Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 160, de Janeiro/Março 2006

1ª PÁGINA

“Santo, súbito”?!

Ainda em vida, o papa João Pau­lo II tudo fez para ser acla­ma­do/idola­trado pelas multidões do mundo. Ao con­trário de Jesus de Nazaré que, qu­an­do as multi­dões queriam aclamá-lo rei, sem­pre se furtou a esse tipo de me­s­­­si­anismo idolátrico. E quan­do, por o­ca­sião da sua entrada profética em Jeru­salém, não teve mais como evitá-lo, foi para daí a dias ser pre­­so pelas au­toridades, julga­do, condenado à mor­­te e execu­ta­do na cruz como mal­dito, não co­mo santo. Até os dias da sua ago­­­nia e os do seu funeral, tão mediatizados, o Papa João Pau­lo II cui­dou antecipadamente que fos­sem os da sua entroniza­ção de­fi­nitiva como santo. E as­sim se fez. Pensam que foi es­­pontâ­neo aquele grito das mul­­ti­dões pre­sentes no funeral, "Santo, su­bito"? Tudo foi progra­ma­do ao por­me­nor. Como tam­bém foi pro­gramado que o seu sucessor ha­ve­ria de ser o car­deal Ratzinger, o seu braço di­reito e o seu cúm­plice na per­seguição a reco­nhe­ci­dos teólo­gos da liberta­ção, de­fensores da eclesiologia de comu­nhão que o Concílio Vaticano II consagrou e que a Cúria Ro­ma­na não pode se­quer ouvir fa­lar. Saibam que a Cúria do Vati­ca­no não brinca em serviço. To­do aquele fausto, mesmo litúrgi­co, em que é pe­rita, é imperial, não é je­su­âni­co; tem tudo a ver com o Deus do antigo Império Romano, e nada a ver com o Deus de Je­sus de Na­­zaré, o Crucifi­ca­do pelo Tem­plo e pelo Im­pério coli­gados.

Ora, como os favores com fa­­vores se pagam, o papa Bento XVI/Ratzin­ger, só po­dia assumir, como um dos seus primeiros a­­ctos oficiais, a abertu­ra oficial, em 28 de Junho 2005, da causa de beatificação de João Paulo II. E até já se fala num milagre ope­ra­do numa freira, conseguido pela ora­ção/cunha de outras freiras. Fi­ca tudo em família. Deste modo, os negócios da Cúria Romana podem pros­seguir sem percalços, por­que um papa feito santo enquan­to o Diabo esfrega um olho, dá milhões aos cofres do Vatica­no e, sobretudo, dá um prestígio do caraças. Por outro lado,se o papa João Paulo II é assim canonizado sem mais, então também são canonizadas com ele as notórias posiões anti-jesu­âni­cas dele con­tra a Teologia da Liberta­ção, con­tra a eclesiologia de comu­nhão, contra a ordenação de mulhe­res, contra o ce­li­bato opcional dos pa­dres, contra o uso responsável do pre­ser­vativo, e contra as pessoas homos­se­xuais e lésbicas. E ainda muitas outras ac­ções criminosas, realizadas du­­­ran­te os largos anos do seu pon­ti­fi­cado e com a sua bênção papal: "O Vaticano ven­deu armas, fi­nan­ciou dita­duras, gol­pes de Estado, ocor­reram fa­lên­cias fi­nanceiras e ban­cá­rias e por cau­sa de­las muitas pesso­as «se suici­da­ram», a­lém de ter orde­nado opera­ções enco­bertas do serviço de espio­na­­gem pon­tifício." (cf.E.Frat­tini, A san­ta ali­ança. Cinco séculos de espio­na­gem do Vati­cano, Campo das Letras, 2005)


DESTAQUE 1

A Bíblia como memorial político

dos empobrecidos e oprimidos do mundo

Tudo começou com uma experiência política libertadora. A experiência do Êxodo. Quando, há mais de três mil anos, uns escravos sublevados acabaram por triunfar sobre o todo-poderoso faraó do Egipto. E sem nenhuns meios bélicos. Sem carros de combate. Sem exércitos. Bastou-lhes a subversão sistemática da Ordem imposta, a sabotagem das águas dos rios e das culturas agrícolas, a destruição das infra-estruturas do país e, finalmente, a violência sob a forma de atentados selectivos contra os filhos primogénitos dos egípcios, sem esquecer o próprio primogénito do faraó que lhe haveria de suceder no trono. Sem este acontecimento libertador e iniciador duma nova Ordem mundial, nem sequer teria nascido a Bíblia. Vem tudo lá. Concretamente, no Livro do Êxodo.

A partir de então, ficou claro para todo o sempre que não há Império, por mais poderoso que seja, que resis­ta a este tipo de acções políticas como as dos escravos hebreus e outros no Egi­pto. São os subjugados, os empobre­cidos e os oprimidos do mundo que fazem avançar a História e que não deixam que ela chegue ao fim, antes que reine a Justiça e a Paz em toda a Terra. Todo o poderio bélico do Império cai como uma gigantesca estátua de ferro com pés de barro. Mas para isto acontecer é preciso que exista a Polí­tica. A Política é o específico dos empo­bre­cidos e oprimidos. O específico do Império e dos Estados seus vassalos não é a Política, mas o Poder, que um e outros sempre exercem de forma ar­bitrária e sem escrúpulos, mesmo em regimes ditos democráticos.

Tudo começou com uma experiên­cia política libertadora. E deveria pros­seguir com outras experiências políti­cas liber­ta­doras e mais outras, geração após geração, ininterruptamente. Mas depressa a Política foi “comida” pela Religião e pela Idolatria. A própria Bíblia que tem por base esta vitoriosa experi­ência política libertadora dos escravos no Egipto, passou, com o tempo, a ser olhada como o fundamento maior das três Religiões actualmente mais influ­en­tes no mundo, chamadas por isso, ainda que indevidamente, “Religiões do Li­vro”. De Bíblia, memorial de acções políticas libertadoras e fomentadora de acções políticas libertadoras, passou a Bíblia, memorial de religiões e fomen­tadora de Religiões sem conta, cada qual a mais fundamentalista, bizarra e obscurantista.

Em consequência, os próprios em­pobrecidos e oprimidos deixaram-se adormecer de novo sob a tirania da sua miséria que os reduz a simples bes­tas de carga. Como se essa condição de desumanidade fosse coisa natural e inevitável. Na sua continuada aflição de morte, limitam-se a correr para os san­tuários, com pedidos à imagem da sua deusa, do seu deus, sempre na ex­pectativa de milagres que nunca a­con­tecem, nem acontecerão. Multipli­cam aí os mesmos ritos, vezes sem con­ta e durante a vida inteira, repetem as mesmas fórmulas rituais de oração, auto-flagelam-se até ao sangue em cumprimento de promessas, tudo na es­perança de que as deusas, os deu­ses finalmente tenham compaixão de­les e venham valer-lhes. Em vão o fa­zem. Porque as deusas, os deuses, sim­ples­mente não existem, são nada, não passam de projecções e alucina­ções humanas. Por isso, assim seguirão as coisas, geração após geração, com o Império e os Estados seus vassalos a esfregarem as mãos de satisfação. Até ao dia em que os empobrecidos e oprimidos do mundo – hoje, cerca de cinco pessoas em cada seis! – redes­cubram a Política contra o Poder, aban­donem a Religião e toda a idolatria que ela fomenta e alimenta, e passem a or­ganizar sucessivas acções políticas li­ber­tadoras como as do Êxodo, onde se incluam acções de sabotagem como as recentes acções protagonizadas por milhares de jovens e até crianças dos subúrbios de Paris e de outros subúr­bios da Europa, e outras acções pro­gres­si­va­­men­te mais violentas e devasta­doras, capazes até de decapitar sem dó nem piedade os sistemas de opres­são e de exploração do Império e dos Estados seus vassalos. Só então perce­be­remos, no meio de toda a dor que tais acções políticas inevitavelmente pro­vocam/provocarão, que é pela Polí­tica, enquanto acção específica dos em­po­brecidos e oprimidos, que se mudam as sociedades, se derruba o Poder opressor e explorador do Império e dos Estados seus vassalos e se torna mais humano este nosso mundo.

Para tanto, é preciso, imperioso e urgente que regressemos à Política, co­mo acção específica dos empobrecidos e oprimidos do mundo, e à Bíblia, como Memorial fomentador de acções políti­cas libertadoras, conduzidas pelos em­po­brecidos e oprimidos do mundo. Mas a Bíblia, enquanto biblioteca dos empo­brecidos e oprimidos do mundo, cujas narrativas eles podem não saber ler, mas saberão escutar como ninguém, com a mente e sobretudo com o cora­ção. Aliás, esta pequena-grande biblio­teca de 72 livros (tantos eles são na edição católica) foi escrita sobretudo para ser escutada pelos empobrecidos e oprimidos do mundo, nomeadamente, pela sua mente e pelo seu coração, uma vez que eles habitualmente nem se­quer sabem ler. E se hoje alguns de­les já sabem ler, continuam a não ler a Bíblia, ou lêem-na, não em chave política, como ela sempre deve ser lida, mas em chave religiosa, por isso, como um instrumento mais da sua alienação e da sua opressão.

Não basta, pois, regressar à Bíblia sem mais. Aliás, as novas gerações já estão aí a crescer aflitivamente à mar­gem dela. Poucos são hoje os jovens, ou nenhuns, até aos 25-30 anos, que se possam gabar de já ter lido os prin­cipais livros da Bíblia, tanto os do Pri­meiro Testamento, como os do Segun­do Testamento. Do que muitos fazem gala é de nunca terem lido nenhum dos livros da Bíblia do princípio ao fim. O que representa uma lacuna na forma­ção espiritual e cultural da sua perso­nalidade, absolutamente irreparável. Semelhante postura tem uma explica­ção. A Bíblia aparece aos olhos das no­vas gerações como uns livros manu­sea­dos sobretudo por clérigos e pastores das Igrejas, e utilizados em cate­que­ses eclesiásticas sem sentido, desti­nadas a preparar vaidosas comunhões solenes sem comunhão e Crismas sem Espírito Santo. Numa palavra, como uns livros tipicamente religiosos. Ora, as novas gerações estão, felizmente, a cres­cer cada vez mais à margem das Igrejas e das Religiões.

Para que a Bíblia passe a ser-lhes familiar e os seus livros os acompanhem a vida inteira e sirvam de base à for­mação da sua personalidade humana, é preciso, imperioso e urgente libertá-la quanto antes das Igrejas, tanto da católica romana, como das Igrejas pro­tes­tantes, as antigas e as mais recentes.

A Bíblia tem que voltar a ser o que sempre deveria ter sido: património cul­tural e espiritual da Humanidade, a co­me­çar pela Humanidade mais oprimida e empobrecida, aliás, a única que o é verdadeiramente, porque os não-empo­brecidos e os não-oprimidos são sobre­tudo Poder, integram a tribo dos pode­ro­­sos, são sobretudo Império, funcioná­rios do Império ou dos Estados seus vassa­los do Império. Só nas mãos dos em­pobrecidos e oprimidos do mundo é que a Bíblia voltará a ser Memorial de acções políticas libertadoras e fo­mentadora de outras novas acções po­lí­ticas libertadoras cada vez mais à es­cala global. Nas mãos dos pastores das Igrejas, cheios de tiques religiosos, a Bíblia será (quase) sempre – há exce­p­­ções, felizmente – poderosíssimo ins­trumento de alienação das populações, veneno servido sob a forma de alimen­to, que destrói e mata os empobrecidos e oprimidos do mundo, porque os des­via por completo da Política, das acções políticas libertadoras e de sabotagem que eles, e só eles, estão em condições de promover e de concretizar na Histó­ria. As quais desencadeiam inevitavel­mente a fúria dos poderosos do Impé­rio e dos Estados seus vassalos. Assim como da imensa minoria votada ao seu serviço, que desfruta, uns mais, outros menos, de inúmeros privilégios. E tam­bém daqueloutra minoria ainda mais imensa que, embora tenha feito parte no passado da maioria dos empobreci­dos e oprimidos, hoje já con­segue dis­por de umas quantas rega­lias que de modo algum está disposta a perder.

Quando os oprimidos e empobre­ci­dos do mundo pegarem de novo na Bíblia e fizerem dos livros que a com­põem a sua principal biblioteca – ela é deles por direito! – perceberão, me­lhor do que ninguém, três coisas historicamente decisivas: 1. Que Deus Vivo não tem nada a ver com todo esse tenebroso universo das deusas, dos deuses que as suas imaginações ater­ro­rizadas os têm levado a pensar que existem algures, muito para lá do fir­ma­mento e que os podem castigar a qualquer momento. 2. Que Deus Vivo do que verdadeiramente gosta é de Política, não de Religião, é de nos ver ocupados com a humanização da Ter­ra, não com devoções beatas para ten­tarmos ganhar um Céu infantilmente ima­ginado por nós. 3. Que o mais per­ver­so das deusas, dos deuses não é elas, eles serem nada, não existirem. O mais perverso é as deusas, os deuses serem ídolos feitos pelas nossas mãos e pelas nossas imaginações que de­pois funcionam aí como símbolos religi­o­sos, sempre do lado dos poderosos, a fortalecer e a abençoar o Poder do Império e dos Estados seus vassalos, assim como os seus sistemas econó­micos e políticos, apesar de tudo isso ser intrinsecamente cruel e inumano. O mais perverso das deusas, dos deuses é serem ídolos que, em lugar de defenderem até ao sangue, como fez Jesus de Nazaré, o anti-idólatra por antonomásia, os empobrecidos e os opri­midos das garras do Império e dos Estados seus vassalos, ainda por cima os canonizam, assim como aos seus nefandos crimes contra a Humanidade e contra a Natureza. Ao mesmo tempo que simbolicamente incitam os empo­brecidos e oprimidos do mundo a sofrer com resignação e a assumir como valor redentor a sua inumana condição de opri­midos e empobrecidos.

Quando isto acontecer, os oprimi­dos e empobrecidos do mundo acaba­rão finalmente por perceber que, ao con­trário dos ídolos, o Deus Vivo que esteve activamente presente como So­pro inspirador das acções políticas libertadoras e de sabotagem que os escravos se atreveram a levar por dian­te no velho Egipto dos faraós contra os seus sistemas económicos e políti­cos, é o mesmo que inspirou os livros que hoje constituem a Bíblia nos seus dois Testamentos. Assim como é o mes­mo que está maieuticamente com eles a ajudá-los a ler/interpretar os sinais dos tempos à luz das narrativas bíblicas e a chamá-los à Política activa contra o Poder do Império e dos Estados seus vassalos. Como tal, é o único Deus que não aliena ninguém, pelo contrário, nos potencia de dentro para fora para ser­mos mulheres, homens à sua imagem e semelhança, como Moisés outrora no Egi­pto e como Jesus de Nazaré na Pa­les­tina do século I, por isso, mulheres, ho­mens constitutivamente políticos, aves­sos aos privilégios, protagonistas de acções históricas que ajudem a en­fra­quecer e a derrubar o Poder do Im­pério e dos Estados seus vassalos e a promover a implantação duma Ordem Mundial outra, bem à medida de toda a Humanidade.

Esta é então a hora de arregaçar­mos as mangas e de passarmos à Polí­tica, à acção política libertadora da Hu­ma­nidade contra o Poder do Império e dos Estados seus vassalos. Impul­si­o­nados pelo mesmo Sopro ou Espírito do Deus Vivo que inspirou as acções políticas libertadoras e de sabotagem dos escravos no Egipto dos faraós, a prática política radicalmente libertado­ra e universalmente integradora de Je­sus de Nazaré. Avante, pois. Até à vitó­ria final da Humanidade sobre o Impé­rio e sobre cada um dos Estados seus vassalos. É a hora!


DESTAQUE 2

Nasceu a Comunidade Emaús da Rua do Almada

Et les autres? / E os outros?

Pe. Serafim, o 1.º animador, faz sua esta pergunta

do grande profeta Abbé Pierre, co-fundador do Movimento Internacional

Para já, são apenas três: Carlos, Dorindo e Serafim. Mas há espaço para mais quatro. Sete, ao todo. Os três são homens felizes. Dos três, dois vêm da Rua. Serafim é padre/presbítero da Igreja do Porto. Já foi pároco em diversas paróquias. Quando estava em S. Martinho do Campo, teve a inesperada visita de outro padre/presbítero, vindo de França: Henri Le Boursicaud, o padre dos catadores de lixo e das Comunidades Emaús no mundo. O encontro mexeu com a consciência dele. Nunca mais foi o mesmo. E agora que se entregou a tempo inteiro ao Movimento, na Comunidade concreta da Rua do Almada, é um presbítero plenamente realizado. Ao jeito de Jesus, o carpinteiro artesão de Nazaré que nunca foi pároco/chefe de sinagoga. A Igreja do Porto só tem motivos para se alegrar. Mas é preciso que se deixe fecundamente perturbar pela sua vida. É que a sua entrega é um sacramento. Mesmo que não faça discursos nem sermões, está constantemente a perguntar aos seus irmãos do presbitério que continuam a viver atarefados com as "coisitas" das paróquias e dos cartórios: "Et les autres?/E os outros?"

“Et les autres?” E os outros? O meu amigo Pe. Serafim Ascensão continua a sentir-se perseguido por esta per­gun­ta. Quem lha semeou no coração e na consciência foi um outro padre lou­­co de amor solidário e gratuito pelos excluídos de tudo, o famoso Abbé Pier­re, co-fundador do Movimento Emaús, um monumento vivo de humanidade em quem toda a França se revê e por isso o elege, ano após ano, como a figura n.º 1 do país. A confidência esca­pou-se-lhe durante a tarde do dia 27 de Novembro 2005, na abertura oficial da Comunidade Emaús da Rua do Al­ma­da, no Porto, no momento mais signi­fi­ca­tivo do acto festivo e solene que selou a sua entrega definitiva às mulheres e aos homens da Rua e a este Movimento internacional que vive de olhos postos nas ruas das grandes cidades, sempre em busca de mulhe­res, de homens que, num qualquer mo­mento das suas vidas, se viram obri­gadas, obrigados a fazer da Rua a sua casa, por não haver para elas, para eles, lugar nas casas que habita­mos e nos palácios que construímos, muito menos nas catedrais que ergue­mos, seja as velhas como a de Braga ou do Porto, seja a moderníssima cate­dral da SS. Trindade, neste momento em adiantada fase de construção no recinto do santuário de Fátima. Os ído­los de madeira ou de caco, de ouro ou de prata têm santuários e catedrais, onde pontificam bispos e cardeais com suas exóticas e finas roupas, rodeados e servidos por meninos de coro e por uma legião de eunucos clérigos; o gran­de Kapital e os seus donos têm luxuo­sos bancos de alta segurança, paredes grossas à prova de roubos; os gover­nan­tes têm palácios onde exibem as suas vaidades e concebem políticas ao serviço dos interesses do grande Kapi­tal e do Império, do qual são fiéis vassa­los; as minorias ricas têm moradias de luxo, duas, três, quatro, cinco ou mais, e ainda luxuosos hotéis em todos os paí­ses do mundo, mesmo nos mais mi­se­ráveis, construídos a pensar exclusi­va­mente neles; as famílias, remedia­das que sejam, têm as suas casas, umas mais humildes, outras a rivalizar com as moradias de luxo das minorias ricas; as raposas têm as suas tocas e os pás­sa­ros os seus ninhos. Só as mulheres, os homens da Rua nas grandes cida­des do nosso país e dos demais países do mundo não têm onde reclinar a ca­be­ça. Por isso fazem das ruas e dos beirais a sua casa, do debaixo das pon­tes os seus abrigos, das geladas noites de Inverno a sua roupa e dos restos lan­ça­dos ao lixo o seu comer. São “les autres”, as outras, os outros, por quem Abbé Pierre, pelos vistos, sempre per­gun­ta a quem dele se aproxima, nome­a­damente, a quantas, quantos estão prestes a cair na tentação de o idola­trar ou de ficar a viver à sombra do seu nome, ou à sombra da sua incon­dicional entrega à causa dos Excluídos, mulheres e homens, em lugar de se lhes entregarem também, tanto ou ainda mais do que ele.

Aquela pergunta é como uma chi­co­tada que logo obriga quem dele se aproxima a olhar para lá dele, até en­con­trar aquelas, aqueles que foram e ainda são a razão de ser da sua vida de homem-padre-para-os-demais.

Parar nele, será uma catástrofe, como é uma catástrofe parar nas hós­tias e no cálice das missas que as pa­ró­quias católicas celebram a torto e a direito e a propósito de tudo e de nada. O que é próprio dos Sacramentos, tam­bém dos sacramentos humanos vivos, como é o Abbé Pierre, é que eles nos obrigam a buscar a Realidade mais real lá onde menos sonhamos que ela está. Assim como o Pão Partido e o Vinho Derramado/Partilhado nos remetem pa­ra os milhares de milhões de mulheres e de homens de carne e osso que es­tão aí como vítimas das cruéis e as­sas­sinas economias que hoje imperam no mundo, também Abbé Pierre nos remete para as mulheres, os homens da Rua. Parar nele é um desastre. Como parar nas hóstias consagradas e no Cálice abençoado.

Mas é o que com mais frequência acontece na História, também hoje, e por isso o nosso mundo anda tão doen­te, tão cheio de religião e tão despro­vido de sororidade/fraternidade e de comunhão efectiva e afectiva. Ainda abunda em caridadezinha, é verdade, mas morre à míngua de mulheres, de homens que o sejam para-os-demais. Como Jesus. Como Abbé Pierre. E como também agora o Pe. Serafim Ascensão.

Soube antecipadamente de tão solene e tão raro acto de entrega in­con­di­cional aos Excluídos de carne e osso, e não pude deixar de estar dis­cre­tamente presente. Quis associar-me ao acto por inteiro. Escutar a Palavra feita entrega efectiva. Partilhar daquela mesa comum e universal, lado a lado com mulheres e homens de cores e de culturas e de línguas diferentes. Alimen­tar-me daquele Sopro fecundamente li­ber­tador. Sobretudo, quis ser confirma­do ainda mais, no decorrer de acto tão profundamente humano, como ho­mem-padre-para-os-demais, na pobreza dos meus meios e na fraqueza das minhas forças. Não importa o que sou, importa o que o Sopro de Deus Vivo é em mim. Porque já não sou eu quem vive, é o Sopro de Deus Vivo que vive em mim.

Felizmente, não fiquei defraudado. O Momento foi Eucaristia. O Acto foi sacramento. A Acção foi Apocalipse/Revelação do Invisível. Vimos Jesus. Ou­vimos Jesus. Tocámos Jesus. Come­mos o seu Projecto (= comemos a sua carne e bebemos o seu sangue). Tor­na­mo-nos Jesus. Por isso, mulheres, homens de olhos postos nas Ruas. Irmãs, irmãos universais. Acolhedoras, acolhedores incondicionais das outras, dos outros. Corações que se deixam aquecer e arder pelos relatos e pelas es­tórias reais de quem vive à intempé­rie nas Ruas das grandes cidades, lon­ge dos seus, quase sempre sem nin­guém.

É por aqui que está sempre a PAS­SAR (Páscoa) o Deus Vivo, a Palavra feita Carne humana, Mulher, Homem, e, se mulher desfigurada, se homem desfigurado, ainda mais é o Deus Vivo que está a passar. A tentação é deixar­mo-nos cair na caridedezinha e despa­chá-los até à próxima ocasião. A solu­ção é acolhê-las, acolhê-los, passar a caminhar com elas, com eles, deixarmo-nos incendiar/queimar pelos seus rela­tos e corrermos a fazer a Revolução ainda por fazer, que mude de vez as eco­nomias e as políticas nacionais e mundiais geradoras de pobreza em massa e de inumanidade.

Poderemos não chegar nunca a ver os resultados, mas outras mulheres, ou­tros homens como nós prosseguirão este combate, esta luta de transforma­ção do mundo, um combate, uma luta que neutralize e supere cada vez mais os praticantes da caridadezinha, hoje tão de novo em voga, como convém ao grande Kapital fabricador de pobreza e de pobres em massa.

Estive de corpo inteiro naquele acto. E quase sempre em silêncio. A en­tre­ga do meu amigo Pe. Serafim era a grande Palavra. Havia que acolhê-la e deixar que ela me queimasse por dentro, como aconteceu àquele casal do primeiro Emaús, de que nos fala o Evangelho de Lucas. E assim aconte­ceu. Vim de lá ainda mais padre-ho­mem dos Pobres e com eles. Ainda mais padre-homem-para-os-demais-e-com-os-demais. Ainda mais longe dos templos e dos altares.

Quando, à despedida, me abeirei do Pe. Serafim, coloquei-lhe presbite­ral­­mente a minha mão sobre a sua ca­be­ça, já sem cabelo. Desta vez, longe da catedral onde um dia a Igreja nos ordenou. Confirmámo-nos deste modo re­ciprocamente na Missão de Evange­li­zar os pobres. Longe dos Templos. Próximo dos Empobrecidos, dos Excluí­dos. Ele ainda mais do que eu. Olhámo-nos nos olhos. Sorrimos. E parti.

Este é por isso o primeiro dia do resto da vida do Pe. Serafim. E também da minha.

Nenhum bispo, dos vários que há no Porto, esteve presente. E moram to­dos ali a dois passos da Rua do Alma­da. O palácio episcopal onde residem tem grossas paredes e os clamores das vítimas humanas não os atravessam. São piores que os muros da cidade de Jericó que outrora as trombetas dos sol­dados comandados por Josué fi­zeram cair. O dia em que desse velho e monumental palácio episcopal não fique pedra sobre pedra há-de chegar, mas ainda não chegou.

Dos condiscípulos do Pe. Serafim, ainda no activo pastoral por algumas dessas paróquias da diocese fora, ape­nas um, um apenas, apareceu. E foi in­teriormente abalado embora. Eles sabem que o Pe. Serafim é definitiva­mente da Rua, das mulheres, dos ho­mens da Rua. Não dos templos. Suja-se com o lixo humano. Dignifica-se co­mo padre da Igreja de Jesus, mas ficará cada vez mais indigno de subir os al­tares da idolatria.

Viverá permanente­mente no altar da Humanidade empo­bre­cida e oprimi­da, a partir da Comuni­dade Emaús da Rua do Almada que ele, desde agora inte­gra e a que preside no Serviço li­bertador e promotor de autonomias hu­ma­nas, e sempre de olhos postos nas ou­tras mulheres, nos outros homens da Rua que não fazem parte dela. Exacta­mente, como Jesus, o paradigma do Ser Humano, que deixa as 99 no deserto e sai escandalosamente à procura da que vive perdida. Não para a meter nos templos, mas para que também ela se en­contre consigo mesma no encontro com as outras, os outros e todas, todos cheguem a ser autónomos, prontos a aco­lher/servir os demais que conti­nuam aí sem ter onde reclinar a cabe­ça.

Bendito seja Deus Vivo, nossa Mãe/nosso Pai universal!


As palavras de São Gonçalves

O Benigno, o senhor Lucas,

o Brinquinho e o Henrique

No início da Festa de Abertura da Comunidade Emaús, da Rua do Almada, São Gonçalves, presidente da Direcção do Movimento no Porto, proferiu oportunas palavras. Aqui as registamos na íntegra.

É com grande alegria que Emaús-Caminho e Vida, da Rua do Almada, quer anunciar a abertura da Comuni­da­de. Começámos em 1990, calcorreá­mos as ruas da cidade, encontrámos e fizemos amizade com muitos compa­nheiros. E aqui um parêntesis para lembrar alguns que já faleceram, mas que foram sempre a nossa consciência de vanguarda:

O Benigno, o 1.º companheiro que encontrámos na Rua, num dia gélido, cheio de frio, do qual guardamos reli­gio­samente estas moedas, todas as que tinha no bolso, num dia em que nos de­cidimos comprar esta casa.

O Sr. Lucas, homem vivido, conhe­cia vários países do mundo e dormia com o seu cão debaixo da Ponte D. Luís. Muitas noites passámos com ele con­ver­sando animadamente.

O Brinquinho que, jovem ainda, fi­lho de uma família de bens, decidiu viver na Rua, desprendido de tudo, a­man­do o sol, a lua e, sobretudo, como dizia muitas vezes, o Tempo que Deus dá de graça.

O Henrique, também ele jovem, ho­mossexual assumido, que muitas vezes limpava briosamente a nossa sede pro­vi­sória, na Rua Mártires da Liberda­de, que me disse antes de morrer, e depois de uma longa confissão na cama do Hospital, que “nunca deixasse morrer Emaús”.

Poderia lembrar outros que co­nhe­ce­mos pelo nome, pela alegria que partilhavam connosco e, sobretudo, pe­la consciência que nos legaram desta exigência permanente de entrega da nossa vida toda ao Projecto Emaús.

Chegámos aqui, o nosso patrimó­nio é rico sobretudo em amizade desta gente cujas vozes fazem ecos perma­nen­tes, quando desfalecemos.

Depois temos esta casa, restaura­da com o esforço de muitos companhei­ros, voluntários, amigos e também por alguns técnicos; temos dois veículos; um armazém alugado e a nossa Loja de Solidariedade, que fica aqui ao lado.

A Comunidade está situada no cen­tro da cidade do Porto, é uma Co­mu­nidade aberta, com tudo o que isso tem de positivo e de negativo, e terá duas dimensões:

- Espaço de acolhimento para 7 companheiros residentes;

- Espaço para companheiros que já passaram pela Rua, refizeram a sua vida e que dão o seu esforço / o seu tra­balho em Emaús, e daí recebem parte do seu sustento.

Amigas, Amigos: Aqui chegamos e encontramo-nos de novo diante deste dilema: o que parece ser obra feita acaba por ser o início de novos pro­je­ctos, novas dimensões, novas exigên­cias, sempre debaixo deste horizonte da Solidariedade e da Parttilha.

Queremos continuar o desafio das primeiras Comunidades Emaús. Somos catadores de lixo, vamos à casa das pes­soas, recolhemos coisas velhas, re­cu­peramos, vendemos. Queremos como até hoje comer o pão com o suor do nosso rosto e, por isso, não nos habili­ta­mos a subsídios do Estado. Quere­mos dar voz ao grito do Abbé Pierre: “Servir em primeiro lugar o que mais so­fre” e, por essa razão, sempre estare­mos disponíveis para partilhar. A nossa riqueza é a nossa pobreza!

Queremos viver fraternalmente, sendo amigos, cultivando relações de inter-ajuda e respeito pelos desconhe­cidos, de outras raças, de outras cores, de outras tendências sexuais, de ou­tras religiões, de portadores de defi­ciên­cias, e outros.

Queremos continuar a ser o Movi­mento dos pequenos nadas!...

Para finalizar, queria agradecer em nome de toda a Direcção a presen­ça de todas, todos vocês, cada um par­ticularmente e todos em especial, por­que a vossa amizade, a vossa parti­lha, o vosso tempo, a vossa alegria, o vosso estímulo, a vossa solidariedade e todos os pequenos gestos que ao lon­go destes anos nos dispensaram, ali­mentaram este sonho que hoje se tor­na realidade. Bem-hajam. E conta­mos convosco para acalentar os novos desafios.


EDITORIAL

Contra os Messias

Os Messias estão de volta. São vampiros políticos que medram à custa do subdesenvolvimento cultural e do so­frimento de toda a ordem das po­pu­lações empobrecidas e marginalizadas, depressa transformados pelas grandes crises nacionais em salvado­res da pá­tria. Sempre que as gran­des crises na­cionais atingem o pi­co, ou quase, logo os Messias deixam as suas rotinas de um quotidiano cin­zento e as frustra­ções e as mediocri­da­des de um lar e de um casamento sem pinta de ero­tismo e de festa, para se apresentarem perante as popula­ções com o ar mais cândido do mundo, impolutos, imacu­lados e sem a mais le­ve sombra de pe­ca­do político-partidá­rio, uma espécie de super-homens concebidos fora do Sistema, quando a verdade é que é o Sistema que suces­sivamente os tem parido a todos.

As roupas com que se vestem são invulgarmente austeras, bacteriologica­mente limpas, como as suas mãos, sem nada que faça lembrar o mundo do tra­ba­lho duro e mal pago. As palavras que proferem em público são meticulo­sa­men­te estudadas. Saem-lhes sempre na­quele tom de falsa intimidade, servi­das por uns rostos que parecem sorrir, mas que mais não fazem do que emitir sucessivos esgares. Os seus olhos não vêem ninguém. Muito menos os olhos das populações empobrecidas, conde­na­das a um viver sem presente nem fu­tu­ro. Os seus ouvidos também não ouvem ninguém. Só o eco das su­as pró­prias palavras e os aplausos de popula­ções subservientes e reve­ren­tes.

Os tempos que vivemos são de gran­de crise, mas nos comícios e jantares dos Messias só se fala de confiança no futuro. Nenhum clamor, nenhum gri­to de dor nem de maldição, nenhum ai, nenhuma aflição, nenhum relato dra­mático. Só confiança e aplausos, mais confiança e mais aplausos. Os Messias aparecem e as crises desaparecem, afo­gadas em massificados almoços e jan­ta­res de campanha, regados com vinho e coca-cola, realizados na presença quase mítica, ora de um, ora de outro e outro e mais outro. Enquanto os Mes­sias não chegam ao local, onde populações arregimentadas por caciques os aguardam para comerem na sua pre­sença e aplaudirem os seus discursos cheios de banalidades e de lugares co­muns (nunca evidentemente para se lhes dirigirem com as suas próprias questões e interpelações), estas sen­tem-se manifestamente desamparadas e órfãs. Mas quando eles entram no re­cinto, previamente preparado ao por­menor – sempre muito depois da hora anunciada – é um céu aberto. Agitam-se bandeiras, estalam aplausos em to­das as mãos para televisões mostrarem nos telejornais e os olhares de todos os presentes caem cheios de devoção sobre os Messias recém-chegados. Os problemas reais e concretos que afli­gem as populações deixam de ser pro­ble­mas, pelo menos, enquanto os Mes­si­as estiverem ali junto delas como ro­bots programados para sorrir, sorrir sempre, e para erguer com frequência os braços em poses estudadas e ace­nar com hipócrita satisfação, tudo faz-de-conta, só para melhor poderem pas­sar a mentira em que são peritos: Confiem e votem em mim, que nada será mais como dantes. Esta visão/ilu­são dura apenas o tempo duma missa e é tão anestesiante quanto ela. Daí em diante, as populações poderão continuar a ocupar-se exclusivamente com futebóis e novelas, porque dos destinos delas e do país cuidam os Messias!...

Nestas eleições presidenciais de 22 Janeiro 2006, os Messias salvadores da pátria são múltiplos. Mas os grandes meios de comunicação social de mas­sas impuseram-nos apenas cinco. To­dos machos. Fizeram-no no âmbito de um acordo prévio, a que histrionica­men­te chamaram “histórico”. Tudo a bem da democracia, já se vê, e para que as populações tenham a tarefa de escolher um deles mais facilitada. Os cinco emanam todos das estruturas dos partidos políticos que hoje ocupam o Poder, e que, obviamente, têm contri­buí­do, no Governo ou na Oposição, pa­ra levar o país à crise em que ele hoje se encontra, neste extremo ocidental duma Europa comunitária que também anda aos papéis e à volta do próprio um­bigo, sem se aperceber que os po­vos empobrecidos do resto do mundo avançam cada vez mais sobre ela, de­te­rminados a ocupá-la e obrigá-la a com­partilhar com eles o Pão de cada dia e a Dignidade que, há sécu­los, ela lhes tem andado habilmente a roubar.

Dos cinco escolhidos e impostos pe­las televisões, apenas um virá a ser o Mes­sias efectivo. Os restantes quatro não passarão de meros candidatos. Aliás, entraram no tal “acordo histórico” para serem os bobos da corte, perdão, do Regime. Tiveram oportunidade de dar largas à sua vaidadezinha pessoal e exibir a sua erudição de trazer por ca­sa. Cada qual à sua maneira, todos contribuíram para a vitória incontesta­da do seu rival. O pior é que a derrota deles, assim como a vitória do seu rival são a derrota do país que, mais uma vez, desperdiçou a oportunidade de se chegar à frente para assumir os seus desti­nos nas próprias mãos, sem  mais re­curso a Messias salvadores da pátria. Traídos pela sua vaidadezinha pessoal e política, os quatro não foram capazes de ver a tempo que o seu rival há anos que trabalhava na sombra para ser o único candidato da Direita política, en­ten­da-se, dos grandes interesses eco­nómicos e financeiros, os quais, para poderem medrar ainda mais, precisam de condições políticas objectivas que lhes permitam continuar a produzir po­breza e pobres em massa. Eles e os res­pectivos partidos de onde emergem não tiveram humildade bastante para, quais Diógenes deste início do século XXI, procurarem nas trevas em que hoje estamos de novo mergulhados, uma equi­pa de mulheres e homens sábi­os, dotados de entranhas de humanidade e de solidariedade, peritos em econo­mia e finanças, tanto como em política, con­cebida como serviço maiêutico jun­to das populações, para que estas, num futuro próximo, possam assumir o país nas pró­prias mãos. Desta equipa, e­mer­giria consensualmente a candidatu­ra duma mulher sábia, perita em huma­nidade, de­terminada a enfrentar e des­mas­carar o Messias do Poder que siste­matica­mente mata, rouba e destrói as popula­ções e os povos, numa carni­fi­cina sem paralelo na História do Uni­verso. Seria uma candidata verdadei­ramente alter­na­tiva ao candidato apoi­a­do pelos gran­­des interesses económi­cos e finan­ceiros que, assim, está agora à beira duma retumbante vitória, essa sim his­tórica, porque conseguida até com o vo­to fa­vo­rável da maioria do povo por­tuguês, humilhantemente en­ganado pe­las suas falinhas mansas de lobo disfarçado de cordeiro.

A hora é, pois, de grande tensão e dra­matismo. Os Messias do Poder sem­pre foram os principais causadores da desgraça dos povos que ingenuamente lhes têm confiado a resolução dos problemas e os seus destinos. Ou eles não sejam o rosto principal do Poder que nos oprime, explora, infantiliza e mata. E aos quais são concedidos todos os pri­vilégios.

Não foi por acaso que Jesus, o de Nazaré, sempre recusou ser olhado e tratado como o Messias. Sempre se de­marcou dos Doze, com destaque para Pedro e Judas Iscariotes, por eles reiteradamente tentarem “vender” essa sua ima­gem junto das populações oprimi­das e desesperadas. E, quando, final­mente, foi proclamado o Mes­­sias anun­ci­a­do pelos Profetas, foi-o na mais es­can­dalosa condição de anti-Messias que alguma vez houve ou haverá na His­­tó­ria da Humanidade: um-com-os-opri­midos/empobrecidos-e-entre-eles, presença consciencializadora/liberta­dora/promotora do protagonis­mo de to­dos eles, sem nunca fugir ao confronto progressiva­men­te duélico com os de­tentores dos gran­des inte­res­ses econó­mico-financei­ros do seu país, até aca­bar crucificado por eles como um maldi­to, na mais completa prova de solidari­edade com as suas vítimas. E é assim, como Messias crucificado pelo Messias crucificador do Poder, que ain­da hoje Jesus continua aí a atrair a si mulheres e homens que, como ele, re­cusam fazer o jogo do Poder e dos seus Messias, ao mesmo tempo que apostam tudo na militância política maiêutica, a única que promove os oprimidos e os povos oprimidos a sujeitos, sem lugar para Messias salvadores.

É por aqui que vão as cristãs, os cristãos ao jeito de Jesus. Verdadeiros anti-Messias do Poder entre os oprimi­dos e os povos oprimidos, para que  de­­sis­tamos de vez dos Messias salvadores da pátria e nos assumamos, lúcida e co­rajosamente como sujeitos na Histó­ria. É um caminho de “porta estreita”, que con­tinuamos a ter dificuldade em fa­zer nosso? Mas não há outro para derrubarmos os sucessivos Messias dos grandes interesses económicos e finan­ceiros que nos oprimem e matam! Fiquem com o meu afecto

Mário, presbítero da Igreja do Porto


ESPAÇO ABERTO

Manuel Miranda (Coimbra)

Carta dos Direitos da Cidadã / do Cidadão

Com deficiência mental

Sou pai de um jovem com deficiência mental, o Tiago. O Tiago é um jovem dependente nos cuidados de alimentação, de saúde, de higiene, mesmo nas situações mais simples e elementares. Vinte e sete anos de dedicação e de entrega deram-me experiência para conhecer as pessoas com deficiência mental, as suas capacidades de desenvolvimento, as suas necessidades para terem uma vida com mais dignidade e com mais qualidade. A pensar no Tiago e também noutras pessoas com deficiência mental, procurei dar-lhes uma Carta de Direitos. Esta Carta de Direitos foi desenvolvida a partir de outros documentos, como: Declarações da ONU, a Carta dos Direitos do Homem, a Carta dos Direitos da Criança, Declaração de Salamanca e outros. Procurei que às pessoas com deficiência mental não fossem só reconhecidos os direitos fundamentais e abstractos, como o direito à vida e, mais recentemente, o direito à não discriminação, mas que lhes sejam reconhecidos direitos concretos, como o direito a uma vida com dignidade e com saúde, como direito à educação, ao desporto, a uma pensão digna. Nesta Carta de Direitos assumo os deveres de pai para com um filho com deficiência mental, mas também exijo que a sociedade e o Estado assumam deveres, porque um filho com deficiência pode andar ao colo de outros pais. O percurso dos direitos do deficiente é uma caminhada longa e com muitas dificuldades. As manhãs de sol para as pessoas com deficiências ainda não brilham. Junto, mando uma CARTA de DIREITOS DO CIDADÃO COM DEFICIÊNCIA MENTAL, trabalho feito por mim, a pensar no Tiago e nas crianças como o Tiago. Eis.

DEFICIÊNCIA MENTAL (definição):

Redução permanente da capacidade intelectual que impossibilita de assumir responsabilidades pelos seus actos, que limita na via social, que faz carecer de  tutor e, nos casos mais graves, im­pos­si­bilita de prover  à subsistência, à higiene pessoal, faz necessitar  de a­companhamento e de vigilância. A pessoa com deficiência mental deve ser educada e viver na comunidade, mas com programas e apoios especiais.

CAPÍTULO I

Constituição da República Portuguesa, Artigo 71º:

1. Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.

2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores

3. O Estado apoia as organizações de  cidadãos portadores de  deficiência.

CAPITULO  II

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

PRINCÍPIO I

O cidadão com deficiência mental deve usufruir de todos os direitos enunciados na presente Declaração, direitos esses reconhecidos a todos os cidadãos com deficiência  mental sem excepção e sem distinção ou discriminação por motivos de raça, sexo, língua, origem nacional ou social, posição económica, de nascimento ou qualquer outra situação, quer do próprio cidadão com deficiência quer da sua família.

PRINCÍPIO II

O cidadão com deficiência mental terá acesso aos serviços existentes na sua comunidade, nomeadamente o tratamento, a educação e os cuidados especiais que o seu estado e educação exigem. Beneficiará de protecção especial, dispondo de possibilidades e de facilidades, por força da lei ou de outros meios, para poder desenvolver a sua autonomia e capacidades.

PRINCÍPIO III

O portador de deficiência mental tem direito a um nome, a uma família. Tem direito ao convívio familiar e social.  Deve sentar-se à mesa em família e não ser retirado nem escondido. Deve ser educado com compreensão e  tolerância. Não pode ser rejeitado, marginalizado, desprezado ou retirado do convívio da família ou da sociedade pelo facto de provocar situações menos comuns aos padrões sociais vigentes.

Tem direito a circular e a viajar, pelo que as cidades e os transportes devem ter adaptações às suas reais condições.

PRINCÍPIO IV

O cidadão com deficiência mental deve crescer e desenvolver-se de maneira saudável. Tem direito à alimentação, habitação, distracções e cuidados médicos adequados. Deve beneficiar de um apoio muito especial dos serviços da segurança social.

PRINCÍPIO V

O cidadão com deficiência mental, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade e da sua máxima autonomia, necessita de amor e de compreensão. Deverá crescer sob o amparo e a responsabilidade dos pais e em família, num ambiente de afecto e de estabilidade moral e material. Salvo em circunstâncias excepcionais, não deve ser separado da família.

A sociedade e os poderes públicos têm a obrigação de cuidar muito especialmente das pessoas com deficiência mental sem família e daqueles que careçam de meios de subsistência. É desejável que, às famílias numerosas, às carenciadas e de maior risco, o Estado ou outros organismos concedam meios de subsistência aos membros portadores de deficiência mental.

PRINCÍPIO VI

O cidadão com deficiência mental terá todas as possibilidades de brincar, de jogar e de se dar a actividades recreativas, as quais hão-de ser orientadas para o desenvolvimento e para a educação. A sociedade e os poderes públicos hão-de esforçar-se por favorecer o exercício e o gozo deste direito, assim como o de promover o desporto para deficientes.

PRINCIPIO VII

O cidadão com deficiência mental tem direito à educação. Direito a frequentar escolas adequadas à sua situação, com professores e técnicos preparados para as suas necessidades de aprendizagem e de desenvolvimento. Direito a uma educação e escolaridade gratuitas e permanentes enquanto se justifique, ou mostre capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento.

Deve beneficiar de uma educação que contribua para a sua mais alargada autonomia e inserção social e que permita desenvolver as suas aptidões, potenciar o sentido das responsabilidades morais e sociais e tornar-se membro útil à sociedade.

Desenvolver as capacidades das pessoas com deficiência mental é um dever dos que têm as responsabilidades da educação e da orientação escolar. Estas responsabilidades cabem, em primeiro lugar, à família, mas a família receberá os apoios específicos do Estado e o Estado obrigar-se-á a subsidiar e a apoiar as iniciativas da sociedade civil, como instituições e associações vocacionadas para apoiar o cidadão com deficiência mental e a sua família, sem prejuízo das suas próprias iniciativas.

PRINCIPIO VIII

O cidadão com deficiência mental não pode ser detido nem condenado. A sua autenticidade garantem inocência e ausência de acto delituoso. É um cidadão inimputável.

PRINCÍPIO IX

O cidadão com deficiência mental tem direito a personalidade jurídica. Deve-lhe ser garantido o direito à justiça e a uma tutela efectiva. Tem direito à herança em igualdade com outros herdeiros.

PRINCIPIO X

O cidadão com deficiência mental usufruirá das vantagens associativas, pelo que as associações e instituições, que tenham como objecto de o apoiar e servir sem fins lucrativos, devem ser reconhecidas e apoiadas e subsidiadas pelo Estado.

Tem direito a ter amigos/amigas, reconhecendo-se os organismos que se instituam como amigos do mesmo.

PRINCÍPIO XI

O cidadão com deficiência mental deve, em todas as circunstâncias, ser dos primeiros a receber protecção e socorro nas situações de cataclismo ou de acidente.

PRINCÍPIO XII

O cidadão com deficiência mental deve ser protegido contra toda a forma de negligência, de crueldade e de exploração. Em nenhum caso submetido a tráfico, seja de que tipo for. Em nenhum caso se permitirá que trabalhe com o fim único de produzir, dado não estar capacitado para reivindicar os seus direitos, mas que o trabalho assuma fins ocupacionais, como processo de terapia, de diversão e de utilidade para si e para a sociedade.

Não deve, em nenhum caso, ser obrigado ou autorizado a ter uma ocupação ou um emprego que prejudiquem a saúde ou a autonomia, ou que impeçam o seu desenvolvimento físico, mental ou moral.

PRINCÍPIO XIII

O cidadão com deficiência mental não pode ser usado nem explorado sexualmente. Nas situações de abuso sexual, aplicar-se-ão as normas consignadas à menoridade.

PRINCÍPIO XIV

O cidadão com deficiência mental tem direito à sua intimidade, a fruir de uma vida sexual e a satisfazer as suas pulsões de modo individual ou com parceiro que voluntariamente aceite.

PRINCÍPIO XV

O cidadão com deficiência mental tem direito a um nível de vida digno. Como está incapacitado de procurar ou de garantir a sua subsistência, ao Estado compete assegurar a sua saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, alojamento, assistência médica e outros serviços sociais necessários.

Para dar cumprimento a este direito, o Estado tem o dever de atribuir uma pensão adequada, para que a pessoa com deficiência mental não seja um encargo pesado ou insuportável à família.

PRINCÍPIO  XVI

Ao Estado compete também apoiar, subsidiar e sustentar lares, residências ou  aldeamentos que sejam úteis às pessoas com deficiência mental e às famílias, como centros de repouso, de férias, e outros meios necessários em situações de incapacidade familiar.

PRINCÍPIO XVII

O cidadão com deficiência mental poderá ser sujeito de deveres e de obrigações, mas nos limites da sua capacidade de compreensão.

PRINCÍPIO XVIII

O cidadão com deficiência mental tem o direito a que o Estado se obrigue a dar cumprimento ao determinado nesta Declaração de Princípios.


M. Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)

A elite e as massas

Sou do tempo em que se pensava que as elites do espectáculo desportivo nasciam das grandes massas de prati­cantes. Não havia por aí entendido, nes­tas coisas do desporto, que não sus­tentasse que os nossos maus resulta­dos, internacionalmente falando, não decorresse do reduzido número de pra­ti­cantes, designadamente nos es­calões etários mais jovens.

Hoje, sabe-se que o desporto na escola, ou o lazer desportivo, não são o fundamento primeiro do desporto de alta competição. Aquele há-de encon­trar-se na escolha cuidada de super-dotados e até na necessidade social de um certo nacionalismo e de uma cer­ta comunhão com o sagrado.

O capitalismo neoliberal que nos comanda já criou um cemitério para o sagrado e começou a enterrar a teoria, já que proclama, com arrogância, o “fim da história”. Convenhamos que tam­bém a União Soviética, onde se veri­ficou a estatização e não a socializa­ção dos meios de produção, fez o mes­mo. E também nela o pretenso comu­nis­mo tentou sepultar a história e a te­o­ria.

Em Portugal, com a Revolução dos Cravos, pensou-se que “a história ca­minha para o socialismo” e continuava-se o pensamento dominante, mormente na segunda metade do século XX: são as revoluções que transformam a histó­ria; estas deverão realizar-se por via in­sur­reccional e não por via institu­ci­o­nal; a luta anti-imperialista conduz inevitavelmente ao socialismo. Assim pensavam também os “barbudos” que invadiram Havana, comandados por Fidel Castro, e que influenciaram mais a América Latina do que o marxismo-leninismo influenciou a Europa.

Enfim, quer o regime soviético, quer o regime capitalista têm-se distin­guido pelo “pensamento único”, que leva à morte da inovação teórica e prá­tica. No entanto, para os homens de boa vontade, com o desapareci­mento do “socialismo científico”, uma lu­ta se impõe – a luta contra a socie­da­de de mercado, onde tudo tem pre­ço, onde tudo se vende e se compra; a luta por uma nova hegemonia mun­dial, mais ética do que económica.

Ora, o desporto de alta competição é um dos aspectos da estratégia impe­rial do neoliberalismo. Também, nele, é evidente uma ideologia e um modelo de sociedade. A propósito, poderíamos escutar o sociólogo brasileiro, Emir Sa­der, no seu livro A vingança da His­tó­ria (Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 57): “A exportação desse mo­de­lo de sociedade encontrou, no mais poderoso aparelho de propaganda ja­mais existente na História (a combina­ção entre meios de comunicação e in­dústria do divertimento) o instrumento da sua universalização. Eles compõem um impressionante aparato económi­co, informativo e de divertimento, que chega a quase o mundo inteiro, gene­ra­lizando estilos musicais, cinemato­gráficos, de moda, informativos, próxi­mo de uma formidável homogeneiza­ção que acompanha e dá alma à glo­ba­lização neoliberal. Os critérios de ver­dade, beleza, morais, gerados por esses mecanismos, se estendem como nunca no Ocidente. McDonald’s, Hollyo­od, jeans, Coca-Cola, CNN, Microsoft são símbolos da “universalidade” do american way of life e do seu sucesso mundial. As teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história correspondem à ideia política de que a história teria chegado a seu horizonte último – a de­mo­cracia liberal e a economia capitalis­ta de mercado. Seguiriam ocorrendo acontecimentos, porém nenhum supe­ran­do esse marco histórico, seu pata­mar final”.

O desporto de alta competição tam­bém integra o “aparelho de propagan­da” da sociedade de mercado que tem nos Estados Unidos o seu modelo. Tra­ta-se, portanto de um desporto de elites, dominado pelo mercado e pela publici­da­de, onde o desporto escolar e o lazer desportivo pouco mais representam do que pobres aleijões, mascarados de fa­ctores higiénicos e educativos. Só há desporto de massas, na sociedade de mer­cado, se dele resultar alienação e lucro. Aliás, o mesmo poderíamos dizer do desporto de alta competição, citan­do o caso dos clubes de futebol, com ex­cepção dos “três grandes” e do Bra­ga, do Marítimo e do Nacional, estes três últimos por razões de afirmação regional.

A crise do desporto escolar e do lazer desportivo é do mesmo teor da cri­se que atravessam as regalias so­ciais dos trabalhadores. Chegámos ao apogeu do capitalismo e, perante o es­panto de muita gente, verifica-se uma desprotecção crescente dos mais ne­ces­si­ta­dos, o predomínio do niilismo e da ganância e a ostentação de uma vi­da luxuosa e viciosa. Que o mesmo é dizer: o desporto continuará um factor de pura alienação, de que os gover­nan­tes falam, por mero populismo ou por exigências da conjuntura.

Um des­porto que se apresente como democra­cia participativa, ou como cultu­ra de so­lidariedade acontecerá, um dia, com um neo-socialismo, onde de facto seja verdade uma democracia participati­va e não a estatolatria que nos submer­ge, ao serviço do grande capital.

Que é hoje o desporto? É, acima do mais, um espe­ctá­culo de alienação po­pular, publicita­do, durante 24 horas, por todos os meios da Comunicação So­cial. Visando a saúde e a educação, ou até as necessi­da­des básicas de movi­mento?

Na sociedade de mercado, não se reproduzem os valores da vida, mas a reprodução do capital. O desporto, com todas as suas imensas virtualidades éti­cas e políticas, pode ser um factor de cultura comunitária, de democracia radi­cal e global. Pode... mas ainda não é! Para que o seja, é preciso que o mundo associativo se afaste do capitalismo existente e faça de cada praticante des­portivo um sujeito participante da gestão da sociedade.

A maior das falácias que muitos po­líticos arrogantemente apre­goam é a de que se torna impraticável transfor­mar, ou erradicar este capitalis­mo que nos consome.

Através do des­porto, poderemos ca­minhar para um mundo novo. Através do desporto, é possível renascer a es­pe­­rança!


Pe. Mário (M. Lixa)

Maria do Rosário Castanheira

Minha querida Amiga

Nessa tua pressa de te reduzires ao essencial e, assim, te tornares invi­sível aos nossos olhos, nem conse­guis­te encontrar tempo para me con­tactares, uma última vez, via telemóvel, antes que acontecesse a tua explosão final na cidade de Castelo Branco onde, depois da reforma, havias fixado resi­dência. Não vejas nestas minhas pala­vras uma censura. Eu é que gostava mui­to de ter ouvido ainda uma vez mais essa tua voz, sempre oportuna e acu­tilante, determinada e quente de afecto, antes de teres passado para lá da História e de te exprimires numa lín­gua que os nossos sentidos não são capazes de captar, apenas o coração.

Eu sei que nunca mais deixamos de viver em efectiva comunhão, desde aqueles remotos anos em que nos en­contrámos pela primeira vez na casa que já então partilhavas com o teu com­panheiro António e os vossos dois filhotes, na altura, ainda de poucos anos, na Amadora, não muito longe da Estação de comboio e ainda mais próxima de um degradado Bairro de Ciganos que, já nessa ocasião, era uma das tuas maiores preocupações solidárias, onde fazias questão de ter sempre pousados os olhos e, sobre­tudo, o coração.

Os tempos eram de chumbo, o país era casa de opressão e os passos que déssemos ao encontro uns dos outros eram sistematicamente vigiados pelos famigerados funcionários do Re­gime ditatorial que não suportava a e­xis­tência de seres humanos consti­tuídos na liberdade e na comunhão, de cujo número tu e o António – o que­ridíssimo Ca­sal Castanheira – já fazíeis parte, fe­lizmente.

As cadeias políticas por que tive de passar duas vezes em Caxias tive­ram o condão de nos aproximar e de selar uma amizade que nunca mais dei­xou de se desenvolver e de acres­centar a ela mais e mais pessoas, numa progressão que a tua explosão final, a que erradamente continuamos a cha­mar morte, longe de extinguir, acaba de potenciar ao infinito.

A minha radicalidade de vida, des­de cedo assumida na liberdade e na res­ponsabilidade, chegou quase, em certos momentos, a tirar-te o fôlego e a deixar-te perplexa. Não entendias co­mo é que eu podia continuar pres­bítero da Igreja católica e ao mesmo tempo tão radical e contundentemente crítico da Igreja católica.

Uma altura houve em que a velha moral eclesiástica católica, com todos a­que­les perversos e hipócritas moralis­mos que a caracterizam e que eu nunca me cansarei de denunciar, e nos quais todas, todos nós fomos (de)formados ainda antes de sermos concebidos no seio materno, tentou uma e outra vez vol­­tar a possuir-te como um demónio e, através de ti, condenar o meu radical viver de homem liberto para a liberda­de, numa entrega incondicional à mis­são de Evangelizar os pobres. Cheguei a temer que a ruptura acontecesse irre­mediavelmente entre nós, mas tudo não passou duma crise que, co­mo todas as crises, nos fez crescer ain­da mais e nos constituiu definitivamente como amigos e companheiros do Pro­jecto libertador de Jesus, sem que a dis­tância física que todos estes anos nos separou constituís­se qualquer em­ba­raço. E hoje, depois da tua explosão final, a comunhão é ago­ra tão definitiva­mente inquebrantá­vel quanto ininter­rupta.

Bem sei que foi pura coincidência, mas a verdade é que tu, minha querida amiga Maria do Rosário, acabaste de te tornar invisível aos nossos olhos, no momento em que o romance sobre as intermitências da morte, do nosso Nobel da literatura começava a dar que falar no país, pelo menos, em certos ambien­tes académicos. Ao aparecer nessas páginas de literatura a parodiar a Mor­te, nomeadamente, a hipótese comple­ta­mente inverosímil de um dia a Morte de­sistir de fazer das suas entre os seres humanos (quando não somos ca­pazes de ver explosão de vida no pró­prio acto de morrer, só nos resta disfarçar toda a amargura que daí resulta sob um patético recurso à paródia ou ao cinismo), o nosso grande romancis­ta José Saramago parece ter desistido de ser homem. A paródia e o cinismo, perante realidade humana tão car­re­gada de densidade, como é o Mistério da Morte de criaturas que, no processo evolutivo da Criação, chegaram ao pa­tamar da consciência e à liberdade criadora, não são uma postura à altura de seres humanos; têm tudo de desis­tên­cia e de capitulação perante o que, à primeira vista, parece inevitável; re­presentam o cúmulo da cegueira por parte de quem se recusa a ver para lá da linha do horizonte e do muro da sua casa, ou da curva da estrada; con­substanciam uma postura própria de quem se resi­gna a ficar a meio do ca­minho e, de­pois, para se justificar, ar­gu­menta como a raposa que, ao não conseguir chegar às cobiçadas uvas, de altas que estão, faz constar urbi et orbi que as uvas es­tão verdes.

Infelizmente, ao nosso Nobel da Li­teratura tem faltado aquela humildade que é timbre da criatura humana, e que o ajudaria a fazer o contraponto à sua reconhecida e consagrada grandeza literária. Só isso explica que ele não con­siga ver o Invisível que tu, minha querida Maria do Rosário, sempre vis­te, ao longo to teu humilde viver de mu­lher casada e doméstica, mas não domesticada, apesar de nunca chega­res a escrever um livro, nem nunca te­res frequentado a universidade, tão pouco teres sido reconhecida fora do teu restrito círculo de familiares, amigos e militantes de Causas que interessam à Humanidade. Na sua arrogância inte­lectual, o nosso Nobel da literatura nem se dá conta que desiste de ser homem, no momento em que mais pensa que o é. Chega a tomar por fim de tudo, ir­re­mediá­vel fim, o que afinal é apenas No­vo Começo. No auge da sua auto-suficiência que tem muito ou tudo de egolatria, tão pouco se dá conta que acaba por encurralar todos os seres humanos na ideologia/caverna de um túmulo sem saída, numa altura em que toda ou qua­se toda a sua contem­po­raneidade, a começar pela própria Ci­ên­cia, nos está a gritar que, no prin­cí­pio de cada ser humano, quando o es­­­­per­matozóide do homem encontra e penetra o óvulo da mulher, é a Explo­são ou Ressurreição, tradicionalmente chamada concepção/nascimento – o big-bang, no dizer da Ciência, em rela­ção ao início do nosso Universo – e no fim de cada ser humano na História é de novo a Ressurreição ou Explosão, tradicio­nal­mente chamada Morte.

Sabemos hoje – é um saber re­cen­te, de ainda poucos anos – que, co­mo seres humanos, todos somos em ine­vitável relação e comunhão com o universo, portanto, o resultado até ho­je mais conseguido da explosão ini­cial da estrela que lhe deu origem, e que de­pois de milhares de milhões de anos de evolução, se fez Consciência huma­na em nós, realidade invisível aos o­lhos que, misteriosamente, define e i­den­tifica cada ser humano, também o nosso Nobel José Saramago.

Ora, toda esta Criação na Evolução não pode ter acontecido para agora re­dundar em puro Nada. Só pode ter a­contecido para culminar numa Explo­são ou Ressurreição de cada ser hu­mano, que inaugurará novas dimen­sões de vida que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem Nobel algum, de Li­teratura ou de Ciência, conseguirá sequer balbuciar.

A verdade é que tu, minha querida amiga Maria do Rosário, que acabas de protagonizar, na peugada de milha­res de milhões de outros seres huma­nos antes de ti, esta Explosão final in­dividual, sempre foste capaz felizmente de intuir e ver, na comunhão pessoal com Jesus de Nazaré – é isso a Fé cristã jesuânica que sempre te animou e que tu alimentaste longe dos templos e dos altares, entre companheiras e compa­nhei­ros de viagem, em sucessivos en­con­­tros sororais/fraternais nas casas uns dos outros – que não nascemos para morrer, morremos para ressus­ci­tar, ou, por palavras menos teológicas e mais científicas, explodimos para ex­plodir, até sermos finalmente abraça­dos no oceano infinito de Amor que é o Deus vivo, o único que faz novas to­das as coisas e em quem o próprio José Saramago, volens/nolens, vive e respi­ra. E o único que é criador de fi­lhas e de filhos à sua imagem e seme­­lhança, pu­ra Graça, pura Liber­da­de, pura Sal­va­ção.


L. Boff (1), Teólogo brasileiro

Noite de Deus

C. G. Jung, um dos mestres fun­dadores do discurso psicanalítico junta­mente com S. Freud, refere-se nas suas obras aos grandes sonhos que podem visitar as pessoas. Aí emergem arqué­ti­pos ancestrais, carregados de mensa­gens que podem mudar o estado de cons­­ciência e até o destino das pes­soas.

A mim ocorreu-me um destes gran­des sonhos no dia 23 de Outubro 2005, por volta das quatro da madrugada, em plena crise de artrose que me deixou pre­so em casa. A noite, de repente, virou dia. Era a noite sem armas, da paz per­pétua. Vale a pena contar esse sonho.

Sonhei que estava na China, remi­niscência de uma viagem que fizera com um grupo de teólogos brasileiros e canadenses nos anos 80. Em sonho vi que de uma encosta desciam multi­dões de chineses. Na China tudo é mul­tidão. O nosso pequeno grupo foi toma­do de medo. “Agora eles vêm para nos ma­tar”. Mas na medida em que se apro­ximavam, escutavam-se vozes cada vez mais fortes: “agora é paz, agora é paz perpétua”. Eu pensei: “é um truque de­les para nos matarem a todos”. Ao con­trá­­rio, qu­an­do se aproximaram,  cerca­ram-nos, dançando, abraçando-nos efu­si­vamente e enchendo-nos de presen­tes. Alguns estendiam-se tranquilos so­bre a relva e convidavam-nos a fazer o mesmo pa­ra estarmos todos juntos e à vontade.

Começamos a ganhar confiança e tam­bém proclamávamos:”agora é paz, é paz perpétua”.

Entretanto, um sentimento de estra­nheza me invadiu. Não conseguia acos­tu­mar-me à ideia da paz perpétua nem como me devia comportar. A realidade era grande demais, um misto de alegria e de temor. De repente pensei: “agora virão as bombas atómicas chinesas e nos liquidarão”. Mas o temor logo se des­fez, quando alguém ligou a televi­são e lá não se viam mais violências nem futilidades, apenas a mesma men­sa­gem em todos os canais:”agora é paz”. De repente um chinês ergueu-se e disse: “preciso pagar minhas con­tas”. Mas logo se lembrou: “agora com a paz perpétua ninguém precisa pagar mais nada a ninguém porque todos terão tudo o que precisam”.

Subitamente, vi uma roda de pes­­­soas segurando alguém que pare­cia desmaiado. Logo percebi que se tra­tava do Presidente dos EUA. Da encosta desciam, graves e solenes, os chefes chineses. Entraram numa sala junto com o Presidente norte-ame­ricano, agora refeito.

Pouco depois, abriram-se as por­tas e os chefes das duas nações pro­cla­mavam:”chegou o tempo da paz perpétua, da paz eterna”. Nisto escutei o Presidente norte-americano retrucar: “Teremos paz, mas isso só vale por du­as semanas”.

No sonho fiquei profundamente irri­ta­do e pensei: ”O capitalismo desapa­re­ce com a paz. Ele precisa da guerra para existir”. Mas a certeza da paz era tão forte, que todos se harmonizavam e não terminavam de sorrir e de se abraçar.

Era a primeira noite da era de Deus. Noite sereníssima e iluminada, realização do sonho mais ancestral da humanidade.

Nisto acordei cheio da graça divina. Apenas as dores dos joelhos me recor­davam a diferença entre o sonho e a rea­lidade. Mas no sentimento, o sonho era incomensuravelmente mais real que a realidade. Foi então que me lembrei dos versos místicos de São João da Cruz:”Oh, noite mais amável que a alvo­rada. Oh, noite que juntaste o Amado com a amada, amada já no Amado trans­for­mada”.


L. Boff (2)

Carta da Terra

Nos dias 6-9 de Novembro ocorreu em Amsterdam (Holanda) um balanço dos 5 anos de aprovação da Carta da Terra. Esse documento nasceu como res­posta às ameaças que pesam sobre o planeta como um todo e como forma de se pensar articuladamente os muitos problemas ecológico-sociais, tendo co­mo referência central a Terra.

Em 1992, por ocasião da Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, fora proposto tal documento que, por razões que não cabe aqui referir, não foi aceite. Em seu lugar, adoptou-se a Declaração do Rio so­bre Meio Ambiente e Desenvolvimen­to. Desta forma a Agenda 21, o docu­mento mais importante da Eco-92, ficou privado de uma fundamentação e de uma visão integradora.

Insatisfeitos, os organizadores, es­pe­cialmente Maurice Strong, da ONU e Mikhail Gorbachev, director da Cruz Ver­de Internacional, suscitaram a ideia de se criar um movimento mundial para formular uma Carta da Terra que nas­ces­se de baixo para cima. Deveria reco­lher o que a humanidade deseja e quer para sua Casa Comum, a Terra.

Depois de reuniões prévias e muitas discussões, criou-se em 1997, a Co­mis­são da Carta da Terra composta por 23 personalidades dos vários con­tinentes(eu entrei pelo Brasil), para acompanhar uma consulta mun­dial e redigir o texto da Carta da Ter­ra. Efectivamente, durante 2 anos, ocor­reram reuniões que envolveram 46 países e mais de cem mil pessoas, desde favelas, comunidades indíge­nas, universidades e centros de pes­quisa, até que em inícios de Março de 2000, no espaço da Unesco em Paris, o texto final da Carta da Terra foi apro­vado.

É um dos textos mais completos que se tem escrito ultimamente, digno de inaugurar o novo milénio. Recolhe o que de melhor o discurso ecológico pro­duziu, os resultados mais seguros das ciências da vida e do universo, com forte densidade ética e espiritual. Tudo é es­truturado em quatro princípios funda­mentais, detalhados em 16 proposições de apoio. Estes são os quatro princí­pios: (1) respeitar e cuidar da comuni­da­de de vida; (2) integridade ecológi­ca; (3) justiça social e económica; (4) democracia, não-violência e paz.

O sonho colectivo proposto não é o “desenvolvimento sustentável”, fruto da visão intrasistémica da economia política dominante. Mas “um modo de vida sustentável”, fruto do cuidado para com todo o ser especialmente para com todas as formas de vida e da responsa­bi­lidade colectiva face ao destino co­mum da Terra e da Humanidade.

Este sonho bem-aventurado supõe entender “a humanidade como parte de um vasto universo em evolução” e a “Terra como nosso lar e viva”; implica também “viver o espírito de parentesco com toda a vida”, “com reverência o mis­tério da existência, com gratidão, o dom da vida e com humildade, o nos­so lugar na natureza”; propõe uma éti­ca do cuidado que utiliza racionalmen­te os bens escassos para não prejudi­car o capital natural nem as gerações futuras; elas também têm direito a um Planeta sustentável e com boa qualida­de de vida.

As quatro grandes tendências da ecologia – a ambiental, a social, a men­tal e a integral – estão ai bem articula­das com grande força e beleza. Se for aprovada pela ONU, a Carta da Terra será agregada à Carta dos Direitos Humanos. Assim teremos uma visão ho­lística da Terra e da Humanidade, for­man­do um todo orgânico, sujeito de di­gnidade e de direitos.


Frei Betto (1), Teólogo brasileiro

A Ceia de Natal do Pe. Afonso

A Missa do Galo deu-se por cele­brada na primeira hora de 25 de De­zembro. Padre Afonso deixara-se con­taminar pela aflição dos fiéis, ansiosos por retornarem às suas casas e des­frutarem a ceia antes de as crianças mur­charem de sono. Abreviou a homi­lia, saltou orações, desejou a todos Feliz Natal e deu-lhes a bênção final.

Uma dezena de paroquianos om­bre­ou-se na sacristia para lhe manifes­tar votos de boas festas. Os presentes que lhe trouxeram sobrepunham-se a um canto: camisas, meias, livros, essas coi­sas adequadas a um homem de Deus.

Dependurados os paramentos, pa­dre Afonso viu-se sozinho. Miseravel­men­te só, em plena noite de Natal. O celibato é um dom e ele sabia tê-lo merecido. Ao longo de vinte anos de sacerdócio acometeram-lhe muitas tentações. Não era o fascínio das mu­lheres que o levava a duvidar de sua consagração. Admirava-as, sentia-se gratificado por as achar belas e atraentes. Sinal de que havia nele um macho, o que no íntimo o envaidecia.

Perturbava-o a consciência do pai que nunca fora. Muitas vezes sentia saudades dos filhos que não tinha. A­tor­mentava-o ver-se sozinho à mesa de refeições. Comer é comunhão, par­tilha, entremear ao cardápio o diálogo ame­no e alegre. O alimento caía-lhe insosso e, com frequência, surpreen­dia-se sonhando de olhos abertos, a mesa cercada por sua família imagi­nária.

Naquela noite, a solidão bateu-lhe forte. Uma solidão com uma ponta de amargura advinda de uma expectativa frustrada. Sentia-a na boca da alma. Nenhum dos paroquianos lhe acenara a gentileza de um convite à ceia.

Padre Afonso revirou os embrulhos de cores brilhantes e encontrou o que lhe bastava: um cacete de pão e uma gar­rafa de vinho. Enfiou-os na pasta usada para levar sacramentos aos en­fermos e dirigiu-se à zona boémia.

Shirley trazia os olhos inchados, o peito sufocado, o coração miúdo. Desde o fim da tarde chorara copiosa­mente ao recordar os natais de sua infância no norte de Minas. Lembrou-se da família que a repudiara, do mari­do que a abandonara, do filho que dela se envergonhava. Sentiu ódio da vida, da desfortuna a que fora condenada. Con­fusa, teve medo e vontade de sentir ódio também de Deus. Se pudesse, não trabalharia naquela noite. Todavia, não lhe restava alternativa. O acúmulo de dívidas obrigava-a a ir à rua e aguardar o dinheiro ambulante que chegava es­con­dido atrás da fantasiosa excitação de sua fortuita freguesia.

Mirou o homem de pasta na mão, camisa sem gola, sapatos escuros. Talvez viesse do trabalho. Enquadrou-o na tipologia adquirida em tantos anos de rua: tinha o jeito ingénuo dos que buscam apenas aliviar-se e, na hora da cobrança, preferem ser generosos no pagamento, a enfrentar uma prosti­tu­ta irada, disposta ao escândalo.

Trocaram olhares e ela esforçou-se para estampar um sorriso sedutor. Ele parou e indagou; ela apontou o ho­tel de alta rotatividade na esquina.

Caminharam lado a lado em silên­cio, ela sobrepondo seu profissionalis­mo aos sentimentos esgarçados, ele apreensivo frente ao receio de ser apa­nhado em flagrante por algum conheci­do. Subiram as escadas opacamente iluminadas, em cujos degraus as bara­tas se desviavam ariscas.

Ao abrir o primeiro botão da roupa, ela ameaçou dizer qualquer coisa, mas ele adiantou-se. Explicou que não es­tava ali em busca de sexo, e sim de companhia. Haveria, contudo, de pagar-lhe o devido. Contou-lhe do seu sacer­dó­cio e da sua solidão, e indagou se ela se dispunha a orar com ele e com­partir a ceia.

Shirley sentou-se na cama, enfiou o rosto entre as mãos e desabou em prantos. Agora era um choro de alívio, de gratidão por algo que ela não sabia definir, quase de alegria. Logo, falou dos seus natais na roça, o presépio em tamanho natural que o pai armava no quintal do casebre, o peru engordado durante meses para a ocasião, o "ben­di­to" puxado por uma vizinha na falta de igreja e padre naquelas lonjuras.

Padre Afonso propôs fazerem uma oração. Ela ajoelhou-se e ele tomou-a pela mão e fez com que se sentasse de novo. Ele ocupou a única cadeira do quarto. Abriu o Evangelho de Lucas e leu, pausadamente, o relato do nasci­mento de Jesus. Em seguida, perguntou se ela gostaria de receber a eucaristia. Shirley pareceu levar um choque. Co­mo é que ela, uma puta, poderia rece­ber a hóstia, sem sequer ter se confes­sa­do? O sacerdote leu o texto de Ma­teus (21,28): “As prostitutas vos prece­derão no Reino de Deus”. E acrescen­tou que era ele, e essa sociedade cíni­ca, injusta, desigual, que deveriam  con­fessar-se a ela e pedir perdão por a terem obrigado a uma vida tão de­gra­dante.

Após a comunhão, padre Afonso tirou dois copos da pasta, encheu-os de vinho e partiu o cacete de pão. Cla­reava o dia quando os dois ainda conversavam animados sobre suas vidas.


Frei Betto (2)

Deus não tem religião

Uma das características da moder­ni­­dade é o pluralismo religioso. Exige, da parte de todos nós, crentes e não-crentes, a virtude da tolerância. Deus não tem religião. A religião é expressão espiritual, cultural, litúrgica, de uma co­mu­nidade em sua relação com o trans­cendente. Com o fim do período medie­val, encerrou-se também a possibilida­de de uma determinada crença religio­sa impor-se às demais através do po­der político ou militar.

Ainda assim perduram em quase todas as religiões grupos fundamenta­lis­tas que alimentam preconceitos e discriminações em razão de diferenças teológicas, litúrgicas ou históricas. Ne­gam o carácter laico do Estado e dos partidos políticos, e confundem e­van­ge­li­zação com imposição, brandin­do mais o anátema que o amor.

Jesus foi o mestre da tolerância re­ligiosa. Jamais condicionou uma cura ou milagre à prévia adesão à sua fé. Engana-se quem pensa que, no tempo de Jesus, havia uma única religião num Deus único. Como hoje, predominava o mais eclético sincretismo. Antíoco Epí­fanes havia introduzido, em 167 a.C., a imagem de Dionísio no templo de Je­ru­salém (2 Macabeus 6,7). Estavam vivas as religiões cananeias, asiáticas e greco-romanas, que contavam inclu­sive com adeptos hebreus. O imperador romano era deificado. O seu culto públi­co havia sido regulamentado por Au­gusto.

Segundo o Evangelho de João (4, 46-54), Jesus encontrava-se em Caná, na Galileia, quando foi abordado por “um funcionário real, cujo filho se acha­va doente em Cafarnaum”. E, ao con­trário do centurião, que não se conside­rou digno de receber o Mestre em ca­sa, em Caná o enfermo foi curado sem que Jesus fosse vê-lo. “Vai, teu filho vive”.

O centurião não quis que Jesus vies­se à casa dele, porque bem sabia que os judeus eram proibidos de entrar na casa de pagãos. E Jesus ressaltou a fé daquele pagão, a ponto de excla­mar: “Em Israel não achei ninguém que tivesse tal fé”. Do mesmo modo, curou a mulher cananeia (Mateus 15, 21-28) e repôs no lugar a orelha de Malco, ser­vo do Sumo Sacerdote (João 18, 10). Fez o gesto de amor sem pedir ao cen­turião, à mulher cananeia e a Malco que abandonassem suas convicções religiosas.

Tolerância é a capacidade de acei­tar o diferente. Não confundir com o di­vergente. Intolerância é não suportar a pluralidade de opiniões e posições, crenças e idéias, como se a verdade fi­zes­se morada em mim e todos deves­sem buscar a luz sob o meu tecto.

Conta a parábola que um pregador reuniu milhares de chineses para lhes pre­gar a verdade. Ao final do sermão, em vez de aplausos houve um grande silêncio. Até que uma voz se levantou ao fundo: “O que o senhor disse não é a verdade”. O pregador indignou-se: “Como não é verdade? Eu anunciei o que foi revelado pelos céus!” O obje­ctan­te retrucou: “Existem três verdades. A do senhor, a minha e a verdade ver­da­deira. Nós dois, juntos, devemos bus­car a verdade verdadeira”.

Só os intolerantes se julgam donos da verdade. Todo intolerante é um inse­guro. Por isso, aferra-se a seus capri­chos como um náufrago à tábua que o mantém à tona. Não é capaz de ver o ou­tro como outro. Aos seus olhos, o outro é um concorrente, um inimigo. Ou um potencial discípulo que deve acatar docilmente suas opiniões.

O tolerante evita colonizar a cons­ciência alheia. Admite que, da verda­de, ele apreende apenas alguns frag­mentos, e que só pode ser alcançada por esforço comunitário. Reconhece no outro a alteridade radical, singular, que jamais deve ser negada.

O perfil do tolerante é descrito por Paulo no Hino ao Amor da 1ª carta aos Coríntios (13, 4-7): “É paciente e pres­tativo, não é invejoso nem ostenta, não se incha de orgulho e nada faz de in­con­veniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ran­cor. Não se alegra com a injustiça e re­jubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Tolerância não é sinónimo de toli­ce. O tolerante não desata tempesta­de num copo d’água, e jamais cede quan­do se trata de defender a justiça, a dignidade e a honra, bem como o di­reito de cada um ter seus princípios e agir conforme sua consciência, desde que isso não resulte em opressão ou exclusão, humilhação ou morte.

Das intolerâncias, a mais repu­gnan­te é a religiosa, pois divide o que Deus uniu, incentiva disputas e guer­ras, dissemina ódio em vez do amor. Só o amor torna um coração verdadei­ra­mente tolerante. Porque quem ama não contabiliza acções e reacções do ser amado e faz da sua vida um gesto de doação.

A vida, dom maior de Deus

Vivemos num mundo desigual, mar­­cado por guerras e sofrimentos. Se­gun­do a ONU, dos seus 6,3 mil milhões de habitantes, 4 mil milhões vivem a­bai­xo da linha da pobreza. Há 824 mi­lhões de pessoas sobrevivendo na in­se­gurança alimentar, que provoca 24 mil mortes por dia.

Dos 30 países ricos, membros da OCDE (Organização para a Coopera­ção e o Desenvolvimento Económico), para 1 dólar destinado à coopera­ção internacional, eles desem­bol­sam 10 dó­­lares para actividades mi­li­tares. O dado é do Relatório do Desenvolvi­men­to Humano, ONU/2005.

Em 2000 foram gastos em arma­mentos 524 mil milhões de dólares. Em 2003, pós-11 de Setembro, 642 mil mi­lhões. Aumento de 25%. E foi destinado à cooperação com as nações mais po­bres apenas 69 mil milhões de dólares. Ou seja, 10% do que se aplicou em ar­mas.

A vida é o dom maior de Deus. No Evangelho, duas perguntas são feitas a Jesus. A primeira, que nunca aparece na boca de um pobre, é “Senhor, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?” É o que interessa ao doutor da Lei na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-27) e ao homem rico (Marcos 10, 17-22). Os dois já tinham assegurada a vida terrena.

A segunda pergunta sempre apa­rece na boca dos pobres: ‘Senhor, o que fazer para ter vida nesta vida? A mi­nha mão está seca e quero trabalhar; o meu olho é cego e quero enxergar; o meu filho está doente e quero-o com saúde; o meu irmão está morto e rogo que mo devolva à vida’.

A quem pede vida na outra vida, Jesus responde com ironia e desafios. Aos que foram injustamente privados de condições de vida nesta vida, ele responde com misericórdia e bênçãos.

Hoje, a morte ronda o mundo. Além do terrorismo e das guerras, da fome e das epidemias, da violência e das ca­tástrofes naturais, ainda não somos capazes de ver no rosto de cada árabe, de cada judeu, de cada africano ou asi­ático, de cada criança de rua da América Latina, de cada indígena ou negro, a imagem e semelhança de Deus.

Jesus veio até nós para “Que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Eis a missão que nos de­sa­fia neste mundo plural e desigual: cultivar a tolerância e o diálogo inter-religioso; não fazer da diferença diver­gência; amar como Jesus amou, sem pedir atestado de convicção religiosa; erradicar as causas da fome e da po­breza; fazer com que o pão seja ver­dadeiramente nosso, e não só meu ou seu, para que o Pai possa sinceramente ser proclamado Pai-Nosso; e lutar pela paz, que jamais virá como resultado da imposição das armas, e sim como as­sinalou, há 2.800 anos, o profeta Isaías, mas como fruto da justiça (32, 17).


IGREJA/SOCIEDADE

Jesus Cristo: História, Fé e Igreja

A última aula do Pe. Joaquim Carreira das Neves,

Exegeta na Universidade Católica

Na 1.ª quinzena de Outubro, o nosso querido amigo Pe. Carreira das Neves, franciscano, deu a sua última aula na Universidade Católica, em Lisboa. Aproveitou a ocasião para regressar ao seu tema de eleição: "Jesus Cristo: História, Fé e Igreja". A lição veio publicada na íntegra na Agência de Notícias, Ecclesia. Jornal Fraternizar não resiste em partilhá-la aqui com as suas leitoras, os seus leitores. É um texto denso e extenso, mas acessível, e que importa ser conhecido, estudado, debatido. Como podem ver pelo comentário crítico do Director do Fraternizar, imediatamente a seguir ao texto, a lição tem lacunas e podia ter sido muito mais "rasgada", menos "prudente" e  menos"cautelosa". Mesmo assim, é uma contribuição muito positiva a ter em conta. Mergulhem no texto. E depois no comentário do Pe. Mário. Não se arrependerão.

Neste “Adeus” à nossa queri­da Fa­cul­dade de Teologia gosta­ria de dis­sertar, uma vez mais, so­bre o tema teo­lógico da minha pre­di­lec­ção ao longo de toda a mi­nha car­reira académica: JESUS CRIS­TO. Todos reconhecemos que a pes­soa de Jesus marcou e con­ti­nua a marcar a humanidade. A gos­to ou a contra-gosto, a pes­soa de Jesus une e divide, atrai e afasta. Em tempos de ecume­nismo entre as várias igrejas cris­­tãs, e de diálogo inter-religi­o­so en­tre todos os crentes e não crentes, é importante que a­­pre­­sentemos a pessoa de Jesus na sua real dimensão, de mo­do que as pessoas possam tomar de­cisões e fazer opções históri­cas e exis­ten­ciais, racionais e su­­pra-racionais so­bre Jesus Cris­to.

JESUS CRISTO E A HISTÓRIA

A nível cultural há dezenas de abor­dagens sobre a pessoa de Jesus. Já lá vão os tempos em que se defen­dia a tese de Je­sus como puro mito. Nos séculos XVIII, XIX e XX prevale­ceu a abordagem do Jesus da his­tória, e, por isso, tanto entre ca­tólicos como pro­testantes, co­me­ça a sentir-se um certo mal-estar sobre esta abordagem. João Paulo II, Bento XVI e, entre nós, D. José Policarpo, têm manifesta­do esse pare­cer. No entanto, o es­tudo sobre o Jesus da história é importante e necessário. Há pers­pectivas de investigadores, exe­getas e historiadores, que re­du­zem Je­sus à fasquia mais bai­xa: Jesus foi um grande homem e nada mais do que um homem. Mesmo assim, tudo o que seja re­almente sério, em estudo acadé­mico, sobre a real vida histórica de Jesus, é sem­pre uma mais va­lia.

O autor da primeira e segun­da car­tas de S. João já afirmava pelos anos oitenta da nossa era: “Ouvistes dizer que há-de vir um Anticristo; pois bem, já apa­receram muitos anticristos” (1Jo 1, 18). O autor expõe um pouco mais a­di­an­te que estes anticristos são falsos profetas cristãos do seu tempo, e o cri­tério apresen­ta­do para julgar tais fal­sos pro­fe­tas é o da história: “todo o es­­pí­rito que confessa que Jesus Cristo veio em carne mortal é de Deus; e todo o espírito que não faz esta confissão de fé acer­ca de Jesus não é de Deus” (1Jo 4, 2-3). Na segunda carta volta ao problema: “É que apareceram no mun­do muitos sedutores que afir­mam que Jesus Cristo não veio em carne mor­tal. Esse é o se­dutor e o anticristo!” (2Jo 7).

Quem negava a existência de Je­sus como homem de carne e san­gue eram os docetas e os gnós­­ti­cos. Deste modo, todos os estudos sérios sobre a real vida de Jesus em “carne e san­gue” são bem vindos. É humana­mente compreensível que, quem não tem fé cristã, tente reduzir Jesus à estatura de simples ho­mem. Mas há que saber distin­guir entre a investigação séria so­bre o Jesus da história, com todas as suas consequências, e a investigação preconceituada. Nesta última alínea po­de­mos co­locar toda a literatura recente – aliás, avassaladora – em volta do Có­digo Da Vinci. A fome cul­tu­ral pelo eso­térico e excêntrico explica o “boom” lite­rário de Dan Brown. Mesmo assim, estes fe­nó­menos literários e culturais de­vem levar-nos a um estudo cal­mo e sereno sobre a sua razão de ser.

Em meu entender, o grande de­sa­fio às igrejas cristãs, nos próximos tempos, reside na New Age [Nova Ida­de, uma espécie de Cristianismo light, sem Histó­ria]. É voltar, uma vez mais, ao tempo dos do­cetas, gnósticos, an­ti­cristos e falsos profetas das car­tas de João. Muda a nomen­cla­tura, mas a su­bs­tância do pro­blema é sempre a mesma.

As ciências históricas e soci­ais têm sido aplicadas, nestes últimos tempos, à descoberta do Jesus da história. Cite­mos, a tí­tu­lo de exemplo, os estudos de John P. Meier, nos seus três gran­des volumes; A Marginal Jew. Rethin­king the Historical Jesus, de J. H. Elliott; What is Social-Scientific Criticism?, de G. Theissen; Sociologia del movimiento de Jesús, Estúdios de Sociologia del cristianismo primitivo, S. Vidal; Los tres Proyectos de Jesús y el Cristianismo Naciente, Carlos J. Gil Arbiol; Los valo­res Negados. Ensayo de exégesis socio-científica sobre la autoestigmati­zación en el movimiento de Jesús; R. Aguirre, Del movimiento de Jesús a la Iglesia cristiana. Ensayo de exégesis sociológica del cristianismo primitivo; Elisa Estévez López, El Poder de una Mujer Creyente. Cuerpo, identidad y dis­ci­pulado en Mc 5, 24b-34. Un estu­dio desde las ciencias sociales.

Não devemos ter medo destas abor­­dagens. As narrativas bíblicas tan­to se servem dos métodos sincró­nicos como diacrónicos na “construção” da pes­soa de Jesus. Ao falarmos de “construção”, ao jeito de Tolentino de Mendonça, não falamos de “invenção”. Falamos de tudo quanto possa ajudar a compreender a pessoa de Jesus no tempo e espaço.

Todos sabemos que as únicas fon­tes literárias que possuímos para com­pre­ender a pessoa de Jesus são os qua­tro evangelhos canónicos. Os cha­ma­dos evangelhos gnósticos, tão em moda, são importantes para compreen­der­mos as duas linhas paralelas, mas antagónicas, do real Jesus dos primei­ros quatro séculos: a linha da grande Igreja em formação, que, depois, resul­tou na igreja Católica, Ortodoxa e Pro­testante, e a das comunidades gnósti­cas, perseguidas pela própria Igreja depois da liberdade de Constantino e reaparecidas modernamente com as descobertas de Nag Hammadi.

É, pois, com os evangelhos, que de­vemos trabalhar. Mas os evangelhos não são originalmente uma literatura com fins de historicidade factual. São o que o termo “evangelho” quer signifi­car: Boa Nova. Trata-se de uma Boa No­va de catequese cristã sobre o apa­re­cimento histórico de Jesus. Uma vez que há judeus e pagãos que acreditam que o real Jesus da história, homem de carne e sangue como qualquer ou­tro homem, pelo que disse e pelo que fez, é o Filho Único de Deus, Messias, Salvador e Redentor e, mais ainda, Em­manuel (Deus connosco), os evange­lhos, como resposta a essa crença, surgem como uma literatura de retórica catequética para que os leitores confir­mem a fé já recebida ou despertem para essa fé, radicada no Jesus da história, da fé e da Igreja.

Desta forma, Jesus tanto pode ser estudado à luz da fé como à luz da his­tória. Durante dezoito séculos preva­leceu entre católicos, ortodoxos e pro­testantes o Jesus da fé. Não admira, pois, que com a era do racionalismo e ilu­minismo, surgisse o desejo de estu­dar o Jesus da história.

Sobre o lugar do nascimento de Jesus, data e circunstância, nada sabe­mos de história factual. Os dois primei­ros capítulos de Mateus e Lucas, que descrevem o nascimento de Jesus em Belém com todas as suas circunstâncias, não têm por fim apresentar um relato de história factual, mas de história teo­ló­gica, ou, mais concretamente, de his­tó­ria cristológica. Quando os quatro evan­gelhos (Marcos, Lucas, Mateus e João) foram escritos, Jesus já era acre­ditado por milhares de judeus e não-ju­deus como o Messias de Deus, Filho Único de Deus e Emmanuel (o Deus-con­nosco), Salvador e Redentor. As es­peranças messiânicas das Escrituras Hebraicas, na fé dos cristãos, haviam-se realizado e, com esta realização, co­meçaram os tempos escatológicos. E o tempo escatológico deriva não tanto do messianismo, filiação divina, media­ção salvadora e redentora de Jesus, mas da sua ressurreição. Não há fé cris­tã sem a centralidade da ressurreição. Semelhante acontecimento, só reco­nhe­ci­do pela fé testemunhal de ho­mens e mulheres, faz de Jesus uma per­sonagem única na história das reli­giões, de modo que qualquer historia­dor e exegeta se confronta com textos sobre Jesus em perspectiva da história e da fé. Assim, as narrativas dos dois pri­meiros capítulos de Mateus e Lucas sobre o seu nascimento e infância apre­sentam, em forma narrativa, este Je­sus total. A sua grandeza “divina” manifesta-se já a partir da própria con­cepção “virginal”, sem paralelo com qual­quer outra figura histórica.

A exegese moderna leva-nos a con­cluir que o Jesus da história só co­meça quando este decide abandonar, pelos seus vinte e sete anos, a sua fa­mília de Nazaré, viajar de Nazaré para o rio Jordão e juntar-se ao movimento de João Baptista. De facto, o primeiro evangelho a ser escrito, o de Marcos, por volta do ano setenta [Nota Fraterni­zar: Em O outro Evangelho segundo Jesus Cristo, Pe. Mário aponta o ano 42-44], é assim que apresenta Jesus a entrar na cena da história. Marcos não nos fornece ne­nhum “evangelho da infância”. Esta ge­o­gra­fia histórica tam­bém é defendida por traços biográ­ficos nos Actos dos Apóstolos em 1, 21-22: “Portanto, de en­tre os homens que nos acompanha­ram durante todo o tem­po em que o Se­nhor Jesus viveu no mei­o de nós, a partir do baptismo de Jo­ão até ao dia em que nos foi arreba­ta­do para o Al­to…”(Ac 1, 22; 13, 24). Isto significa que a “Boa Nova” (evan­gelho) da pre­ga­ção cristã mais primitiva começava com a história de Jesus e João Baptista.

Os evangelhos da infância de Lu­cas e Mateus são uma construção nor­mal onde predomina o Jesus da histó­ria-da-salvação, à maneira das histó­rias haláquicas ou hagádicas, também chamadas midraches, dos rabinos de então sobre os Patriarcas, Moisés e ou­tras grandes figuras bíblicas. O salva­mento de Moisés das águas do rio Nilo pela princesa egípcia é uma destas nar­ra­tivas “haláquicas” ou “midráchicas”, que classificamos de “estórias” ou “len­das”. No entanto, estas “estórias” têm o mesmo valor evangélico, isto é, de Boa Nova, para quem acredita em Je­sus, que qualquer outra narrativa his­tórica.

Só os evangelhos da infância nos apresentam a concepção virginal. Mais tarde, só o quarto evangelho apresenta a pré-história eterna de Jesus (Jo 1, 1: “No princípio era o Verbo; / o Verbo es­tava em Deus; e o Verbo era Deus”; v. 14: “E o Verbo fez-se homem / e veio ha­bitar connosco”). A concepção virgi­nal, a ressurreição e a pré-existência eterna de Jesus, só se compreendem em inteligência de fé. Não há qualquer prova de história factual para estas três “verdades da fé” cristã. Se fosse doutra maneira, Jesus seria um “novo” Moisés, um “novo” profeta, inclusivamente o “Mes­sias”, mas nunca o Senhor Deus (Jo 20, 28: “Tomé respondeu-lhes: ‘Meu Senhor e meu Deus!’”).

Voltando aos evangelhos da infân­cia de Lucas e Mateus não nos é permi­tido estabelecer qualquer concordismo interno. No evangelho da infância de Ma­teus, a figura central, a seguir a Je­sus, é José. É a José que o “anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: ‘José, filho de David, não temas re­ceber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito” (1, 20). A que se segue uma longa narrati­va que tem por centro de acção o verbo activo pleroô (cumprir). Deus determina uma acção a realizar ou a cumprir, atra­vés dos anjos (anjo) e sonhos, dirigida a José. O emissor (Deus) fala ao emis­sá­rio (José) pelo anjo/sonho para reali­zar uma acção-mensagem, previamente determinada por um profeta. Determinara em Is 7, 14 que o Messias nasce­ria de uma virgem (na tradução grega dos LXX) (1, 22). Determinara em Mq 5, 1-2 que o Messias havia de nascer em Belém (2, 6). Determinara em Os 11, 1 que o seu povo havia de nascer duma acção divina de libertação políti­ca e religiosa, levada a efeito por Moi­sés e repetida, agora, de modo total, em Jesus. Assim sendo, Jesus tinha que passar profeticamente (história proféti­ca e não factual) pelo Egipto (2, 15). De­ter­minara em Jr 31, 15 que as tribos do Norte, descendentes da matriarca Ra­quel, a partir de Ramá, seriam chaci­nadas pelos assírios e levadas para o exílio. A profecia serve de pano de fun­do para a perseguição de Herodes con­tra as crianças inocentes de Belém e arredores (2, 17-18). Determinara, final­­mente, que o Messias havia de vi­ver em terras de Nazaré (3, 23), mas em nenhum lugar do AT se profetiza se­­melhante identificação. Mateus, ser­vindo-se da hermenêutica bíblica do seu tempo, utiliza a assonância hebrai­ca entre “nazareno”, “nazoreu” e “nazi­reu” para identificar Jesus como o “con­sagrado” por excelência (ver Jz 13, 5). A vinda dos magos do oriente, a acção da estrela, a conversa dos magos com Herodes, que “pôs em alvo­roço toda a cidade de Jerusalém” (2, 3), a adoração dos magos, o prazo de dois anos entre a vinda dos magos e a matança dos inocentes, a ida de Je­sus, Maria e José para o exílio no Egi­pto, onde permanecem dois anos, é u­ma narrativa “midráchica”, artificial, que mexe com toda a história do povo de Israel em perspectiva histórico-pro­fé­­tica. O Jesus de Mateus percorre de maneira analéptica o mesmo caminho em espaço e tempo de salvação do po­vo de Israel. Moisés foi maltratado pelo Faraó como Jesus pelos responsáveis políticos e religiosos de Jerusalém. O povo sofreu o exílio como as comunida­des cristãs primitivas. Mateus apresenta a sua “construção” a partir de anale­pses. Jesus não é tanto o “novo” Moisés, como muitos exegetas defendem, mas o “verdadeiro” Moisés e os cristãos não são o “novo” povo de Deus, mas o “verdadeiro” povo de Deus. A oposi­ção não reside no adjectivo “antigo” versus “novo”, mas “imperfeito” ou “ina­ca­bado” versus “verdadeiro” ou “consu­mado”. Os magos e a estrela, na cultura oriental, como os anjos e os sonhos, são “sinais” divinos (ver Is 60, 6 e o Sl 72, 10. 11. 15).

O texto de Mateus parte do “pré-texto” e “contexto” da história bíblica do Antigo Testamento. Dificilmente en­con­tramos em toda a literatura um texto como o do evangelho da infância de Ma­teus para legitimar a tese de que qualquer “leitura” é uma “releitura”.

Por outro lado, em história factual, é anti-racional que Herodes tenha man­dado matar as crianças de Belém e arredores, precisamente dois anos depois do aparecimento dos magos. A ser verdade, e não obstante crimes do rei, Flávio Josefo não deixaria de apre­sentar este crime como o maior de to­dos os crimes.

No evangelho da infância segundo Lucas, os tempos, os espaços e as per­so­nagens são diferentes, exceptuando José, Maria e Jesus. Aqui a construção narrativa centra-se em Maria de Nazaré e não em José. O diálogo divino dá-se entre o Anjo Gabriel, enviado por Deus (1, 26) e Maria. Em nenhuma par­te dos quatro evangelhos Maria, mãe de Jesus, assume um papel tão deter­minante. Ela discute com o anjo (1, 28-38), visita a sua parente Isabel e rece­be dela o maior de todos os elogios (1, 42-43: “Bendita és tu entre as mu­lheres e bendito é o fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?”). Já sa­bemos que a palavra Kyrios (Senhor), no Antigo Testamento grego traduz o tetagrama divino YAHWEH (Deus e Senhor). Nenhum cristão pode ir mais lon­ge que Isabel ao pronunciar este enunciado: “E donde me é dado que ve­nha ter comigo a mãe do meu Se­nhor?” A cristologia mais alta funde-se com a mariologia mais alta.[Nota do Fraternizar: No seu livro Em Memória delas, Pe. Mário sublinha que tudo o que os dois primei­ros capítulos do E­van­gelho de Mateus e de Lucas dizem sobre Maria, não é de Maria que o di­zem, mas de Jesus, o que contraria ma­nifestamente esta maneira de apresen­tar as coisas] Os primeiros concílios sobre Maria como Theotokos (mãe de Deus) e sobre Jesus relacionado com o Pai e com o Espírito, ou, então, debru­çados nas lutas cristológicas sobre a natureza humana e divina de Jesus, na­da mais fazem do que explicitar em lin­guagem possível, funcional e onto­lógica, o que Lucas põe na boca de Isabel.

Ao contrário de Mateus, Lucas cons­trói a sua narrativa da infância de Jesus a partir do díptico familiar con­tras­tante - família de João Baptista e família de Jesus. Ao contrário dos pais biológicos de João, Jesus nasce de uma virgem. Ao contrário de Zacarias, sacer­dote do Templo de Jerusalém, Jesus é senhor do próprio Templo (2, 49: “Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?”). João Baptista é um as­ceta “nazireu” (consagrado) (1, 15), en­quanto que Jesus “será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo…Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus”(1, 32). Em Lu­cas não há magos, estrela, fuga para o Egipto, matança de inocentes, mas nem por isso deixa de apresentar o me­nino Jesus bem enquadrado no con­texto judaico de então. É circunci­dado ao oitavo dia (2, 21), consagrado a Deus por ser o primogénito (2, 22-24), em tudo sujeito à “Lei do Senhor” (2, 22. 23. 24. 27. 39). Por outro lado, Lu­cas apresenta os pais de Jesus, com todo o realismo, como qualquer pai e mãe biológicos (2, 32: “Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia dele”; 2, 43: “sem que os pais o sou­bessem”; 2, 48: “Olha que teu pai e eu andávamos aflitos”). Para Lucas não existe nenhuma incompatibilidade entre a carne e o Espírito. Os pais de Je­sus funcionam de modo diferente dos pais biológicos de João Baptista, mas sem oposição dualista ou maniqueísta porque o “Espírito Santo” que vem sobre Maria (1, 34) e a “força do Altíssimo” que se estende sobre ela (1, 35) per­ten­cem à ordem da graça sem contra­dizer a da natureza. Lucas conjuga a gramática da graça, da natureza, da Lei e do Espírito com um à vontade total.

Lucas diz o mesmo que Mateus, embora as personagens envolvidas, criadas adrede pelos dois evangelistas, sejam distintas. É sempre a história da salvação que está em jogo. Nem Lucas conhecia o evangelho de Mateus, nem Mateus o de Lucas, mas ambos conhe­ciam a história final de Jesus. Os evan­gelhos da infância dos dois evangelis­tas são uma retro-projecção deste Je­sus final e total. Mesmo assim, o Jesus dos evangelhos da infância de Mateus e Lucas nada tem a ver com o Jesus dos evangelhos apócrifos, sobretudo com o do Proto Evangelho de Tiago, que tanta influência desempenhou na história da Igreja, cheio de lendas e mi­lagres mirabolantes do menino Jesus.

Não admira que, como vimos, em Mateus a historicidade factual da estre­la, magos, fuga para o Egipto, matança dos inocentes dê lugar à historicidade do significado e não do significante, como em Lucas acontece com Isabel, os anjos, Simeão e Ana. Se em Lucas, Jesus é circuncidado ao oitavo dia e depois segue para Nazaré, como é pos­sível conciliar este tempo, espaço e circunstâncias com os dois anos pas­sa­dos no Egipto, segundo a narrativa de Mateus? Ninguém pode conciliar o inconciliável. O concordismo bíblico seria um absurdo. E assim como, em Mateus, a matança dos inocentes, a ser histórica, tinha que aparecer nos es­cri­tos de Flávio Josefo, também em Lucas o édito de César Augusto (2, 1-17), que leva José e Maria a Belém, devia fazer parte dos Anais do império romano. A verdade é que não conhe­ce­mos nenhum outro documento histó­rico sobre este recenseamento do im­perador César Augusto. E mesmo que o documento evangélico de Lucas se devesse tomar como histórico contradiz o que a história afirma acerca de Qui­rino como Governador da Síria. Foi Go­vernador da Síria apenas a partir do ano sexto depois de Cristo. Mas quando Lucas escreveu o seu evangelho toda a gente, na Palestina, conhecia este re­censeamento e as perturbações polí­ticas que desencadeara entre os “ze­lotas” judeus contra Roma. Lucas não foi consultar as bibliotecas para se pre­caver da possibilidade de algum “erro” histórico. Apanhou o dado histórico do re­censeamento posterior de Quirino e achou por bem colocar o nascimento de Jesus neste enquadramento univer­sal da história do império romano (2, 1: “Por aqueles dias saiu um édito da parte de César Augusto para ser recen­seada toda a terra”). A narrativa não tem em vista a veracidade histórica de um determinado recenseamento, mas a veracidade histórica do nascimento de Jesus no universo do império roma­no, senhor absoluto da história do mun­do de então. Lucas apenas quer apre­sentar o “novo Senhor” da história – Jesus – na contextualidade histórica e cultural do seu tempo.

Como conclusão, os evangelhos da infância de Jesus não são história fa­ctu­al, mas funcional. Da sua infância, a começar pelo lugar do nascimento, modo e circunstâncias, nada sabemos. Qualquer leitor, historiador, exegeta, com fé ou sem fé, tem todo o direito de falar de erros históricos entre Lucas e Mateus, se ler os dois evangelhos da infância como fonte histórica de his­to­ricismo factual. Simplesmente, não é isto o que os evangelistas nos querem apresentar, mas apenas a fé cristã so­bre Jesus, Filho Único de Deus, Messi­as e Salvador, nascido de Deus e de uma virgem, através de uma catequese de narrativa bíblica, chamemos-lhe “mi­dra­che”, “saga”, “lenda” ou, até, “mito”.

O que mais escandaliza os leitores modernos, filhos da ciência biológica, é a afirmação constante de Jesus nas­cer de uma virgem. Mateus afirma-o de várias maneiras (1, 20: “José, filho de David, não temas receber Maria, tua es­posa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo”; 1, 13: “O anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto’”, em vez de: “toma o teu filho, e foge para o Egipto”; ver 1, 14. 19). O mesmo a­con­­tece com a genealogia em 1, 16: “Ja­­cob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo”, em vez de dizer, na sequência de todas as demais genealogias: “Jacob gerou José, José gerou Jesus…”. É abso­lutamente normal e racional que o leitor moderno se interrogue sobre o nas­cimento “virginal” de Jesus, tam­bém a partir do género literário dos evan­gelhos da infância, isto é, que veja nestes evangelhos um “mitema” ou um teologoumenon (narrativa divina para explicar o mistério da incarnação de Jesus Filho de Deus). O crente católico, ortodoxo ou protestante, que acredita no nascimento virginal de Jesus, ape­nas pode responder com a sua proposta de fé cristã e tradição da Igreja porque a tradição cristã apostólica subjacente a Mateus e Lucas assim acreditava. Se­rá sempre uma questão de fé (como a res­surreição ou a pré-existência eterna de Jesus) e não de história factual. [Nota Fraternizar: O referido livro Em Memória delas fala desta realidade duma outra maneira bem mais "rasga­da" e bem mais conforme à dignidade de Deus e dos seres humanos]

O facto de nos demorarmos tanto tempo nos evangelhos da infância é um acto consciente por causa dos proble­mas de fé e história que os evan­gelhos suscitam. A fé, a História e a Igreja inter­agem continuamente nestas narrativas. Fé, História e Igreja são três sinergias complementares ao longo da macronar­rativa dos evange­lhos. É a Igreja com a sua fé, isto é, a fé de comunidades cris­tãs apostólicas primitivas que impõe o género literário dos evangelhos da in­fân­cia e não o género literário que se impõe à Igreja na construção da pes­soa de Jesus.

Mas quando passamos ao Jesus da história, sobretudo nos evangelhos si­nópticos, a partir da decisão de Jesus em deixar a família, conviver com João Baptista, pregar a Boa Nova do Reino de Deus, já não é nem a fé nem o gé­ne­ro literário das parábolas, milagres, discursos de doutrinação, que apre­sen­­tam e constroem a pessoa de Je­sus, mas a história concreta e factual, em­bora, aqui e além, as narrativas só se entendam, na sua redacção final, den­tro dos parâmetros da fé e da Igre­ja, ou, melhor ainda, da fé da Igreja.

Em nosso entender, nunca será pos­sí­vel poder distinguir com precisão total o que é que pertence à fé, à his­tória e à Igreja, como querem os pala­dinos americanos do Jesus Seminar. Mas também não podemos cair em ex­clusivismos de métodos, os histórico-críticos por um lado e os sincrónicos por outro. No fim de tudo, é o texto que nos interessa e não tanto a sua génese e história. Mas tudo quanto possa ilu­minar o texto a partir do seu pré-texto e contexto é bom para o próprio texto que chegou até nós.

Tudo o que a cultura histórica à volta da cultura mediterrânica, judaica e não-judaica, nos apresenta, tem a ver com a macronarrativa do texto evangé­lico e seu herói – Jesus de Nazaré. Como eram os códigos de honra das famílias judias e não-judias mediterrâ­nicas? Se o código fundamental de hon­ra consistia na honra e propriedade da família, Jesus, segundo os evangelhos, fugiu a este código de honra ao deixar a sua família de sangue para pregar e construir uma outra família centrada naquilo a que ele chamou Reino de Deus. As dezenas de livros e centenas de artigos sobre este pormenor são fundamentais. Lembremos, a título de exemplo, alguns exegetas muito moti­vados nesta alínea: Ramón Trevijano, Xabier Pikaza, Senén Vidal, Halvor Mox­nes, Carlos J. Gil Arbiol.

As desco­bertas arqueológicas na Galileia têm trazido à luz do dia a vida real daqueles campesinos subjugados pelos latifundiários que viviam em Je­ru­salém,Tiberíades e Séforis. Tais des­co­bertas iluminam algumas parábolas de Jesus sobre o banquete oferecido por ricos e reis, cujos convidados ricos, ao rejeitarem o convite, cedem o lugar aos pobres e marginalizados, estabe­le­cen­do-se assim a lei evangélica da salvação em pura gratuidade e dom versus salvação pela Lei.

A promessa do Reino de Deus, cen­tral na pregação de Jesus, é tam­bém iluminada por tudo quanto os exe­getas vão descobrindo sobre tal promessa nos ambientes rabínicos de então, e, sobre­tudo, na literatura extra-bíblica de Qum­rân e nos demais movi­men­tos apo­calí­pticos. O sintagma Rei­no de Deus foi, é, e continuará a ser um enigma no mun­do de Jesus e da exe­ge­se dos evan­gelhos. Basta lembrar que este sintagma e respectivo mundo semântico, com raras excepções, foi abandonado por Paulo, pelo autor do quar­to evan­gelho e pela demais litera­tura neo-tes­ta­mentária, pela simples razão de que, depois da pregação de Jesus e depois da queda de Jerusa­lém no ano setenta, esta semântica perde oportunidade na catequese cris­tã do mundo grego e ro­mano dos cris­tãos. Se os ouvintes de Jesus, judeus pobres na sua maioria, esperavam por esse Reino, de significa­dos ambiva­len­tes, como é patente nas reacções dos discípulos mais directos de Jesus, os cristãos das camadas pa­gãs só o podiam interpretar, depois da ressur­rei­ção de Jesus, num sentido espi­ritual e escatológico. E é por isso que os exe­getas revisitam continua­men­te esta temática em perspectivas políticas e apo­calípticas. Lembremos E. P. San­ders, tão propalado entre nós de­pois da tradução da sua obra A Verda­deira História de Jesus, as obras já cita­das de Xabier Pikaza e Senén Vidal, Gerd Theissen com a obra Biblischer Glaube aus evolutionärer Sicht, tradu­zida para espanhol com o título La fe bíblica. Una perspectiva evolucionista, o segundo vo­lume de John P. Meier, nas pp. 237-508.

Respondendo às ambiguidades criadas pelo “Reino de Deus”, vamos ago­ra ao encontro do Jesus das pará­bolas e dos milagres. O mesmo que, um dia, decidiu subir da Galileia para a Judeia. O que é que o distingue dos rabinos judeus, doutrina essénica, fari­saica e saduceia, em parábolas e mila­gres e, sobretudo, na sua resolução final diante de Pilatos e do Sinédrio? Co­mo conjugar este final com o sinta­gma do Reino de Deus? Trata-se de um final livre, querido, consciente, ou de um fi­nal aceite contra a vontade (Mc 15, 34 e par: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”). A ressur­reição de Jesus pelo Pai, segundo a fórmula mais primitiva (Ac 2, 24. 32; 3, 15, 4, 10; 10, 40; 13, 30), é uma neces­sidade teoló­gica do Pai em relação ao seu Filho ou o acontecimento escatoló­gico cen­tral, livre e absoluto, que deter­mina de uma vez por todas a verdade da pes­soa de Jesus de Nazaré?

Pessoalmente, e de acordo com mui­tos outros exegetas, encontro na parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12, 1-12 e par. Mt 21, 33-46; Lc 20, 9-19) uma das chaves hermenêuticas pa­ra solucionar quantum satis ambigui­dades, dúvidas e interrogações sobre a auto-consciência de Jesus. É que, no limite, o que os redactores finais do tex­to evangélico nos querem dar é a pin­tura da pessoa de Jesus, que eles não inventaram, mas que o próprio Jesus lhes forneceu, embora os fios que tecem a tapeçaria de Jesus sejam da história, da fé e da Igreja.

Na parábola alegorizada dos vi­nha­teiros é fácil distinguir o Jesus da his­tória do da Igreja. O patrão da vinha enviou aos vinhateiros vários servos “para receber deles parte do fruto que lhe competia” (Mc 12, 2 e par.). Os vi­nha­teiros bateram nuns, maltrataram outros e, inclusivamente, mataram al­guns (12, 2-5). Finalmente, o evange­lista escreve: “Já só lhe restava um filho. Enviou-o por último, pensando: ‘Hão-de respeitar o meu filho’. Mas aqueles vinhateiros disseram uns aos outros: ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo e a herança será nossa’. Apoderaram-se dele, mataram-no e lançaram-no fora da vinha. Que fará o dono da vinha?”

A parábola histórica, jesuânica, terminava aqui. O que se segue na nar­rativa sobre a “pedra que os constru­tores rejeitaram”, que nos reenvia para Is 28, 16, Sl 118, 22-23; Zc 4, 7, é, com certeza, uma explicação da fé da Igreja a partir do mistério da morte e ressur­rei­ção, tanto mais que a metáfora da “pedra rejeitada” é amplamente tratada na literatura do Novo Testamento (Rm 9, 33; 10, 11; Gl 2, 18; Ef 2, 20; Ac 4,11-12; 1Pd 2, 6-8). Partimos do princípio que as parábolas de Jesus eram narra­tivas simples e “abertas” e que, em al­gu­mas delas, a Igreja respondeu de maneira cristã à pergunta retórica final. De parábola aberta e interrogativa, a necessitar de uma resposta consciente do ouvinte ou leitor, como era costume de Jesus, algumas parábolas foram fe­cha­das na fé da Igreja do Jesus total e final. Assim aconteceu com a parábola dos vinhateiros homicidas. O definitivo nesta parábola consiste na passagem da identidade dos enviados do dono da vinha. Depois de ter enviado muitos, que foram maltratados e mortos, o dono pensa bem, reflecte e diz: “Tenho um fi­lho. Hão-de respeitar o meu filho!” Es­ta auto-consciência de Jesus ser um Filho único e próprio, diferente dos pa­triarcas e profetas, santos e mártires, pertence à camada histórica mais pri­mitiva dos evangelhos. E é nesta auto-consciência de Jesus que se centra o seu drama humano, histórico, de vida e morte. Jesus apresenta esta auto-consciência de muitos modos, envolta em mistério de metáforas. Nos capítulos segundo e terceiro de Marcos, e parale­los sinópticos, Jesus apresenta-se em cinco metáforas, também classificadas de “apotegmas”, que o identificam de modo único (Mc 2, 10 e par.: “Pois bem, para que saibas que o Filho do Homem tem na terra poder de perdoar os peca­dos, Eu te ordeno – disse ao paralítico: levanta-te, pega no teu catre e vai para tua casa”; Mc 2, 17 e par.: “Não são os que têm saúde que precisam de mé­dico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”; Mc 2, 19-20: “Jesus respondeu: ‘Pode­rão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com eles? En­quanto têm consigo o esposo, não po­dem jejuar.”; Mc 2, 21-22 e par: “ninguém, deita remendo de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os odres. Mas vinho novo, em odres no­vos”; Mc 2, 27-28 e par: “E disse-lhes: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O Filho do Homem até do sábado é Senhor”; Mc 3, 27 e par.: “Ninguém consegue entrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens sem primeiro o amar­­rar, só depois poderá saquear-lhe a casa”). Todas estas afirmações, sem­pre indirectas, da auto-consciência de Jesus, acontecem em pequenas narra­tivas e em ambiente cultural judaico de contraste e oposição à ortodoxia judai­ca. Jesus, como o Deus do AT, tem po­der de perdoar pecados; é o médico que vem para os doentes e não para os justos, isto é, para os cumpridores da Lei; é o esposo do novo povo de Deus, que está por cima de todas as leis de jejum; se é o “noivo” e “esposo” só pode haver festa e não jejum; é o vinho novo que vem substituir o vinho velho; está por cima do sábado, uma das instituições mais sagradas do ju­daís­mo de então, e, finalmente, sabe que é o “mais forte”, com poder para vencer o “forte”, isto é, o Satan que, até este momento, comanda a política histórica e religiosa do mundo.

Sabe­mos que os exegetas continu­am a dis­cu­tir sobre estes “apotegmas” ou afirma­ções de auto-consciência. Para mim, a redacção poderá ser “ecle­sial”, mas o fundo histórico, de recorte metafórico, em antítese com a cultura religiosa judaica de então, não é cria­ção eclesial porque a Igreja continuava a jejuar, a beber do melhor vinho, o mais velho, a ter medo de demónios, po­deres, principados, autoridades e do­minações (ver Ef 1, 21 e passim ) e a pregar uma ética cristã de santidade e justiça diferente da gratuidade cria­dora e salvadora de Jesus. A Igreja já é mediadora, sinal de salvação, projec­ção daquele Jesus primeiro e histórico que está por cima do sábado, do tem­plo, do jejum, do “forte”, de Jonas e Salomão.

JESUS CRISTO E A FÉ

Apresentámos o Jesus da história, mas não o podemos separar da fé e da Igreja. Foi a Igreja que criou os evan­gelhos da infância, que transfor­mou parábolas fechadas em abertas, que juntou aos milagres históricos de Jesus sobre os que sofrem, sejam co­xos, cegos, surdos, mudos, endemoni­nha­dos, milagres eclesiais, como é o caso da multiplicação do pão e do peixe, Jesus caminhar sobre as águas, etc. Mas a questão do Jesus da fé, que co­meça por assentar numa resposta hu­ma­na à auto-consciência histórica do próprio Jesus, atinge o seu clímax no mistério da ressurreição.

Perguntávamos se a ressurreição é uma espécie de “presente” do Pai ao Filho pela sua obediência filial ou se representa o acontecimento escato­ló­gico nunca visto, nunca repetido, úni­co e fundador.

Falar da ressurreição de Jesus é entrar no campo semântico da fé. Não se trata de realizar de maneira poética, romântica, ideal, o desejo de imortali­da­de de Platão, dos gregos, dos egíp­cios e de todas as religiões. Ressur­reição nada tem a ver com reincarna­ção. Nem a ressurreição de Jesus é on­to­logicamente igual à ressurreição dos crentes em Jesus. A nossa razão é ultrapassada pelo significado do acon­tecimento. Nem é outro o sinal de todas as narrativas da ressurreição de Jesus como provas históricas da mes­ma. A ressurreição não se prova como se podem provar as parábolas, os mila­gres, a paixão e a morte de Jesus. As contradições internas das narrativas e dos enunciados testemunham isso mes­mo. Não devemos ter medo de falar de contradições, a começar pela primeira “prova”, em perspectiva cronológica, des­cri­ta na 1Cor 15, 3-8:

“Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Es­crituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apa­receu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhen­tos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto.”

Paulo apresenta a ressurreição de Jesus como o acto fundador do Cristia­nis­mo (1Cor 15, 12-14: “Ora, se se pre­ga que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé”). Não se pode fugir a tais premissas.

No entanto, Paulo não apresenta provas históricas da ressurreição: quem é que viu Jesus a ressuscitar? Em que dia e hora? Em que forma? Ape­­nas nos apresenta o facto em si através de provas de testemunho de fé existencial. Segundo Paulo, Jesus morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras. A sua morte foi real e de história factual. Mesmo assim, Paulo fala como crente: Jesus morreu pelos nossos pecados e segundo as Escritu­ras, isto é, não por causa de um pro­ces­so de julgamento jurídico e político, puramente histórico, mas como cumpri­mento das Escrituras, ou seja, como cumprimento da vontade de Deus. O mesmo se diga dos outros dois tempos sequenciais à morte: foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Quanto à sepultura não apre­senta nenhuma modalidade, ao con­trário dos sinópticos com a narrativa das mulheres, de Nicodemos e de José de Arimateia. Ao contrário da morte e sepultura, não afirma apenas um enun­ciado sobre a ressurreição, mas apre­senta quatro categorias de pessoas como testemunhos: apareceu a três pes­soas em particular: Cefas, Tiago e o próprio Paulo e a três grupos de pes­soas: os doze, quinhentos irmãos, todos os apóstolos. Não vamos aqui discorrer sobre a razão de ser desta enumera­ção de pessoas testemunhas da ressur­rei­ção. Apenas ajuntarei o facto de que Paulo, nas suas cartas, se serve da apa­rição do Ressuscitado como prova irrefutável para o seu apostolado, cau­sa de muitos desentendimentos com os judeo-cristãos de Jerusalém e não só (1Cor 9, 1: “Não sou eu um homem li­vre? Não sou um Apóstolo? Não vi Je­sus, nosso Senhor?”).

Ao contrário dos sinópticos e do quarto evangelho, Paulo não nos apre­senta nenhuma narrativa de aparição. Mas os sinópticos só coincidem uns com os outros na afirmação da ressurreição aos Onze (Doze), discordando no tempo, no espaço e na modalidade. Marcos, o primeiro a escrever, por volta do ano setenta, termina o seu evangelho em 16, 8, sem qualquer narrativa da res­sur­rei­ção. A narrativa das aparições em 16, 9-20 é posterior ao primeiro Marcos, segundo os dados fornecidos pela crítica textual e pela índole de es­tilo.

Segundo a narrativa, “no primeiro dia da semana” (16, 9), Jesus apareceu em primeiro lugar a Maria de Magdala, de acordo com Jo 20, 11, 18; “depois apa­­receu com um aspecto diferente a dois deles que iam a caminho do cam­po” (16, 12), de acordo com Lc 24, 13-35; “apareceu, finalmente, aos próprios Onze quando estavam à mesa, e cen­surou-lhes a incredulidade e a dureza de coração em não acreditarem na­que­­les que o tinham visto ressuscitado” (16, 14), de acordo com Lc 24, 36-42.

O mandato de Jesus: “Ide pelo mun­­do inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura”, lembra o mesmo man­dato, embora diferenciado na for­ma lite­rária, de Mt 28, 19-20. A se­gunda parte do mandato: “Quem acre­ditar e for baptizado será salvo; mas, quem não acreditar será condenado”, é exclusivo de Marcos. A crítica textual, como já afirmámos, diz-nos que este final de Mar­cos, 16, 9-20, não pertence ao pri­meiro Marcos. Trata-se de uma reflexão posterior da Igreja, já com a catequese da exclusão: “quem não acreditar será condenado.”

Este texto de Marcos é, pois, uma composição da Igreja muito posterior à redacção primeira de Marcos, com o fim de resolver o “escândalo” do final de Marcos em 16, 8. Este exemplo é im­por­tante, pois significa que a ressur­reição foi, é e será um acontecimento im­possível de relatar com a lógica do puramente temporal, espacial e ima­nen­cial. Assim se explicam todas as di­ferenças nos relatos dos quatro evan­ge­lhos. Querer harmonizá-los, como gos­tam de fazer os historicistas e fun­da­mentalistas do texto, é um erro. A variedade de narrativas e a impossibi­lidade de harmonização, a começar pelo primeiro texto de Paulo em Corín­tios 15, como vimos, escrito ape­nas uns vinte anos após a morte de Jesus, prova a verdade do facto da ressurreição como algo de único, a crer e não a provar.

Não é escândalo para ninguém afir­mar que as palavras do Ressuscitado, nos sinópticos e em João, são todas redaccionais e catequéticas. Pertencem ao Jesus da Igreja. Isto significa que a fé na ressurreição é isso mesmo - fé. Não temos provas da ressurreição, mas testemunhos vivos da mesma. A fé faz parte integrante do campo se­mân­tico do Cristianismo e de todas as religiões, mas a novidade cristã centra-se, de maneira única, no objecto da fé na ressurreição. Nenhuma outra reli­gião possui este objecto de fé.

É a ressurreição que faz com que o sintagma Reino de Deus, centro de toda a vida de Jesus, receba a perfor­matividade de Reino presente e histó­rico. O Jesus dos milagres, parábolas e crucificação, pela ressurreição, não é apenas o Messias e o Profeta, mas a última palavra. A ambiguidade dos tex­tos sobre o Reino, sobre o Filho do Ho­mem ou sobre a razão de ser da­que­la morte na cruz, desaparece para rea­parecer a nova humanidade na hu­ma­nidade ressurreccionada de Jesus e em Jesus. Isto não significa que exe­getas e historiadores, com fé cristã ou sem ela, não devam continuar, agora e sem­pre, a estudar as discordâncias sinó­pticas dos textos, suas ambiguida­des, situadas no tempo e no espaço, isto é, o estudo do texto com o seu pré-texto e contexto. E também não signi­fica que a ressurreição de Jesus rein­vente a semântica da vida real de Je­sus. Signi­fica apenas que a ressur­rei­ção é aque­le mais significativo que des­faz todas as dúvidas do relativo da história de Jesus. E ninguém como Pau­lo de Tarso retira todas as consequên­cias para esta fé cristã na ressurreição: (Rm 8, 11: “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cris­to de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós”).

A partir deste texto paulino, o exe­geta protestante Gerd Theissen escreve com muita propriedade: “Já que o Es­pírito transcende a finitude da vida hu­ma­na, vincula-se com ele a promessa da vida eterna. Paulo não conhece ne­nhum núcleo ou aspecto essencial do ser humano que se encontre para além da morte. Não conhece uma alma imor­tal, apenas espera a ressurreição dos mortos. Mas ele não espera numa res­sur­reição que rompa a continuidade entre a vida actual e a vida eterna. Pelo contrário, a vida eterna introduz-se na vida presente, quando o homem se deixa apanhar pelo “Espírito de Deus” que lhe é alheio: o Espírito de Deus que habita no homem supera a morte e confere eternidade à existência indi­vidual e mortal”.

É pela ressurreição que se desfa­zem todos os equívocos entre história e apocalipse. Realmente, a literatura apocalíptica entre o século II a. C e o século II d. C., foi uma corrente avassa­la­dora de pensamento e criatividade literária dentro do judaísmo. Os crentes fundamentalistas judeus partiam do prin­cípio que não havia possibilidade de salvação, para Israel, dentro da his­­tória linear da humanidade de então. O Deus de Israel, que até ao exílio era o Deus de um povo, raça e nação, pas­sou, depois do exílio, a ser o Deus de todos os povos. Depois do exílio, a vive­rem na dependência polí­tica da Pérsia, Grécia e Roma, concluí­ram que só uma acção apocalíptica divina podia resolver a questão. O capítulo sétimo de Daniel exprime muito bem este problema. Pa­ra este tipo de judaísmo apocalíptico, dualista e mani­queísta, só há duas clas­ses de gente: os fiéis e os infiéis. O mun­do era gover­nado por infiéis pa­gãos, também aco­litados por judeus pa­ganizados. Os séculos de dependên­cia política de impérios pagãos, por um lado, e a fé na verdade unívoca de um Deus, Se­nhor e Rei de um povo, que devia go­ver­nar o mundo pelo simples facto de ser o Deus do povo da revela­ção e da verdade, por outro lado, levou-os, em desespero de causa, a concluir que só lhes restava a acção do juízo final. Perderam todas as esperanças nas mediações da religião e da história. E com esta atitude mental, religiosa e teológica, não havia mais razão de ser para a história – a sua história, que de­ter­mina a existência de toda a histó­ria. Esperavam, portanto, pelo juízo apo­calíptico porque não era possível que Deus continuasse a ser, ao mesmo tempo, o Deus de fiéis e infiéis.

A dilação e não realização da ac­ção apocalíptica divina deixou estes judeus entregues ao desespero do “non sense” da história e do mundo. Ain­da hoje se projectam, em bolsas hu­manas, dentro do judaísmo, cristianismo e islamismo. Pois bem, a ressurreição de Jesus desfaz estas ambiguidades. A ressurreição é um “ereigniss” ou acon­­te­cimento único, universal, cós­mico, final. Por ela passam crentes e não crentes, fiéis e pecadores. E se João Baptista pertencia a esta escola de pensamento, com o Jesus da his­tória, da fé e da Igreja, passa-se precisamente o contrário. Jesus aco­lhia os infiéis e os pecadores no ban­quete do seu Reino. Perdoava às peca­doras, mantinha no seu grupo um pu­bli­cano e um zelota, aceitava o trigo e o joio, deu a salvação aos marginaliza­dos, pobres, doentes físicos e possuí­dos do demónio. O seu mundo era o do médico que veio para curar e não para matar, o do pastor que veio para todas as ovelhas, a começar pelas fu­gidas e perdidas, a do Filho que tem um Pai que em vez de condenar com o juízo final, perdoa e manda que per­doem a começar pelos inimigos. E é desta forma que a ressurreição vem dar razão ao Filho, Pastor, Profeta, Mes­sias, que perdoa e ama. Quem per­doa e ama não pensa em juízo final de bons contra maus para que o mun­do e sua história fique exclusivamente nas mãos dos bons e dos fiéis. Jesus veio para unir e não para dispersar, a começar pela história política e fami­liar. Se as famílias judias e romanas daquele tem­po, por causa da honra, da propriedade e demais direitos, mar­gi­nalizavam os pobres, doentes e pe­ca­dores, Jesus inverte o campo se­mân­­tico e enche o seu banquete pre­ci­sa­men­te de pobres, doentes e peca­dores, estabelecendo uma “guerra” cultural dentro das pró­prias famílias ao deixar a sua família de sangue para estabele­cer o Reino da família de Deus. Desta maneira, o Jesus da his­tória estabelece a ponte com o Cristo da fé. Não há duas histó­rias, duas famílias, duas soci­e­dades, um Deus para os bons e outro para os maus. Há um só Pai, um só Filho e um só Es­pí­rito. Nem admira que com o de­saparecimento histórico de Jesus seja o seu Espírito que, como outro Pará­clito, presente no meio da história, comprove que Jesus é o ver­dadeiro e único Kyrios. Paulo acentua de modo lapidar esta verdade: “Por isso, quero que saibais que ninguém, falando sob a acção do Espírito Santo, pode afirmar: ‘Jesus seja anátema’, e nin­guém pode afirmar: ‘Jesus é o Kyrios” (Senhor)’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). O termo “Kyrios”, nes­te con­texto, só pode traduzir o Yah­vé do AT, como faz a tradução grega dos LXX. Trata-se de Jesus com toda a sua natureza e função de Emmanuel ou Deus connosco.

JESUS CRISTO E A IGREJA

Penso que pelos exemplos evan­gélicos aduzidos é fácil concluir que a Igreja, isto é, os crentes em Jesus, bap­ti­zados em seu nome, foram forma­dos no querigma cristão. Neste queri­gma, o Jesus da história da pregação de Je­sus, centrada no sintagma Reino de Deus, na paixão e morte, é acre­ditado, também por força das promes­sas profé­ticas e messiânicas do Antigo Testa­men­to, como o Messias final. Je­sus ape­nas pregou; nada escreveu nem man­dou escrever. O Novo Testa­men­to, a co­me­çar pelas cartas de Pau­lo, con­tinu­ando, depois, nos quatro evan­ge­lhos, são fruto de muitos anos de tra­dição oral apostólica. A redacção final dos evan­gelhos corresponde a este que­ri­g­ma vivo, a este evangelizar contínuo com leituras e releituras cons­tantes ao Antigo Testamento, já que o desígnio fi­nal de Deus tinha que passar pela rea­lização profética e messiânica das Es­cri­turas Hebraicas.

Os evangelhos aparecem por ne­ces­sidade interna das igrejas, à medi­da que os apóstolos e demais testemu­nhas oculares da pessoa histórica de Je­sus iam morrendo. Era preciso con­ser­var essas memórias apostólicas. Nes­­te particular, o Novo Testamento, co­mo também o Antigo Testamento, é uma “memória” da “diégesis” de Jesus e da “diégesis” das tradições apostó­licas. No dia em que deixasse de haver fé cristã sobre a terra, o Novo Testa­mento não teria qualquer razão de ser.

A “memória” cristã dos evangelhos é uma memória viva, celebrativa, litúr­gica, e não uma memória de crónicas pas­sadas. Esta memória refere um pas­sado, um presente e um futuro, uma vez que a ressurreição de Jesus marca o evento escatológico, único e defini­tivo. Deste modo, o querigma cristão não é fruto duma catequese biblicista. A realidade da vida cristã assenta na realidade de uma pessoa, o Jesus da his­tória, da fé e da Igreja, e não num li­vro. O livro é um instrumento de media­ção única para nos lembrar. A lembran­ça é mais do que o livro.

E foi precisamente a Igreja, através de critérios litúrgicos da vida das comu­nidades, que determinou o Cânone des­­sas lembranças através de alguns li­vros que julgou canónicos. A história do Cânone é a história controversa, di­nâ­mica e viva do querigma cristão primi­tivo. Nele podemos distinguir os três que­rigmas principais: o das cartas de Paulo, o dos evangelhos sinópticos e o do quarto evangelho. Estes três rios de­saguam no “mare magnum” do si­gnificado final da pessoa de Jesus. Tudo parte do Jesus histórico, de carne e osso, em volta da realização do Rei­no de Deus, já presente e sempre em rea­lização, cujo clímax reside na fé da res­surreição e no conhecimento da pes­­soa de Jesus através da força do Es­pírito Santo. É importante este último enunciado. Não se pode conhecer o Je­sus total apenas com a investigação histórica, social, cultural, filológica, polí­tica. O Espírito do Ressuscitado conti­nua a actuar. Lucas deixa isto cla­ro em Lc 24, 49: “E Eu vou mandar so­bre vós o que meu Pai prometeu”, bem como João nos textos sobre o Pa­ráclito (Jo 14, 15-17; 14, 25-26; 15, 26-27; 16, 5-15). Se o Espírito é o últi­mo exegeta da pessoa de Jesus, esse mesmo Espí­rito actua nos crentes de maneira ecle­sial e não de maneira pu­ra­mente indivi­dualista, solipsista, em conformi­da­de com alegrias de salva­ção sentimental. Pelo menos é assim que Paulo fala dos carismas do Espírito com a metáfora do “corpo” e sua funci­o­nalidade em 1Cor 12, 12-31 e Rm 12, 3-5, com a metáfora da “construção” em Rm 15, 2: “Procure cada um de nós agra­dar ao próximo no bem, em ordem à construção da co­munidade” e, final­mente, com a metá­fora dos instru­men­tos da música na 1Cor 14, 6-11; ver 12, 12: “Assim tam­bém vós: já que es­tais ávidos dos dons do Espírito, procu­rai adquiri-los em abundância, mas para edificação da assembleia”.

Se a Igreja, nas metáforas da “as­sembleia”, “corpo” ou “construção” é o objecto do querigma cristão, dinami­zado pela força do Jesus da história e do Jesus Ressuscitado e continuado no seu Espírito, a tónica final, na dialé­ctica entre o Jesus da história, da fé e da Igreja, deve ser colocada no Je­sus da Igreja. É para aí que tudo con­ver­ge. Assim se explica que o Novo Tes­tamento utilize uma grande quanti­dade de géneros literários para expri­mir a mesma fé: relatos históricos, car­tas de recomendação, mitos, midra­ches, apo­ca­líptica. A redacção final dos autores bíblicos, quando comparada entre si, apresenta diferenças, contra­di­ções, multiplicidade de cristologias e eclesio­logias. Já vimos isso mesmo na compa­ra­ção dos evangelhos da in­fância e nar­­rativas da ressurreição. Mas os exem­plos podem multiplicar-se às dezenas. O que é que tem a ver a cris­tologia dos sinópticos com a do quarto evangelho? Porque é que o quarto e­van­gelho não usa o sintagma Reino de Deus como centro da pregação de Je­sus? Porque é que nunca apresenta um único mila­gre de exorcismo? Por­que é que não nos lega a narrativa da última ceia euca­rística, à maneira dos sinópti­cos? E, nos sinópticos, por­que é que Ma­teus nos apresenta sete bem-aventu­ran­ças e Lucas apenas três? Porque é que em Mateus o ser­mão da montanha se pas­sa de facto num monte e em Lu­cas nu­ma planície? Porque é que só Lu­cas des­creve a Assunção do Senhor de maneira tão diferente? Em Lc 24, 50-53 acontece no Domingo de ressur­rei­ção e nos Actos 1, 4-8 ao fim de qua­ren­ta dias depois da ressurreição? Es­tas e muitas outras interrogações le­vam-nos a concluir que as “contradi­ções” são tra­balhos “redaccionais” criados pe­los res­pectivos autores com funções ca­tequéticas. No fundo, a Bíblia é um gran­­de mostruário literário de retórica da fé judaica e cristã. A Bíblia não caiu do céu. Não foi Deus que a escreveu, mas a Igreja judaica e cristã. Não nos de­vem escandalizar títulos de obras como a de André Paul, Et l´homme créa la Bible, a de Jean Potin, La Bible ren­due à l’histoire, ou a do exegeta epis­co­­pa­liano americano L. William Coun­try­man Biblical Authority or Biblical Ty­ran­ny?. Infelizmente, a Bíblia pode tor­nar-se numa tirania, à maneira do Al­corão de certos fundamentalistas islâ­micos. Para que tal não aconteça há uma Igre­ja (igrejas) e dentro dessa Igreja (igre­jas) há exegetas católicos, protestantes e ortodoxos, guardiães e estudiosos deste livro admirável cha­mado Bíblia – o Livro dos livros. Perten­ço a este grupo por obra e graça de Deus e da Igreja. Fui muito feliz nesta casa e espero em Deus continuar a sê-lo. Obrigado.

Joaquim Carreira das Neves, OFM



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