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1ª PÁGINA
“Santo, súbito”?!
Ainda em vida, o papa João Paulo II tudo fez para ser aclamado/idolatrado pelas multidões do mundo. Ao contrário de Jesus de Nazaré que, quando as multidões queriam aclamá-lo rei, sempre se furtou a esse tipo de messianismo idolátrico. E quando, por ocasião da sua entrada profética em Jerusalém, não teve mais como evitá-lo, foi para daí a dias ser preso pelas autoridades, julgado, condenado à morte e executado na cruz como maldito, não como santo. Até os dias da sua agonia e os do seu funeral, tão mediatizados, o Papa João Paulo II cuidou antecipadamente que fossem os da sua entronização definitiva como santo. E assim se fez. Pensam que foi espontâneo aquele grito das multidões presentes no funeral, "Santo, subito"? Tudo foi programado ao pormenor. Como também foi programado que o seu sucessor haveria de ser o cardeal Ratzinger, o seu braço direito e o seu cúmplice na perseguição a reconhecidos teólogos da libertação, defensores da eclesiologia de comunhão que o Concílio Vaticano II consagrou e que a Cúria Romana não pode sequer ouvir falar. Saibam que a Cúria do Vaticano não brinca em serviço. Todo aquele fausto, mesmo litúrgico, em que é perita, é imperial, não é jesuânico; tem tudo a ver com o Deus do antigo Império Romano, e nada a ver com o Deus de Jesus de Nazaré, o Crucificado pelo Templo e pelo Império coligados.
Ora, como os favores com favores se pagam, o papa Bento XVI/Ratzinger, só podia assumir, como um dos seus primeiros actos oficiais, a abertura oficial, em 28 de Junho 2005, da causa de beatificação de João Paulo II. E até já se fala num milagre operado numa freira, conseguido pela oração/cunha de outras freiras. Fica tudo em família. Deste modo, os negócios da Cúria Romana podem prosseguir sem percalços, porque um papa feito santo enquanto o Diabo esfrega um olho, dá milhões aos cofres do Vaticano e, sobretudo, dá um prestígio do caraças. Por outro lado,se o papa João Paulo II é assim canonizado sem mais, então também são canonizadas com ele as notórias posiões anti-jesuânicas dele contra a Teologia da Libertação, contra a eclesiologia de comunhão, contra a ordenação de mulheres, contra o celibato opcional dos padres, contra o uso responsável do preservativo, e contra as pessoas homossexuais e lésbicas. E ainda muitas outras acções criminosas, realizadas durante os largos anos do seu pontificado e com a sua bênção papal: "O Vaticano vendeu armas, financiou ditaduras, golpes de Estado, ocorreram falências financeiras e bancárias e por causa delas muitas pessoas «se suicidaram», além de ter ordenado operações encobertas do serviço de espionagem pontifício." (cf.E.Frattini, A santa aliança. Cinco séculos de espionagem do Vaticano, Campo das Letras, 2005)
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DESTAQUE 1
A Bíblia como memorial político
dos empobrecidos e oprimidos do mundo
Tudo começou com uma experiência política libertadora. A experiência do Êxodo. Quando, há mais de três mil anos, uns escravos sublevados acabaram por triunfar sobre o todo-poderoso faraó do Egipto. E sem nenhuns meios bélicos. Sem carros de combate. Sem exércitos. Bastou-lhes a subversão sistemática da Ordem imposta, a sabotagem das águas dos rios e das culturas agrícolas, a destruição das infra-estruturas do país e, finalmente, a violência sob a forma de atentados selectivos contra os filhos primogénitos dos egípcios, sem esquecer o próprio primogénito do faraó que lhe haveria de suceder no trono. Sem este acontecimento libertador e iniciador duma nova Ordem mundial, nem sequer teria nascido a Bíblia. Vem tudo lá. Concretamente, no Livro do Êxodo.
A partir de então, ficou claro para todo o sempre que não há Império, por mais poderoso que seja, que resista a este tipo de acções políticas como as dos escravos hebreus e outros no Egipto. São os subjugados, os empobrecidos e os oprimidos do mundo que fazem avançar a História e que não deixam que ela chegue ao fim, antes que reine a Justiça e a Paz em toda a Terra. Todo o poderio bélico do Império cai como uma gigantesca estátua de ferro com pés de barro. Mas para isto acontecer é preciso que exista a Política. A Política é o específico dos empobrecidos e oprimidos. O específico do Império e dos Estados seus vassalos não é a Política, mas o Poder, que um e outros sempre exercem de forma arbitrária e sem escrúpulos, mesmo em regimes ditos democráticos.
Tudo começou com uma experiência política libertadora. E deveria prosseguir com outras experiências políticas libertadoras e mais outras, geração após geração, ininterruptamente. Mas depressa a Política foi “comida” pela Religião e pela Idolatria. A própria Bíblia que tem por base esta vitoriosa experiência política libertadora dos escravos no Egipto, passou, com o tempo, a ser olhada como o fundamento maior das três Religiões actualmente mais influentes no mundo, chamadas por isso, ainda que indevidamente, “Religiões do Livro”. De Bíblia, memorial de acções políticas libertadoras e fomentadora de acções políticas libertadoras, passou a Bíblia, memorial de religiões e fomentadora de Religiões sem conta, cada qual a mais fundamentalista, bizarra e obscurantista.
Em consequência, os próprios empobrecidos e oprimidos deixaram-se adormecer de novo sob a tirania da sua miséria que os reduz a simples bestas de carga. Como se essa condição de desumanidade fosse coisa natural e inevitável. Na sua continuada aflição de morte, limitam-se a correr para os santuários, com pedidos à imagem da sua deusa, do seu deus, sempre na expectativa de milagres que nunca acontecem, nem acontecerão. Multiplicam aí os mesmos ritos, vezes sem conta e durante a vida inteira, repetem as mesmas fórmulas rituais de oração, auto-flagelam-se até ao sangue em cumprimento de promessas, tudo na esperança de que as deusas, os deuses finalmente tenham compaixão deles e venham valer-lhes. Em vão o fazem. Porque as deusas, os deuses, simplesmente não existem, são nada, não passam de projecções e alucinações humanas. Por isso, assim seguirão as coisas, geração após geração, com o Império e os Estados seus vassalos a esfregarem as mãos de satisfação. Até ao dia em que os empobrecidos e oprimidos do mundo hoje, cerca de cinco pessoas em cada seis! redescubram a Política contra o Poder, abandonem a Religião e toda a idolatria que ela fomenta e alimenta, e passem a organizar sucessivas acções políticas libertadoras como as do Êxodo, onde se incluam acções de sabotagem como as recentes acções protagonizadas por milhares de jovens e até crianças dos subúrbios de Paris e de outros subúrbios da Europa, e outras acções progressivamente mais violentas e devastadoras, capazes até de decapitar sem dó nem piedade os sistemas de opressão e de exploração do Império e dos Estados seus vassalos. Só então perceberemos, no meio de toda a dor que tais acções políticas inevitavelmente provocam/provocarão, que é pela Política, enquanto acção específica dos empobrecidos e oprimidos, que se mudam as sociedades, se derruba o Poder opressor e explorador do Império e dos Estados seus vassalos e se torna mais humano este nosso mundo.
Para tanto, é preciso, imperioso e urgente que regressemos à Política, como acção específica dos empobrecidos e oprimidos do mundo, e à Bíblia, como Memorial fomentador de acções políticas libertadoras, conduzidas pelos empobrecidos e oprimidos do mundo. Mas a Bíblia, enquanto biblioteca dos empobrecidos e oprimidos do mundo, cujas narrativas eles podem não saber ler, mas saberão escutar como ninguém, com a mente e sobretudo com o coração. Aliás, esta pequena-grande biblioteca de 72 livros (tantos eles são na edição católica) foi escrita sobretudo para ser escutada pelos empobrecidos e oprimidos do mundo, nomeadamente, pela sua mente e pelo seu coração, uma vez que eles habitualmente nem sequer sabem ler. E se hoje alguns deles já sabem ler, continuam a não ler a Bíblia, ou lêem-na, não em chave política, como ela sempre deve ser lida, mas em chave religiosa, por isso, como um instrumento mais da sua alienação e da sua opressão.
Não basta, pois, regressar à Bíblia sem mais. Aliás, as novas gerações já estão aí a crescer aflitivamente à margem dela. Poucos são hoje os jovens, ou nenhuns, até aos 25-30 anos, que se possam gabar de já ter lido os principais livros da Bíblia, tanto os do Primeiro Testamento, como os do Segundo Testamento. Do que muitos fazem gala é de nunca terem lido nenhum dos livros da Bíblia do princípio ao fim. O que representa uma lacuna na formação espiritual e cultural da sua personalidade, absolutamente irreparável. Semelhante postura tem uma explicação. A Bíblia aparece aos olhos das novas gerações como uns livros manuseados sobretudo por clérigos e pastores das Igrejas, e utilizados em catequeses eclesiásticas sem sentido, destinadas a preparar vaidosas comunhões solenes sem comunhão e Crismas sem Espírito Santo. Numa palavra, como uns livros tipicamente religiosos. Ora, as novas gerações estão, felizmente, a crescer cada vez mais à margem das Igrejas e das Religiões.
Para que a Bíblia passe a ser-lhes familiar e os seus livros os acompanhem a vida inteira e sirvam de base à formação da sua personalidade humana, é preciso, imperioso e urgente libertá-la quanto antes das Igrejas, tanto da católica romana, como das Igrejas protestantes, as antigas e as mais recentes.
A Bíblia tem que voltar a ser o que sempre deveria ter sido: património cultural e espiritual da Humanidade, a começar pela Humanidade mais oprimida e empobrecida, aliás, a única que o é verdadeiramente, porque os não-empobrecidos e os não-oprimidos são sobretudo Poder, integram a tribo dos poderosos, são sobretudo Império, funcionários do Império ou dos Estados seus vassalos do Império. Só nas mãos dos empobrecidos e oprimidos do mundo é que a Bíblia voltará a ser Memorial de acções políticas libertadoras e fomentadora de outras novas acções políticas libertadoras cada vez mais à escala global. Nas mãos dos pastores das Igrejas, cheios de tiques religiosos, a Bíblia será (quase) sempre há excepções, felizmente poderosíssimo instrumento de alienação das populações, veneno servido sob a forma de alimento, que destrói e mata os empobrecidos e oprimidos do mundo, porque os desvia por completo da Política, das acções políticas libertadoras e de sabotagem que eles, e só eles, estão em condições de promover e de concretizar na História. As quais desencadeiam inevitavelmente a fúria dos poderosos do Império e dos Estados seus vassalos. Assim como da imensa minoria votada ao seu serviço, que desfruta, uns mais, outros menos, de inúmeros privilégios. E também daqueloutra minoria ainda mais imensa que, embora tenha feito parte no passado da maioria dos empobrecidos e oprimidos, hoje já consegue dispor de umas quantas regalias que de modo algum está disposta a perder.
Quando os oprimidos e empobrecidos do mundo pegarem de novo na Bíblia e fizerem dos livros que a compõem a sua principal biblioteca ela é deles por direito! perceberão, melhor do que ninguém, três coisas historicamente decisivas: 1. Que Deus Vivo não tem nada a ver com todo esse tenebroso universo das deusas, dos deuses que as suas imaginações aterrorizadas os têm levado a pensar que existem algures, muito para lá do firmamento e que os podem castigar a qualquer momento. 2. Que Deus Vivo do que verdadeiramente gosta é de Política, não de Religião, é de nos ver ocupados com a humanização da Terra, não com devoções beatas para tentarmos ganhar um Céu infantilmente imaginado por nós. 3. Que o mais perverso das deusas, dos deuses não é elas, eles serem nada, não existirem. O mais perverso é as deusas, os deuses serem ídolos feitos pelas nossas mãos e pelas nossas imaginações que depois funcionam aí como símbolos religiosos, sempre do lado dos poderosos, a fortalecer e a abençoar o Poder do Império e dos Estados seus vassalos, assim como os seus sistemas económicos e políticos, apesar de tudo isso ser intrinsecamente cruel e inumano. O mais perverso das deusas, dos deuses é serem ídolos que, em lugar de defenderem até ao sangue, como fez Jesus de Nazaré, o anti-idólatra por antonomásia, os empobrecidos e os oprimidos das garras do Império e dos Estados seus vassalos, ainda por cima os canonizam, assim como aos seus nefandos crimes contra a Humanidade e contra a Natureza. Ao mesmo tempo que simbolicamente incitam os empobrecidos e oprimidos do mundo a sofrer com resignação e a assumir como valor redentor a sua inumana condição de oprimidos e empobrecidos.
Quando isto acontecer, os oprimidos e empobrecidos do mundo acabarão finalmente por perceber que, ao contrário dos ídolos, o Deus Vivo que esteve activamente presente como Sopro inspirador das acções políticas libertadoras e de sabotagem que os escravos se atreveram a levar por diante no velho Egipto dos faraós contra os seus sistemas económicos e políticos, é o mesmo que inspirou os livros que hoje constituem a Bíblia nos seus dois Testamentos. Assim como é o mesmo que está maieuticamente com eles a ajudá-los a ler/interpretar os sinais dos tempos à luz das narrativas bíblicas e a chamá-los à Política activa contra o Poder do Império e dos Estados seus vassalos. Como tal, é o único Deus que não aliena ninguém, pelo contrário, nos potencia de dentro para fora para sermos mulheres, homens à sua imagem e semelhança, como Moisés outrora no Egipto e como Jesus de Nazaré na Palestina do século I, por isso, mulheres, homens constitutivamente políticos, avessos aos privilégios, protagonistas de acções históricas que ajudem a enfraquecer e a derrubar o Poder do Império e dos Estados seus vassalos e a promover a implantação duma Ordem Mundial outra, bem à medida de toda a Humanidade.
Esta é então a hora de arregaçarmos as mangas e de passarmos à Política, à acção política libertadora da Humanidade contra o Poder do Império e dos Estados seus vassalos. Impulsionados pelo mesmo Sopro ou Espírito do Deus Vivo que inspirou as acções políticas libertadoras e de sabotagem dos escravos no Egipto dos faraós, a prática política radicalmente libertadora e universalmente integradora de Jesus de Nazaré. Avante, pois. Até à vitória final da Humanidade sobre o Império e sobre cada um dos Estados seus vassalos. É a hora!
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DESTAQUE 2
Nasceu a Comunidade Emaús da Rua do Almada
Et les autres? / E os outros?
Pe. Serafim, o 1.º animador, faz sua esta pergunta
do grande profeta Abbé Pierre, co-fundador do Movimento Internacional
Para já, são apenas três: Carlos, Dorindo e Serafim. Mas há espaço para mais quatro. Sete, ao todo. Os três são homens felizes. Dos três, dois vêm da Rua. Serafim é padre/presbítero da Igreja do Porto. Já foi pároco em diversas paróquias. Quando estava em S. Martinho do Campo, teve a inesperada visita de outro padre/presbítero, vindo de França: Henri Le Boursicaud, o padre dos catadores de lixo e das Comunidades Emaús no mundo. O encontro mexeu com a consciência dele. Nunca mais foi o mesmo. E agora que se entregou a tempo inteiro ao Movimento, na Comunidade concreta da Rua do Almada, é um presbítero plenamente realizado. Ao jeito de Jesus, o carpinteiro artesão de Nazaré que nunca foi pároco/chefe de sinagoga. A Igreja do Porto só tem motivos para se alegrar. Mas é preciso que se deixe fecundamente perturbar pela sua vida. É que a sua entrega é um sacramento. Mesmo que não faça discursos nem sermões, está constantemente a perguntar aos seus irmãos do presbitério que continuam a viver atarefados com as "coisitas" das paróquias e dos cartórios: "Et les autres?/E os outros?"
“Et les autres?” E os outros? O meu amigo Pe. Serafim Ascensão continua a sentir-se perseguido por esta pergunta. Quem lha semeou no coração e na consciência foi um outro padre louco de amor solidário e gratuito pelos excluídos de tudo, o famoso Abbé Pierre, co-fundador do Movimento Emaús, um monumento vivo de humanidade em quem toda a França se revê e por isso o elege, ano após ano, como a figura n.º 1 do país. A confidência escapou-se-lhe durante a tarde do dia 27 de Novembro 2005, na abertura oficial da Comunidade Emaús da Rua do Almada, no Porto, no momento mais significativo do acto festivo e solene que selou a sua entrega definitiva às mulheres e aos homens da Rua e a este Movimento internacional que vive de olhos postos nas ruas das grandes cidades, sempre em busca de mulheres, de homens que, num qualquer momento das suas vidas, se viram obrigadas, obrigados a fazer da Rua a sua casa, por não haver para elas, para eles, lugar nas casas que habitamos e nos palácios que construímos, muito menos nas catedrais que erguemos, seja as velhas como a de Braga ou do Porto, seja a moderníssima catedral da SS. Trindade, neste momento em adiantada fase de construção no recinto do santuário de Fátima. Os ídolos de madeira ou de caco, de ouro ou de prata têm santuários e catedrais, onde pontificam bispos e cardeais com suas exóticas e finas roupas, rodeados e servidos por meninos de coro e por uma legião de eunucos clérigos; o grande Kapital e os seus donos têm luxuosos bancos de alta segurança, paredes grossas à prova de roubos; os governantes têm palácios onde exibem as suas vaidades e concebem políticas ao serviço dos interesses do grande Kapital e do Império, do qual são fiéis vassalos; as minorias ricas têm moradias de luxo, duas, três, quatro, cinco ou mais, e ainda luxuosos hotéis em todos os países do mundo, mesmo nos mais miseráveis, construídos a pensar exclusivamente neles; as famílias, remediadas que sejam, têm as suas casas, umas mais humildes, outras a rivalizar com as moradias de luxo das minorias ricas; as raposas têm as suas tocas e os pássaros os seus ninhos. Só as mulheres, os homens da Rua nas grandes cidades do nosso país e dos demais países do mundo não têm onde reclinar a cabeça. Por isso fazem das ruas e dos beirais a sua casa, do debaixo das pontes os seus abrigos, das geladas noites de Inverno a sua roupa e dos restos lançados ao lixo o seu comer. São “les autres”, as outras, os outros, por quem Abbé Pierre, pelos vistos, sempre pergunta a quem dele se aproxima, nomeadamente, a quantas, quantos estão prestes a cair na tentação de o idolatrar ou de ficar a viver à sombra do seu nome, ou à sombra da sua incondicional entrega à causa dos Excluídos, mulheres e homens, em lugar de se lhes entregarem também, tanto ou ainda mais do que ele.
Aquela pergunta é como uma chicotada que logo obriga quem dele se aproxima a olhar para lá dele, até encontrar aquelas, aqueles que foram e ainda são a razão de ser da sua vida de homem-padre-para-os-demais.
Parar nele, será uma catástrofe, como é uma catástrofe parar nas hóstias e no cálice das missas que as paróquias católicas celebram a torto e a direito e a propósito de tudo e de nada. O que é próprio dos Sacramentos, também dos sacramentos humanos vivos, como é o Abbé Pierre, é que eles nos obrigam a buscar a Realidade mais real lá onde menos sonhamos que ela está. Assim como o Pão Partido e o Vinho Derramado/Partilhado nos remetem para os milhares de milhões de mulheres e de homens de carne e osso que estão aí como vítimas das cruéis e assassinas economias que hoje imperam no mundo, também Abbé Pierre nos remete para as mulheres, os homens da Rua. Parar nele é um desastre. Como parar nas hóstias consagradas e no Cálice abençoado.
Mas é o que com mais frequência acontece na História, também hoje, e por isso o nosso mundo anda tão doente, tão cheio de religião e tão desprovido de sororidade/fraternidade e de comunhão efectiva e afectiva. Ainda abunda em caridadezinha, é verdade, mas morre à míngua de mulheres, de homens que o sejam para-os-demais. Como Jesus. Como Abbé Pierre. E como também agora o Pe. Serafim Ascensão.
Soube antecipadamente de tão solene e tão raro acto de entrega incondicional aos Excluídos de carne e osso, e não pude deixar de estar discretamente presente. Quis associar-me ao acto por inteiro. Escutar a Palavra feita entrega efectiva. Partilhar daquela mesa comum e universal, lado a lado com mulheres e homens de cores e de culturas e de línguas diferentes. Alimentar-me daquele Sopro fecundamente libertador. Sobretudo, quis ser confirmado ainda mais, no decorrer de acto tão profundamente humano, como homem-padre-para-os-demais, na pobreza dos meus meios e na fraqueza das minhas forças. Não importa o que sou, importa o que o Sopro de Deus Vivo é em mim. Porque já não sou eu quem vive, é o Sopro de Deus Vivo que vive em mim.
Felizmente, não fiquei defraudado. O Momento foi Eucaristia. O Acto foi sacramento. A Acção foi Apocalipse/Revelação do Invisível. Vimos Jesus. Ouvimos Jesus. Tocámos Jesus. Comemos o seu Projecto (= comemos a sua carne e bebemos o seu sangue). Tornamo-nos Jesus. Por isso, mulheres, homens de olhos postos nas Ruas. Irmãs, irmãos universais. Acolhedoras, acolhedores incondicionais das outras, dos outros. Corações que se deixam aquecer e arder pelos relatos e pelas estórias reais de quem vive à intempérie nas Ruas das grandes cidades, longe dos seus, quase sempre sem ninguém.
É por aqui que está sempre a PASSAR (Páscoa) o Deus Vivo, a Palavra feita Carne humana, Mulher, Homem, e, se mulher desfigurada, se homem desfigurado, ainda mais é o Deus Vivo que está a passar. A tentação é deixarmo-nos cair na caridedezinha e despachá-los até à próxima ocasião. A solução é acolhê-las, acolhê-los, passar a caminhar com elas, com eles, deixarmo-nos incendiar/queimar pelos seus relatos e corrermos a fazer a Revolução ainda por fazer, que mude de vez as economias e as políticas nacionais e mundiais geradoras de pobreza em massa e de inumanidade.
Poderemos não chegar nunca a ver os resultados, mas outras mulheres, outros homens como nós prosseguirão este combate, esta luta de transformação do mundo, um combate, uma luta que neutralize e supere cada vez mais os praticantes da caridadezinha, hoje tão de novo em voga, como convém ao grande Kapital fabricador de pobreza e de pobres em massa.
Estive de corpo inteiro naquele acto. E quase sempre em silêncio. A entrega do meu amigo Pe. Serafim era a grande Palavra. Havia que acolhê-la e deixar que ela me queimasse por dentro, como aconteceu àquele casal do primeiro Emaús, de que nos fala o Evangelho de Lucas. E assim aconteceu. Vim de lá ainda mais padre-homem dos Pobres e com eles. Ainda mais padre-homem-para-os-demais-e-com-os-demais. Ainda mais longe dos templos e dos altares.
Quando, à despedida, me abeirei do Pe. Serafim, coloquei-lhe presbiteralmente a minha mão sobre a sua cabeça, já sem cabelo. Desta vez, longe da catedral onde um dia a Igreja nos ordenou. Confirmámo-nos deste modo reciprocamente na Missão de Evangelizar os pobres. Longe dos Templos. Próximo dos Empobrecidos, dos Excluídos. Ele ainda mais do que eu. Olhámo-nos nos olhos. Sorrimos. E parti.
Este é por isso o primeiro dia do resto da vida do Pe. Serafim. E também da minha.
Nenhum bispo, dos vários que há no Porto, esteve presente. E moram todos ali a dois passos da Rua do Almada. O palácio episcopal onde residem tem grossas paredes e os clamores das vítimas humanas não os atravessam. São piores que os muros da cidade de Jericó que outrora as trombetas dos soldados comandados por Josué fizeram cair. O dia em que desse velho e monumental palácio episcopal não fique pedra sobre pedra há-de chegar, mas ainda não chegou.
Dos condiscípulos do Pe. Serafim, ainda no activo pastoral por algumas dessas paróquias da diocese fora, apenas um, um apenas, apareceu. E foi interiormente abalado embora. Eles sabem que o Pe. Serafim é definitivamente da Rua, das mulheres, dos homens da Rua. Não dos templos. Suja-se com o lixo humano. Dignifica-se como padre da Igreja de Jesus, mas ficará cada vez mais indigno de subir os altares da idolatria.
Viverá permanentemente no altar da Humanidade empobrecida e oprimida, a partir da Comunidade Emaús da Rua do Almada que ele, desde agora integra e a que preside no Serviço libertador e promotor de autonomias humanas, e sempre de olhos postos nas outras mulheres, nos outros homens da Rua que não fazem parte dela. Exactamente, como Jesus, o paradigma do Ser Humano, que deixa as 99 no deserto e sai escandalosamente à procura da que vive perdida. Não para a meter nos templos, mas para que também ela se encontre consigo mesma no encontro com as outras, os outros e todas, todos cheguem a ser autónomos, prontos a acolher/servir os demais que continuam aí sem ter onde reclinar a cabeça.
Bendito seja Deus Vivo, nossa Mãe/nosso Pai universal!
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As palavras de São Gonçalves
O Benigno, o senhor Lucas,
o Brinquinho e o Henrique
No início da Festa de Abertura da Comunidade Emaús, da Rua do Almada, São Gonçalves, presidente da Direcção do Movimento no Porto, proferiu oportunas palavras. Aqui as registamos na íntegra.
É com grande alegria que Emaús-Caminho e Vida, da Rua do Almada, quer anunciar a abertura da Comunidade. Começámos em 1990, calcorreámos as ruas da cidade, encontrámos e fizemos amizade com muitos companheiros. E aqui um parêntesis para lembrar alguns que já faleceram, mas que foram sempre a nossa consciência de vanguarda:
O Benigno, o 1.º companheiro que encontrámos na Rua, num dia gélido, cheio de frio, do qual guardamos religiosamente estas moedas, todas as que tinha no bolso, num dia em que nos decidimos comprar esta casa.
O Sr. Lucas, homem vivido, conhecia vários países do mundo e dormia com o seu cão debaixo da Ponte D. Luís. Muitas noites passámos com ele conversando animadamente.
O Brinquinho que, jovem ainda, filho de uma família de bens, decidiu viver na Rua, desprendido de tudo, amando o sol, a lua e, sobretudo, como dizia muitas vezes, o Tempo que Deus dá de graça.
O Henrique, também ele jovem, homossexual assumido, que muitas vezes limpava briosamente a nossa sede provisória, na Rua Mártires da Liberdade, que me disse antes de morrer, e depois de uma longa confissão na cama do Hospital, que “nunca deixasse morrer Emaús”.
Poderia lembrar outros que conhecemos pelo nome, pela alegria que partilhavam connosco e, sobretudo, pela consciência que nos legaram desta exigência permanente de entrega da nossa vida toda ao Projecto Emaús.
Chegámos aqui, o nosso património é rico sobretudo em amizade desta gente cujas vozes fazem ecos permanentes, quando desfalecemos.
Depois temos esta casa, restaurada com o esforço de muitos companheiros, voluntários, amigos e também por alguns técnicos; temos dois veículos; um armazém alugado e a nossa Loja de Solidariedade, que fica aqui ao lado.
A Comunidade está situada no centro da cidade do Porto, é uma Comunidade aberta, com tudo o que isso tem de positivo e de negativo, e terá duas dimensões:
- Espaço de acolhimento para 7 companheiros residentes;
- Espaço para companheiros que já passaram pela Rua, refizeram a sua vida e que dão o seu esforço / o seu trabalho em Emaús, e daí recebem parte do seu sustento.
Amigas, Amigos: Aqui chegamos e encontramo-nos de novo diante deste dilema: o que parece ser obra feita acaba por ser o início de novos projectos, novas dimensões, novas exigências, sempre debaixo deste horizonte da Solidariedade e da Parttilha.
Queremos continuar o desafio das primeiras Comunidades Emaús. Somos catadores de lixo, vamos à casa das pessoas, recolhemos coisas velhas, recuperamos, vendemos. Queremos como até hoje comer o pão com o suor do nosso rosto e, por isso, não nos habilitamos a subsídios do Estado. Queremos dar voz ao grito do Abbé Pierre: “Servir em primeiro lugar o que mais sofre” e, por essa razão, sempre estaremos disponíveis para partilhar. A nossa riqueza é a nossa pobreza!
Queremos viver fraternalmente, sendo amigos, cultivando relações de inter-ajuda e respeito pelos desconhecidos, de outras raças, de outras cores, de outras tendências sexuais, de outras religiões, de portadores de deficiências, e outros.
Queremos continuar a ser o Movimento dos pequenos nadas!...
Para finalizar, queria agradecer em nome de toda a Direcção a presença de todas, todos vocês, cada um particularmente e todos em especial, porque a vossa amizade, a vossa partilha, o vosso tempo, a vossa alegria, o vosso estímulo, a vossa solidariedade e todos os pequenos gestos que ao longo destes anos nos dispensaram, alimentaram este sonho que hoje se torna realidade. Bem-hajam. E contamos convosco para acalentar os novos desafios.
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EDITORIAL
Contra os Messias
Os Messias estão de volta. São vampiros políticos que medram à custa do subdesenvolvimento cultural e do sofrimento de toda a ordem das populações empobrecidas e marginalizadas, depressa transformados pelas grandes crises nacionais em salvadores da pátria. Sempre que as grandes crises nacionais atingem o pico, ou quase, logo os Messias deixam as suas rotinas de um quotidiano cinzento e as frustrações e as mediocridades de um lar e de um casamento sem pinta de erotismo e de festa, para se apresentarem perante as populações com o ar mais cândido do mundo, impolutos, imaculados e sem a mais leve sombra de pecado político-partidário, uma espécie de super-homens concebidos fora do Sistema, quando a verdade é que é o Sistema que sucessivamente os tem parido a todos.
As roupas com que se vestem são invulgarmente austeras, bacteriologicamente limpas, como as suas mãos, sem nada que faça lembrar o mundo do trabalho duro e mal pago. As palavras que proferem em público são meticulosamente estudadas. Saem-lhes sempre naquele tom de falsa intimidade, servidas por uns rostos que parecem sorrir, mas que mais não fazem do que emitir sucessivos esgares. Os seus olhos não vêem ninguém. Muito menos os olhos das populações empobrecidas, condenadas a um viver sem presente nem futuro. Os seus ouvidos também não ouvem ninguém. Só o eco das suas próprias palavras e os aplausos de populações subservientes e reverentes.
Os tempos que vivemos são de grande crise, mas nos comícios e jantares dos Messias só se fala de confiança no futuro. Nenhum clamor, nenhum grito de dor nem de maldição, nenhum ai, nenhuma aflição, nenhum relato dramático. Só confiança e aplausos, mais confiança e mais aplausos. Os Messias aparecem e as crises desaparecem, afogadas em massificados almoços e jantares de campanha, regados com vinho e coca-cola, realizados na presença quase mítica, ora de um, ora de outro e outro e mais outro. Enquanto os Messias não chegam ao local, onde populações arregimentadas por caciques os aguardam para comerem na sua presença e aplaudirem os seus discursos cheios de banalidades e de lugares comuns (nunca evidentemente para se lhes dirigirem com as suas próprias questões e interpelações), estas sentem-se manifestamente desamparadas e órfãs. Mas quando eles entram no recinto, previamente preparado ao pormenor sempre muito depois da hora anunciada é um céu aberto. Agitam-se bandeiras, estalam aplausos em todas as mãos para televisões mostrarem nos telejornais e os olhares de todos os presentes caem cheios de devoção sobre os Messias recém-chegados. Os problemas reais e concretos que afligem as populações deixam de ser problemas, pelo menos, enquanto os Messias estiverem ali junto delas como robots programados para sorrir, sorrir sempre, e para erguer com frequência os braços em poses estudadas e acenar com hipócrita satisfação, tudo faz-de-conta, só para melhor poderem passar a mentira em que são peritos: Confiem e votem em mim, que nada será mais como dantes. Esta visão/ilusão dura apenas o tempo duma missa e é tão anestesiante quanto ela. Daí em diante, as populações poderão continuar a ocupar-se exclusivamente com futebóis e novelas, porque dos destinos delas e do país cuidam os Messias!...
Nestas eleições presidenciais de 22 Janeiro 2006, os Messias salvadores da pátria são múltiplos. Mas os grandes meios de comunicação social de massas impuseram-nos apenas cinco. Todos machos. Fizeram-no no âmbito de um acordo prévio, a que histrionicamente chamaram “histórico”. Tudo a bem da democracia, já se vê, e para que as populações tenham a tarefa de escolher um deles mais facilitada. Os cinco emanam todos das estruturas dos partidos políticos que hoje ocupam o Poder, e que, obviamente, têm contribuído, no Governo ou na Oposição, para levar o país à crise em que ele hoje se encontra, neste extremo ocidental duma Europa comunitária que também anda aos papéis e à volta do próprio umbigo, sem se aperceber que os povos empobrecidos do resto do mundo avançam cada vez mais sobre ela, determinados a ocupá-la e obrigá-la a compartilhar com eles o Pão de cada dia e a Dignidade que, há séculos, ela lhes tem andado habilmente a roubar.
Dos cinco escolhidos e impostos pelas televisões, apenas um virá a ser o Messias efectivo. Os restantes quatro não passarão de meros candidatos. Aliás, entraram no tal “acordo histórico” para serem os bobos da corte, perdão, do Regime. Tiveram oportunidade de dar largas à sua vaidadezinha pessoal e exibir a sua erudição de trazer por casa. Cada qual à sua maneira, todos contribuíram para a vitória incontestada do seu rival. O pior é que a derrota deles, assim como a vitória do seu rival são a derrota do país que, mais uma vez, desperdiçou a oportunidade de se chegar à frente para assumir os seus destinos nas próprias mãos, sem mais recurso a Messias salvadores da pátria. Traídos pela sua vaidadezinha pessoal e política, os quatro não foram capazes de ver a tempo que o seu rival há anos que trabalhava na sombra para ser o único candidato da Direita política, entenda-se, dos grandes interesses económicos e financeiros, os quais, para poderem medrar ainda mais, precisam de condições políticas objectivas que lhes permitam continuar a produzir pobreza e pobres em massa. Eles e os respectivos partidos de onde emergem não tiveram humildade bastante para, quais Diógenes deste início do século XXI, procurarem nas trevas em que hoje estamos de novo mergulhados, uma equipa de mulheres e homens sábios, dotados de entranhas de humanidade e de solidariedade, peritos em economia e finanças, tanto como em política, concebida como serviço maiêutico junto das populações, para que estas, num futuro próximo, possam assumir o país nas próprias mãos. Desta equipa, emergiria consensualmente a candidatura duma mulher sábia, perita em humanidade, determinada a enfrentar e desmascarar o Messias do Poder que sistematicamente mata, rouba e destrói as populações e os povos, numa carnificina sem paralelo na História do Universo. Seria uma candidata verdadeiramente alternativa ao candidato apoiado pelos grandes interesses económicos e financeiros que, assim, está agora à beira duma retumbante vitória, essa sim histórica, porque conseguida até com o voto favorável da maioria do povo português, humilhantemente enganado pelas suas falinhas mansas de lobo disfarçado de cordeiro.
A hora é, pois, de grande tensão e dramatismo. Os Messias do Poder sempre foram os principais causadores da desgraça dos povos que ingenuamente lhes têm confiado a resolução dos problemas e os seus destinos. Ou eles não sejam o rosto principal do Poder que nos oprime, explora, infantiliza e mata. E aos quais são concedidos todos os privilégios.
Não foi por acaso que Jesus, o de Nazaré, sempre recusou ser olhado e tratado como o Messias. Sempre se demarcou dos Doze, com destaque para Pedro e Judas Iscariotes, por eles reiteradamente tentarem “vender” essa sua imagem junto das populações oprimidas e desesperadas. E, quando, finalmente, foi proclamado o Messias anunciado pelos Profetas, foi-o na mais escandalosa condição de anti-Messias que alguma vez houve ou haverá na História da Humanidade: um-com-os-oprimidos/empobrecidos-e-entre-eles, presença consciencializadora/libertadora/promotora do protagonismo de todos eles, sem nunca fugir ao confronto progressivamente duélico com os detentores dos grandes interesses económico-financeiros do seu país, até acabar crucificado por eles como um maldito, na mais completa prova de solidariedade com as suas vítimas. E é assim, como Messias crucificado pelo Messias crucificador do Poder, que ainda hoje Jesus continua aí a atrair a si mulheres e homens que, como ele, recusam fazer o jogo do Poder e dos seus Messias, ao mesmo tempo que apostam tudo na militância política maiêutica, a única que promove os oprimidos e os povos oprimidos a sujeitos, sem lugar para Messias salvadores.
É por aqui que vão as cristãs, os cristãos ao jeito de Jesus. Verdadeiros anti-Messias do Poder entre os oprimidos e os povos oprimidos, para que desistamos de vez dos Messias salvadores da pátria e nos assumamos, lúcida e corajosamente como sujeitos na História. É um caminho de “porta estreita”, que continuamos a ter dificuldade em fazer nosso? Mas não há outro para derrubarmos os sucessivos Messias dos grandes interesses económicos e financeiros que nos oprimem e matam! Fiquem com o meu afecto
Mário, presbítero da Igreja do Porto
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ESPAÇO ABERTO
Manuel Miranda (Coimbra)
Carta dos Direitos da Cidadã / do Cidadão
Com deficiência mental
Sou pai de um jovem com deficiência mental, o Tiago. O Tiago é um jovem dependente nos cuidados de alimentação, de saúde, de higiene, mesmo nas situações mais simples e elementares. Vinte e sete anos de dedicação e de entrega deram-me experiência para conhecer as pessoas com deficiência mental, as suas capacidades de desenvolvimento, as suas necessidades para terem uma vida com mais dignidade e com mais qualidade. A pensar no Tiago e também noutras pessoas com deficiência mental, procurei dar-lhes uma Carta de Direitos. Esta Carta de Direitos foi desenvolvida a partir de outros documentos, como: Declarações da ONU, a Carta dos Direitos do Homem, a Carta dos Direitos da Criança, Declaração de Salamanca e outros. Procurei que às pessoas com deficiência mental não fossem só reconhecidos os direitos fundamentais e abstractos, como o direito à vida e, mais recentemente, o direito à não discriminação, mas que lhes sejam reconhecidos direitos concretos, como o direito a uma vida com dignidade e com saúde, como direito à educação, ao desporto, a uma pensão digna. Nesta Carta de Direitos assumo os deveres de pai para com um filho com deficiência mental, mas também exijo que a sociedade e o Estado assumam deveres, porque um filho com deficiência pode andar ao colo de outros pais. O percurso dos direitos do deficiente é uma caminhada longa e com muitas dificuldades. As manhãs de sol para as pessoas com deficiências ainda não brilham. Junto, mando uma CARTA de DIREITOS DO CIDADÃO COM DEFICIÊNCIA MENTAL, trabalho feito por mim, a pensar no Tiago e nas crianças como o Tiago. Eis.
DEFICIÊNCIA MENTAL (definição):
Redução permanente da capacidade intelectual que impossibilita de assumir responsabilidades pelos seus actos, que limita na via social, que faz carecer de tutor e, nos casos mais graves, impossibilita de prover à subsistência, à higiene pessoal, faz necessitar de acompanhamento e de vigilância. A pessoa com deficiência mental deve ser educada e viver na comunidade, mas com programas e apoios especiais.
CAPÍTULO I
Constituição da República Portuguesa, Artigo 71º:
1. Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.
2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores
3. O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência.
CAPITULO II
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS
PRINCÍPIO I
O cidadão com deficiência mental deve usufruir de todos os direitos enunciados na presente Declaração, direitos esses reconhecidos a todos os cidadãos com deficiência mental sem excepção e sem distinção ou discriminação por motivos de raça, sexo, língua, origem nacional ou social, posição económica, de nascimento ou qualquer outra situação, quer do próprio cidadão com deficiência quer da sua família.
PRINCÍPIO II
O cidadão com deficiência mental terá acesso aos serviços existentes na sua comunidade, nomeadamente o tratamento, a educação e os cuidados especiais que o seu estado e educação exigem. Beneficiará de protecção especial, dispondo de possibilidades e de facilidades, por força da lei ou de outros meios, para poder desenvolver a sua autonomia e capacidades.
PRINCÍPIO III
O portador de deficiência mental tem direito a um nome, a uma família. Tem direito ao convívio familiar e social. Deve sentar-se à mesa em família e não ser retirado nem escondido. Deve ser educado com compreensão e tolerância. Não pode ser rejeitado, marginalizado, desprezado ou retirado do convívio da família ou da sociedade pelo facto de provocar situações menos comuns aos padrões sociais vigentes.
Tem direito a circular e a viajar, pelo que as cidades e os transportes devem ter adaptações às suas reais condições.
PRINCÍPIO IV
O cidadão com deficiência mental deve crescer e desenvolver-se de maneira saudável. Tem direito à alimentação, habitação, distracções e cuidados médicos adequados. Deve beneficiar de um apoio muito especial dos serviços da segurança social.
PRINCÍPIO V
O cidadão com deficiência mental, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade e da sua máxima autonomia, necessita de amor e de compreensão. Deverá crescer sob o amparo e a responsabilidade dos pais e em família, num ambiente de afecto e de estabilidade moral e material. Salvo em circunstâncias excepcionais, não deve ser separado da família.
A sociedade e os poderes públicos têm a obrigação de cuidar muito especialmente das pessoas com deficiência mental sem família e daqueles que careçam de meios de subsistência. É desejável que, às famílias numerosas, às carenciadas e de maior risco, o Estado ou outros organismos concedam meios de subsistência aos membros portadores de deficiência mental.
PRINCÍPIO VI
O cidadão com deficiência mental terá todas as possibilidades de brincar, de jogar e de se dar a actividades recreativas, as quais hão-de ser orientadas para o desenvolvimento e para a educação. A sociedade e os poderes públicos hão-de esforçar-se por favorecer o exercício e o gozo deste direito, assim como o de promover o desporto para deficientes.
PRINCIPIO VII
O cidadão com deficiência mental tem direito à educação. Direito a frequentar escolas adequadas à sua situação, com professores e técnicos preparados para as suas necessidades de aprendizagem e de desenvolvimento. Direito a uma educação e escolaridade gratuitas e permanentes enquanto se justifique, ou mostre capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento.
Deve beneficiar de uma educação que contribua para a sua mais alargada autonomia e inserção social e que permita desenvolver as suas aptidões, potenciar o sentido das responsabilidades morais e sociais e tornar-se membro útil à sociedade.
Desenvolver as capacidades das pessoas com deficiência mental é um dever dos que têm as responsabilidades da educação e da orientação escolar. Estas responsabilidades cabem, em primeiro lugar, à família, mas a família receberá os apoios específicos do Estado e o Estado obrigar-se-á a subsidiar e a apoiar as iniciativas da sociedade civil, como instituições e associações vocacionadas para apoiar o cidadão com deficiência mental e a sua família, sem prejuízo das suas próprias iniciativas.
PRINCIPIO VIII
O cidadão com deficiência mental não pode ser detido nem condenado. A sua autenticidade garantem inocência e ausência de acto delituoso. É um cidadão inimputável.
PRINCÍPIO IX
O cidadão com deficiência mental tem direito a personalidade jurídica. Deve-lhe ser garantido o direito à justiça e a uma tutela efectiva. Tem direito à herança em igualdade com outros herdeiros.
PRINCIPIO X
O cidadão com deficiência mental usufruirá das vantagens associativas, pelo que as associações e instituições, que tenham como objecto de o apoiar e servir sem fins lucrativos, devem ser reconhecidas e apoiadas e subsidiadas pelo Estado.
Tem direito a ter amigos/amigas, reconhecendo-se os organismos que se instituam como amigos do mesmo.
PRINCÍPIO XI
O cidadão com deficiência mental deve, em todas as circunstâncias, ser dos primeiros a receber protecção e socorro nas situações de cataclismo ou de acidente.
PRINCÍPIO XII
O cidadão com deficiência mental deve ser protegido contra toda a forma de negligência, de crueldade e de exploração. Em nenhum caso submetido a tráfico, seja de que tipo for. Em nenhum caso se permitirá que trabalhe com o fim único de produzir, dado não estar capacitado para reivindicar os seus direitos, mas que o trabalho assuma fins ocupacionais, como processo de terapia, de diversão e de utilidade para si e para a sociedade.
Não deve, em nenhum caso, ser obrigado ou autorizado a ter uma ocupação ou um emprego que prejudiquem a saúde ou a autonomia, ou que impeçam o seu desenvolvimento físico, mental ou moral.
PRINCÍPIO XIII
O cidadão com deficiência mental não pode ser usado nem explorado sexualmente. Nas situações de abuso sexual, aplicar-se-ão as normas consignadas à menoridade.
PRINCÍPIO XIV
O cidadão com deficiência mental tem direito à sua intimidade, a fruir de uma vida sexual e a satisfazer as suas pulsões de modo individual ou com parceiro que voluntariamente aceite.
PRINCÍPIO XV
O cidadão com deficiência mental tem direito a um nível de vida digno. Como está incapacitado de procurar ou de garantir a sua subsistência, ao Estado compete assegurar a sua saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, alojamento, assistência médica e outros serviços sociais necessários.
Para dar cumprimento a este direito, o Estado tem o dever de atribuir uma pensão adequada, para que a pessoa com deficiência mental não seja um encargo pesado ou insuportável à família.
PRINCÍPIO XVI
Ao Estado compete também apoiar, subsidiar e sustentar lares, residências ou aldeamentos que sejam úteis às pessoas com deficiência mental e às famílias, como centros de repouso, de férias, e outros meios necessários em situações de incapacidade familiar.
PRINCÍPIO XVII
O cidadão com deficiência mental poderá ser sujeito de deveres e de obrigações, mas nos limites da sua capacidade de compreensão.
PRINCÍPIO XVIII
O cidadão com deficiência mental tem o direito a que o Estado se obrigue a dar cumprimento ao determinado nesta Declaração de Princípios.
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M. Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)
A elite e as massas
Sou do tempo em que se pensava que as elites do espectáculo desportivo nasciam das grandes massas de praticantes. Não havia por aí entendido, nestas coisas do desporto, que não sustentasse que os nossos maus resultados, internacionalmente falando, não decorresse do reduzido número de praticantes, designadamente nos escalões etários mais jovens.
Hoje, sabe-se que o desporto na escola, ou o lazer desportivo, não são o fundamento primeiro do desporto de alta competição. Aquele há-de encontrar-se na escolha cuidada de super-dotados e até na necessidade social de um certo nacionalismo e de uma certa comunhão com o sagrado.
O capitalismo neoliberal que nos comanda já criou um cemitério para o sagrado e começou a enterrar a teoria, já que proclama, com arrogância, o “fim da história”. Convenhamos que também a União Soviética, onde se verificou a estatização e não a socialização dos meios de produção, fez o mesmo. E também nela o pretenso comunismo tentou sepultar a história e a teoria.
Em Portugal, com a Revolução dos Cravos, pensou-se que “a história caminha para o socialismo” e continuava-se o pensamento dominante, mormente na segunda metade do século XX: são as revoluções que transformam a história; estas deverão realizar-se por via insurreccional e não por via institucional; a luta anti-imperialista conduz inevitavelmente ao socialismo. Assim pensavam também os “barbudos” que invadiram Havana, comandados por Fidel Castro, e que influenciaram mais a América Latina do que o marxismo-leninismo influenciou a Europa.
Enfim, quer o regime soviético, quer o regime capitalista têm-se distinguido pelo “pensamento único”, que leva à morte da inovação teórica e prática. No entanto, para os homens de boa vontade, com o desaparecimento do “socialismo científico”, uma luta se impõe a luta contra a sociedade de mercado, onde tudo tem preço, onde tudo se vende e se compra; a luta por uma nova hegemonia mundial, mais ética do que económica.
Ora, o desporto de alta competição é um dos aspectos da estratégia imperial do neoliberalismo. Também, nele, é evidente uma ideologia e um modelo de sociedade. A propósito, poderíamos escutar o sociólogo brasileiro, Emir Sader, no seu livro A vingança da História (Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 57): “A exportação desse modelo de sociedade encontrou, no mais poderoso aparelho de propaganda jamais existente na História (a combinação entre meios de comunicação e indústria do divertimento) o instrumento da sua universalização. Eles compõem um impressionante aparato económico, informativo e de divertimento, que chega a quase o mundo inteiro, generalizando estilos musicais, cinematográficos, de moda, informativos, próximo de uma formidável homogeneização que acompanha e dá alma à globalização neoliberal. Os critérios de verdade, beleza, morais, gerados por esses mecanismos, se estendem como nunca no Ocidente. McDonald’s, Hollyood, jeans, Coca-Cola, CNN, Microsoft são símbolos da “universalidade” do american way of life e do seu sucesso mundial. As teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história correspondem à ideia política de que a história teria chegado a seu horizonte último a democracia liberal e a economia capitalista de mercado. Seguiriam ocorrendo acontecimentos, porém nenhum superando esse marco histórico, seu patamar final”.
O desporto de alta competição também integra o “aparelho de propaganda” da sociedade de mercado que tem nos Estados Unidos o seu modelo. Trata-se, portanto de um desporto de elites, dominado pelo mercado e pela publicidade, onde o desporto escolar e o lazer desportivo pouco mais representam do que pobres aleijões, mascarados de factores higiénicos e educativos. Só há desporto de massas, na sociedade de mercado, se dele resultar alienação e lucro. Aliás, o mesmo poderíamos dizer do desporto de alta competição, citando o caso dos clubes de futebol, com excepção dos “três grandes” e do Braga, do Marítimo e do Nacional, estes três últimos por razões de afirmação regional.
A crise do desporto escolar e do lazer desportivo é do mesmo teor da crise que atravessam as regalias sociais dos trabalhadores. Chegámos ao apogeu do capitalismo e, perante o espanto de muita gente, verifica-se uma desprotecção crescente dos mais necessitados, o predomínio do niilismo e da ganância e a ostentação de uma vida luxuosa e viciosa. Que o mesmo é dizer: o desporto continuará um factor de pura alienação, de que os governantes falam, por mero populismo ou por exigências da conjuntura.
Um desporto que se apresente como democracia participativa, ou como cultura de solidariedade acontecerá, um dia, com um neo-socialismo, onde de facto seja verdade uma democracia participativa e não a estatolatria que nos submerge, ao serviço do grande capital.
Que é hoje o desporto? É, acima do mais, um espectáculo de alienação popular, publicitado, durante 24 horas, por todos os meios da Comunicação Social. Visando a saúde e a educação, ou até as necessidades básicas de movimento?
Na sociedade de mercado, não se reproduzem os valores da vida, mas a reprodução do capital. O desporto, com todas as suas imensas virtualidades éticas e políticas, pode ser um factor de cultura comunitária, de democracia radical e global. Pode... mas ainda não é! Para que o seja, é preciso que o mundo associativo se afaste do capitalismo existente e faça de cada praticante desportivo um sujeito participante da gestão da sociedade.
A maior das falácias que muitos políticos arrogantemente apregoam é a de que se torna impraticável transformar, ou erradicar este capitalismo que nos consome.
Através do desporto, poderemos caminhar para um mundo novo. Através do desporto, é possível renascer a esperança!
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Pe. Mário (M. Lixa)
Maria do Rosário Castanheira
Minha querida Amiga
Nessa tua pressa de te reduzires ao essencial e, assim, te tornares invisível aos nossos olhos, nem conseguiste encontrar tempo para me contactares, uma última vez, via telemóvel, antes que acontecesse a tua explosão final na cidade de Castelo Branco onde, depois da reforma, havias fixado residência. Não vejas nestas minhas palavras uma censura. Eu é que gostava muito de ter ouvido ainda uma vez mais essa tua voz, sempre oportuna e acutilante, determinada e quente de afecto, antes de teres passado para lá da História e de te exprimires numa língua que os nossos sentidos não são capazes de captar, apenas o coração.
Eu sei que nunca mais deixamos de viver em efectiva comunhão, desde aqueles remotos anos em que nos encontrámos pela primeira vez na casa que já então partilhavas com o teu companheiro António e os vossos dois filhotes, na altura, ainda de poucos anos, na Amadora, não muito longe da Estação de comboio e ainda mais próxima de um degradado Bairro de Ciganos que, já nessa ocasião, era uma das tuas maiores preocupações solidárias, onde fazias questão de ter sempre pousados os olhos e, sobretudo, o coração.
Os tempos eram de chumbo, o país era casa de opressão e os passos que déssemos ao encontro uns dos outros eram sistematicamente vigiados pelos famigerados funcionários do Regime ditatorial que não suportava a existência de seres humanos constituídos na liberdade e na comunhão, de cujo número tu e o António o queridíssimo Casal Castanheira já fazíeis parte, felizmente.
As cadeias políticas por que tive de passar duas vezes em Caxias tiveram o condão de nos aproximar e de selar uma amizade que nunca mais deixou de se desenvolver e de acrescentar a ela mais e mais pessoas, numa progressão que a tua explosão final, a que erradamente continuamos a chamar morte, longe de extinguir, acaba de potenciar ao infinito.
A minha radicalidade de vida, desde cedo assumida na liberdade e na responsabilidade, chegou quase, em certos momentos, a tirar-te o fôlego e a deixar-te perplexa. Não entendias como é que eu podia continuar presbítero da Igreja católica e ao mesmo tempo tão radical e contundentemente crítico da Igreja católica.
Uma altura houve em que a velha moral eclesiástica católica, com todos aqueles perversos e hipócritas moralismos que a caracterizam e que eu nunca me cansarei de denunciar, e nos quais todas, todos nós fomos (de)formados ainda antes de sermos concebidos no seio materno, tentou uma e outra vez voltar a possuir-te como um demónio e, através de ti, condenar o meu radical viver de homem liberto para a liberdade, numa entrega incondicional à missão de Evangelizar os pobres. Cheguei a temer que a ruptura acontecesse irremediavelmente entre nós, mas tudo não passou duma crise que, como todas as crises, nos fez crescer ainda mais e nos constituiu definitivamente como amigos e companheiros do Projecto libertador de Jesus, sem que a distância física que todos estes anos nos separou constituísse qualquer embaraço. E hoje, depois da tua explosão final, a comunhão é agora tão definitivamente inquebrantável quanto ininterrupta.
Bem sei que foi pura coincidência, mas a verdade é que tu, minha querida amiga Maria do Rosário, acabaste de te tornar invisível aos nossos olhos, no momento em que o romance sobre as intermitências da morte, do nosso Nobel da literatura começava a dar que falar no país, pelo menos, em certos ambientes académicos. Ao aparecer nessas páginas de literatura a parodiar a Morte, nomeadamente, a hipótese completamente inverosímil de um dia a Morte desistir de fazer das suas entre os seres humanos (quando não somos capazes de ver explosão de vida no próprio acto de morrer, só nos resta disfarçar toda a amargura que daí resulta sob um patético recurso à paródia ou ao cinismo), o nosso grande romancista José Saramago parece ter desistido de ser homem. A paródia e o cinismo, perante realidade humana tão carregada de densidade, como é o Mistério da Morte de criaturas que, no processo evolutivo da Criação, chegaram ao patamar da consciência e à liberdade criadora, não são uma postura à altura de seres humanos; têm tudo de desistência e de capitulação perante o que, à primeira vista, parece inevitável; representam o cúmulo da cegueira por parte de quem se recusa a ver para lá da linha do horizonte e do muro da sua casa, ou da curva da estrada; consubstanciam uma postura própria de quem se resigna a ficar a meio do caminho e, depois, para se justificar, argumenta como a raposa que, ao não conseguir chegar às cobiçadas uvas, de altas que estão, faz constar urbi et orbi que as uvas estão verdes.
Infelizmente, ao nosso Nobel da Literatura tem faltado aquela humildade que é timbre da criatura humana, e que o ajudaria a fazer o contraponto à sua reconhecida e consagrada grandeza literária. Só isso explica que ele não consiga ver o Invisível que tu, minha querida Maria do Rosário, sempre viste, ao longo to teu humilde viver de mulher casada e doméstica, mas não domesticada, apesar de nunca chegares a escrever um livro, nem nunca teres frequentado a universidade, tão pouco teres sido reconhecida fora do teu restrito círculo de familiares, amigos e militantes de Causas que interessam à Humanidade. Na sua arrogância intelectual, o nosso Nobel da literatura nem se dá conta que desiste de ser homem, no momento em que mais pensa que o é. Chega a tomar por fim de tudo, irremediável fim, o que afinal é apenas Novo Começo. No auge da sua auto-suficiência que tem muito ou tudo de egolatria, tão pouco se dá conta que acaba por encurralar todos os seres humanos na ideologia/caverna de um túmulo sem saída, numa altura em que toda ou quase toda a sua contemporaneidade, a começar pela própria Ciência, nos está a gritar que, no princípio de cada ser humano, quando o espermatozóide do homem encontra e penetra o óvulo da mulher, é a Explosão ou Ressurreição, tradicionalmente chamada concepção/nascimento o big-bang, no dizer da Ciência, em relação ao início do nosso Universo e no fim de cada ser humano na História é de novo a Ressurreição ou Explosão, tradicionalmente chamada Morte.
Sabemos hoje é um saber recente, de ainda poucos anos que, como seres humanos, todos somos em inevitável relação e comunhão com o universo, portanto, o resultado até hoje mais conseguido da explosão inicial da estrela que lhe deu origem, e que depois de milhares de milhões de anos de evolução, se fez Consciência humana em nós, realidade invisível aos olhos que, misteriosamente, define e identifica cada ser humano, também o nosso Nobel José Saramago.
Ora, toda esta Criação na Evolução não pode ter acontecido para agora redundar em puro Nada. Só pode ter acontecido para culminar numa Explosão ou Ressurreição de cada ser humano, que inaugurará novas dimensões de vida que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem Nobel algum, de Literatura ou de Ciência, conseguirá sequer balbuciar.
A verdade é que tu, minha querida amiga Maria do Rosário, que acabas de protagonizar, na peugada de milhares de milhões de outros seres humanos antes de ti, esta Explosão final individual, sempre foste capaz felizmente de intuir e ver, na comunhão pessoal com Jesus de Nazaré é isso a Fé cristã jesuânica que sempre te animou e que tu alimentaste longe dos templos e dos altares, entre companheiras e companheiros de viagem, em sucessivos encontros sororais/fraternais nas casas uns dos outros que não nascemos para morrer, morremos para ressuscitar, ou, por palavras menos teológicas e mais científicas, explodimos para explodir, até sermos finalmente abraçados no oceano infinito de Amor que é o Deus vivo, o único que faz novas todas as coisas e em quem o próprio José Saramago, volens/nolens, vive e respira. E o único que é criador de filhas e de filhos à sua imagem e semelhança, pura Graça, pura Liberdade, pura Salvação.
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L. Boff (1), Teólogo brasileiro
Noite de Deus
C. G. Jung, um dos mestres fundadores do discurso psicanalítico juntamente com S. Freud, refere-se nas suas obras aos grandes sonhos que podem visitar as pessoas. Aí emergem arquétipos ancestrais, carregados de mensagens que podem mudar o estado de consciência e até o destino das pessoas.
A mim ocorreu-me um destes grandes sonhos no dia 23 de Outubro 2005, por volta das quatro da madrugada, em plena crise de artrose que me deixou preso em casa. A noite, de repente, virou dia. Era a noite sem armas, da paz perpétua. Vale a pena contar esse sonho.
Sonhei que estava na China, reminiscência de uma viagem que fizera com um grupo de teólogos brasileiros e canadenses nos anos 80. Em sonho vi que de uma encosta desciam multidões de chineses. Na China tudo é multidão. O nosso pequeno grupo foi tomado de medo. “Agora eles vêm para nos matar”. Mas na medida em que se aproximavam, escutavam-se vozes cada vez mais fortes: “agora é paz, agora é paz perpétua”. Eu pensei: “é um truque deles para nos matarem a todos”. Ao contrário, quando se aproximaram, cercaram-nos, dançando, abraçando-nos efusivamente e enchendo-nos de presentes. Alguns estendiam-se tranquilos sobre a relva e convidavam-nos a fazer o mesmo para estarmos todos juntos e à vontade.
Começamos a ganhar confiança e também proclamávamos:”agora é paz, é paz perpétua”.
Entretanto, um sentimento de estranheza me invadiu. Não conseguia acostumar-me à ideia da paz perpétua nem como me devia comportar. A realidade era grande demais, um misto de alegria e de temor. De repente pensei: “agora virão as bombas atómicas chinesas e nos liquidarão”. Mas o temor logo se desfez, quando alguém ligou a televisão e lá não se viam mais violências nem futilidades, apenas a mesma mensagem em todos os canais:”agora é paz”. De repente um chinês ergueu-se e disse: “preciso pagar minhas contas”. Mas logo se lembrou: “agora com a paz perpétua ninguém precisa pagar mais nada a ninguém porque todos terão tudo o que precisam”.
Subitamente, vi uma roda de pessoas segurando alguém que parecia desmaiado. Logo percebi que se tratava do Presidente dos EUA. Da encosta desciam, graves e solenes, os chefes chineses. Entraram numa sala junto com o Presidente norte-americano, agora refeito.
Pouco depois, abriram-se as portas e os chefes das duas nações proclamavam:”chegou o tempo da paz perpétua, da paz eterna”. Nisto escutei o Presidente norte-americano retrucar: “Teremos paz, mas isso só vale por duas semanas”.
No sonho fiquei profundamente irritado e pensei: ”O capitalismo desaparece com a paz. Ele precisa da guerra para existir”. Mas a certeza da paz era tão forte, que todos se harmonizavam e não terminavam de sorrir e de se abraçar.
Era a primeira noite da era de Deus. Noite sereníssima e iluminada, realização do sonho mais ancestral da humanidade.
Nisto acordei cheio da graça divina. Apenas as dores dos joelhos me recordavam a diferença entre o sonho e a realidade. Mas no sentimento, o sonho era incomensuravelmente mais real que a realidade. Foi então que me lembrei dos versos místicos de São João da Cruz:”Oh, noite mais amável que a alvorada. Oh, noite que juntaste o Amado com a amada, amada já no Amado transformada”.
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L. Boff (2)
Carta da Terra
Nos dias 6-9 de Novembro ocorreu em Amsterdam (Holanda) um balanço dos 5 anos de aprovação da Carta da Terra. Esse documento nasceu como resposta às ameaças que pesam sobre o planeta como um todo e como forma de se pensar articuladamente os muitos problemas ecológico-sociais, tendo como referência central a Terra.
Em 1992, por ocasião da Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, fora proposto tal documento que, por razões que não cabe aqui referir, não foi aceite. Em seu lugar, adoptou-se a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Desta forma a Agenda 21, o documento mais importante da Eco-92, ficou privado de uma fundamentação e de uma visão integradora.
Insatisfeitos, os organizadores, especialmente Maurice Strong, da ONU e Mikhail Gorbachev, director da Cruz Verde Internacional, suscitaram a ideia de se criar um movimento mundial para formular uma Carta da Terra que nascesse de baixo para cima. Deveria recolher o que a humanidade deseja e quer para sua Casa Comum, a Terra.
Depois de reuniões prévias e muitas discussões, criou-se em 1997, a Comissão da Carta da Terra composta por 23 personalidades dos vários continentes(eu entrei pelo Brasil), para acompanhar uma consulta mundial e redigir o texto da Carta da Terra. Efectivamente, durante 2 anos, ocorreram reuniões que envolveram 46 países e mais de cem mil pessoas, desde favelas, comunidades indígenas, universidades e centros de pesquisa, até que em inícios de Março de 2000, no espaço da Unesco em Paris, o texto final da Carta da Terra foi aprovado.
É um dos textos mais completos que se tem escrito ultimamente, digno de inaugurar o novo milénio. Recolhe o que de melhor o discurso ecológico produziu, os resultados mais seguros das ciências da vida e do universo, com forte densidade ética e espiritual. Tudo é estruturado em quatro princípios fundamentais, detalhados em 16 proposições de apoio. Estes são os quatro princípios: (1) respeitar e cuidar da comunidade de vida; (2) integridade ecológica; (3) justiça social e económica; (4) democracia, não-violência e paz.
O sonho colectivo proposto não é o “desenvolvimento sustentável”, fruto da visão intrasistémica da economia política dominante. Mas “um modo de vida sustentável”, fruto do cuidado para com todo o ser especialmente para com todas as formas de vida e da responsabilidade colectiva face ao destino comum da Terra e da Humanidade.
Este sonho bem-aventurado supõe entender “a humanidade como parte de um vasto universo em evolução” e a “Terra como nosso lar e viva”; implica também “viver o espírito de parentesco com toda a vida”, “com reverência o mistério da existência, com gratidão, o dom da vida e com humildade, o nosso lugar na natureza”; propõe uma ética do cuidado que utiliza racionalmente os bens escassos para não prejudicar o capital natural nem as gerações futuras; elas também têm direito a um Planeta sustentável e com boa qualidade de vida.
As quatro grandes tendências da ecologia a ambiental, a social, a mental e a integral estão ai bem articuladas com grande força e beleza. Se for aprovada pela ONU, a Carta da Terra será agregada à Carta dos Direitos Humanos. Assim teremos uma visão holística da Terra e da Humanidade, formando um todo orgânico, sujeito de dignidade e de direitos.
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Frei Betto (1), Teólogo brasileiro
A Ceia de Natal do Pe. Afonso
A Missa do Galo deu-se por celebrada na primeira hora de 25 de Dezembro. Padre Afonso deixara-se contaminar pela aflição dos fiéis, ansiosos por retornarem às suas casas e desfrutarem a ceia antes de as crianças murcharem de sono. Abreviou a homilia, saltou orações, desejou a todos Feliz Natal e deu-lhes a bênção final.
Uma dezena de paroquianos ombreou-se na sacristia para lhe manifestar votos de boas festas. Os presentes que lhe trouxeram sobrepunham-se a um canto: camisas, meias, livros, essas coisas adequadas a um homem de Deus.
Dependurados os paramentos, padre Afonso viu-se sozinho. Miseravelmente só, em plena noite de Natal. O celibato é um dom e ele sabia tê-lo merecido. Ao longo de vinte anos de sacerdócio acometeram-lhe muitas tentações. Não era o fascínio das mulheres que o levava a duvidar de sua consagração. Admirava-as, sentia-se gratificado por as achar belas e atraentes. Sinal de que havia nele um macho, o que no íntimo o envaidecia.
Perturbava-o a consciência do pai que nunca fora. Muitas vezes sentia saudades dos filhos que não tinha. Atormentava-o ver-se sozinho à mesa de refeições. Comer é comunhão, partilha, entremear ao cardápio o diálogo ameno e alegre. O alimento caía-lhe insosso e, com frequência, surpreendia-se sonhando de olhos abertos, a mesa cercada por sua família imaginária.
Naquela noite, a solidão bateu-lhe forte. Uma solidão com uma ponta de amargura advinda de uma expectativa frustrada. Sentia-a na boca da alma. Nenhum dos paroquianos lhe acenara a gentileza de um convite à ceia.
Padre Afonso revirou os embrulhos de cores brilhantes e encontrou o que lhe bastava: um cacete de pão e uma garrafa de vinho. Enfiou-os na pasta usada para levar sacramentos aos enfermos e dirigiu-se à zona boémia.
Shirley trazia os olhos inchados, o peito sufocado, o coração miúdo. Desde o fim da tarde chorara copiosamente ao recordar os natais de sua infância no norte de Minas. Lembrou-se da família que a repudiara, do marido que a abandonara, do filho que dela se envergonhava. Sentiu ódio da vida, da desfortuna a que fora condenada. Confusa, teve medo e vontade de sentir ódio também de Deus. Se pudesse, não trabalharia naquela noite. Todavia, não lhe restava alternativa. O acúmulo de dívidas obrigava-a a ir à rua e aguardar o dinheiro ambulante que chegava escondido atrás da fantasiosa excitação de sua fortuita freguesia.
Mirou o homem de pasta na mão, camisa sem gola, sapatos escuros. Talvez viesse do trabalho. Enquadrou-o na tipologia adquirida em tantos anos de rua: tinha o jeito ingénuo dos que buscam apenas aliviar-se e, na hora da cobrança, preferem ser generosos no pagamento, a enfrentar uma prostituta irada, disposta ao escândalo.
Trocaram olhares e ela esforçou-se para estampar um sorriso sedutor. Ele parou e indagou; ela apontou o hotel de alta rotatividade na esquina.
Caminharam lado a lado em silêncio, ela sobrepondo seu profissionalismo aos sentimentos esgarçados, ele apreensivo frente ao receio de ser apanhado em flagrante por algum conhecido. Subiram as escadas opacamente iluminadas, em cujos degraus as baratas se desviavam ariscas.
Ao abrir o primeiro botão da roupa, ela ameaçou dizer qualquer coisa, mas ele adiantou-se. Explicou que não estava ali em busca de sexo, e sim de companhia. Haveria, contudo, de pagar-lhe o devido. Contou-lhe do seu sacerdócio e da sua solidão, e indagou se ela se dispunha a orar com ele e compartir a ceia.
Shirley sentou-se na cama, enfiou o rosto entre as mãos e desabou em prantos. Agora era um choro de alívio, de gratidão por algo que ela não sabia definir, quase de alegria. Logo, falou dos seus natais na roça, o presépio em tamanho natural que o pai armava no quintal do casebre, o peru engordado durante meses para a ocasião, o "bendito" puxado por uma vizinha na falta de igreja e padre naquelas lonjuras.
Padre Afonso propôs fazerem uma oração. Ela ajoelhou-se e ele tomou-a pela mão e fez com que se sentasse de novo. Ele ocupou a única cadeira do quarto. Abriu o Evangelho de Lucas e leu, pausadamente, o relato do nascimento de Jesus. Em seguida, perguntou se ela gostaria de receber a eucaristia. Shirley pareceu levar um choque. Como é que ela, uma puta, poderia receber a hóstia, sem sequer ter se confessado? O sacerdote leu o texto de Mateus (21,28): “As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”. E acrescentou que era ele, e essa sociedade cínica, injusta, desigual, que deveriam confessar-se a ela e pedir perdão por a terem obrigado a uma vida tão degradante.
Após a comunhão, padre Afonso tirou dois copos da pasta, encheu-os de vinho e partiu o cacete de pão. Clareava o dia quando os dois ainda conversavam animados sobre suas vidas.
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Frei Betto (2)
Deus não tem religião
Uma das características da modernidade é o pluralismo religioso. Exige, da parte de todos nós, crentes e não-crentes, a virtude da tolerância. Deus não tem religião. A religião é expressão espiritual, cultural, litúrgica, de uma comunidade em sua relação com o transcendente. Com o fim do período medieval, encerrou-se também a possibilidade de uma determinada crença religiosa impor-se às demais através do poder político ou militar.
Ainda assim perduram em quase todas as religiões grupos fundamentalistas que alimentam preconceitos e discriminações em razão de diferenças teológicas, litúrgicas ou históricas. Negam o carácter laico do Estado e dos partidos políticos, e confundem evangelização com imposição, brandindo mais o anátema que o amor.
Jesus foi o mestre da tolerância religiosa. Jamais condicionou uma cura ou milagre à prévia adesão à sua fé. Engana-se quem pensa que, no tempo de Jesus, havia uma única religião num Deus único. Como hoje, predominava o mais eclético sincretismo. Antíoco Epífanes havia introduzido, em 167 a.C., a imagem de Dionísio no templo de Jerusalém (2 Macabeus 6,7). Estavam vivas as religiões cananeias, asiáticas e greco-romanas, que contavam inclusive com adeptos hebreus. O imperador romano era deificado. O seu culto público havia sido regulamentado por Augusto.
Segundo o Evangelho de João (4, 46-54), Jesus encontrava-se em Caná, na Galileia, quando foi abordado por “um funcionário real, cujo filho se achava doente em Cafarnaum”. E, ao contrário do centurião, que não se considerou digno de receber o Mestre em casa, em Caná o enfermo foi curado sem que Jesus fosse vê-lo. “Vai, teu filho vive”.
O centurião não quis que Jesus viesse à casa dele, porque bem sabia que os judeus eram proibidos de entrar na casa de pagãos. E Jesus ressaltou a fé daquele pagão, a ponto de exclamar: “Em Israel não achei ninguém que tivesse tal fé”. Do mesmo modo, curou a mulher cananeia (Mateus 15, 21-28) e repôs no lugar a orelha de Malco, servo do Sumo Sacerdote (João 18, 10). Fez o gesto de amor sem pedir ao centurião, à mulher cananeia e a Malco que abandonassem suas convicções religiosas.
Tolerância é a capacidade de aceitar o diferente. Não confundir com o divergente. Intolerância é não suportar a pluralidade de opiniões e posições, crenças e idéias, como se a verdade fizesse morada em mim e todos devessem buscar a luz sob o meu tecto.
Conta a parábola que um pregador reuniu milhares de chineses para lhes pregar a verdade. Ao final do sermão, em vez de aplausos houve um grande silêncio. Até que uma voz se levantou ao fundo: “O que o senhor disse não é a verdade”. O pregador indignou-se: “Como não é verdade? Eu anunciei o que foi revelado pelos céus!” O objectante retrucou: “Existem três verdades. A do senhor, a minha e a verdade verdadeira. Nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira”.
Só os intolerantes se julgam donos da verdade. Todo intolerante é um inseguro. Por isso, aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona. Não é capaz de ver o outro como outro. Aos seus olhos, o outro é um concorrente, um inimigo. Ou um potencial discípulo que deve acatar docilmente suas opiniões.
O tolerante evita colonizar a consciência alheia. Admite que, da verdade, ele apreende apenas alguns fragmentos, e que só pode ser alcançada por esforço comunitário. Reconhece no outro a alteridade radical, singular, que jamais deve ser negada.
O perfil do tolerante é descrito por Paulo no Hino ao Amor da 1ª carta aos Coríntios (13, 4-7): “É paciente e prestativo, não é invejoso nem ostenta, não se incha de orgulho e nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita nem guarda rancor. Não se alegra com a injustiça e rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”
Tolerância não é sinónimo de tolice. O tolerante não desata tempestade num copo d’água, e jamais cede quando se trata de defender a justiça, a dignidade e a honra, bem como o direito de cada um ter seus princípios e agir conforme sua consciência, desde que isso não resulte em opressão ou exclusão, humilhação ou morte.
Das intolerâncias, a mais repugnante é a religiosa, pois divide o que Deus uniu, incentiva disputas e guerras, dissemina ódio em vez do amor. Só o amor torna um coração verdadeiramente tolerante. Porque quem ama não contabiliza acções e reacções do ser amado e faz da sua vida um gesto de doação.
A vida, dom maior de Deus
Vivemos num mundo desigual, marcado por guerras e sofrimentos. Segundo a ONU, dos seus 6,3 mil milhões de habitantes, 4 mil milhões vivem abaixo da linha da pobreza. Há 824 milhões de pessoas sobrevivendo na insegurança alimentar, que provoca 24 mil mortes por dia.
Dos 30 países ricos, membros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico), para 1 dólar destinado à cooperação internacional, eles desembolsam 10 dólares para actividades militares. O dado é do Relatório do Desenvolvimento Humano, ONU/2005.
Em 2000 foram gastos em armamentos 524 mil milhões de dólares. Em 2003, pós-11 de Setembro, 642 mil milhões. Aumento de 25%. E foi destinado à cooperação com as nações mais pobres apenas 69 mil milhões de dólares. Ou seja, 10% do que se aplicou em armas.
A vida é o dom maior de Deus. No Evangelho, duas perguntas são feitas a Jesus. A primeira, que nunca aparece na boca de um pobre, é “Senhor, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?” É o que interessa ao doutor da Lei na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-27) e ao homem rico (Marcos 10, 17-22). Os dois já tinham assegurada a vida terrena.
A segunda pergunta sempre aparece na boca dos pobres: ‘Senhor, o que fazer para ter vida nesta vida? A minha mão está seca e quero trabalhar; o meu olho é cego e quero enxergar; o meu filho está doente e quero-o com saúde; o meu irmão está morto e rogo que mo devolva à vida’.
A quem pede vida na outra vida, Jesus responde com ironia e desafios. Aos que foram injustamente privados de condições de vida nesta vida, ele responde com misericórdia e bênçãos.
Hoje, a morte ronda o mundo. Além do terrorismo e das guerras, da fome e das epidemias, da violência e das catástrofes naturais, ainda não somos capazes de ver no rosto de cada árabe, de cada judeu, de cada africano ou asiático, de cada criança de rua da América Latina, de cada indígena ou negro, a imagem e semelhança de Deus.
Jesus veio até nós para “Que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Eis a missão que nos desafia neste mundo plural e desigual: cultivar a tolerância e o diálogo inter-religioso; não fazer da diferença divergência; amar como Jesus amou, sem pedir atestado de convicção religiosa; erradicar as causas da fome e da pobreza; fazer com que o pão seja verdadeiramente nosso, e não só meu ou seu, para que o Pai possa sinceramente ser proclamado Pai-Nosso; e lutar pela paz, que jamais virá como resultado da imposição das armas, e sim como assinalou, há 2.800 anos, o profeta Isaías, mas como fruto da justiça (32, 17).
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IGREJA/SOCIEDADE
Jesus Cristo: História, Fé e Igreja
A última aula do Pe. Joaquim Carreira das Neves,
Exegeta na Universidade Católica
Na 1.ª quinzena de Outubro, o nosso querido amigo Pe. Carreira das Neves, franciscano, deu a sua última aula na Universidade Católica, em Lisboa. Aproveitou a ocasião para regressar ao seu tema de eleição: "Jesus Cristo: História, Fé e Igreja". A lição veio publicada na íntegra na Agência de Notícias, Ecclesia. Jornal Fraternizar não resiste em partilhá-la aqui com as suas leitoras, os seus leitores. É um texto denso e extenso, mas acessível, e que importa ser conhecido, estudado, debatido. Como podem ver pelo comentário crítico do Director do Fraternizar, imediatamente a seguir ao texto, a lição tem lacunas e podia ter sido muito mais "rasgada", menos "prudente" e menos"cautelosa". Mesmo assim, é uma contribuição muito positiva a ter em conta. Mergulhem no texto. E depois no comentário do Pe. Mário. Não se arrependerão.
Neste “Adeus” à nossa querida Faculdade de Teologia gostaria de dissertar, uma vez mais, sobre o tema teológico da minha predilecção ao longo de toda a minha carreira académica: JESUS CRISTO. Todos reconhecemos que a pessoa de Jesus marcou e continua a marcar a humanidade. A gosto ou a contra-gosto, a pessoa de Jesus une e divide, atrai e afasta. Em tempos de ecumenismo entre as várias igrejas cristãs, e de diálogo inter-religioso entre todos os crentes e não crentes, é importante que apresentemos a pessoa de Jesus na sua real dimensão, de modo que as pessoas possam tomar decisões e fazer opções históricas e existenciais, racionais e supra-racionais sobre Jesus Cristo.
JESUS CRISTO E A HISTÓRIA
A nível cultural há dezenas de abordagens sobre a pessoa de Jesus. Já lá vão os tempos em que se defendia a tese de Jesus como puro mito. Nos séculos XVIII, XIX e XX prevaleceu a abordagem do Jesus da história, e, por isso, tanto entre católicos como protestantes, começa a sentir-se um certo mal-estar sobre esta abordagem. João Paulo II, Bento XVI e, entre nós, D. José Policarpo, têm manifestado esse parecer. No entanto, o estudo sobre o Jesus da história é importante e necessário. Há perspectivas de investigadores, exegetas e historiadores, que reduzem Jesus à fasquia mais baixa: Jesus foi um grande homem e nada mais do que um homem. Mesmo assim, tudo o que seja realmente sério, em estudo académico, sobre a real vida histórica de Jesus, é sempre uma mais valia.
O autor da primeira e segunda cartas de S. João já afirmava pelos anos oitenta da nossa era: “Ouvistes dizer que há-de vir um Anticristo; pois bem, já apareceram muitos anticristos” (1Jo 1, 18). O autor expõe um pouco mais adiante que estes anticristos são falsos profetas cristãos do seu tempo, e o critério apresentado para julgar tais falsos profetas é o da história: “todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne mortal é de Deus; e todo o espírito que não faz esta confissão de fé acerca de Jesus não é de Deus” (1Jo 4, 2-3). Na segunda carta volta ao problema: “É que apareceram no mundo muitos sedutores que afirmam que Jesus Cristo não veio em carne mortal. Esse é o sedutor e o anticristo!” (2Jo 7).
Quem negava a existência de Jesus como homem de carne e sangue eram os docetas e os gnósticos. Deste modo, todos os estudos sérios sobre a real vida de Jesus em “carne e sangue” são bem vindos. É humanamente compreensível que, quem não tem fé cristã, tente reduzir Jesus à estatura de simples homem. Mas há que saber distinguir entre a investigação séria sobre o Jesus da história, com todas as suas consequências, e a investigação preconceituada. Nesta última alínea podemos colocar toda a literatura recente aliás, avassaladora em volta do Código Da Vinci. A fome cultural pelo esotérico e excêntrico explica o “boom” literário de Dan Brown. Mesmo assim, estes fenómenos literários e culturais devem levar-nos a um estudo calmo e sereno sobre a sua razão de ser.
Em meu entender, o grande desafio às igrejas cristãs, nos próximos tempos, reside na New Age [Nova Idade, uma espécie de Cristianismo light, sem História]. É voltar, uma vez mais, ao tempo dos docetas, gnósticos, anticristos e falsos profetas das cartas de João. Muda a nomenclatura, mas a substância do problema é sempre a mesma.
As ciências históricas e sociais têm sido aplicadas, nestes últimos tempos, à descoberta do Jesus da história. Citemos, a título de exemplo, os estudos de John P. Meier, nos seus três grandes volumes; A Marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus, de J. H. Elliott; What is Social-Scientific Criticism?, de G. Theissen; Sociologia del movimiento de Jesús, Estúdios de Sociologia del cristianismo primitivo, S. Vidal; Los tres Proyectos de Jesús y el Cristianismo Naciente, Carlos J. Gil Arbiol; Los valores Negados. Ensayo de exégesis socio-científica sobre la autoestigmatización en el movimiento de Jesús; R. Aguirre, Del movimiento de Jesús a la Iglesia cristiana. Ensayo de exégesis sociológica del cristianismo primitivo; Elisa Estévez López, El Poder de una Mujer Creyente. Cuerpo, identidad y discipulado en Mc 5, 24b-34. Un estudio desde las ciencias sociales.
Não devemos ter medo destas abordagens. As narrativas bíblicas tanto se servem dos métodos sincrónicos como diacrónicos na “construção” da pessoa de Jesus. Ao falarmos de “construção”, ao jeito de Tolentino de Mendonça, não falamos de “invenção”. Falamos de tudo quanto possa ajudar a compreender a pessoa de Jesus no tempo e espaço.
Todos sabemos que as únicas fontes literárias que possuímos para compreender a pessoa de Jesus são os quatro evangelhos canónicos. Os chamados evangelhos gnósticos, tão em moda, são importantes para compreendermos as duas linhas paralelas, mas antagónicas, do real Jesus dos primeiros quatro séculos: a linha da grande Igreja em formação, que, depois, resultou na igreja Católica, Ortodoxa e Protestante, e a das comunidades gnósticas, perseguidas pela própria Igreja depois da liberdade de Constantino e reaparecidas modernamente com as descobertas de Nag Hammadi.
É, pois, com os evangelhos, que devemos trabalhar. Mas os evangelhos não são originalmente uma literatura com fins de historicidade factual. São o que o termo “evangelho” quer significar: Boa Nova. Trata-se de uma Boa Nova de catequese cristã sobre o aparecimento histórico de Jesus. Uma vez que há judeus e pagãos que acreditam que o real Jesus da história, homem de carne e sangue como qualquer outro homem, pelo que disse e pelo que fez, é o Filho Único de Deus, Messias, Salvador e Redentor e, mais ainda, Emmanuel (Deus connosco), os evangelhos, como resposta a essa crença, surgem como uma literatura de retórica catequética para que os leitores confirmem a fé já recebida ou despertem para essa fé, radicada no Jesus da história, da fé e da Igreja.
Desta forma, Jesus tanto pode ser estudado à luz da fé como à luz da história. Durante dezoito séculos prevaleceu entre católicos, ortodoxos e protestantes o Jesus da fé. Não admira, pois, que com a era do racionalismo e iluminismo, surgisse o desejo de estudar o Jesus da história.
Sobre o lugar do nascimento de Jesus, data e circunstância, nada sabemos de história factual. Os dois primeiros capítulos de Mateus e Lucas, que descrevem o nascimento de Jesus em Belém com todas as suas circunstâncias, não têm por fim apresentar um relato de história factual, mas de história teológica, ou, mais concretamente, de história cristológica. Quando os quatro evangelhos (Marcos, Lucas, Mateus e João) foram escritos, Jesus já era acreditado por milhares de judeus e não-judeus como o Messias de Deus, Filho Único de Deus e Emmanuel (o Deus-connosco), Salvador e Redentor. As esperanças messiânicas das Escrituras Hebraicas, na fé dos cristãos, haviam-se realizado e, com esta realização, começaram os tempos escatológicos. E o tempo escatológico deriva não tanto do messianismo, filiação divina, mediação salvadora e redentora de Jesus, mas da sua ressurreição. Não há fé cristã sem a centralidade da ressurreição. Semelhante acontecimento, só reconhecido pela fé testemunhal de homens e mulheres, faz de Jesus uma personagem única na história das religiões, de modo que qualquer historiador e exegeta se confronta com textos sobre Jesus em perspectiva da história e da fé. Assim, as narrativas dos dois primeiros capítulos de Mateus e Lucas sobre o seu nascimento e infância apresentam, em forma narrativa, este Jesus total. A sua grandeza “divina” manifesta-se já a partir da própria concepção “virginal”, sem paralelo com qualquer outra figura histórica.
A exegese moderna leva-nos a concluir que o Jesus da história só começa quando este decide abandonar, pelos seus vinte e sete anos, a sua família de Nazaré, viajar de Nazaré para o rio Jordão e juntar-se ao movimento de João Baptista. De facto, o primeiro evangelho a ser escrito, o de Marcos, por volta do ano setenta [Nota Fraternizar: Em O outro Evangelho segundo Jesus Cristo, Pe. Mário aponta o ano 42-44], é assim que apresenta Jesus a entrar na cena da história. Marcos não nos fornece nenhum “evangelho da infância”. Esta geografia histórica também é defendida por traços biográficos nos Actos dos Apóstolos em 1, 21-22: “Portanto, de entre os homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu no meio de nós, a partir do baptismo de João até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto…”(Ac 1, 22; 13, 24). Isto significa que a “Boa Nova” (evangelho) da pregação cristã mais primitiva começava com a história de Jesus e João Baptista.
Os evangelhos da infância de Lucas e Mateus são uma construção normal onde predomina o Jesus da história-da-salvação, à maneira das histórias haláquicas ou hagádicas, também chamadas midraches, dos rabinos de então sobre os Patriarcas, Moisés e outras grandes figuras bíblicas. O salvamento de Moisés das águas do rio Nilo pela princesa egípcia é uma destas narrativas “haláquicas” ou “midráchicas”, que classificamos de “estórias” ou “lendas”. No entanto, estas “estórias” têm o mesmo valor evangélico, isto é, de Boa Nova, para quem acredita em Jesus, que qualquer outra narrativa histórica.
Só os evangelhos da infância nos apresentam a concepção virginal. Mais tarde, só o quarto evangelho apresenta a pré-história eterna de Jesus (Jo 1, 1: “No princípio era o Verbo; / o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus”; v. 14: “E o Verbo fez-se homem / e veio habitar connosco”). A concepção virginal, a ressurreição e a pré-existência eterna de Jesus, só se compreendem em inteligência de fé. Não há qualquer prova de história factual para estas três “verdades da fé” cristã. Se fosse doutra maneira, Jesus seria um “novo” Moisés, um “novo” profeta, inclusivamente o “Messias”, mas nunca o Senhor Deus (Jo 20, 28: “Tomé respondeu-lhes: ‘Meu Senhor e meu Deus!’”).
Voltando aos evangelhos da infância de Lucas e Mateus não nos é permitido estabelecer qualquer concordismo interno. No evangelho da infância de Mateus, a figura central, a seguir a Jesus, é José. É a José que o “anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: ‘José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito” (1, 20). A que se segue uma longa narrativa que tem por centro de acção o verbo activo pleroô (cumprir). Deus determina uma acção a realizar ou a cumprir, através dos anjos (anjo) e sonhos, dirigida a José. O emissor (Deus) fala ao emissário (José) pelo anjo/sonho para realizar uma acção-mensagem, previamente determinada por um profeta. Determinara em Is 7, 14 que o Messias nasceria de uma virgem (na tradução grega dos LXX) (1, 22). Determinara em Mq 5, 1-2 que o Messias havia de nascer em Belém (2, 6). Determinara em Os 11, 1 que o seu povo havia de nascer duma acção divina de libertação política e religiosa, levada a efeito por Moisés e repetida, agora, de modo total, em Jesus. Assim sendo, Jesus tinha que passar profeticamente (história profética e não factual) pelo Egipto (2, 15). Determinara em Jr 31, 15 que as tribos do Norte, descendentes da matriarca Raquel, a partir de Ramá, seriam chacinadas pelos assírios e levadas para o exílio. A profecia serve de pano de fundo para a perseguição de Herodes contra as crianças inocentes de Belém e arredores (2, 17-18). Determinara, finalmente, que o Messias havia de viver em terras de Nazaré (3, 23), mas em nenhum lugar do AT se profetiza semelhante identificação. Mateus, servindo-se da hermenêutica bíblica do seu tempo, utiliza a assonância hebraica entre “nazareno”, “nazoreu” e “nazireu” para identificar Jesus como o “consagrado” por excelência (ver Jz 13, 5). A vinda dos magos do oriente, a acção da estrela, a conversa dos magos com Herodes, que “pôs em alvoroço toda a cidade de Jerusalém” (2, 3), a adoração dos magos, o prazo de dois anos entre a vinda dos magos e a matança dos inocentes, a ida de Jesus, Maria e José para o exílio no Egipto, onde permanecem dois anos, é uma narrativa “midráchica”, artificial, que mexe com toda a história do povo de Israel em perspectiva histórico-profética. O Jesus de Mateus percorre de maneira analéptica o mesmo caminho em espaço e tempo de salvação do povo de Israel. Moisés foi maltratado pelo Faraó como Jesus pelos responsáveis políticos e religiosos de Jerusalém. O povo sofreu o exílio como as comunidades cristãs primitivas. Mateus apresenta a sua “construção” a partir de analepses. Jesus não é tanto o “novo” Moisés, como muitos exegetas defendem, mas o “verdadeiro” Moisés e os cristãos não são o “novo” povo de Deus, mas o “verdadeiro” povo de Deus. A oposição não reside no adjectivo “antigo” versus “novo”, mas “imperfeito” ou “inacabado” versus “verdadeiro” ou “consumado”. Os magos e a estrela, na cultura oriental, como os anjos e os sonhos, são “sinais” divinos (ver Is 60, 6 e o Sl 72, 10. 11. 15).
O texto de Mateus parte do “pré-texto” e “contexto” da história bíblica do Antigo Testamento. Dificilmente encontramos em toda a literatura um texto como o do evangelho da infância de Mateus para legitimar a tese de que qualquer “leitura” é uma “releitura”.
Por outro lado, em história factual, é anti-racional que Herodes tenha mandado matar as crianças de Belém e arredores, precisamente dois anos depois do aparecimento dos magos. A ser verdade, e não obstante crimes do rei, Flávio Josefo não deixaria de apresentar este crime como o maior de todos os crimes.
No evangelho da infância segundo Lucas, os tempos, os espaços e as personagens são diferentes, exceptuando José, Maria e Jesus. Aqui a construção narrativa centra-se em Maria de Nazaré e não em José. O diálogo divino dá-se entre o Anjo Gabriel, enviado por Deus (1, 26) e Maria. Em nenhuma parte dos quatro evangelhos Maria, mãe de Jesus, assume um papel tão determinante. Ela discute com o anjo (1, 28-38), visita a sua parente Isabel e recebe dela o maior de todos os elogios (1, 42-43: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?”). Já sabemos que a palavra Kyrios (Senhor), no Antigo Testamento grego traduz o tetagrama divino YAHWEH (Deus e Senhor). Nenhum cristão pode ir mais longe que Isabel ao pronunciar este enunciado: “E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?” A cristologia mais alta funde-se com a mariologia mais alta.[Nota do Fraternizar: No seu livro Em Memória delas, Pe. Mário sublinha que tudo o que os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus e de Lucas dizem sobre Maria, não é de Maria que o dizem, mas de Jesus, o que contraria manifestamente esta maneira de apresentar as coisas] Os primeiros concílios sobre Maria como Theotokos (mãe de Deus) e sobre Jesus relacionado com o Pai e com o Espírito, ou, então, debruçados nas lutas cristológicas sobre a natureza humana e divina de Jesus, nada mais fazem do que explicitar em linguagem possível, funcional e ontológica, o que Lucas põe na boca de Isabel.
Ao contrário de Mateus, Lucas constrói a sua narrativa da infância de Jesus a partir do díptico familiar contrastante - família de João Baptista e família de Jesus. Ao contrário dos pais biológicos de João, Jesus nasce de uma virgem. Ao contrário de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusalém, Jesus é senhor do próprio Templo (2, 49: “Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?”). João Baptista é um asceta “nazireu” (consagrado) (1, 15), enquanto que Jesus “será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo…Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus”(1, 32). Em Lucas não há magos, estrela, fuga para o Egipto, matança de inocentes, mas nem por isso deixa de apresentar o menino Jesus bem enquadrado no contexto judaico de então. É circuncidado ao oitavo dia (2, 21), consagrado a Deus por ser o primogénito (2, 22-24), em tudo sujeito à “Lei do Senhor” (2, 22. 23. 24. 27. 39). Por outro lado, Lucas apresenta os pais de Jesus, com todo o realismo, como qualquer pai e mãe biológicos (2, 32: “Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia dele”; 2, 43: “sem que os pais o soubessem”; 2, 48: “Olha que teu pai e eu andávamos aflitos”). Para Lucas não existe nenhuma incompatibilidade entre a carne e o Espírito. Os pais de Jesus funcionam de modo diferente dos pais biológicos de João Baptista, mas sem oposição dualista ou maniqueísta porque o “Espírito Santo” que vem sobre Maria (1, 34) e a “força do Altíssimo” que se estende sobre ela (1, 35) pertencem à ordem da graça sem contradizer a da natureza. Lucas conjuga a gramática da graça, da natureza, da Lei e do Espírito com um à vontade total.
Lucas diz o mesmo que Mateus, embora as personagens envolvidas, criadas adrede pelos dois evangelistas, sejam distintas. É sempre a história da salvação que está em jogo. Nem Lucas conhecia o evangelho de Mateus, nem Mateus o de Lucas, mas ambos conheciam a história final de Jesus. Os evangelhos da infância dos dois evangelistas são uma retro-projecção deste Jesus final e total. Mesmo assim, o Jesus dos evangelhos da infância de Mateus e Lucas nada tem a ver com o Jesus dos evangelhos apócrifos, sobretudo com o do Proto Evangelho de Tiago, que tanta influência desempenhou na história da Igreja, cheio de lendas e milagres mirabolantes do menino Jesus.
Não admira que, como vimos, em Mateus a historicidade factual da estrela, magos, fuga para o Egipto, matança dos inocentes dê lugar à historicidade do significado e não do significante, como em Lucas acontece com Isabel, os anjos, Simeão e Ana. Se em Lucas, Jesus é circuncidado ao oitavo dia e depois segue para Nazaré, como é possível conciliar este tempo, espaço e circunstâncias com os dois anos passados no Egipto, segundo a narrativa de Mateus? Ninguém pode conciliar o inconciliável. O concordismo bíblico seria um absurdo. E assim como, em Mateus, a matança dos inocentes, a ser histórica, tinha que aparecer nos escritos de Flávio Josefo, também em Lucas o édito de César Augusto (2, 1-17), que leva José e Maria a Belém, devia fazer parte dos Anais do império romano. A verdade é que não conhecemos nenhum outro documento histórico sobre este recenseamento do imperador César Augusto. E mesmo que o documento evangélico de Lucas se devesse tomar como histórico contradiz o que a história afirma acerca de Quirino como Governador da Síria. Foi Governador da Síria apenas a partir do ano sexto depois de Cristo. Mas quando Lucas escreveu o seu evangelho toda a gente, na Palestina, conhecia este recenseamento e as perturbações políticas que desencadeara entre os “zelotas” judeus contra Roma. Lucas não foi consultar as bibliotecas para se precaver da possibilidade de algum “erro” histórico. Apanhou o dado histórico do recenseamento posterior de Quirino e achou por bem colocar o nascimento de Jesus neste enquadramento universal da história do império romano (2, 1: “Por aqueles dias saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra”). A narrativa não tem em vista a veracidade histórica de um determinado recenseamento, mas a veracidade histórica do nascimento de Jesus no universo do império romano, senhor absoluto da história do mundo de então. Lucas apenas quer apresentar o “novo Senhor” da história Jesus na contextualidade histórica e cultural do seu tempo.
Como conclusão, os evangelhos da infância de Jesus não são história factual, mas funcional. Da sua infância, a começar pelo lugar do nascimento, modo e circunstâncias, nada sabemos. Qualquer leitor, historiador, exegeta, com fé ou sem fé, tem todo o direito de falar de erros históricos entre Lucas e Mateus, se ler os dois evangelhos da infância como fonte histórica de historicismo factual. Simplesmente, não é isto o que os evangelistas nos querem apresentar, mas apenas a fé cristã sobre Jesus, Filho Único de Deus, Messias e Salvador, nascido de Deus e de uma virgem, através de uma catequese de narrativa bíblica, chamemos-lhe “midrache”, “saga”, “lenda” ou, até, “mito”.
O que mais escandaliza os leitores modernos, filhos da ciência biológica, é a afirmação constante de Jesus nascer de uma virgem. Mateus afirma-o de várias maneiras (1, 20: “José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo”; 1, 13: “O anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto’”, em vez de: “toma o teu filho, e foge para o Egipto”; ver 1, 14. 19). O mesmo acontece com a genealogia em 1, 16: “Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo”, em vez de dizer, na sequência de todas as demais genealogias: “Jacob gerou José, José gerou Jesus…”. É absolutamente normal e racional que o leitor moderno se interrogue sobre o nascimento “virginal” de Jesus, também a partir do género literário dos evangelhos da infância, isto é, que veja nestes evangelhos um “mitema” ou um teologoumenon (narrativa divina para explicar o mistério da incarnação de Jesus Filho de Deus). O crente católico, ortodoxo ou protestante, que acredita no nascimento virginal de Jesus, apenas pode responder com a sua proposta de fé cristã e tradição da Igreja porque a tradição cristã apostólica subjacente a Mateus e Lucas assim acreditava. Será sempre uma questão de fé (como a ressurreição ou a pré-existência eterna de Jesus) e não de história factual. [Nota Fraternizar: O referido livro Em Memória delas fala desta realidade duma outra maneira bem mais "rasgada" e bem mais conforme à dignidade de Deus e dos seres humanos]
O facto de nos demorarmos tanto tempo nos evangelhos da infância é um acto consciente por causa dos problemas de fé e história que os evangelhos suscitam. A fé, a História e a Igreja interagem continuamente nestas narrativas. Fé, História e Igreja são três sinergias complementares ao longo da macronarrativa dos evangelhos. É a Igreja com a sua fé, isto é, a fé de comunidades cristãs apostólicas primitivas que impõe o género literário dos evangelhos da infância e não o género literário que se impõe à Igreja na construção da pessoa de Jesus.
Mas quando passamos ao Jesus da história, sobretudo nos evangelhos sinópticos, a partir da decisão de Jesus em deixar a família, conviver com João Baptista, pregar a Boa Nova do Reino de Deus, já não é nem a fé nem o género literário das parábolas, milagres, discursos de doutrinação, que apresentam e constroem a pessoa de Jesus, mas a história concreta e factual, embora, aqui e além, as narrativas só se entendam, na sua redacção final, dentro dos parâmetros da fé e da Igreja, ou, melhor ainda, da fé da Igreja.
Em nosso entender, nunca será possível poder distinguir com precisão total o que é que pertence à fé, à história e à Igreja, como querem os paladinos americanos do Jesus Seminar. Mas também não podemos cair em exclusivismos de métodos, os histórico-críticos por um lado e os sincrónicos por outro. No fim de tudo, é o texto que nos interessa e não tanto a sua génese e história. Mas tudo quanto possa iluminar o texto a partir do seu pré-texto e contexto é bom para o próprio texto que chegou até nós.
Tudo o que a cultura histórica à volta da cultura mediterrânica, judaica e não-judaica, nos apresenta, tem a ver com a macronarrativa do texto evangélico e seu herói Jesus de Nazaré. Como eram os códigos de honra das famílias judias e não-judias mediterrânicas? Se o código fundamental de honra consistia na honra e propriedade da família, Jesus, segundo os evangelhos, fugiu a este código de honra ao deixar a sua família de sangue para pregar e construir uma outra família centrada naquilo a que ele chamou Reino de Deus. As dezenas de livros e centenas de artigos sobre este pormenor são fundamentais. Lembremos, a título de exemplo, alguns exegetas muito motivados nesta alínea: Ramón Trevijano, Xabier Pikaza, Senén Vidal, Halvor Moxnes, Carlos J. Gil Arbiol.
As descobertas arqueológicas na Galileia têm trazido à luz do dia a vida real daqueles campesinos subjugados pelos latifundiários que viviam em Jerusalém,Tiberíades e Séforis. Tais descobertas iluminam algumas parábolas de Jesus sobre o banquete oferecido por ricos e reis, cujos convidados ricos, ao rejeitarem o convite, cedem o lugar aos pobres e marginalizados, estabelecendo-se assim a lei evangélica da salvação em pura gratuidade e dom versus salvação pela Lei.
A promessa do Reino de Deus, central na pregação de Jesus, é também iluminada por tudo quanto os exegetas vão descobrindo sobre tal promessa nos ambientes rabínicos de então, e, sobretudo, na literatura extra-bíblica de Qumrân e nos demais movimentos apocalípticos. O sintagma Reino de Deus foi, é, e continuará a ser um enigma no mundo de Jesus e da exegese dos evangelhos. Basta lembrar que este sintagma e respectivo mundo semântico, com raras excepções, foi abandonado por Paulo, pelo autor do quarto evangelho e pela demais literatura neo-testamentária, pela simples razão de que, depois da pregação de Jesus e depois da queda de Jerusalém no ano setenta, esta semântica perde oportunidade na catequese cristã do mundo grego e romano dos cristãos. Se os ouvintes de Jesus, judeus pobres na sua maioria, esperavam por esse Reino, de significados ambivalentes, como é patente nas reacções dos discípulos mais directos de Jesus, os cristãos das camadas pagãs só o podiam interpretar, depois da ressurreição de Jesus, num sentido espiritual e escatológico. E é por isso que os exegetas revisitam continuamente esta temática em perspectivas políticas e apocalípticas. Lembremos E. P. Sanders, tão propalado entre nós depois da tradução da sua obra A Verdadeira História de Jesus, as obras já citadas de Xabier Pikaza e Senén Vidal, Gerd Theissen com a obra Biblischer Glaube aus evolutionärer Sicht, traduzida para espanhol com o título La fe bíblica. Una perspectiva evolucionista, o segundo volume de John P. Meier, nas pp. 237-508.
Respondendo às ambiguidades criadas pelo “Reino de Deus”, vamos agora ao encontro do Jesus das parábolas e dos milagres. O mesmo que, um dia, decidiu subir da Galileia para a Judeia. O que é que o distingue dos rabinos judeus, doutrina essénica, farisaica e saduceia, em parábolas e milagres e, sobretudo, na sua resolução final diante de Pilatos e do Sinédrio? Como conjugar este final com o sintagma do Reino de Deus? Trata-se de um final livre, querido, consciente, ou de um final aceite contra a vontade (Mc 15, 34 e par: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”). A ressurreição de Jesus pelo Pai, segundo a fórmula mais primitiva (Ac 2, 24. 32; 3, 15, 4, 10; 10, 40; 13, 30), é uma necessidade teológica do Pai em relação ao seu Filho ou o acontecimento escatológico central, livre e absoluto, que determina de uma vez por todas a verdade da pessoa de Jesus de Nazaré?
Pessoalmente, e de acordo com muitos outros exegetas, encontro na parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12, 1-12 e par. Mt 21, 33-46; Lc 20, 9-19) uma das chaves hermenêuticas para solucionar quantum satis ambiguidades, dúvidas e interrogações sobre a auto-consciência de Jesus. É que, no limite, o que os redactores finais do texto evangélico nos querem dar é a pintura da pessoa de Jesus, que eles não inventaram, mas que o próprio Jesus lhes forneceu, embora os fios que tecem a tapeçaria de Jesus sejam da história, da fé e da Igreja.
Na parábola alegorizada dos vinhateiros é fácil distinguir o Jesus da história do da Igreja. O patrão da vinha enviou aos vinhateiros vários servos “para receber deles parte do fruto que lhe competia” (Mc 12, 2 e par.). Os vinhateiros bateram nuns, maltrataram outros e, inclusivamente, mataram alguns (12, 2-5). Finalmente, o evangelista escreve: “Já só lhe restava um filho. Enviou-o por último, pensando: ‘Hão-de respeitar o meu filho’. Mas aqueles vinhateiros disseram uns aos outros: ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo e a herança será nossa’. Apoderaram-se dele, mataram-no e lançaram-no fora da vinha. Que fará o dono da vinha?”
A parábola histórica, jesuânica, terminava aqui. O que se segue na narrativa sobre a “pedra que os construtores rejeitaram”, que nos reenvia para Is 28, 16, Sl 118, 22-23; Zc 4, 7, é, com certeza, uma explicação da fé da Igreja a partir do mistério da morte e ressurreição, tanto mais que a metáfora da “pedra rejeitada” é amplamente tratada na literatura do Novo Testamento (Rm 9, 33; 10, 11; Gl 2, 18; Ef 2, 20; Ac 4,11-12; 1Pd 2, 6-8). Partimos do princípio que as parábolas de Jesus eram narrativas simples e “abertas” e que, em algumas delas, a Igreja respondeu de maneira cristã à pergunta retórica final. De parábola aberta e interrogativa, a necessitar de uma resposta consciente do ouvinte ou leitor, como era costume de Jesus, algumas parábolas foram fechadas na fé da Igreja do Jesus total e final. Assim aconteceu com a parábola dos vinhateiros homicidas. O definitivo nesta parábola consiste na passagem da identidade dos enviados do dono da vinha. Depois de ter enviado muitos, que foram maltratados e mortos, o dono pensa bem, reflecte e diz: “Tenho um filho. Hão-de respeitar o meu filho!” Esta auto-consciência de Jesus ser um Filho único e próprio, diferente dos patriarcas e profetas, santos e mártires, pertence à camada histórica mais primitiva dos evangelhos. E é nesta auto-consciência de Jesus que se centra o seu drama humano, histórico, de vida e morte. Jesus apresenta esta auto-consciência de muitos modos, envolta em mistério de metáforas. Nos capítulos segundo e terceiro de Marcos, e paralelos sinópticos, Jesus apresenta-se em cinco metáforas, também classificadas de “apotegmas”, que o identificam de modo único (Mc 2, 10 e par.: “Pois bem, para que saibas que o Filho do Homem tem na terra poder de perdoar os pecados, Eu te ordeno disse ao paralítico: levanta-te, pega no teu catre e vai para tua casa”; Mc 2, 17 e par.: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”; Mc 2, 19-20: “Jesus respondeu: ‘Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com eles? Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar.”; Mc 2, 21-22 e par: “ninguém, deita remendo de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os odres. Mas vinho novo, em odres novos”; Mc 2, 27-28 e par: “E disse-lhes: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O Filho do Homem até do sábado é Senhor”; Mc 3, 27 e par.: “Ninguém consegue entrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens sem primeiro o amarrar, só depois poderá saquear-lhe a casa”). Todas estas afirmações, sempre indirectas, da auto-consciência de Jesus, acontecem em pequenas narrativas e em ambiente cultural judaico de contraste e oposição à ortodoxia judaica. Jesus, como o Deus do AT, tem poder de perdoar pecados; é o médico que vem para os doentes e não para os justos, isto é, para os cumpridores da Lei; é o esposo do novo povo de Deus, que está por cima de todas as leis de jejum; se é o “noivo” e “esposo” só pode haver festa e não jejum; é o vinho novo que vem substituir o vinho velho; está por cima do sábado, uma das instituições mais sagradas do judaísmo de então, e, finalmente, sabe que é o “mais forte”, com poder para vencer o “forte”, isto é, o Satan que, até este momento, comanda a política histórica e religiosa do mundo.
Sabemos que os exegetas continuam a discutir sobre estes “apotegmas” ou afirmações de auto-consciência. Para mim, a redacção poderá ser “eclesial”, mas o fundo histórico, de recorte metafórico, em antítese com a cultura religiosa judaica de então, não é criação eclesial porque a Igreja continuava a jejuar, a beber do melhor vinho, o mais velho, a ter medo de demónios, poderes, principados, autoridades e dominações (ver Ef 1, 21 e passim ) e a pregar uma ética cristã de santidade e justiça diferente da gratuidade criadora e salvadora de Jesus. A Igreja já é mediadora, sinal de salvação, projecção daquele Jesus primeiro e histórico que está por cima do sábado, do templo, do jejum, do “forte”, de Jonas e Salomão.
JESUS CRISTO E A FÉ
Apresentámos o Jesus da história, mas não o podemos separar da fé e da Igreja. Foi a Igreja que criou os evangelhos da infância, que transformou parábolas fechadas em abertas, que juntou aos milagres históricos de Jesus sobre os que sofrem, sejam coxos, cegos, surdos, mudos, endemoninhados, milagres eclesiais, como é o caso da multiplicação do pão e do peixe, Jesus caminhar sobre as águas, etc. Mas a questão do Jesus da fé, que começa por assentar numa resposta humana à auto-consciência histórica do próprio Jesus, atinge o seu clímax no mistério da ressurreição.
Perguntávamos se a ressurreição é uma espécie de “presente” do Pai ao Filho pela sua obediência filial ou se representa o acontecimento escatológico nunca visto, nunca repetido, único e fundador.
Falar da ressurreição de Jesus é entrar no campo semântico da fé. Não se trata de realizar de maneira poética, romântica, ideal, o desejo de imortalidade de Platão, dos gregos, dos egípcios e de todas as religiões. Ressurreição nada tem a ver com reincarnação. Nem a ressurreição de Jesus é ontologicamente igual à ressurreição dos crentes em Jesus. A nossa razão é ultrapassada pelo significado do acontecimento. Nem é outro o sinal de todas as narrativas da ressurreição de Jesus como provas históricas da mesma. A ressurreição não se prova como se podem provar as parábolas, os milagres, a paixão e a morte de Jesus. As contradições internas das narrativas e dos enunciados testemunham isso mesmo. Não devemos ter medo de falar de contradições, a começar pela primeira “prova”, em perspectiva cronológica, descrita na 1Cor 15, 3-8:
“Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto.”
Paulo apresenta a ressurreição de Jesus como o acto fundador do Cristianismo (1Cor 15, 12-14: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé”). Não se pode fugir a tais premissas.
No entanto, Paulo não apresenta provas históricas da ressurreição: quem é que viu Jesus a ressuscitar? Em que dia e hora? Em que forma? Apenas nos apresenta o facto em si através de provas de testemunho de fé existencial. Segundo Paulo, Jesus morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras. A sua morte foi real e de história factual. Mesmo assim, Paulo fala como crente: Jesus morreu pelos nossos pecados e segundo as Escrituras, isto é, não por causa de um processo de julgamento jurídico e político, puramente histórico, mas como cumprimento das Escrituras, ou seja, como cumprimento da vontade de Deus. O mesmo se diga dos outros dois tempos sequenciais à morte: foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Quanto à sepultura não apresenta nenhuma modalidade, ao contrário dos sinópticos com a narrativa das mulheres, de Nicodemos e de José de Arimateia. Ao contrário da morte e sepultura, não afirma apenas um enunciado sobre a ressurreição, mas apresenta quatro categorias de pessoas como testemunhos: apareceu a três pessoas em particular: Cefas, Tiago e o próprio Paulo e a três grupos de pessoas: os doze, quinhentos irmãos, todos os apóstolos. Não vamos aqui discorrer sobre a razão de ser desta enumeração de pessoas testemunhas da ressurreição. Apenas ajuntarei o facto de que Paulo, nas suas cartas, se serve da aparição do Ressuscitado como prova irrefutável para o seu apostolado, causa de muitos desentendimentos com os judeo-cristãos de Jerusalém e não só (1Cor 9, 1: “Não sou eu um homem livre? Não sou um Apóstolo? Não vi Jesus, nosso Senhor?”).
Ao contrário dos sinópticos e do quarto evangelho, Paulo não nos apresenta nenhuma narrativa de aparição. Mas os sinópticos só coincidem uns com os outros na afirmação da ressurreição aos Onze (Doze), discordando no tempo, no espaço e na modalidade. Marcos, o primeiro a escrever, por volta do ano setenta, termina o seu evangelho em 16, 8, sem qualquer narrativa da ressurreição. A narrativa das aparições em 16, 9-20 é posterior ao primeiro Marcos, segundo os dados fornecidos pela crítica textual e pela índole de estilo.
Segundo a narrativa, “no primeiro dia da semana” (16, 9), Jesus apareceu em primeiro lugar a Maria de Magdala, de acordo com Jo 20, 11, 18; “depois apareceu com um aspecto diferente a dois deles que iam a caminho do campo” (16, 12), de acordo com Lc 24, 13-35; “apareceu, finalmente, aos próprios Onze quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração em não acreditarem naqueles que o tinham visto ressuscitado” (16, 14), de acordo com Lc 24, 36-42.
O mandato de Jesus: “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura”, lembra o mesmo mandato, embora diferenciado na forma literária, de Mt 28, 19-20. A segunda parte do mandato: “Quem acreditar e for baptizado será salvo; mas, quem não acreditar será condenado”, é exclusivo de Marcos. A crítica textual, como já afirmámos, diz-nos que este final de Marcos, 16, 9-20, não pertence ao primeiro Marcos. Trata-se de uma reflexão posterior da Igreja, já com a catequese da exclusão: “quem não acreditar será condenado.”
Este texto de Marcos é, pois, uma composição da Igreja muito posterior à redacção primeira de Marcos, com o fim de resolver o “escândalo” do final de Marcos em 16, 8. Este exemplo é importante, pois significa que a ressurreição foi, é e será um acontecimento impossível de relatar com a lógica do puramente temporal, espacial e imanencial. Assim se explicam todas as diferenças nos relatos dos quatro evangelhos. Querer harmonizá-los, como gostam de fazer os historicistas e fundamentalistas do texto, é um erro. A variedade de narrativas e a impossibilidade de harmonização, a começar pelo primeiro texto de Paulo em Coríntios 15, como vimos, escrito apenas uns vinte anos após a morte de Jesus, prova a verdade do facto da ressurreição como algo de único, a crer e não a provar.
Não é escândalo para ninguém afirmar que as palavras do Ressuscitado, nos sinópticos e em João, são todas redaccionais e catequéticas. Pertencem ao Jesus da Igreja. Isto significa que a fé na ressurreição é isso mesmo - fé. Não temos provas da ressurreição, mas testemunhos vivos da mesma. A fé faz parte integrante do campo semântico do Cristianismo e de todas as religiões, mas a novidade cristã centra-se, de maneira única, no objecto da fé na ressurreição. Nenhuma outra religião possui este objecto de fé.
É a ressurreição que faz com que o sintagma Reino de Deus, centro de toda a vida de Jesus, receba a performatividade de Reino presente e histórico. O Jesus dos milagres, parábolas e crucificação, pela ressurreição, não é apenas o Messias e o Profeta, mas a última palavra. A ambiguidade dos textos sobre o Reino, sobre o Filho do Homem ou sobre a razão de ser daquela morte na cruz, desaparece para reaparecer a nova humanidade na humanidade ressurreccionada de Jesus e em Jesus. Isto não significa que exegetas e historiadores, com fé cristã ou sem ela, não devam continuar, agora e sempre, a estudar as discordâncias sinópticas dos textos, suas ambiguidades, situadas no tempo e no espaço, isto é, o estudo do texto com o seu pré-texto e contexto. E também não significa que a ressurreição de Jesus reinvente a semântica da vida real de Jesus. Significa apenas que a ressurreição é aquele mais significativo que desfaz todas as dúvidas do relativo da história de Jesus. E ninguém como Paulo de Tarso retira todas as consequências para esta fé cristã na ressurreição: (Rm 8, 11: “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós”).
A partir deste texto paulino, o exegeta protestante Gerd Theissen escreve com muita propriedade: “Já que o Espírito transcende a finitude da vida humana, vincula-se com ele a promessa da vida eterna. Paulo não conhece nenhum núcleo ou aspecto essencial do ser humano que se encontre para além da morte. Não conhece uma alma imortal, apenas espera a ressurreição dos mortos. Mas ele não espera numa ressurreição que rompa a continuidade entre a vida actual e a vida eterna. Pelo contrário, a vida eterna introduz-se na vida presente, quando o homem se deixa apanhar pelo “Espírito de Deus” que lhe é alheio: o Espírito de Deus que habita no homem supera a morte e confere eternidade à existência individual e mortal”.
É pela ressurreição que se desfazem todos os equívocos entre história e apocalipse. Realmente, a literatura apocalíptica entre o século II a. C e o século II d. C., foi uma corrente avassaladora de pensamento e criatividade literária dentro do judaísmo. Os crentes fundamentalistas judeus partiam do princípio que não havia possibilidade de salvação, para Israel, dentro da história linear da humanidade de então. O Deus de Israel, que até ao exílio era o Deus de um povo, raça e nação, passou, depois do exílio, a ser o Deus de todos os povos. Depois do exílio, a viverem na dependência política da Pérsia, Grécia e Roma, concluíram que só uma acção apocalíptica divina podia resolver a questão. O capítulo sétimo de Daniel exprime muito bem este problema. Para este tipo de judaísmo apocalíptico, dualista e maniqueísta, só há duas classes de gente: os fiéis e os infiéis. O mundo era governado por infiéis pagãos, também acolitados por judeus paganizados. Os séculos de dependência política de impérios pagãos, por um lado, e a fé na verdade unívoca de um Deus, Senhor e Rei de um povo, que devia governar o mundo pelo simples facto de ser o Deus do povo da revelação e da verdade, por outro lado, levou-os, em desespero de causa, a concluir que só lhes restava a acção do juízo final. Perderam todas as esperanças nas mediações da religião e da história. E com esta atitude mental, religiosa e teológica, não havia mais razão de ser para a história a sua história, que determina a existência de toda a história. Esperavam, portanto, pelo juízo apocalíptico porque não era possível que Deus continuasse a ser, ao mesmo tempo, o Deus de fiéis e infiéis.
A dilação e não realização da acção apocalíptica divina deixou estes judeus entregues ao desespero do “non sense” da história e do mundo. Ainda hoje se projectam, em bolsas humanas, dentro do judaísmo, cristianismo e islamismo. Pois bem, a ressurreição de Jesus desfaz estas ambiguidades. A ressurreição é um “ereigniss” ou acontecimento único, universal, cósmico, final. Por ela passam crentes e não crentes, fiéis e pecadores. E se João Baptista pertencia a esta escola de pensamento, com o Jesus da história, da fé e da Igreja, passa-se precisamente o contrário. Jesus acolhia os infiéis e os pecadores no banquete do seu Reino. Perdoava às pecadoras, mantinha no seu grupo um publicano e um zelota, aceitava o trigo e o joio, deu a salvação aos marginalizados, pobres, doentes físicos e possuídos do demónio. O seu mundo era o do médico que veio para curar e não para matar, o do pastor que veio para todas as ovelhas, a começar pelas fugidas e perdidas, a do Filho que tem um Pai que em vez de condenar com o juízo final, perdoa e manda que perdoem a começar pelos inimigos. E é desta forma que a ressurreição vem dar razão ao Filho, Pastor, Profeta, Messias, que perdoa e ama. Quem perdoa e ama não pensa em juízo final de bons contra maus para que o mundo e sua história fique exclusivamente nas mãos dos bons e dos fiéis. Jesus veio para unir e não para dispersar, a começar pela história política e familiar. Se as famílias judias e romanas daquele tempo, por causa da honra, da propriedade e demais direitos, marginalizavam os pobres, doentes e pecadores, Jesus inverte o campo semântico e enche o seu banquete precisamente de pobres, doentes e pecadores, estabelecendo uma “guerra” cultural dentro das próprias famílias ao deixar a sua família de sangue para estabelecer o Reino da família de Deus. Desta maneira, o Jesus da história estabelece a ponte com o Cristo da fé. Não há duas histórias, duas famílias, duas sociedades, um Deus para os bons e outro para os maus. Há um só Pai, um só Filho e um só Espírito. Nem admira que com o desaparecimento histórico de Jesus seja o seu Espírito que, como outro Paráclito, presente no meio da história, comprove que Jesus é o verdadeiro e único Kyrios. Paulo acentua de modo lapidar esta verdade: “Por isso, quero que saibais que ninguém, falando sob a acção do Espírito Santo, pode afirmar: ‘Jesus seja anátema’, e ninguém pode afirmar: ‘Jesus é o Kyrios” (Senhor)’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). O termo “Kyrios”, neste contexto, só pode traduzir o Yahvé do AT, como faz a tradução grega dos LXX. Trata-se de Jesus com toda a sua natureza e função de Emmanuel ou Deus connosco.
JESUS CRISTO E A IGREJA
Penso que pelos exemplos evangélicos aduzidos é fácil concluir que a Igreja, isto é, os crentes em Jesus, baptizados em seu nome, foram formados no querigma cristão. Neste querigma, o Jesus da história da pregação de Jesus, centrada no sintagma Reino de Deus, na paixão e morte, é acreditado, também por força das promessas proféticas e messiânicas do Antigo Testamento, como o Messias final. Jesus apenas pregou; nada escreveu nem mandou escrever. O Novo Testamento, a começar pelas cartas de Paulo, continuando, depois, nos quatro evangelhos, são fruto de muitos anos de tradição oral apostólica. A redacção final dos evangelhos corresponde a este querigma vivo, a este evangelizar contínuo com leituras e releituras constantes ao Antigo Testamento, já que o desígnio final de Deus tinha que passar pela realização profética e messiânica das Escrituras Hebraicas.
Os evangelhos aparecem por necessidade interna das igrejas, à medida que os apóstolos e demais testemunhas oculares da pessoa histórica de Jesus iam morrendo. Era preciso conservar essas memórias apostólicas. Neste particular, o Novo Testamento, como também o Antigo Testamento, é uma “memória” da “diégesis” de Jesus e da “diégesis” das tradições apostólicas. No dia em que deixasse de haver fé cristã sobre a terra, o Novo Testamento não teria qualquer razão de ser.
A “memória” cristã dos evangelhos é uma memória viva, celebrativa, litúrgica, e não uma memória de crónicas passadas. Esta memória refere um passado, um presente e um futuro, uma vez que a ressurreição de Jesus marca o evento escatológico, único e definitivo. Deste modo, o querigma cristão não é fruto duma catequese biblicista. A realidade da vida cristã assenta na realidade de uma pessoa, o Jesus da história, da fé e da Igreja, e não num livro. O livro é um instrumento de mediação única para nos lembrar. A lembrança é mais do que o livro.
E foi precisamente a Igreja, através de critérios litúrgicos da vida das comunidades, que determinou o Cânone dessas lembranças através de alguns livros que julgou canónicos. A história do Cânone é a história controversa, dinâmica e viva do querigma cristão primitivo. Nele podemos distinguir os três querigmas principais: o das cartas de Paulo, o dos evangelhos sinópticos e o do quarto evangelho. Estes três rios desaguam no “mare magnum” do significado final da pessoa de Jesus. Tudo parte do Jesus histórico, de carne e osso, em volta da realização do Reino de Deus, já presente e sempre em realização, cujo clímax reside na fé da ressurreição e no conhecimento da pessoa de Jesus através da força do Espírito Santo. É importante este último enunciado. Não se pode conhecer o Jesus total apenas com a investigação histórica, social, cultural, filológica, política. O Espírito do Ressuscitado continua a actuar. Lucas deixa isto claro em Lc 24, 49: “E Eu vou mandar sobre vós o que meu Pai prometeu”, bem como João nos textos sobre o Paráclito (Jo 14, 15-17; 14, 25-26; 15, 26-27; 16, 5-15). Se o Espírito é o último exegeta da pessoa de Jesus, esse mesmo Espírito actua nos crentes de maneira eclesial e não de maneira puramente individualista, solipsista, em conformidade com alegrias de salvação sentimental. Pelo menos é assim que Paulo fala dos carismas do Espírito com a metáfora do “corpo” e sua funcionalidade em 1Cor 12, 12-31 e Rm 12, 3-5, com a metáfora da “construção” em Rm 15, 2: “Procure cada um de nós agradar ao próximo no bem, em ordem à construção da comunidade” e, finalmente, com a metáfora dos instrumentos da música na 1Cor 14, 6-11; ver 12, 12: “Assim também vós: já que estais ávidos dos dons do Espírito, procurai adquiri-los em abundância, mas para edificação da assembleia”.
Se a Igreja, nas metáforas da “assembleia”, “corpo” ou “construção” é o objecto do querigma cristão, dinamizado pela força do Jesus da história e do Jesus Ressuscitado e continuado no seu Espírito, a tónica final, na dialéctica entre o Jesus da história, da fé e da Igreja, deve ser colocada no Jesus da Igreja. É para aí que tudo converge. Assim se explica que o Novo Testamento utilize uma grande quantidade de géneros literários para exprimir a mesma fé: relatos históricos, cartas de recomendação, mitos, midraches, apocalíptica. A redacção final dos autores bíblicos, quando comparada entre si, apresenta diferenças, contradições, multiplicidade de cristologias e eclesiologias. Já vimos isso mesmo na comparação dos evangelhos da infância e narrativas da ressurreição. Mas os exemplos podem multiplicar-se às dezenas. O que é que tem a ver a cristologia dos sinópticos com a do quarto evangelho? Porque é que o quarto evangelho não usa o sintagma Reino de Deus como centro da pregação de Jesus? Porque é que nunca apresenta um único milagre de exorcismo? Porque é que não nos lega a narrativa da última ceia eucarística, à maneira dos sinópticos? E, nos sinópticos, porque é que Mateus nos apresenta sete bem-aventuranças e Lucas apenas três? Porque é que em Mateus o sermão da montanha se passa de facto num monte e em Lucas numa planície? Porque é que só Lucas descreve a Assunção do Senhor de maneira tão diferente? Em Lc 24, 50-53 acontece no Domingo de ressurreição e nos Actos 1, 4-8 ao fim de quarenta dias depois da ressurreição? Estas e muitas outras interrogações levam-nos a concluir que as “contradições” são trabalhos “redaccionais” criados pelos respectivos autores com funções catequéticas. No fundo, a Bíblia é um grande mostruário literário de retórica da fé judaica e cristã. A Bíblia não caiu do céu. Não foi Deus que a escreveu, mas a Igreja judaica e cristã. Não nos devem escandalizar títulos de obras como a de André Paul, Et l´homme créa la Bible, a de Jean Potin, La Bible rendue à l’histoire, ou a do exegeta episcopaliano americano L. William Countryman Biblical Authority or Biblical Tyranny?. Infelizmente, a Bíblia pode tornar-se numa tirania, à maneira do Alcorão de certos fundamentalistas islâmicos. Para que tal não aconteça há uma Igreja (igrejas) e dentro dessa Igreja (igrejas) há exegetas católicos, protestantes e ortodoxos, guardiães e estudiosos deste livro admirável chamado Bíblia o Livro dos livros. Pertenço a este grupo por obra e graça de Deus e da Igreja. Fui muito feliz nesta casa e espero em Deus continuar a sê-lo. Obrigado.
Joaquim Carreira das Neves, OFM
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