quando isso ocorre, emerge a não-dualidade e a profunda sintonia com todas as coisas. A partir da experiência tudo se transfigura. Tudo vem carregado de veneração e sacralidade. Não estamos mais sós, centrados em nosso antropocentrismo ou em nossa visão utilitarista das coisas. Fazemos parte da imensa comunidade cósmica. Sentimo-nos mergulhados no fluxo de energia e de vida que empapa todo o universo e a natureza à nossa volta.
3. A morte como inteligente invenção da vida
É nesse contexto que importa colocar o tema da morte. O sentido que damos à vida é o sentido que damos à morte e o sentido que damos à morte é o sentido que damos à vida. A morte pertence à vida e a vida pertence ao mistério, àquele processo misterioso de auto-organização da matéria que permite a vida eclodir, em sua imensa diversidade.
A vida, como todas as coisas, é mortal. Quando alguém é concebido já é suficientemente velho para morrer. Começa a morrer devagar, em prestações, e vai morrendo cada dia um pouco até acabar de morrer.
Então a morte não vem no fim da vida, a morte está no coração da vida. Acolher a morte como parte da vida, significa tratar diferentemente a vida, acolher sua finitude e suas limitações, sem amargura e ressentimento, mas com jovialidade e sentido de realidade. Numa perspectiva evolutiva e holística, a morte é considerada uma sábia invenção da própria vida, para poder continuar num outro nível mais alto e realizar seu propósito de expansão do cuidado, do amor e da liberdade.
A morte não é entendida como um fracasso ou como uma dissolução, mas como um dos momentos da própria vida, tal como o momento de nascer, o momento de ficar adulto, o momento das grandes decisões, o momento de casar e outros. Assim a morte significa um momento alquímico de uma grande transformação, da grande travessia para um novo estado de consciência e de realização do projecto infinito que é cada ser humano. Na metáfora brilhante do Dr. Paulo César, a morte deixa de ser “fantasma escondido debaixo da cama”, para se transformar na irmã que nos vem tomar pela mão para nos conduzir a uma forma mais complexa e mais alta de vida. Assim pensou e viveu S. Francisco de Assis, que morreu literalmente cantando e saudando a irmã morte.
Essa concepção de vida e de morte foi historicamente trabalhada pelas religiões. Elas apresentam um sentido derradeiro para o ser humano, uma cura total de sua ânsia de infinito e de vontade de viver. Para um médico humanista, tais concepções devem ser tomadas a sério, porque elas actuam poderosamente sobre os pacientes no sentido de integrarem os sofrimentos e os medos face ao imponderável da grande travessia. Eles querem ser acompanhados pela presença humana, calorosa e solidária e não abandonados nas UTIs entregues à parafernália tecnológica. Assim como entramos no mundo cercados pelo carinho humano, queremos também despedir-nos dele circundados dos cuidados e da benquerença dos familiares e dos amigos.
4. Atitude ética básica face a situações terminais
Para concluir minhas reflexões, gostaria de apresentar alguns pontos acerca das atitudes a tomar face a doentes terminais.
Como somos responsáveis pela nossa vida, assim devemos ser responsáveis também pela nossa morte.
Como temos direito a uma vida digna, da mesma forma temos direito a uma morte digna. Esse direito muitas vezes é-nos negado pelo fato de sermos obrigados a ficar presos a aparelhos e medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo, o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana.
A vida é o melhor fruto do universo como auto-organização da matéria e, numa perspectiva espiritual, o maior dom de Deus. Mesmo assim, a vida cai sob a responsabilidade dos seres humanos. Somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida.
Outrora, a teologia moral cristã condenava o planeamento familiar, pois imaginava, erroneamente, que era uma intromissão no desígnio divino de colocar vidas no mundo. Hoje, todas as igrejas entendem que Deus colocou o começo da vida sob responsabilidade do ser humano. Também o fim da vida foi entregue à sua responsabilidade (não à sua arbitrariedade).
Não cabe ao Estado assumir a função de decidir quando uma vida deve ser prolongada ou não. O eugenismo nazista alerta-nos contra essa tentação. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não do seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar os familiares e os médicos. Isso implica:
- O médico fará tudo para curar o paciente. Não significa que use todos os métodos, meios artificiais e técnicos para postergar a morte.
- Uma terapia só tem sentido quando se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente a garantir uma vida vegetativa.
- O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais de santo, etc.), dos amigos próximos.
- Devem ser tomadas em consideração as crenças religiosas e espirituais do paciente com referência ao sentido da vida e da morte. Caso contrário, causamos-lhe violência, sempre no pressuposto, é claro, de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer. Para o cristianismo - a religião das maiorias do nosso povo - a morte não é um fim puro e simples, mas um peregrinar para a Fonte originária de toda a vida. Morrendo, acabamos de nascer. Não vivemos para morrer, mas morremos para ressuscitar e para viver mais e melhor. Deste modo, a morte perde seu carácter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem-aventurada para a plenitude da vida.
- Morrer é fazer uma despedida da vida, de forma agradecida, por aquilo que ela nos propiciou. Morrer é então fechar os olhos para ver melhor o sentido do universo e do Mistério que o circunda e perpassa.
- Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais, pois a vida e a morte são assimiladas num horizonte maior e transcendente.
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À conversa com Deus
Frei Betto (Teólogo brasileiro)
Na revista Caros Amigos, de Abril deste ano publiquei o artigo “À conversa com o Diabo”. Surpreendeu-me a repercussão entre os leitores. Agora a conversa é mais em cima…
Você acredita que ainda há espaço para mim?
Que pergunta, meu Deus! O Senhor anda inseguro? Tem lido índices do mercado financeiro?
É que as coisas na Terra mudam numa velocidade que custo acompanhar. Outrora, eu era conhecido como o Criador. Vocês agradeciam a mim o ciclo das estações, os frutos da terra, a chuva e os ventos, as águas dos rios e os peixes do mar. Qual mesa farta, criei a natureza para o bem de vocês.
Sim, Senhor, sei que abusamos da oferta. No início, extraíamos dela o necessário à sobrevivência. Para não faltar, respeitávamos os seus ritmos. Depois, descobrimos como reproduzir a natureza: inventamos a agricultura e a pecuária. E o que tinha valor de uso passou a ter valor de troca. Nossa ambição de riqueza transformou a dádiva em mercadoria.
O que fazem com a inteligência que lhes incuti? retrucou Deus. Que diabo de avanço científico é este que deu origem à proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas, capazes de provocar destruição em massa? Não percebem que estão destruindo a biosfera?
Perdão, Senhor. Andamos enrascados num paradoxo: nosso crescimento económico não beneficia os pobres e ainda resulta em degradação ambiental.
Outrora vocês estavam submetidos à natureza ponderou Deus. Havia estreita ligação entre o ser humano e o seu entorno natural. Era um caso de amor. Agora o processo se inverteu: vocês adquiriram o poder de submeter a natureza.
Não era o que o Senhor queria? No sexto dia da Criação não recebemos a ordem de dominar os peixes do mar, as aves do céu e os répteis que rastejam sobre a terra?
Dominar é uma coisa; violar ou estuprar é outra reagiu Deus. Vocês foram longe demais: envenenaram rios e mares, poluíram a atmosfera e, agora, interferem nos processos químicos que determinam o envelhecimento orgânico e manipulam tecnologicamente os processos genéticos. Aonde pretendem chegar? Querem criar vida humana em laboratório e alcançar a imortalidade?
Somos movidos pelo lucro, Senhor. Tudo o que multiplica dinheiro constitui uma obsessão para nós.
Vocês só sabem conjugar os verbos somar e multiplicar? E subtrair e dividir? Como ficam os pobres? objectou Deus.
Acabar com a fome dos pobres não traz dividendos, mas clonar seres vivos é sinónimo de muita fortuna. Antes, a política comandava a economia. Agora a economia submete a política e escanteia a ética.
Não percebem que a economia está pelo avesso? exclamou Deus.
Explica melhor, Senhor.
Nunca se produziu tanto com tão poucos produtores. A tecnologia de ponta substitui o trabalho vivo, condenando milhões de famílias à informalidade no sector de serviços e outras tantas à miséria. A violência globalizou-se. A dinâmica do capital acirra uma competitividade exacerbada. Ilhas de riqueza e prosperidade estão cercadas de fome e penúria por todos os lados. Vocês não se dão conta de que promovem o dilúvio e, desta vez, sem uma arca que possa salvá-los?
É verdade, Senhor, toda a nossa vida social está contaminada pela mercantilização. Ao contrário dos antigos, já não temos uma moral que sirva de raiz à nossa visão do mundo. Nem sei se temos visão do mundo. O limite do nosso horizonte é a tela da TV. Hoje vivemos numa sociedade pluralista, onde a religião também se transforma em artigo de consumo, e a ética desmorona como base de um modo de pensar e agir comum a todos. É cada um por si e Deus por ninguém.
Apesar disso, continuo torcendo por todos suspirou Deus. Sou Pai, mas não paternalista. Não haverei de interferir de novo na história humana, como fiz ao enviar meu Filho. Dei-lhes um mundo paradisíaco um jardim. Vocês estragaram quase tudo, poluíram o lago, cortaram as árvores, espantaram os pássaros, esmagaram a grama, secaram as fontes. Agora, tratem de consertá-lo. Encontrar fundamentos ontológicos aos princípios éticos e políticos capazes de pautar a vida social e pessoal. Não faz sentido a coesão social derivar da coerção oficial promovida pelo Estado. Criei-os livres, a ponto de poderem rejeitar-me e fechar-se aos meus dons. Se não resgatarem a liberdade com as armas da justiça, a espiral da violência só tenderá a crescer.
Retomei o início do diálogo:
Por que pergunta se ainda há espaço para a sua presença? Não vê que o mundo é cada vez mais religioso? Proliferam igrejas, templos, cultos, seitas, movimentos esotéricos. O ateísmo perde fiéis, a fé está mais viva do que nunca!
Não é esse o espaço que busco retrucou Deus. Também a religião se torna fonte de lucro e poder. Minha pergunta é outra: há espaço para mim no coração humano? É a minha vontade que as pessoas buscam? Ou são atraídas pela vaidade, pela ambição, pelo egoísmo? Quem é capaz de me reconhecer na face de quem tem fome, está excluído e oprimido?
Vou ser sincero, Senhor. Nesse sentido, não há muito espaço. Nossos corações desaprendem a orar, a ter compaixão, a promover o gesto solidário. Temo que, após ter rompido a comunhão com a natureza, estejamos agora esgarçando a família humana. E, de quebra, nossa sintonia com o Senhor.
Sim, vocês me louvam com os lábios, mas não com o coração. Prestam-me cultos, mas não libertam o oprimido. Amam mais a posse que o dom.
Fiquei preocupado:
O Senhor vai deixar-nos à deriva? Vai cancelar a sua obra, zerar a Criação?
De modo algum. Por mais estúpidos que vocês sejam, não deixo de amá-los. Nem pretendo abandoná-los. Vocês haverão de aprender com os próprios erros. Espero apenas que não demasiadamente tarde.
Antes que ele se fosse, indaguei:
Senhor, caso queira encontrá-lo, aonde devo buscá-lo?
Não precisa ir longe disse ele com uma ponta de ironia. Basta um mergulho em seu mundo interior. Estou no lado avesso de seu coração. Mas prefiro que também me encontre na face dos que sofrem.
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Direito de Matar
Frei Betto (Teólogo brasileiro)
Você pula cedo da cama, veste-se apressado, sai correndo para o trabalho. Você prometeu à velha dama inglesa que terminaria antes do almoço a revisão completa no sistema de aquecimento da casa. O momento propício é agora, pleno verão europeu. Ela não sabe de onde você veio. Não sabe que veio de uma terra muito mais quente, no Vale do Rio Doce, onde 30 graus à sombra é refresco. Por isso, você tem o costume de vestir a jaqueta. Pode ser que, na volta, a temperatura caia, e você não pode correr o risco de ficar doente, perder dias de trabalho, do seu ofício depende uma família brasileira no interior de Minas.
De repente, você escuta um estampido seco, a nuca arde como se um tumor aflorasse nos seus ombros, você tenta entender o que ocorre tempo suficiente para que, ainda em pé, mais sete tiros lhe atinjam a cabeça. Você tomba morto.
A gentil dama inglesa ficará à espera do técnico que prometeu terminar a revisão do aquecedor. Impaciente, dirá ao fundo vazio de sua xícara de chá, enquanto aperta os dedos na alça de porcelana, que não se pode mesmo confiar nesses estrangeiros, não gostam de trabalhar, basta adiantar-lhes o dinheiro para comprar as peças de reposição e eles nunca mais dão as suas caras. Aborrecida, cansada de o esperar, a velha dama liga a TV, sua companheira de solidão, e vê a notícia do atentado abortado graças à habilidade da polícia britânica. Antes que a bomba amarrada ao corpo fosse detonada, os polícias dispararam oito tiros contra a cabeça do terrorista ainda não identificado. A gentil senhora sente-se aliviada, protegida, malgrado o calote daquele rapaz estrangeiro, com cara de árabe, que não cumpriu a promessa de revisar o sistema de aquecimento.
A cara é de árabe e tem jeito de terrorista. Por que a jaqueta em pleno verão? Foi o que pensou o polícia, ao ver aquele sujeito correndo em direcção ao metro, trajando agasalho numa manhã tropical em Londres. E o olhar dele aos seus companheiros de ofício bastou para conferir que os outros dois também farejaram o perigo. E sentiram igualmente o cheiro da vultosa recompensa prometida pelo chefe de polícia a quem evitasse um ataque terrorista. Inglês aquele sujeito não é. Muito menos irlandês ou escocês. Está na cara, é afegão ou saudita. Se não agirmos rápido, em poucos minutos teremos a estação do metro explodindo como uma mina atulhada de dinamites e pedaços de corpos espalhados por todos os cantos.
A vida, os sonhos, o amor e o trabalho de Jean Charles de Menezes cessaram à boca do metro. Sete balas alojadas no cérebro e uma no ombro. Terrorista mata-se pela cabeça. Primeiro, para não detonar os explosivos atados ao corpo. Segundo, para zerar essa mente demoníaca que arquitecta a morte colectiva de inocentes e sacrifica a própria vida por uma causa sem futuro.
Sem futuro, mas não sem passado. O bem-pensar ocidental amestrou-nos a encarar os efeitos sem nos perguntar pelas causas. O que torna Bin Laden e seus asseclas tão abomináveis? Mais do que os métodos criminosos, é não terem em mãos um Estado poderoso. Estivessem sentados na pomposa cadeira de um chefe de Estado, ninguém os acusaria de terroristas.
Fomos treinados a ter horror à acção imprevisível, inesperada, ilegal, que desafia a lógica e desmoraliza todos os diagnósticos estratégicos. Estivessem eles acomodados num salão oval, dando o sinal verde para que duas bombas atómicas fossem atiradas sobre as pacatas populações de Hiroshima e Nagasaki, ou assinando o decreto que autoriza a CIA a subverter democracias sul-americanas, desencadear a Operação Condor, prender, torturar e matar milhares de jovens idealistas que amam os Beatles e sonham com um mundo mais justo, ninguém diria tratar-se de terrorismo.
Você já ouviu falar em Ahmad Abdullah? É um garoto de al-Qaim, pequena cidade situada a oeste de Bagdá. Ele também saiu correndo pelas ruas. Vinha radiante da escola. Trazia nas mãos o boletim de final de curso. Queria mostrá-lo aos pais, havia obtido boas notas, tinha sido aprovado. Uma bala de morteiro disparada por um soldado made in USA interrompeu-lhe os passos. Atingiu-lhe o estômago, o fígado e o pâncreas. Uma rajada de metralhadora fez ondular seus cabelos lisos, pretos, que adquiriram um tom escarlate. E ele tinha apenas dez anos de idade.
Assassinar no Iraque, em Guantánamo, no Afeganistão, não é crime. É legal, não provoca horror, cobre-se com eufemismos que envergonham a liberdade e a democracia.
O direito de matar goza da protecção cúmplice da nossa omissão, essa estranha cegueira que nos impede de abominar também o terrorismo de Estado.
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Certo dia…
M. Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)
É do Evangelho esta parábola: Certo dia, um homem pretendeu oferecer aos amigos um copioso jantar. Perto da hora marcada, mandou os criados avisar os convivas: “Vinde, o jantar está na mesa”. No entanto, um após outro, todos se escusaram. Adiantou um: ”Comprei uma quinta e preciso vê-la. Peço me dispensem”. Alegou um outro: “Comprei cinco juntas de bois e vou experimentar os animais. Não posso comparecer”. Um jovem desculpou-se: ”Casei recentemente e não me é lícito deixar sozinha a minha mulher. Releve-me a ausência”. Amargurado pela recusa dos convidados, o promotor do banquete ordenou aos criados: “Ide imediatamente pelas ruas da cidade e trazei aqui os pobres, os aleijados, os cegos, os excluídos pela sociedade”. Horas depois, o mordomo apresentou-se diante do senhor e disse-lhe: “Obedecendo às tuas ordens, a sala está cheia de estropiados e vagabundos, mas ainda há lugares vagos na mesa”. O senhor respondeu-lhe: “Mandai os servos pelos caminhos e valados e trazei todos os miseráveis, todos os incompreendidos, que vagueiam pelos campos. Deixai-os entrar para que a minha casa se encha. A ceia rejeitada pelos convidados deve ser comida por eles. E que eles sejam recebidos com perfumes e música”.
É do Evangelho e não é parábola. Era a festa de Pentecostes, em Jerusalém. Os peregrinos acorriam, cantando conhecidas melodias, com a letra dos salmos e a cadência dos alaúdes. Acompanhavam os peregrinos um sem número de doentes que procuravam banhar-se na água milagrosa da piscina de Betesda. Naquele dia, um paralítico arrastava-se à beira da piscina e sentiu-se incapaz de mergulhar, à hora em que se dizia que o anjo fazia ferver a água. Envelhecido e alquebrado, corriam-lhe lágrimas de desalento. De repente, um homem bem apessoado e de olhar fraterno perguntou-lhe: “Queres curar-te?”. De voz ciciante, respondeu: “Senhor, não tenho ninguém que, quando a água é agitada, me meta na piscina”. O desconhecido fitou-o fixamente e ordenou-lhe: “Levanta-te e caminha”. O paralítico sentiu pelo corpo um ressuscitar de forças que julgara nunca mais sentir. Os seus olhos fulguraram de alegria e, de um salto, como se de um atleta se tratasse, ficou de pé. Fora de si, em explosões de contentamento, desatou a correr e a gritar: “Um homem curou-me! Um homem curou-me!”. Um grupo de fariseus agarrou-o: “Como ousas transgredir o sábado, carregando o teu leito?”. E ele, frontal: “Foi o homem que me curou que me ordenou que o fizesse”. Um dos fariseus interrogou-o encolerizado: “E quem é o homem que te ordenou que praticasses tamanho pecado?”. Apontando para os lados da piscina, acrescentou: “Procurai-o por aqueles lados. Não sei quem ele é. Mas sei que me curou”...
O Evangelho é fértil em factos e acontecimentos em que Jesus manifesta especial predilecção pelos doentes, pelas crianças, pelos excluídos pela sociedade injusta. E até pelos que se perderam numa vida insana: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O Evangelho é fértil em factos e acontecimentos, em que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
A vida do Padre Mário de Oliveira assemelha-se à de Jesus, no amor (que todos os dias é prática) por aqueles que são corridos e vexados pelo Ter e pelo Poder. Os livros do Padre Mário manifestam alguém que vê tudo à luz do Evangelho.
Vem de sair um livro da sua autoria, em nome de JESUS (Intervir/Arcas das Letras, Gondomar, 2005). Abro o livro e coube-me em sorte este magnífico pedaço: ”2004 Maio 08. O dia de hoje fica marcado pela Ceia Eucarística mensal, prevista para o segundo sábado deste mês, na sala principal da Casa da Comunidade. Apesar de ter sido anunciada ao povo da freguesia de Macieira da Lixa, na primeira Carta Presbiteral que lhe dirigi e que foi entregue à mão em todas as casas, pode dizer-se que foram praticamente nenhumas as pessoas que apareceram na sequência desse anúncio. Entre as poucas pessoas que apareceram (...) o destaque vai para a família Faria, melhor, as famílias Faria que nem sequer residem na freguesia, mas nos limites dela, já do lado da freguesia de Caramos. Os elementos destas duas casas apareceram em peso e trouxeram com eles uma amiga ainda jovem, mas já mãe separada do marido. Fátima apresentou-se com o filhinho Bruno nos braços, um menino cem por cento deficiente e cujo pai, para cúmulo, não tem querido saber do filho para nada. O menino acabou por ser, inesperadamente, a grande presença de Deus nesta Ceia Eucarística, a desafiar-nos a todas, todos, para sempre irmos mais e mais além, em dedicação e entrega de nós próprios, para a edificação duma humanidade e dum mundo outros”.
O que importa não é ter muitos livros, é tê-los bons. Entre os bons livros que, para nós, cristãos, se publica, em língua portuguesa (ou em qualquer outra língua), estão os livros do Padre Mário, pois que podemos (e devemos) fazer nosso o seu conteúdo. Os antigos diziam que temiam o homem de um livro só. Já não pode dizer-se o mesmo, mas pode acrescentar-se, sem receio, que o Padre Mário é, hoje, um dos grandes profetas do cristianismo de amanhã, em conformidade com a sociedade, que devemos construir, mais fraterna e mais justa. Por que não se lê este livro substancioso, opulento de doutrina, para o nosso tempo?
Após a sua leitura, despertaram em mim tesouros escondidos de generosidade e entusiasmo e até de uma fé plenamente consciente. De facto, não podemos já olhar para trás como a mulher de Lot. Padre Mário, Frei Amizade, muito obrigado!
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Que fazer com este livro?
José Viale Moutinho (Escritor)
O Padre Mário de Oliveira é o contrário dos outros padres que atormentaram a minha infância, ameaçando-me no post-mortem com um terrível inferno povoado de diabos cornudos e armados de enormes garfos com dentes parecidos com anzóis, empurrando-me ao mínimo pecado para uns panelões de azeite a ferver...
Suponho que muitos dos presentes passaram por esses temores e à hora da confissão, quando ajoelhávamos aos pés de um abade sentado e mal encarado, decerto farto de escutar pecados de uma sacrificada e pecadora sociedade. Perdoai-me, padre, que eu pequei e lá me caíam as lágrimas pelas faces então glabras. A gula que arrasava as malgas de marmelada, uns tostões surripiados ao portamoné da mamã, uns palavrões tipo cichi, cocó e cueca de menina, puta e merda, a manipulação do sexo à conta das meninas que íamos espreitar à porta do respectivo colégio, os maus, que maus pensamentos!
Depois o padre erguia a carantonha e invectivava, bramia, inventariava o que me parecia então um milhão de avé-marias e padre-nossos, salve-rainhas, montes de orações de contrição, que, ajoelhado diante de um altar, envergonhadamente ali passava o tempo. À porta da igreja, algum dos amigos observava: O padre quilhou-te. E eu: Pois quilhou. E lá voltávamos a rezar umas avé-marias para lavarmos aquele verbo quilhar e no dia seguinte podermos comungar na missa das 7 e meia.
E a recomendaçáo da catequista à hora em que se abria a boca para receber a hóstia: Cuidado menino, se trincas a hóstia o sangue de Cristo vai encher-te a boca, afogas-te nele, meu menino.
Por isso, para mim foi um descanso quando voltei as costas a todas as fórmulas de religião, suponho que acabando por me transformar naquilo que o meu velho e falecido amigo Abílio José Santos rotulava de místico descrente.
Porém, esta minha posição ante todo e qualquer deus, excepto Baco, curiosamente saudada pela edilidade portuense na Praça da República, dizia eu que nada disto me impediu de ter uns amigos padres, desde o velho padre Mourinho, da Terra de Miranda, ao Lourenço Fontes, de Vilar de Perdizes, ao companheiro de criança, o padre Max, vitima de um crime indecentemente perfeito no Verão Quente de 75, do Edgar Silva, que na Madeira trocou o bispo pelo PCP, do Padre Martins, também meu conterrâneo, do Nuno Higino, excelente poeta que deitou fora o cabeção! Ah, é verdade, à excepção do Maximino, com quem brinquei às missas e aos caubois em criança, em Almendra, no Douro, o mais antigo dos meus padres amigos e admirados é o padre Mário de Oliveira.
Por isso, quando me telefonou a dizer que teria de vir aqui apresentar urbi e orbi o seu novo livro O outro evangelho segundo Jesus Cristo, achei natural dizer que sim ao presbítero escritor que me ensinou a olhar de um modo diverso para D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto que bateu o pé a Salazar, alertando-me que isso só não chegava para o poder amar como meu próximo.
Aliás, na pequena novela O Bispo converteu-se, de 1976, o Padre Mário chamou-me a atenção para um outro mistério da escrita.
Desde Evangelizar os pobres, em 1970, ao Ser Jornalista é tomar partido, à narrativa Como fui expulso de capelão militar, Fátima nunca mais e E Deus disse: Do que eu gosto é de politica, não de religião até aos Cantos nas margens, de que vos leio a pág. 81:
"À senhora d'Aparecida / quem nunca mais lá quer ir? / quem já sabe que a senhora / é uma senhora a fingir
Quem procura deusas/deuses / nunca sai da alienação / tanto as rezas como as festas / reforçam a opressão.
As senhoras nos altares / são deusas sem coração / quem a elas se dirige / vive sem libertação.
"Nas doenças aflições / rezas a nossa senhora? / Tua vida podes crer / não melhora só piora.
Por detrás dos santuários / há comissões fabriqueiras / comem tudo às devotas / dinheiro cordões pulseiras."
Bem, a esta hora, quer aqui o Padre Mário, quer os meus amigos devem estar a perguntar ao anjo da guarda da vossa alma danada porque diacho eu não avanço pró que fui contratado.
E eu avanço, sim senhor. Aliás, nunca me afastei de cá.
O livro, como sabem, intitula-se O Outro Evangelho Segundo Jesus Cristo, edição do Campo das Letras, na sua Colecção Campo da Actualidade. Curiosamente, o livro anterior, na mesma colecção, é do antigo director do El Pais, José Luís Cebrián e trata do Fundamentalismo Democrático.
Começo por dizer que eu nunca lera o Evangelho de Jesus segundo São Marcos, o mais antigo dos evangelhos canónicos. E parece que fiz bem em esperar, porque a nova tradução anotada da autoria do padre Mário de Oliveira é como que uma nova anunciação, a ponto do seu autor aqui presente considerar ter valido a pena todos os seus 67 anos para agora poder dar à Humanidade este seu testemunho vivo sobre Jesus.
E que Jesus é este de que nos fala S. Marcos? O Jesus do Padre Mário?
Mas de que Jesus se trata, se nós temos milhares de outros livros da lavra de excelsas figuras, politicamente mais correctas que o padre Mário, a dar-nos biografias muito santificadas de Jesus Cristo?
Este é o livro da vida do Padre Mário. É curioso como uma tradução anotada assume esse papel num homem que publicou mais de uma vintena de livros originais! O que é que o Padre Mário quer dizer com isso?
Neste seu testemunho que ele pretende vivo sobre Jesus, em pleno ofertório da obra, originalmente escrita uma dúzia de anos após a crucificação do protagonista, decerto observada por S. Marcos. Então, como aparece aqui o Padre Mário? O que ilumina as suas notas? Jesus filho de Deus? Que Jesus? Que Deus? Quem o matou? Porquê? Porque é que os demais evangelhos, sobretudo os outros dois que emparceiram com este, tiveram maior divulgação, ficando este, o mais próximo do grande acontecimento, de algum modo apoucado?
É bem verdade que este Cristo, sendo o mesmo, é amostrado de modo diverso. Volto a dizer, mais politicamente correcto. E o Padre Mário devolve-nos o evangelho sinóptico bárbaro, desmontando, por exclusão de partes, a imagem que todos temos lá em casa, na cruz ou ao colo de santantoninho ou de sua mãe santíssima.
Foram estas, em resumo, as perplexidades que me tomaram de assalto o cérebro, prejudicando de algum modo um certo sentido de bom senso que eu costumo ter quando falo das coisas tidas como sagradas.
Conforme me adentrava neste pequeno livro, mais crescia a consideração devida ao mais recente dos seus autores.
E, depois, agora que S. Marcos está reabilitado e a sua crónica está sob o sol de Portugal, que fazer com este livro?
(Peço desculpa, mas achei que poderia calar-me com esta citação do nosso velho Camões, quando andava aos papéis com o manuscrito de Os Lusíadas...)
Um abraço.
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IGREJA/SOCIEDADE
XXV Congresso de Teologia de Madrid sobre Cristianismo e Violência
Excluí-las dos ministérios ordenados, é um acto de
Terrorismo da Igreja contra as mulheres
- denunciou uma participante, na sessão de encerramento do XXV Congresso de Teologia de Madrid, de imediato aplaudida pelos cerca de 1200 congressistas presentes
"Tenho 60 anos, e toda a minha vida quis ser ordenada presbítera. Mas a Igreja católica a que pertenço não permite a ordenação de mulheres e até acaba de expulsar do seu seio 9 católicas, só porque elas foram ordenadas à revelia da Cúria do Vaticano. Venho aqui dizer, alto e bom som, que este comportamento da hierarquia da Igreja é um acto de terrorismo contra as mulheres que tem que ser denunciado com vigor em todo o lado."
Estas palavras soaram como uma chicotada libertadora nos ouvidos dos 1200 congressistas que acorreram à sessão de encerramento do XXV Congresso de Teologia de Madrid, realizada no salão de actos das Comissiones Obreras. A denúncia, proferida logo a seguir à conferência de Casiano Floristán, emérito da Universidade Pontifícia de Salamanca, sobre o tema, "Cristãos numa sociedade violenta", recebeu de imediato um estrondoso aplauso de todos os presentes. Foi proferida por uma das muitas mulheres participantes no Congresso. A denunciante poderia ter-se escondido no anonimato, mas assim não sucedeu. Para que a denúncia tivesse rosto e não apenas voz, a católica em causa fez questão de dizer o seu nome: Mercedes Carrizosa.
Foi tudo inesperado, inclusive, para os promotores do Congresso, a Associação de Teólogos, Teólogas João XXIII, juntamente com o Colectivo das Comunidades Cristãs Populares, de todo o Estado espanhol. Mas o grito-denúncia desta católica encaixou perfeitamente no tema que esteve em debate durante os 4 dias do Congresso, de 8 a 11 de Setembro último.
De resto, a violência de género, praticada no interior da generalidade das Igrejas e com mais escândalo no interior da Igreja católica, foi uma das violências apontadas também por diversos conferencistas. Mas nada que se parecesse com a força do grito desta mulher.
Infelizmente, nenhum bispo da Igreja católica que está em Espanha ouviu em directo o grito desta católica de carne e osso que se sente e vê sacrilegamente humilhada e discriminada pelos responsáveis duma instituição que, em nome de Jesus, deveria estar na vanguarda da luta pela radical igualdade entre mulheres e homens, no que respeita a direitos e deveres, a começar, evidentemente, no seu próprio interior.
Porém, até hoje, nenhum dos muitos bispos que presidem às diversas Igrejas locais do país vizinho teve coragem de se inscrever e de participar, em fraternidade com os demais participantes, nalgum dos 25 congressos de Teologia de Madrid já realizados. Porque não são eles a promovê-los, nem ninguém a seu mando, os bispos são incapazes de os reconhecer como oportunos e válidos. No seu autismo e prepotência, continuam a comportar-se em Igreja como se fossem senhores feudais e monarcas absolutos, donos da Igreja, tal como os antigos senhores feudais eram os donos das terras. Ainda não se abriram à comunhão efectiva com todos os fiéis, muito menos já reconhecem que as Igrejas, se quiserem ter Jesus de Nazaré como a referência última do seu pensar, decidir e agir, terão também que ser conduzidas não por eles, mas pelo mesmo Espírito que o conduziu a ele. Ora, o Espírito, na codução das Igrejas, pode muito bem surpreender-nos inesperadamente a todas, todos com manhãs de Pentecostes, em que até mulheres, como Mercedes Carrizosa, tomam a palavra.
Mas os nossos bispos preferem continuar a fazer orelhas moucas e a pensar que o Espírito só fala através deles? Tanto pior para eles e para as Igrejas locais às quais eles foram chamados a presidir no amor-serviço maiêutico, não no poder. Neste caso, bom será que a assembleia de fiéis, mulheres e homens baptizados, resista a bispos assim e trabalhe activamente para os levar à indispensável conversão ao Evangelho, de modo que eles aceitem ser bispos em comunhão com todos os demais fiéis. Porque se tal conversão não acontecer, é caso para se concluir que deixa de haver lugar para as mulheres e para os homens baptizados, nas Igrejas a que eles presidem. Só haverá lugar para eles, bispos, que acabarão a falar sozinhos, no meio duma sociedade que, também ela, se quiser ter futuro, terá que ser cada vez mais uma sociedade em que todas as vozes se ouvem, todas as mãos se dão, todos os esforços se conjugam para o bem de todos os povos.
O Congresso teve como pano de fundo os atentados do 11 de Setembro e do 11 de Março, bem como os do 7 de Julho, tudo datas marcadas por acções políticas violentas, realizadas por pessoas que integram a organização Al Quaeda, de Bin Laden. A Guerra contra o Iraque, decidida e consumada como um acto de terrorismo do Império norte-americano e dos Estados satélites seus vassalos, continua assim a marcar os quotidianos dos povos que vivem à sombra de um e de outros.
Porém, mais do que erguermo-nos em protesto contra a violência e o "terrorismo" feito em nome das vítimas do Império e dos Estados, importa erguermo-nos contra as causas que estão na origem de toda a violência. Aliás, foi por aqui que avançou o Congresso de Teologia de Madrid. O Deus de Jesus é de Paz, não de violência, muito menos de terror. Como tal, exige que quem invoca o seu nome e se reclama de suas filhas, de seus filhos, trilhe os caminhos da partilha dos bens e da liberdade para todos os povos, os únicos que garantem a paz na terra.
Não é assim que tem acontecido, infelizmente. E, em nome de Deus, o Ocidente sempre conquistou, roubou, massacrou, impôs a sua concepção do mundo, oprimiu. E, ainda hoje, é assim que continua a agir contra os povos, mediante a prática de economias que fabricam pobreza e miséria em massa, aumentam o número de empobrecidos em todo o planeta, ao mesmo tempo que dão cabo do ambiente, numa espécie de esquizofrenia incontrolável que, se assim continuar, não deixará pedra sobre pedra, muito menos vidas humanas e outras sobre a terra.
De todas as conferências proferidas no Congresso, a expectativa maior incidiu sobre a conferência proferida pela euro-deputada Emma Bonino, que reflectiu a escaldante temática "Violência de género". Mas eram igualmente aguardadas com justificada expectativa as conferências sobre "Cristianismo, violência e cultura em África", "Cristianismo, violência e diálogo inter-religioso na Ásia" e "Cristianismo, violência e libertação na América Latina", a cargo, respectivamente, do missionário Donato Lwiyando, do teólogo jesuíta J. Masiá e do salvadorenho, R. Cardenal.
As expectativas não saíram defraudadas, embora o sentir geral dos participantes é que o Congesso, este ano, apesar de ser o das "Bodas de Prata", foi um tudo nada mais frouxo do que outros, em anos anteriores.
Jornal Fraternizar partilha, a seguir e quase na íntegra, a conferência de R. Cardenal, da UCA. Não percam.
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A violência é um dos grandes pecados mortais destes tempos
Conferência de Rodolfo Cardenal, da UCA de El Salvador
"Do ponto de vista evangélico, a violência é sempre um mal e “um mal maior do que se pensa” (I. Ellacuría). Em consequência, a violência é pecado e não qualquer pecado, mas um dos grandes pecados mortais destes tempos, devido à massiva quantidade de vítimas que produz." São do prof. Rodolfo Cardenal, de El Salvador, estas palavras. Com elas, Jornal Fraternizar pretende chamar a atenção para o conteúdo teológico libertador e duma actualidade indiscutível, com que ele teceu a conferência que veio proferir ao Congresso de Teologia de Madrid. É um documento imperdível. É um mergulho na realidade teológica das vítimas da injustiça e da violência, que o Ocidente e as Igrejas que estão no Ocidente deverão ter a humildade de escutar, acolher e deixar-se fazer por ele. Para deixarmos de ser idólatras e pagãos, sob a capa de cristãos. Ninguém deixe de ler-estudar-difundir.
1. A realidade da violência
América Latina já não é apenas um continente pobre. É também um continente violento. À pobreza generalizada, juntou-se a violência social. E as duas fazem elevado número de vítimas.
Não falta quem defenda que o desenvolvimento do capitalismo actual, nas suas modalidades, globalização e democracia, é um bom caminho para superar os problemas estruturais do continente. De modo que o radicalismo das mudanças sócio-económicas e da teologia da libertação seriam coisa do passado. A verdade é que sem esse radicalismo, América Latina, América Central e El Salvador desapareceram dos media.
Mas enquanto houver pobres, excluídos e vítimas, há o dever ético e evangélico de lutar para libertar a história destes males, os quais, na perspectiva do Evangelho, são pecado. Este dever é hoje mais urgente, pois as vítimas deste pecado são cada vez mais e a sua existência não é negociável, por ser contrária ao plano de Deus e aos princípios básicos do seu reinado.
Na última década, a violência adquiriu proporções escandalosas, tanto que os especialistas consideram-na já uma epidemia, isto é, uma questão de saúde pública. Não obedece a motivações patológicas, próprias de indivíduos. É um fenómeno social, criado pelos seres humanos e o resultado duma determinada ordem estabelecida.
A vítima desta violência não é apenas individual. Existem também vítimas colectivas. Vítima é toda a pessoa ou colectividade que sofre um dano físico, mental, emocional, económico ou social. Todo o acto violento inclui o poder, a dominação ou a supremacia.
A violência não é um fenómeno abstracto. Tem rosto. Nestes nossos tempos ataca com especial intensidade e crueldade três grupos sociais: as crianças, as mulheres e os jovens/adolescentes.
O abuso sexual é o que ataca mais as crianças. As mulheres são hoje as vítimas preferenciais da violência. Até já se distingue entre o homicídio, cuja vítima é um homem e aquele cuja vítima é uma mulher.
A violência de género causa mais morte e deficiência entre as mulheres, do que certo tipo de doenças como o cancro, ou os acidentes de trânsito ou mesmo as guerras. O agressor é quase sempre o cônjuge, ou o companheiro.
Uma elevada proporção de gravidezes das adolescentes resultam de violações. Os indivíduos entre os 15 e os 35 anos são as vítimas mais numerosas de homicídio. E os jovens são eles próprios, com frequência, os homicidas. Não são os únicos. Mas da fama já não se livram.
Em números: No continente latino-americano, são assassinadas, cada ano, entre 110 mil e 120 mil pessoas. Entre os países mais violentos, encontram-se Colômbia, El Salvador, Guatemala e México.
2 Uma realidade injusta: ambiguidade do progresso
As vítimas da pobreza e da violência são esquecidas com bastante facilidade. São um fenómeno indesejável, mas olhado quase como coisa normal num mundo como o nosso. E só são visibilizadas, quando ocorrem catástrofes de grandes proporções. E mesmo assim, nem em todas as catástrofes. As que ocorrem em países que não figuram no mapa de interesses do Ocidente capitalista, não chegam a ser notícia, ou são-no por pouco tempo.
O progresso da humanidade, indiscutível em alguns âmbitos e mais pronunciado nalguns países e regiões do que noutros, não pode continuar como se não produzisse vítimas. Por isso, temos que apontar alguns temas que no Ocidente de hoje, não são politicamente “correctos”. Eis:
A tragédia das vítimas deve ser recuperada como o primeiro passo para evitar que haja mais vítimas. O segundo passo é lutar contra essa realidade que, por mais dinâmica que seja, é injusta. A recuperação da tragédia das vítimas, como observa Jon Sobrino, exige recuperar, simultaneamente, a linguagem de injustiça e justiça, a qual, juntamente com elas, também foi retirada e substituída por outra, que prefere nomear a negatividade da história com uma terminologia que suaviza essa tragédia. É por isso que hoje se fala mais de “países emergentes”, de “classes menos favorecidas”, de “não-pobres”.
Ao resgatar a linguagem de injustiça e justiça, recuperam-se também os conceitos opressão e libertação, imperialismo e liberdade, pecado e graça, profetismo e utopia.
O habitual hoje é olhar a história apartir dos poucos que triunfam. O seu êxito é medido pela quantidade de capital acumulado, pelo luxo e comodidade e pela ostentação do dinheiro e do poder. Este critério é sumamente egoísta, mundano. E contrário ao Evangelho.
A linguagem da injustiça é intolerável para este mundo, porque desmascara a tragédia e a verdade deste mundo. E a linguagem da justiça exprime a radicalidade, a urgência e a ultimidade da responsabilidade da humanidade. Ao Ocidente rico e poderoso é muito duro ter que viver no meio da realidade sofrida do mundo. Por isso, faz-se rodear de ambientes artificiais de comodidade e de abundância, onde o clamor das vítimas não chega. Mas é inútil toda esta habilidade, porque o sofrimento suportado pelas vítimas é uma denúncia profética permanente.
Diante da existência massiva de vítimas é inevitável perguntar porquê o poder aniquila de maneira tão devastadora e cruel pessoas e colectividades, na sua maioria inocentes, e que nem chegam a levantar-se contra ele.
A questão é ainda mais crítica, quando acontece num mundo como o nosso, que conta com tanto desenvolvimento científico e tecnológico, económico e democrático, intercomunicado e globalizado. A injustiça da história surge aqui em toda a sua crueza e põe em causa um poder que parecia absoluto. Pelos vistos, é uma história que, a julgar pelos factos, não consegue progredir sem produzir vítimas.
Ora, quando a história é olhada a partir da injustiça, salta à vista a necessidade de a reverter, a partir da justiça e da libertação, mesmo quando estas, aparentemente, tenham poucas possibilidades de êxito.
O poder da injustiça não só se apresenta como absoluto, mas também faz vir ao de cima a impotência perante a sua força destruidora. Esta sensação de impotência e de abandono tem feito desanimar a não poucos, os quais preferem aceitar a injustiça como inevitável e, com rapidez surpreendente, aprenderam a viver com ela. A comodidade que o progresso oferece é uma espécie de tranquilizante eficaz para quem ainda pudesse ficar de má consciência perante as vítimas.
3. A redenção da violência
Do ponto de vista evangélico, a violência é sempre um mal e “um mal maior do que se pensa” (I. Ellacuría). Em consequência, a violência é pecado e não qualquer pecado, mas um dos grandes pecados mortais destes tempos, devido à massiva quantidade de vítimas que produz. É o lado mais obscuro da humanidade, o qual tem poder para configurar a história, como, de resto, já S. Paulo o denunciou (Col 3, 5). O mesmo Paulo observou que o seu dinamismo procede da cobiça ou da concupiscência do dinheiro e da concupiscência do poder. O resultado inevitável é o predomínio da injustiça e o atropelo do débil, um pecado muito fustigado nos dois Testamentos bíblicos.
A resposta cristã à espiral de violência é a redenção, portanto, a cruz. Ellacuría advertia que é erróneo, tanto do ponto de vista sociológico como teológico, pensar noutra espécie de resposta. A redenção da violência começa pela conversão. Quando a mensagem profética denuncia o pecado, exige a conversão radical do coração. Ao coração que faz da posse e do poder o seu deus, exige-lhe a troca por um outro, dedicado ao serviço e ao amor. Sem uma transformação da mente e do coração é impossível esperar uma mudança dos comportamentos e das estruturas injustas. Esta conversão desemboca na expiação e na penitência, entendidas como entrega e abertura radical aos demais, sobretudo aos mais pobres e abandonados.
A vida do seguidor de Jesus é tão aberta e à intempérie, que facilita que os demais a possam arrebatar ou até tirar. Como aconteceu com Jesus, a quem não tiraram a vida, contra a sua vontade, porque ele é que a entregou a quem lha queria tirar.
Os detentores do poder injusto só podem converter-se, isto é, chegar a ser cristãos, fazendo-se violência radical, isto é, a violência da cruz. Não é qualquer espécie de violência, mas uma violência redentora, configurada cristamente e, por isso mesmo, muito diferente da violência-crime. O Evangelho exorta a renunciar à posse da riqueza e ao Ter concupiscente. Em consequência, a autenticidade cristã dos actuais detentores da ordem estabelecida é muito questionável.
A violência redentora compreende a responsabilidade pessoal, a humanização da pessoa e a transformação das estruturas pecaminosas que predispõem ao exercício da violência, e que a toleram e justificam. Estas estruturas são injustas e contrárias ao Evangelho. É também inegável a existência de um pecado histórico, o pecado dos tempos, o do poder injusto.
A conversão pessoal é difícil, mas a colectiva é impossível, se não for forçada pelas circunstâncias. Isto obriga a exigir a conversão contra a vontade injusta dos detentores do poder que violenta o débil e lhe negam uma vida pessoal, portanto, cristã. A dificuldade da conversão radica em que ela não é posssível sem algum tipo de morte.
Converter-se é morrer para a vida anterior, ou, em termos mais tradicionais, morrer para o pecado. E, como qualquer morte, também esta é muito dolorosa e tem muito de abandono. É o que Ellacría chama uma “morte crucificada”.
Não é fácil falar nestes termos tão duros e estranhos a um mundo ocidental que vive bem. Mas é esta maneira de falar que aprendi de Mons. Romero e, em particular, de I. Ellacuría. Mas ainda mais radical é a maneira de falar do Novo Testamento.
A conversão colectiva, como a pessoal, é uma transformação do coração. A luta deve travar-se dentro da história e sem fazer violência, nem criar mais vítimas. O mundo e a violência só podem redimir-se penetrando nas suas profundidades, lá onde se decidem as encruzilhadas da história.
Assumir o pecado da violência desta maneira activa arrasta consigo um risco muito grande, porque quem o faz expõe-se a ser triturado por ele. Este risco de sucumbir ao poder do pecado que se combate não deve ser assumido como o preço social a pagar para construir uma convivência pacífica. Possui um sentido teológico profundo. Carregar com a violência injusta, e fazê-lo a partir duma postura de não-defesa, tem valor salvífico, é a redenção da hybris e da mística da violência.
Não se trata de buscar o sacrifício no que ele tem de efusão de sangue. A tradição cristã afirma que sem derramamento de sangue não há redenção, ou, em palavras mais actuais, o pecado não se erradica sem se carregar com ele. De facto, o sangue dos mártires latino-americanos, simbolizados em Mons. Romero, foi muito. Nenhum deles buscou de forma directa o sacrifício. Veio-lhes por acréscimo e como consequência da sua luta insubornável contra o pecado do mundo. Todos eles entraram nas entranhas do pecado do mundo com a intenção de o redimir. Mas ele matou-os.
Cabe aqui fazer memória da Ellacuría e seus companheiros da UCA de San Salvador. E com eles, de todos os mártires do povo salvadorenho e centro-americano. Nem mesmo Jesus buscou derramar o seu sangue na cruz como um fim em si mesmo. Não veio para ser crucificado, mas para pregar o Reino de Deus, chamar à conversão e oferecer a salvação. O seu oferecimento não foi aceite pelos poderosos do seu tempo. A sua fidelidade à missão recebida do Pai, converteu esta rejeição em salvação. Esta veio pela redenção cruenta, expressada em termos de sacrifício, cruz e sangue.
Jesus Cristo ensinou-nos que o caminho da redenção passa pela encarnação entre aqueles que se pretende redimir. A sua encarnação e a de tantos discípulos que o seguiram mostra que, em palavras da Carta aos Hebreus, “segundo a lei, quase todas as coisas devem ser purificadas com sabgue e sem efusão de sangue não há remissão” (9, 22). A violência social é o resultado da tremenda eficácia do predomínio desta lei injusta e pecaminosa.
Esta “efusão de sangue” não deve ser entendida de maneira literal. Contudo, a imagem é válida para mostrar a intensidade com a qual a redenção da violência exige a purificação e a renovação. À objecção, muito racional, certamente, que rejeita a encarnação e os seus riscos e, portanto, a redenção da violência, por as considerar a ambas um fracasso anunciado de antemão, é preciso responder que o sofrimento e a morte não se esgotam em si mesmos. Apontam mais longe, à ressurreição, embora esta passagem da morte à ressurreição só seja possível por um difícil acto de fé, que descobre a vida sob a forma de negatividade histórica absoluta.
Isaías, nos cantos do Servo, di-lo com muita força, “Aos que me batiam apresentei as espáduas, e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me ultrajavam e cuspiam".
Jesus deixou que a violência descarregasse toda a sua força contra ele, até a esgotar, segundo a interpretação paulina, para a qual remetem exegetas como Xavier Alegre. Na cruz de Jesus, segundo a metáfora utilizada por estes exegetas, a violência e o pecado descarregaram toda a sua fúria sobre ele, de tal maneira que uma e outro acabaram por ficar sem força. E assim ficaram derrotados.
Jesus também viu a luz, quando Deus o levantou de entre os mortos, o exaltou e o sentou à sua direita. A ressurreição é a esperança da morte redentora. É uma esperança que não só aguarda um céu novo, mas também uma terra nova, uma das aspirações mais anigas e genuinas da humanidade crente.
O fazer novos o céu e a terra é o culminar da encarnação de Deus, na humanidade. Projectar esta nova terra para depois da história é negá-la. Jesus ensinou aos discípulos que o Reino de Deus já se encontra no meio da humanidade, embora de forma misteriosa. Mas é assim que deve começar a dar fruto.
A dor e a morte das vítimas devem abrir passagem à verdade, à justiça e à paz. A existência de vítimas é uma das questões limite da experiência humana. Além disso, é um limite insuperável, porque a humanidade anseia que o verdugo não triunfe sobre a sua vítima. As vítimas são o lado mais obscuro da história, mas ao mesmo tempo abrem a possibilidade para a esperança com a chegada da libertação.
Aos defensores da liberdade sem mais, é preciso recordar-lhes que uma liberdade sem verdade e sem justiça, uma liberdade sem libertação, não passa duma fórmula sem conteúdo. Costuma ser um privilégio para os poucos que vivem no luxo e na tranquilidade, à custa do despojo e da opressão da maior parte da humanidade.
Os primeiros e mais determinados na luta contra o pecado da violência e da pobreza deveriam ser os cristãos e as cristãs, mas sem chegarem a fazer uso da violência. O testemunho cristão não se dá através da violência, mas isto não significa que tenhamos que ficar resignados a aguardar tempos mais justos e pacíficos. Tão pouco se deve deixar o trabalho “sujo” a outros, permanecendo à margem entre os “puros”, entre os que nunca sujam as mãos.
O testemunho pleno de que a vida está por cima da morte, de que o amor está por cima do ódio, é a nossa maneira de tentar redimir a violência. Ao cristão, como a todo o ser humano, cabe-lhe combater toda a forma de injustiça. Mas o específico do cristão é ser ele o primeiro e o mais determinado nessa luta, até dar a própria vida, se for necessário, e usar sempre meios que exprimam a supremacia da vida sobre a morte. Esta disposição é a que lhe outorga credibilidade diante dos demais.
4. Fé, esperança e ressurreição
O risco de que a força destruidora do pecado do mundo se volte contra quem carrega com ele e inclusive o destrua, como aconteceu com Jesus e os mártires, só pode ser assumido desde esse acto de fé profundo que vê a luz e a salvação mais para lá das consequências que a entrega incondicional aos demais pode trazer.
A vida não termina com a morte do redentor ou do mártir. Quando a morte não é apenas consequência de limitações biológicas, nem tão pouco do desgaste produzido pelo esforço de manter a própria vida, mas é também consequência da entrega por amor aos outros e ao combate ao que neles há de opressão e de injustiça, dá-se uma analogia com a vida e a morte de Jesus. Então, e apenas então, sublinha Jon Sobrino, se participa na esperança da ressurreição.
Sem comunhão com o crucificado, a ressurreição é apenas uma possibilidade de sobrevivência, uma referência ambígua, pois pode tanto pode ser para a salvação como para a condenação. A esperança na sobrevivência salvífica participa primeiro na cruz de Jesus e, por derivação, nas cruzes da história.
Ao ser uma esperança crucificada, isto é, que se abandona de forma incondicional, é uma esperança contra a esperança, tal como adverte Paulo. A esperança cristã está crucificada, não só porque possui a sua própria obscuridade, mas porque, por agora, a injustiça mata e porque o seu poder de matar parece não ter fim.
O grande escândalo da história é este poder que aniquila de forma cruel e devastadora pessoas e colectividades e a própria criação.
O escândalo primário da humanidade não é a morte em si mesma, um destino universal, mas o assassinato do justo e a possibilidade, sempre aberta, de lhe dar a morte. O modo cristão de enfrentar este grande escândalo é o mesmo que se põe com a morte pessoal. Porém, antes de ter que se confrontar com a sua própria morte, o cristão e a cristã têm que se confrontar com a morte injusta do outro. Deste confronto, o seguidor de Jesus tira valor para esperar a própria ressurreição, pois é o mesmo valor com que espera a superação da morte do inocente.
Não se trata, pois, como no recorda Jon Sobrino, duma esperança para lá da morte, mas duma esperança contra a morte das vítimas. Por isso é uma esperança crucificada com elas e contra a esperança. É uma esperança que não se fixa em si mesma, mas que se esquece de si para recobrar-se na morte dos povos crucificados, tal como chamou Ellacuría às vítimas colectivas da injustiça, as quais se contam por centenas de milhar.
O sentir mais elementar de humanidade e o sentir cristão mais profundo não pactuam com esta morte. Mais, condenam-na como facto escandaloso. Porém, não se contentam com a indignação e a compaixão à distância. Quem está animado desse sentir, sente-se obrigado a abandonar a sua comodidade e a sua tranquilidade, mesmo que legítimas, para assumir a defesa do inocente e para esforçar-se por baixá-lo da cruz e dedicar a sua vida a evitar que haja mais cruzes.
Para o cristão, este escândalo histórico converte-se na mediação do que de escândalo ele encontra na sua própria morte. Dito de forma positiva: a esperança na própria ressurreição vive da esperança na ressurreição das vítimas da injustiça. Assim pois a ressurreição de Jesus coloca, como primeira exigência, a esperança para as vítimas e a participação activa nela. Daí a segunda exigência: apropriar-se dessa esperança duma forma activa, esforçando-se por evitar mais mortes inocentes, mesmo quando se corra o risco de se converter numa vítima mais, tal como testemunha a pléiada de mártires cristãos e, em particular, os latino-americanos.
Portanto, o anúncio da ressurreição de Jesus não pode ser substituído por outros símbolos de esperança para lá da morte, que proliferam por aí nas religiões e correntes filosóficas, passadas e presentes.
A solidariedade radical com as vítimas abre, pois, o caminho para encontrar a esperança pessoal na ressurreição de Jesus. A compaixão e o amor que a movem desde as profundidades do coração, predispõem a trabalhar para acabar com o poder maligno da história.
Não é uma esperança fácil, uma vez que passa pelo escândalo de se apropriar da realidade das vítimas. Mais. O triunfo momentâneo do verdugo e a pergunta sobre o destino final das suas vítimas tornam-se mais críticos quando se descobre um Deus próximo, carinhoso e a favor delas.
A esperança nunca foi fácil, porém esta é uma esperança real. Só aquele que penetra no centro da iniquidade humana, encontra a luz que lhe permite compreender com clareza a trama profunda da história, porque a luz que irradia o Servo sofredor de Isaías descobre as profundidades do coração humano, o melhor e o pior.
Assim, pois, é legítimo esperar que o verdugo não triunfe sobre a vítima e é legítimo esperar a ressurreição da vítima e também a nossa, se tivermos sido solidários com o seu destino. Vista assim, a esperança é um dom que as vítimas nos entregam, desde a negação e o abandono aparentes da história. Abre-nos à transcendência. Porém, para recebermos este dom, temos que colocar-nos do lado delas.
Encontrar este lugar é relativamente fácil. Não é um sítio excepcional, mas o mais comum da humanidade de todos os tempos, o mundo dos crucificados, ou melhor ainda, dos povos crucificados.
A cruz de Jesus, antes de se converter “na” cruz, foi uma cruz como as muitas que houve antes e depois dele. As vítimas às quais é dada morte violenta, são homens e mulheres crucificados; outras vítimas morrem de lenta crucifixão, por causa da injustiça.
Por isso a cruz é o sítio onde a esperança se torna universal e a ressurreição se converte num sinal, na medida em que participamos, de forma análoga, na vida e na morte das vítimas.
É-nos permitido esperar também que o poder de Deus aniquilará o poder destruidor do pecado do mundo. Não esqueçamos que a novidade e o escândalo da mensagem da páscoa cristã é que o condenado, o crucificado e abandonado é o mesmo que foi levantado de entre os mortos, antes que todos os outros, pelo poder de Deus.
A esperança suscitada pela ressurreição de Jesus abre-nos o futuro ao Reino de Deus. Ela, ainda mais do que as políticas económicas e a democracia, embora tudo isso possa ser muito útil, mas como meio ou instrumento.
A esperança suscitada pela ressurreição de Jesus hoje brota nas vítimas condenadas à morte, rápida ou lentamente, e abandonadas à sua sorte, por um mundo que nem sequer guarda memória delas.
A esperança verdadeira é que não haja mais vítimas e que a justiça e a paz sejam realidades quotidianas.
Para quem está do lado das vítimas, a esperança é mais forte que os impulsos primários do verdugo. São as vítimas quem nos ajuda a crer e a construir a esperança.
O futuro não pode construir-se sobre mais violência e mais vítimas, mesmo quando se trate de violência contra os verdugos. A força da esperança não está na aniquilação, mas numa nova forma de vida.
Sem fé, sem esperança, sem disposição para pedir perdão e para receber perdão, sem superar o egoísmo, individual e colectivo, sem abertura à família humana, ao gozo de sermos humanos umas com os outros e sem a transcedência para onde nos atiram o Reino de Deus e a ressurreição - não haverá possibilidade duma vida nova, humana e verdadeiramente cristã.
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Mensagem do XXV Congresso de Teologia
Redigida e lida pelo teólogo JJ. Tamayo Acosta
1. A paz é um dos bens mais apreciados e desejados pela humanidade, mas é também um dos mais frágeis e ameaçados. Se percorrermos as etapas da história humana à procura de um estado de paz, em vão o procuraremos. A humanidade parece seguir a palavra de ordem: “Se queres a paz, prepara a guerra”.
Para a causa da guerra total, está a contribuir hoje o choque de civilizações, que constitui o guião da política internacional e espera das religiões a função ideológica de legitimar o confronto entre civilizações e culturas. Outro obstáculo para o êxito da paz no mundo são os diferentes terrorismos: o de Estado e do Império que, em aras do seu omnímodo poder, agride sociedades inteiras; o ecológico, que defende as façanhas tecnológicas mais deslumbrantes, gerando morte à sua volta, sem resolver o problema da pobreza; o terrorismo de massas que, por vezes, surge da miséria e da marginalização; o terrorismo de raiz religiosa que apela à imagem de um Deus violento, muito presente na maioria das religiões e nos teísmos políticos, para justificar as acções terroristas, as agressões bélicas e as invasões de outros países.
2. Não podemos ignorar outra das mais graves manifestações da violência: a que gera desigualdade e pobreza: 2.500 milhões de seres humanos sobrevivem com menos de dois euros por dia; 35.000 meninos e meninas morrem de fome; as 500 pessoas mais ricas do planeta dispõem, sozinhas, de mais riqueza que os 416 milhões de pessoas mais pobres; 18 países, com um total 460 milhões de habitantes, pioraram o seu nível de vida nos últimos 15 anos; em Espanha, há mais de 8 milhões de pobres. É escandaloso que se condene a violência do terrorismo e se silencie a violência que sofrem os pobres.
3. A violência contra as mulheres na sociedade e nas religiões foi objecto de análise no Congresso. As religiões nunca souberam lidar com as mulheres, especialmente a Igreja católica, cuja hierarquia não costuma condenar a violência de género e, nalguns casos, até a fomenta e pratica. A violência está também muito presente no desporto e na educação; clama ao céu a violência que se exerce contra as crianças, como demonstra a terrível situação das crianças escravas em África.
4. Ao actual clima de violência, junta-se o incremento nas despesas militares que, em 2004, ascendeu a mil milhões de dólares em todo o mundo, e cujas principais consequências são: a sobredimensão das forças armadas, a potenciação da indústria de armas e do seu comércio e a investigação científica orientada para fins militares.
5. Após a análise, procuramos encontrar as raízes das diferentes formas de violência, já que só vendo as causas se pode indicar o remédio para combater os seus efeitos perversos. E estas são as seguintes: antropológica: a agressividade é tão inata ao ser humano como a fome, o sexo e o medo; económica: o sistema neo-liberal vigente hoje na maioria das sociedades é estruturalmente injusto e gerador de pobreza e de exclusão; o sistema patriarcal, que exerce sistematicamente a violência de género contra as mulheres; as próprias religiões: existe uma falta de sintonia entre as mensagens de paz que as religiões oferecem e algumas das suas manifestações históricas violentas através das quais conseguiram impor-se pela força das armas. O cristianismo fomentou e praticou a violência para converter os crentes de outras religiões, conquistar territórios e impor a sua fé. Inclusive, a doutrina social da Igreja elaborou uma teologia da guerra justa sem se preocupar em elaborar uma teologia da paz. Não foi esse o espírito de Jesus de Nazaré, o qual continua os passos do pacifismo dos profetas, inscreve-se no caminho da sabedoria, trata Deus com o carinhoso nome de Abbá e foi ele próprio vítima da violência por denunciar um status político-religioso injusto e violento.
6. Depois da análise da violência e das suas causas, o Congresso quer oferecer algumas propostas concretas:
* Julgamos necessário transferir recursos com as despesas militares para as necessidades sociais, o que exigirá, entre outras práticas: a destruição generalizada dos arsenais nucleares e convencionais, a reconversão da indústria militar para as produções civis, e o desaparecimento das alianças militares, juntamente com acções de responsabilidade individual e colectiva, como as objecções fiscal, científica e financeira.
* Somos defensores do método da não-violência activa libertadora, defendida pela maioria dos líderes religiosos e morais que trabalham por um mundo reconciliado, sem guerras, dominações e terrorismos, embora reconheçamos as enormes limitações que o método tem. Na tradição cristã nunca faltaram minorias críticas para com a violência e defensoras da paz, baseadas no Sermão da Montanha, como Francisco de Assis, os mennonitas (séc. XVI), o Movimento dos Irmãos (séc. XVII) e os Ninguéns (séc. XVIII). Os teólogos da libertação também deram importantes contributos neste campo.
* É necessário passar da actual globalização da violência à mundialização da paz, o que implica a solução dos conflitos através do diálogo, e substituir a actual teologia da guerra justa por uma teologia da paz. Isso exige comprometer-se com a causa da reconciliação para fomentar uma convivência pacífica e um desenvolvimento justo e sustentável, e criar uma cultura da paz em todos os âmbitos da realidade: a educação, a família, as religiões, o desporto...
Numa palavra, a alternativa à violência é o diálogo entre culturas e religiões e o trabalho pela justiça. Não há paz social sem justiça económica e ecológica. Como afirma o salmo, “a justiça e a paz beijam-se”
Madrid, 11 de Setembro de 2005.
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CEBs do Brasil realizaram 11.º encontro nacional
Frei Gilvander Moreira
Uma Igreja toda ministerial
e aberta aos novos desafios
O 11.o Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) ocorrido de 19 a 23 de julho de 2005, em Ipatinga/Mato Grosso, foi um evento histórico para o Vale do Aço, para Minas Gerais e para o Brasil em geral. O tema foi a Espiritualidade Libertadora. E o lema, Seguir Jesus Cristo no compromisso com os Excluídos.
As CEBs têm uma origem próxima e uma origem remota; são um jeito muito moderno e muito antigo da Igreja ser Povo de Deus.
As CEBs são filhas de Abraão e Sara, um casal de sem terra que entrou para a história como pai e mãe das três maiores religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. No movimento das mulheres e das parteiras do Egipto, já estavam sendo gestadas. Quando as parteiras fizeram greve e promoveram desobediência civil, tornaram possível a existência de Moisés, um dos libertadores do povo hebreu das garras do império dos faraós.
As CEBs estavam nascendo no movimento de Jesus de Nazaré que, ao optar pelos pobres e excluídos, testemunhou um jeito de viver libertário. Assim são filhas das Primeiras Comunidades Cristãs que, sob a liderança dos Helenistas e das mulheres, foram vivenciando o projecto do Evangelho de Jesus que é óptima notícia para os pobres,mas péssima para os opressores.
No Brasil, na história mais próxima, podemos dizer que, nascidas na década de 60 do século passado, as CEBs foram um celeiro de vocações libertárias, políticas e sindicalistas. No 11.º Intereclesial das CEBs, o que mais expressa a alegria dos participantes é a música: “Que sabedoria é essa, que vem do meu povo? É o Espírito Santo agindo de novo”. Dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra, entusiasma-se: “É um grande Pentecostes!”
Alguns números revelam a magnitude do encontro: 3.806 participantes, dos quais 3.219 eram representantes de CEBs de todo o Brasil, 112 assessores, 89 indígenas representantes de 32 nações indígenas; aproximadamente 3.000 leigos e leigas, 420 religiosas e religiosos, 380 padres, 50 bispos católicos e 2 bispos anglicanos, 70 pessoas vindas de outros países, 288 convidados, 48 pessoas de outras onze Igrejas cristãs, das quais 23 pastoras e pastores.
Da Carta Final do 11.o Intereclesial às CEBs de todo o Brasil e à sociedade em geral podemos destacar:
“Acreditamos na vocação profética das CEBs, contribuindo para que a Igreja em suas estruturas se torne mais circular, colegial, acolhedora, inclusiva nas suas relações de género, como propusemos no X.º Intereclesial em Ilhéus: “Sonhamos com uma igreja participativa, toda ministerial, unida no respeito pela diversidade, missionária, uma igreja mãe, acolhedora, defensora dos pobres e excluídos, aberta aos novos desafios. Uma igreja onde o poder seja mais partilhado, abrindo espaço para a participação das mulheres em todas as suas instâncias de serviços e decisões”.(...)
O actual modelo económico é intolerável. Ele subordina nosso país ao capital financeiro e desestrutura nossa sociedade. É urgente o esclarecimento dos factos de corrupção política ocorridos no actual governo e nos anteriores, punindo-se exemplarmente os responsáveis. Exigimos o restabelecendo da transparência e da ética na esfera política e social. Comprometemo-nos a seguir somando forças com os movimentos populares, sindicais e outras instituições da sociedade civil e a mobilizar-nos para mudarmos esta situação, engrossando o mutirão ‘Por um Novo Brasil’, a que nos chama a IV Semana Social Brasileira.”
Os 52 bispos presentes no encontro, além do testemunho de suas presenças, dedicaram uma mensagem ao povo das CEBs: “Testemunhamos a importância das CEBs na vida da Igreja e da sociedade. As CEBs foram gestadas no contexto do Vaticano II. Amadureceram e se multiplicaram no Brasil, na América Latina e Caribe, sendo lugar de evangelização e promotoras de libertação, (...) O 11.º Intereclesial das CEBs reafirma que a Igreja deve ser Povo de Deus, incentiva a prática da comunhão e participação; impulsiona a evangelização libertadora, com uma visão ecuménica e aberta ao diálogo inter-religioso e faz memória dos nossos mártires.(...) Nós nos comprometemos a encaminhar para nossas dioceses as aspirações levantadas a partir das reflexões em torno da temática do encontro, “espiritualidade libertadora”, e a dar o nosso apoio a todos e todas que se colocam a servir Jesus Cristo na opção pelos Excluídos. Pedimos aos irmãos no episcopado que apoiem as CEBs de maneira corajosa; orientem os padres, seminaristas e agentes de pastoral para que assumam sua caminhada.”
As CEBs ajudam o povo a passar da consciência ingénua para a consciência crítica e criativa. São fermento, sal e luz. Da massa da população brasileira, as CEBs formam um povo: grupo consciente e organizado que tem um projecto de vida. São uma maneira de se perceber que a igreja cristã vem das bases.
O trém das CEBs segue seu percurso, rumo a Porto Velho, em Rondônia, onde em 2.009, acontecerá o 12.o Intereclesial. A missão continua. Cantando, celebrando, reflectindo, informando e assumindo compromissos, aprendemos a peneirar sofrimentos e alegrias, desafios e conquistas, misturando fé e vida. No seguimento de Jesus Cristo e dos pobres, somos enviados pelo Espírito para servir vida e liberdade a todos os homens e mulheres. Invocamos a bênção da Trindade, a melhor comunidade.
Até o 12.o Intereclesial das CEBs vamos, no dia-a-dia, nas lutas, nos encontros de CEBs diocesanos, em nossas comunidades, construindo o projecto de Jesus que é o projecto do Deus dos pobres e dos pobres de Deus. AMÉM! AXÉ! AWERÊ! ALELUIA! UAI!
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O pensamento do novo Papa
José I. González Faus (Teólogo de Cristianisme i Justicia)
Desejo oferecer uma aproximação jornalística ao pensamento do novo papa, útil a crentes e não crentes, que talvez não saibam o que pensar a partir de tudo o que ouvem e também não são capazes de ler a sua extensa obra. Vou sistematizar alguns textos, tirados da obra “O novo povo de Deus”. A maioria deles são comentários ao Concílio Vaticano II. Vou sistematizá-los em seis capítulos de grande actualidade.
1. O cristão. Para explicar a identidade cristã, Ratzinger combina duas respostas que outros teólogos se empenham em contrapor: “A primeira diz: Quem tem o Amor tem tudo. O Amor é suficiente. Quem tem o Amor é cristão de maneira completa, simples e absoluta... O «sacramento do irmão» aparece aqui como o único caminho suficiente de salvação. É no próximo, como a «incógnita de Deus», que se decide o destino de cada pessoa. O que salva não é que alguém conheça o nome do Senhor (Mt 7, 21); o que se pede a cada pessoa é que trate humanamente Deus misteriosamente escondido no ser humano” (p. 391).
O problema desta resposta tão exacta é que “ninguém tem realmente o Amor (cf. Romanos 3, 23). Todo o nosso amor anda reiteradamente corrompido, deformado pelo egoísmo”. Precisamente por isso “aqui surge a segunda resposta do Novo Testamento que diz: Só uma coisa é necessária: que abramos as mãos e aceitemos o dom da Sua (de Deus) misericórdia. S. Paulo chama «fé» a este movimento de nos abrirmos para recebermos o dom do amor representativo do Senhor.
“Esta resposta deixa claro que há uma fé de prática de vida, que é anterior à fé de conteúdos (uma «fé antes da fé», chama-lhe Ratzinger), e que “é o contrário daquela prática que os antigos chamavam hibris, portanto, que não tem nada a ver com a auto-complacência farisaica, nem com uma santidade conseguida a pulso” (p. 392).
É por isso que “o Novo Testamento diz ao mesmo tempo que “o Amor só por si basta” e que “a fé só por si basta”... As duas afirmações juntas apontam para uma prática que exige sairmos de nós mesmos, vivermos de costas para o egoísmo, e de frente para o outro.
Por isso o irmão, o próximo, é o verdadeiro campo de prova desta disposição de espírito; no “tu” do próximo vem a cada um de nós, de forma incógnita ou escondida, o “tu” de Deus (p. 393).
Brota daqui uma conclusão fundamental: “ninguém é cristão para si mesmo, mas para os outros, ou melhor: só se é [cristão] para si mesmo, quando se é homem/mulher para os demais” (397).
2. A Igreja. De acordo com esta visão do cristianismo, a primeira coisa que a Igreja deve saber antes de mais é que “a divinização do sistema e das instituições é falsa. Nem o sistema nem a obediência a um sistema salvam o ser humano; só o que está sempre acima de todos os sistemas: o amor e a fé” (p.394).
Daqui se segue que “a Igreja, como sinal do amor divino, não pode ser um círculo esotérico, mas essencialmente um espaço aberto... uma realidade dinâmica” (399). Precisamente “o não estar ligada a nenhuma forma deste mundo, dá à Igreja a força para ela se dirigir a todo o mundo” (p.422). Como se vê, estas são observações muito pertinentes perante a ingente tarefa de se desocidentalizar o cristianismo.
Mas por serem assim as coisas, então “o que a Igreja de hoje e de todos os tempos verdadeiramente precisa não é de panegiristas do que existe, mas de pessoas... que a amem mais do que à comodidade e à intangibilidade do seu destino pessoal”. Pois “a verdadeira obediência não é a dos aduladores... que evitam todo o conflito e põem a sua intangível comodidade acima de todas as coisas” (p.292).
Por isso pergunta-se Ratzinger se o facto de não haver pessoas na Igreja que se atrevam a falar com liberdade “é sinal de melhores tempos, ou sinal de um minguado amor, próprio de quem já não se lhe queima o coração pela causa de Deus neste mundo... um amor que se deixou cair na rotina e já não é capaz de sofrer pela amada” (p.290).
Movido por um amor assim autêntico, pergunta-se Ratzinger se à Igreja de hoje “não haverá que a reprovar, por ela, num excesso de zelo, ter feito tantos pronunciamentos e ter imposto tantas normas; é que tantas normas e pronunciamentos contribuíram para abandonar ainda mais o mundo à sua incredulidade, do que para o salvar da sua incredulidade... Por outras palavras: por vezes, a Igreja põe tão pouca confiança na força vitoriosa da verdade..., entrincheira-se em falsas seguranças, em lugar de confiar na verdade que vive na liberdade e que não precisa de semelhantes precauções” (p.294-295).
Ratzinger sabe também que uma das tarefas de hoje é descentralizar o papado: “A Igreja, que é o povo uno de Deus, compõe-se de muitos povos deste mundo que... trazem a riqueza dos seus diversos dons à cidade única e escatológica de Deus... A Igreja una compõe-se de muitas «igrejas» nos lugares e regiões do mundo, e só a variedade das igrejas que mantêm a mútua comunhão no vínculo da unidade, da caridade e da paz, constitui a unidade realizada da Igreja católica” (p. 423).
Esta tese “leva à intuição concreta da mútua responsabilidade das igrejas particulares entre si: a responsabilidade pelos membros não é assumida unicamente pela cabeça (neste caso, o papa e a igreja principal de Roma), mas também pelos próprios membros, isto é, as igrejas particulares assumem a responsabilidade umas pelas outras” (p.424).
3. O mundo. O Vaticano II pediu à Igreja uma tríplice abertura: “às fontes, aos outros cristãos e às interrogações da Humanidade inteira” (p. 321). Por isso, “a Igreja deve falar, pensar e ser de maneira que os outros possam perceber e entender a palavra que ela lhes dirige (p.318).
Ratzinger insiste com frequência em que o esquema bíblico da fé no judeo-cristianismo é: “uns poucos a favor de muitos (ou de todos)”. De acordo com isso, “o mundo deve ser aceite e respeitado como tal pela Igreja... pela simples razão de que a Igreja não é Cristo”. Por isso “não é possível entendê-la como fim em si mesma, pois ela pertence essencialmente à ordem dos meios... Por isso, a autoridade eclesiástica não pode suprir os peritos nas respectivas ordens da realidade, mas unicamente reconhecê-los... Tão pouco pode suprir a competência científica da teologia, mas deve também reconhecê-la e dar-lhe ouvidos como tal” (p. 330).
4. A teologia. Uma palavra sobre a teologia. Em primeiro lugar, “a mensagem cristã diz-se sempre em linguagem humana... O que pressupõe repensar a palavra divina em categorias humanas; não se diz nunca na sua absoluta e incontaminada pureza divina...
No kerigma (mensagem transmitida) há sempre algo que em realidade não é kerigma, mas uma elaboração humana”. Por isso, “impõe-se em cada época a escuta paciente do que a humanidade sabe de facto” (327).
Precisamente por isso, “quase todos os documentos [do Vaticano II]” mostram uma abertura que ultrapassa o que Ratzinger chama “teologia de encíclicas”: uma forma de teologia em que a tradição parece reduzir-se lentamente às últimas tomadas de posição do magistério papal”. Frente a essa tendência, o desejo do Concílio foi: “não olhar as fontes [cristãs] unicamente à luz da interpretação oficial dos últimos cem anos, mas lê-las e entendê-las em si mesmas,... escutar as reais interrogações do Homem de hoje e, a partir delas, repensar a teologia. Sobretudo, escutar a realidade, «a coisa mesma», e aceitar as suas lições” (p. 318)-319).
Por isso, um ensino do magistério eclesiástico “que nascesse do medo do risco da verdade histórica ou do medo do risco da realidade como tal, seria no seu todo, logo à partida, uma teologia diminuída, uma teologia de pouca fé” (p. 320).
5. A reforma litúrgica. Não cabem aqui as respostas que Ratzinger dá aos que dentro da Igreja estão empenhados em regressar ao latim na liturgia. Porém, podemos notar que essas respostas derivam duma determinada concepção da liturgia: “O culto divino mais autêntico da cristandade é o Amor” (p.346). Por esta razão, “a liturgia não tem por fim encher-nos, entre temor e tremor, do sentimento do santo, mas colocar-nos frente a frente com a espada cortante da palavra de Deus. A liturgia não tem por fim assegurar um marco belo e festivo para o recolhimento silencioso e para a meditação, mas introduzir-nos no “Nós” de filhos de Deus e, com isso, no esvaziamento de Deus que desceu até ao ordinário... (p. 341). E isto significa que “para a reforma litúrgica requer-se uma grande capacidade de tolerância dentro da Igreja... O suportar-se mutuamente... a largueza da caridade, são os únicos meios que podem criar o espaço em que o culto cristão amadureça em verdadeira renovação” (p. 346).
5. As religiões da terra. Mas não apenas espaços para o culto: também para a convivência entre religiões: “Para o cristão de hoje é algo inconcebível que o cristianismo, mais exactamente, a Igreja católica seja o único caminho de salvação; com isso tornou-se problemático no seu interior o absolutismo da Igreja... Que todos os homens «bons» se salvam é hoje um dado evidente”. E isso por uma razão que brota da mais antiga tradição cristã: “a salvação do Homem consiste em ser amado por Deus. Ora, para o amor não há nenhum título jurídico, nem tão pouco o amor se apoia em excelências morais ou de outro tipo” (p. 367-369).
“As religiões do mundo converteram-se em interrogações ao cristianismo, o qual deve ser repensado perante elas, na sua pretensão, e receber delas, pelo menos, um serviço de purificação” (p. 402).
Tudo o que acaba de ser dito fundamenta-se no que significa Jesus Cristo e o que ele revela de Deus. Vejamo-lo então para concluir.
7. Jesus Cristo e Deus.
7. 1. Na sua introdução ao cristianismo, Ratzinger havia escrito que “a pessoa de Jesus é a sua doutrina, e a sua doutrina é ele mesmo”. Pois bem: sobre essa pessoa escreve agora: “a orientação existencial de Jesus, a sua verdadeira essência caracteriza-se pelo «a favor de». Se a salvação consiste em fazermos como ele, então deve apresentar-se concretamente como participação nesse a favor de” (p. 396).
Ratzinger retoma aqui, para falar de Jesus Cristo, o termo teológico de “pro-existência”, que provém do protestante D. Bonhoeffer (“Jesus o homem para os demais”) e do católico da Alemanha Oriental, H. Schürmann; e que é também fundamental por exemplo na cristologia de Jon Sobrino.
7. 2. “O primeiro grande ensaio duma teologia cristã, o discurso do diácono Estêvão, em Actos 7, faz ver que Deus não toma partido pela instituição, mas pelos que sofrem e são perseguidos no decurso da História; e demonstra cabalmente a legitimidade de Jesus Cristo, ao inseri-lo na linha dos perseguidos, dos profetas da História” (p. 279).
Conclusão: eis aqui uma apresentação da fé que é fiel e aberta ao diálogo. Talvez alguém argumente que esta visão é do Ratzinger “jovem”, que hoje mudou o seu modo de ver. A essa argumentação dou duas respostas:
Em primeiro lugar, é difícil pensar que Ratzinger tenha mudado, precisamente nos textos aqui citados, porque quase todos eles são comentários ao Concílio Vaticano II (foi por isso que os escolhi); e creio que não se lhe fará nenhum favor, se se disser que ele abandonou o Concílio Vaticano II.
Em segundo lugar, no caso de que o hoje papa Bento XVI já não pense assim, nem por isso deixa de continuar a ser verdade que, quando Ratzinger pensava assim, era um teólogo católico autorizado, muito reconhecido e totalmente ortodoxo. Portanto, hoje, é absolutamente legítimo professar essas mesmas opiniões teológicas no seio da Igreja!...
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