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DESTAQUE 1
De que falamos, quando falamos de educação?
De que falamos, quando falamos de educação? Hoje, ainda faz sentido um ministério da educação e uma ministra ou um ministro da educação, isolados lá em cima no topo da pirâmide do Poder? O que é educar? Quem educa quem? E quem educa a ministra, o ministro da educação? E às professoras, aos professores, quem os educa? E aos outros membros do governo da nação? E aos responsáveis pelos grandes meios (tv e internet, sobretudo) que hoje nos assediam por todos os lados, obcecados que estão em fazer de nós consumidoras, consumidores compulsivos do Mercado e em matar em nós as criadoras, os criadores que estamos chamados a ser? E aos dirigentes das Igrejas, bispos, párocos, catequistas, pastores, quem os educa? É possível educar dentro da actual Ordem económico-financeira mundial? O que a actual Ordem mundial pretende não é simplesmente poder dispor de técnicos/funcionários atentos e reverentes? Mas ajudar a formar técnicos/funcionários atentos e reverentes que nunca chegam a interrogar-se sobre o porquê e o para quê do que executam, um dia após outro, sob as ordens de sinistros donos sem rosto das multinacionais, ainda é educar? Pode haver educação sem revolução e sem rupturas inevitavelmente dolorosas? Sem êxodos individuais e colectivos inspirados no paradigmático êxodo bíblico, conduzido por Moisés? E sem se romper com a Ordem económico-financeira mundial e com os corporativos interesses dos muito poucos que a controlam? Pode haver educação sem nova criação? Sem que se promova o aparecimento de surpreendentes originalidades humanas, tantas quantas os indivíduos que constituímos as sociedades? E a Escola que temos, pública e privada, educa quem a frequenta, ou domestica? É uma escola-parteira de seres humanos com toda a sua originalidade e novidade, ou limita-se a fornecer às novas gerações uma gama de conhecimentos, para que elas façam carreira dentro da Ordem económico-financeira mundial? E Jesus, o de Nazaré, ainda pode trazer algo de novo e de essencial, neste nosso século XXI, ao acto político de educar? O quê em concreto?
São muitas as perguntas. E todas se justificam. Não apenas porque estamos a iniciar um novo ano lectivo no país e a “guerra” entre a ministra da Educação e as professoras, os professores irá continuar na ordem do dia, mas também e sobretudo porque os tradicionais agentes de educação das novas gerações estão a ser irremediavelmente desalojados da sua nobre missão de educar por uns quantos tecnocratas sem escrúpulos postos à frente dos grandes meios e que não olham aos processos de que lançam mão para poderem alcançar audiências cada vez maiores e, com elas, estúpidos e chorudos lucros financeiros para os respectivos donos. E tudo sem que ninguém lhes saia ao caminho e lhes peça contas por tantos crimes de deseducação que estão impunemente a cometer, um dia após outro, no país.
Educar é um acto nobre, porventura, o mais nobre de todos os actos humanos. O famoso filósofo e pedagogo Sócrates, da Grécia antiga, foi condenado, como sabemos, a beber a cicuta pelos grandes da cidade de Atenas, porque na sua relação com os mais novos fazia o contrário do que fazem hoje os programadores das nossas televisões, incluídas as que têm o dever do serviço público. Em lugar de amestrar-domesticar-alienar as novas gerações, como faz hoje a generalidade dos programadores das televisões, interpelava-as com as suas sucessivas e pertinentes perguntas, para que finalmente viesse à luz e se afirmasse a consciência crítica de cada um dos seus membros. A sua pedagogia maiêutica continua aí inultrapassável e é a ela que sempre havemos de regressar, quando os governos se apresentam descaradamente amancebados com os interesses das multinacionais e estão simplesmente apostados em “produzir” técnicos sem espinha dorsal e sem entranhas de humanidade, prontos para tudo o que o Mercado lhes vier a exigir.
O país conta, nesta altura, com um Sócrates como primeiro-ministro, que, infelizmente, é portador duma filosofia e duma prática governativa nos antípodas da filosofia e da prática pedagógica do imortal filósofo grego. As populações que o elegeram continuam a deixar-se impressionar pelo seu discurso determinado, repetitivo, autista, salazarento, autoritário, servido por uma subserviente comunicação social, cujos donos se revêem neste tipo de governação autista sem política e sem humanidade.
Fossem elas populações educadas para a liberdade e para a responsabilidade, bem adultas e dotadas de consciência crítica, e nunca teriam dado o seu voto maioritário e absoluto a quem já na campanha eleitoral se mostrou tão demagogo para com elas. Ou, ao menos, ter-lhe-iam retirado já a sua confiança, perante tão descriador e tecnocrático exercício de funções governativas.
O acto de educar, dentro da actual Ordem económico-financeira em que nascemos e vivemos, tornou-se, hoje, uma missão quase impossível. Nem abundam por aí educadoras, educadores devidamente à altura, nem educandas, educandos dispostos a irem por aí. As próprias famílias tão pouco estão interessadas numa educação humanamente consequente para as suas filhas, os seus filhos. O que pretendem é que as suas filhas, os seus filhos tenham sucesso na carreira e ganhem muito dinheiro.
É manifesto que hoje vivemos sob a ditadura do D. Dinheiro e ele, como deus todo-poderoso que é, ao jeito da besta do Apocalipse, exige ser adorado por todos os habitantes da terra; e a quem não tiver o seu sinal na mão direita ou na fronte ou o número do seu nome tão pouco ele permitirá comprar ou vender (Ap 13,7-17). Em consequência, é também o deus Dinheiro que dita hoje as regras do jogo no acto político de educar. Ou acatamos essas regras e transmitimo-las às novas gerações para que se conformem com elas, vida fora mas isto é amestrar seres humanos, não é educar seres humanos ou, ao contrário, atrevemo-nos corajosamente a educá-las para a liberdade e para a responsabilidade e, neste caso, trabalharemos, entre elas e com elas, para ajudar a despertar lúcidos e corajosos resistentes à actual Ordem económico-financeira mundial.
Entendamo-nos. Hoje, só há verdadeira educação, se trabalhamos com afinco para despertar entre as novas gerações e com elas mulheres e homens que resistam ao todo-poderoso deus Dinheiro e se constituam como alternativas vivas à sua Ordem mundial estabelecida. Por isso, mulheres e homens capazes de viverem na Ordem mundial do deus Dinheiro, mas sem serem dela. Em concreto, mulheres e homens ao jeito de Jesus, o de Nazaré, e que, como ele, se atrevam a resistir às seduções do Dinheiro e aos privilégios do Poder; e que recusem alinhar na mentira multissecular da crença em deusas e deuses, o que só tem servido para manter as populações tolhidas e submissas aos poderosos do mundo e às hierarquias religiosas e eclesiásticas.
O acto político de educar será sempre o contrário do acto de colonar. Destina-se a fazer vir à luz o ser humano único, mulher ou homem, que é cada uma, cada um de nós, desde que fomos concebidos e nascemos neste mundo. Infelizmente, tem-se sempre confundido, ou quase sempre, educar com colonar, e colonar em série. Só para assim servir às necessidades da Ordem estabelecida, a qual, para se poder perpetuar, carece de seres humanos-robots, indivíduos feitos em série, segundo determinado molde. É também por isso que os seus donos não hesitam em contratar uns quantos técnicos para que executem semelhante operação de descriação humana.
Também não tem faltado quem, ao longo dos séculos, se preste a este papel des-criador de seres humanos e criador de robots em forma humana. E foi porque Jesus, o de Nazaré, jamais se prestou a este papel, e ele próprio tão pouco aceitou ser homem segundo as exigências da Ordem estabelecida do seu tempo e país, pelo contrário, ousou ser Homem totalmente habitado e conduzido pelo Sopro ou Espírito Criador de Deus Vivo e alguém que sempre liberta para a liberdade quantas, quantos aceitem viver na sua companhia e na sua comunhão, que os poucos privilegiados da Ordem estabelecida de então, todos à uma, o condenaram à morte da cruz como um maldito e logo o executaram, para que o seu nome nunca mais fosse pronunciado e a sua prática radicalmente libertadora e alternativa nunca mais fosse actualizada, pelas gerações posteriores.
E não é que desde então para cá têm conseguido este sinistro objectivo? É verdade que não conseguiram que o nome Jesus fosse banido das nossas bocas, mas conseguiram o que é ainda pior que o nome Jesus que ainda hoje pronunciamos já não corresponda praticamente em nada àquela pessoa histórica que eles crucificaram. E quanto à sua prática radicalmente libertadora e alternativa, também nunca mais foi actualizada, nas sucessivas gerações, porque, com o tempo, tudo foi habilmente reduzido a meia dúzia de ritos religiosos sem vida e sem Espírito, repetidos com regularidade nos templos por multidões beatas e crédulas, assustadas e submissas, sem audácia para se constituírem como actualizações vivas de Jesus.
Educar/educar-se para a liberdade e para a responsabilidade é sem dúvida o acto político mais subversivo e mais fecundamente revolucionário. Mas só quem aceite, como Jesus, viver na Ordem mundial do deus Dinheiro sem jamais ser dela é que pode realizar este acto até ao fim com coerência. O que pressupõe renunciar por toda a vida aos privilégios do Poder e às seduções do Dinheiro; tornar-se ateu de todas as deusas e de todos os deuses que se alimentam de gente e viver permanentemente aberto aos outros e, com eles, por eles e neles, também ao totalmente Outro, em quem todas, todos somos; permanecer preferencialmente na companhia das vítimas, e longe dos seus verdugos; manter-se alegremente e por toda a vida pobre por opção; e constituir-se como presença viva de Paz no meio do mundo, mas daquela Paz revolucionária que nunca deixa de andar casada e aos beijos com a Justiça. Só quem, numa palavra, procure ser na sua vida pessoal e no nosso aqui e agora uma actualização viva de Jesus, o de Nazaré.
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DESTAQUE 2
Continuamos sem saber lidar com a morte
Leia e comente com as suas amigas, os seus amigos esta reflexão teológica em seis pontos sobre a morte. A dos outros e a sua, a acontecer um dia mais ou menos próximo ou remoto. É Evangelho ou Boa Notícia de Deus para o terceiro milénio. Ao mesmo tempo, deite ao lixo as catequeses moralistas e terroristas que recebeu na sua infância e até nos genes. Pratique a Verdade todos os dias com alegria. Porque só a Verdade nos fará livres e progressivamente humanos.
1. Continuamos duma maneira geral sem saber lidar com a morte. A dos outros e a nossa própria, a ocorrer num qualquer dia mais ou menos próximo ou remoto. Chegamos a fazer de conta que a morte não existe, pelo menos enquanto ela não acontece entre as pessoas que nos são mais queridas e próximas pelos laços do sangue e/ou dos afectos. E quando ela se torna realidade na pessoa da nossa mãe, do nosso pai, de uma irmã, um irmão, de uma filha, um filho, de uma amiga, um amigo corremos logo a vestir-nos de luto e metemo-nos em casa a chorar mais ou menos inconsolavelmente, sem disposição para mais nada. Preferimos delegar numa agência funerária das redondezas todos os passos a dar e pagar sem refilar a factura por sinal, elevada que ela dias depois nos apresenta, e que inclui o custo da urna, do arranjo do espaço onde a urna com o cadáver fica exposta, e até o custo da missa de corpo presente e da missa de sétimo dia, etc, etc, a fazermos todos, familiares e amigas, amigos em conjunto, dessa morte acabada de ocorrer, um acontecimento ou sacramento revelador/anunciador de algo novo e fecundo.
A que se deverão estes nossos estranhos comportamentos perante a morte de pessoas que nos são queridas? Não terão a ver com as catequeses terroristas sobre a morte e os demais novíssimos que supostamente se lhe seguiriam Juízo, inferno ou paraíso que as Igrejas impunemente desenvolveram, durante séculos e séculos, entre as populações, crianças incluídas? Bem vistas as coisas, o que hoje ainda persiste, como marca indelével na consciência das populações não ilustradas e não evangelizadas, é essa crença de que a morte é a mais medonha de todas as penas com que Deus, logo no início da Humanidade, castigou para todo o sempre os nossos primeiros pais e, neles, todas, todos nós, seus descendentes, por eles terem comido do fruto proibido, pelos vistos, um pecado terrível que ficou conhecido como pecado original ou das origens.
Ora, se de um castigo se trata, e castigo de Deus que já vem desde o princípio da Humanidade, sem que o suposto ofendido, desde então para cá, alguma vez tenha alterado a sua macabra decisão, quem de nós poderá encarar a morte de uma, um familiar ou de alguém amigo, ou até a sua própria, um dia, como uma boa notícia e ocasião de festa?
2. Acontece, porém, que o chamado pecado original historicamente nunca existiu. Tão pouco existiram o senhor Adão e a senhora Eva, respectivamente, nosso primeiro pai e nossa primeira mãe. O que existe, e não apenas no Génesis bíblico, é um relato mítico das origens, tecido com estas duas personagens literárias que nunca foram pessoas históricas. São duas figuras míticas. E todo o mito onde elas entram, juntamente com a Serpente (a famosa deusa mítica da fertilidade dos povos cananeus, cujo culto estava muito em voga, quando todo o relato foi escrito como parte da Bíblia) não passa disso mesmo: um mito que não pode ser lido como uma página de história, ou como uma reportagem jornalística do nosso tempo. A informação que contém não é uma notícia como a dos jornais. Tenta explicar, dentro dos limitados conhecimentos da época e nas circunstâncias concretas em que viviam os povos no meio dos quais o relato “nasce”, a origem do cosmos e da vida, mas, sobretudo, o porquê da existência do sofrimento humano, nomeadamente, dos inocentes e dos justos, e o porquê da existência da morte. Trata-se duma explicação mítica, não científica, que deverá ser actualizada pelas sucessivas gerações de povos, ao longo da História, à medida que a evolução da vida avança e, com ela, a (cons)ciência dos seres humanos.
Tão pouco se pense que essa primeira explicação, dada em forma de mito, foi uma explicação desinteressada, ou directamente ditada por Deus. Não foi. Foi mandada escrever por ordem da casa real de David/Salomão, para servir os seus interesses dinásticos e as suas ambições de domínio sobre os demais povos vizinhos. Nessa medida, o relato, apesar de fazer parte da Bíblia, tem muito de perverso e de mentira. Utilizado como catequese pelos sacerdotes da casa real de David, deveria contribuir para convencer as populações a suportarem o sofrimento como castigo do pecado dos antepassados e dos pecados de cada uma, cada um. E levar as populações a encarar a morte como o castigo dos castigos, contra a qual nada havia a fazer, a não ser gemer e penar e, ao mesmo tempo, multiplicar as oferendas a Deus, sempre na esperança de que Ele se deixasse apaziguar por elas e, em troca, lhes desse o seu perdão.
3. Aliás, os sacerdotes que, abusivamente, sempre gostam de se fazer passar por pontífices (= os que fazem a ponte) entre Deus e as populações, ou como intermediários, também estiveram na origem daquele relato mítico das origens. E terão sido eles quem, pelo século VI-V antes de Cristo, lhe deu a redacção definitiva com que ele hoje se apresenta na Bíblia. Assim como têm sido os sacerdotes quem oficialmente tem interpretado esse mito, a partir, evidentemente, dos seus próprios interesses corporativos e dos lugares de privilégio, de que nunca abdicam nas sociedades onde vivem como um corpo à parte.
Um dos pontos fulcrais desta sua doutrina pode ser resumido assim: “O pecado dos nossos primeiros pais e os nossos próprios pecados ofendem muito a Deus que, por isso, nos castiga com toda a espécie de sofrimentos e, finalmente, com a morte. Mas se nós, seres humanos, nos dispusermos a oferecer a Deus, através dos sacerdotes, sucessivos sacrifícios pelos nossos pecados, quem sabe se Ele não nos perdoa e nos salva?”
Pois bem, foi assim que as populações passaram a oferecer a Deus, por meio dos sacerdotes, os seus melhores animais e os seus melhores frutos da terra. Na intenção das populações, era a Deus que ofereciam, mas na prática os sacerdotes acabavam por ser os principais beneficiários das oferendas. Foram assim séculos e séculos de mentira e de opressão. E hoje, apesar de já levarmos mais de dois mil anos depois de Jesus, que foi crucificado também por ter desmascarado todo este negócio e toda esta mentira, é ainda assim que as coisas geralmente se processam.
É verdade que as populações hoje já não oferecem animais para os sacerdotes imolarem em honra de Deus. Mas é também verdade que, por exemplo, nos ambientes de forte tradição católica, como são os nossos, é manifesto que as populações, ateias ou não praticantes que se digam, ainda mandam, ou permitem que outros mandem celebrar missas avulso ou em forma de trintário (30 missas em 30 dias seguidos ditas pelo mesmo sacerdote e, se ele falhar um dos dias, terá de começar tudo de novo!) pelos familiares que já faleceram. Mudou o conteúdo da oferenda a Deus, não o gesto de fazer a oferenda, mai-lo respectivo custo em dinheiro para o sacerdote. E tão pouco as mesmas populações costumam dispensar a presença do pároco católico, a presidir ao funeral dos respectivos familiares falecidos, mesmo que ele anteriormente nunca tenha mantido qualquer contacto com eles. E tudo isto é feito na base duma vaga crença (crendice?) de que Deus, por estes meios, lhes perdoará os seus pecados e levará as respectivas “almas” para o céu. Pode lá haver maior manifestação de infantilismo e de sem-sentido?
No que respeita às outras Igrejas e seus respectivos pastores, é sabido como estes são mais ou menos hábeis em “convencer” os seus fiéis, elas e eles, a “oferecerem” o dízimo cada vez mais elevado de tudo o que possuírem, venderem ou adquirirem. E os resultados estão aí bem à vista. É por isso que um certo português, ligado ao mundo da banca, quando se apercebeu do filão que esta mentira poderia render em dinheiro, não hesitou em trocar o trabalho no banco pela fundação de mais uma Igreja pretensamente evangélica, fez-se a si próprio o bispo dos bispos dessa Igreja, e, em poucos anos, juntou uma fortuna que mete inveja a muitos banqueiros… Não conhecem o caso?!
4. Toda esta prática religiosa e eclesiástica é, evidentemente, uma barbaridade sem nome. Não o digo de ânimo leve. Nem como ataque a alguém. Digo-o com lágrimas! E com muita dor. Parte-se-me a alma, ao ver o que temos feito à sombra do Santo Nome de Deus, puro Dom, pura Graça, puro Amor e pura Liberdade, fonte de todo o Bem, que um dia nos chamou à vida, no decurso da Evolução, para sermos suas filhas, seus filhos em estado de maioridade, a fim de levarmos por diante o seu projecto criador que, por o ser, é igualmente salvador. Porque para Deus Vivo, fonte de Amor, criar é o mesmo que salvar. Na mais completa gratuidade.
Foi na prática gratuitamente libertadora e universalmente misericordiosa e integradora de Jesus, o de Nazaré, que pudemos chegar a dar-nos conta de toda a Mentira com que, durante séculos e séculos, as Religiões e os seus sacerdotes enganaram e oprimiram as populações do planeta. À luz dessa sua prática fecundamente subversiva e da palavra cheia de sabedoria com que ele sempre fez acompanhar essa sua prática, tornou-se manifesto para todo o sempre que a salvação dos seres humanos é uma questão que tem mais a ver com Deus Vivo e Criador do que com os seres humanos (também tem a ver com estes, mas apenas na linha eucarística da resposta e do acolhimento, não na linha do mérito ou das boas obras, muito menos, na linha do negócio ou do dinheiro).
Aliás, este dado constitui o núcleo essencial da Boa Notícia ou Evangelho que Jesus trouxe da parte de Deus aos povos de todas as línguas, culturas e nações sem excepção. E que, desde então, quer ver anunciada, a tempo e fora de tempo, às sucessivas gerações de todas as nações, para que os povos todos da terra se libertem/curem radicalmente do Medo e passem da condição de povos em estado de Medo e de Violência, à condição de povos em estado de Liberdade e de Graça. Mais: é também a Deus que compete encontrar a maneira de alcançar a nossa liberdade e de chegar a dialogar com ela, dentro do processo histórico em que um dia todas, todos nós acontecemos, por pura graça sua (se preferirmos dizer por puro acaso, também está certo, só que então o acaso ficará como um outro nome da graça) e que, desde então, nem mesmo a chamada morte biológica consegue interromper, pelo contrário, só pode potenciar, e potenciar infinitamente mais do que o nosso primeiro parto (a nossa primeira morte!), esse mesmo que nos fez sair do útero materno, para podermos chegar a ser pessoas autónomas e irrepetíveis.
5. A morte biológica que nos espera é então, não o castigo devido ao(s) pecado(s), mas o mais decisivo parto-explosão que nos lança-projecta para lá da História; é, não o fim da vida, mas o coroamento da vida única em que cada uma, cada um de nós se tornou, quando, por pura graça, acontecemos no útero materno. A partir de então, nunca mais deixaremos de ser, pelo contrário, sempre nos transformaremos até chegarmos a ser a Liberdade e o Amor que cada uma, cada um de nós está chamado a ser, no Deus Vivo e Criador, fonte de todo o Bem, de toda a Liberdade, de toda a Graça, de todo o Amor.
Quando, em Igreja, dizemos que cremos na Ressurreição dos mortos ou na ressurreição da carne é esta realidade-boa-notícia que anunciamos ao mundo. Essas e outras expressões semelhantes o que querem dizer é que somos seres em estado de salvação, desde o primeiro instante da nossa concepção no útero materno, ou, no caso de inseminação artificial, da nossa concepção in vitro. E não é pelo que fazemos ou deixamos de fazer que somos salvos. É exclusivamente pela graça que somos salvos. Todas, todos!
Ao criar-nos, no decurso da evolução da vida, Deus Vivo também nos salvou para sempre. E é já como salvos que vivemos na História. Tanto mais felizes e tanto mais realizados como seres humanos, quanto mais nos deixamos conduzir pelo Sopro ou Espírito de Deus Vivo e Criador. Como aconteceu paradigmaticamente com Jesus, o de Nazaré, por isso, muito justamente proclamado por nós como o nosso Salvador.
A morte biológica, quando chegar, não interrompe nem mata este processo. Pelo contrário, abre-lhe novas e impensáveis dimensões, para que todas e cada uma, todos e cada um de nós cheguemos a ser, por pura graça, filhas, filhos de Deus Vivo, como Jesus, o de Nazaré, no infinito Oceano de Liberdade e de Amor que só Ele é.
6. A esta luz, temos de mudar radicalmente o nosso modo de encarar e protagonizar o nosso ser-viver-morrer dentro da História. Não podemos continuar a comportar-nos como os que não têm Esperança.
Havemos de viver na História como pessoas já em estado de salvação e a caminho da salvação em dimensões outras que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem a nossa boca é capaz de relatar. E como pessoas criadoras de humanidade e de sororidade/fraternidade; salvadoras e curadoras umas das outras. Especialmente daquelas de nós que continuem aí a dar sinais de estarem ainda a viver mais no Medo do que na Liberdade, mais na Violência do que na Graça.
Ao mesmo tempo, havemos de pôr definitivamente de lado todas essas catequeses terroristas das Igrejas e das religiões sobre a morte e sobre as pessoas que já morreram, e também todas as práticas litúrgicas sem sentido que elas insistem em promover/vender por bom dinheiro, a toda a hora e instante por aquelas pessoas que nos são queridas e que já faleceram.
Como aqui fica claro, tais práticas, apesar de presididas por pessoas que temos por bem intencionadas, mas que vivem manifestamente equivocadas, não passam objectivamente de mentiras e de falsidades, as mais obscenas e sacrílegas. E que sempre encontram pessoas que as solicitam, encomendam e pagam, porque, no dizer, sem sentido jesuânico, dos sacerdotes e pastores das Igrejas, destinam-se a "aliviar" as almas dos nossos entes queridos!... (Haja, modos, senhores!)
Em alternativa, havemos de ousar fazer da morte de familiares e de pessoas nossas amigas um momento alto de experiência de Salvação e de anúncio ao mundo da Boa Notícia que Jesus, o de Nazaré, nos trouxe da parte de Deus Vivo e Criador. Havemos por isso de saber comportarmo-nos em tais ocasiões, que são as do último "parto" dessas pessoas que nos são queridas, como filhas, filhos adultos de Deus. Havemos de saber encarar e celebrar cada uma dessas mortes, como o coroamento da vida que viveram entre nós e como o seu último parto-explosão, e anunciar com toda a simplicidade a toda a naturalidade essa boa notícia ao mundo.
Por isso, em vez de velórios, havemos de fazer serena festa. Havemos de inventar cantos e danças apropriados que nos ajudem a contemplar e a meditar com mais profundidade. Havemos de ousar ser poetas e profetas nessas ocasiões de intensa graça e de intensa Páscoa ou Passagem do Sopro ou Espírito de Deus Vivo e Criador. Havemos de ler e recitar poemas e canções que digam com aquele momento. E tudo acompanhado com a solene proclamação, a partir de algum dos quatro Evangelhos canónicos, da prática libertadora e misericordiosa de Jesus, cheia de graça e de verdade. Num clima de igualdade sororal/fraterna tão intensa e verdadeira que, só por si, iniba a entrada no local de um qualquer representante do Poder eclesiástico ou outro. Porque lá onde o Poder entra e permanece, sempre gera Medo e Violência, mentira e homicídio.
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Será que Deus se deixa subornar com missas?
Há uns quantos tiques sem sentido que se repetem, de geração em geração, por ocasião dos chamados funerais católicos e aos quais até os familiares de ateus e agnósticos assumidos, se costumam submeter, quando algum deles morre e não deixa nada escrito em sentido contrário. Um destes tiques sem sentido é a presença do pároco com poder de jurisdição católica no território onde o cadáver vai a sepultar. Pode o pároco em causa nunca ter falado com essa pessoa nos anos em que ela viveu entre nós e connosco, mas, na hora de dar sepultura ao cadáver dela, ele lá é chamado para presidir. E com ele a presidir, o cadáver lá tem de ser levado até à igreja paroquial, e não se livra duma missa de corpo presente, ou, pelo menos, dumas rezas que o pároco, sem imaginação e sem disposição para inovar e criar, mecanicamente faz a partir de um livro de capas já gastas e de cores tétricas, chamado Ritual de Defuntos!...
E, é claro, o pároco não vai de graça ao funeral. Cobra os chamados emolumentos tablados pela respectiva Diocese. Ou até mais do que está tablado. Porque não hão-de ser os próprios familiares com as amigas, os amigos mais íntimos, a protagonizar intensamente este momento derradeiro? Não lhe emprestariam um toque de originalidade, de criatividade e de surpreendente? Não seria tudo muito mais espontâneo e natural? Não nos edificaríamos mais uns aos outros? Não cresceríamos mais em humanidade? E a memórida da pessoa falecida não seria tratada com muito mais ternura e verdade?
Mas se o funeral é de alguém que foi assumidamente cristão e os familiares também o são, não serão capazes de protagonizar este momento ao seu jeito, sem necessidade do pároco, símbolo do poder eclesiástico, funcionário do sistema que, nesse momento, nos impede de ter vez, nos retira a palavra e nos faz mudos e, ainda por cima, quase sempre tem um discurso com mais de aberração do que de afecto e de humanidade?
E para quê mandar rezar missas, para mais, a troco de dinheiro, por quem faleceu? Será que Deus, o de Jesus, se deixa subornar com missas como os poderosos do mundo com presentes? Não vemos que as missas são um negócio para os párocos?
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EDITORIAL
Perversão das perversões
As religiões continuam aí a dar cabo das relações entre as pessoas e os povos. Digo-o a respeito de todas as religiões sem excepção. Mas sobretudo das três grandes religiões que, farisaica e competitivamente, se reclamam de ter no lendário Abraão a sua origem mais remota: - o Judaísmo, o Catolicismo e o Islamismo. Basta ver os fanatismos violentos, as cruzadas e as guerras santas em que todas elas se envolveram através dos tempos e em que ainda hoje continuam a envolver-se de múltiplos modos. E tudo, em nome de Deus ou de Alá, da Bíblia ou do Alcorão.
Neste tenebroso contexto da nossa actualidade, oiçam bem o que lhes digo: Às religiões, mas a todas elas sem excepção, pode muito bem aplicar-se aquela sábia palavra que Jesus, o de Nazaré, que não se agrada de nenhuma, disse acerca dos que escandalizam os mais pequeninos das sociedades: Melhor seria que atassem a todas uma pedra de moinho e as lançassem ao mar. Porque todas mais não fazem do que escandalizar, isto é, mais não fazem do que levar os povos ainda não ilustrados que as seguem, com maior ou menor fanatismo, a tropeçarem uns contra os outros e, muito pior do que isso, a odiarem-se e até a matarem-se uns aos outros. E também se lhes poderia aplicar aquela outra palavra não menos sábia do mesmo Jesus, o de Nazaré, acerca do sal que perde a força de salgar: é melhor lançá-las fora a todas, para que sejam pisadas pelos seres humanos, à medida que estes se tornem ilustrados e evangelizados. Pois que as Religiões, como o sal sem força de salgar, nem para a estrumeira servem.
Saibam todas as pessoas e todos os povos, com absoluta certeza, que não foi Deus quem fundou nenhuma destas três grandes religiões que têm vivido habitualmente em confronto entre si; assim como também não fundou nenhuma das muitas outras religiões menores que hoje por aí pululam como cogumelos depois das chuvas, cada qual a mais medíocre, a mais néscia, a mais enganadora, a mais mentirosa, a mais interesseira, e cujos pastores ou líderes vivem obcecadamente de olhos postos na carteira e no património dos respectivos clientes/fiéis.
Bem sei que hoje ninguém nos diz o que eu aqui rasgadamente digo e escrevo. Mas não se deixem enganar por vozes bem falantes e beatas. Porque Deus do que verdadeiramente gosta é de Política, não de Religião. E se, por acaso, anda por aí algum Deus que ainda gosta de Religião e não de Política, então só pode ser um falso Deus, um ídolo, imaginado/criado por seres humanos preguiçosos e alienados, que querem que Ele faça na História o que lhes cumpre a eles fazer, em comunhão inteligente com todos os outros seres humanos de boa vontade!
Toda a Religião digo-o sem que a voz me trema é intrinsecamente perversa. Porque é criação dos seres humanos. Visa, em última instância, ter acesso directo a Deus, ou ao Divino, para, de múltiplas maneiras, até com trafulhices da pior espécie, O “obrigar” a ser-nos favorável, nomeadamente, a troco de promessas, de sacrifício de animais, de frutos da terra e do trabalho humano, de longas orações, de ritos, de cultos, de liturgias, com mais ou menos pompa e circunstância, e segundo a diversidade de línguas e de culturas. Porém, um Deus que se deixasse subornar por todo esse tipo de coisas, objectivamente, tão sem jeito, para só então nos ser favorável, não seria Deus, mas um ídolo bem pior do que os seres humanos que se prezam, e que nunca suportarão que outros seus iguais alguma vez na vida se lhes dirijam com gestos e acções desse jaez!
O que entretanto, neste particular, tem baralhado os povos de todas as épocas e culturas, é que, pelo menos, na origem destas três grandes religiões monoteístas que farisaicamente se reivindicam de Abraão, há relatos de teofanias, sistematicamente interpretados como outras tantas revelações/manifestações de Deus, os quais, obviamente, parecem dar a todas e a cada uma delas um carácter de religião verdadeira. Cada uma delas resultaria duma intervenção directa de Deus.
Por outro lado, há hoje milhares, milhões de livros nas grandes bibliotecas espalhadas pelo mundo inteiro que vão todos neste sentido. E todos, ou quase, fazem questão de referir a Religião como o patamar mais insigne a que chegaram os seres humanos. Em que ficamos então? Para onde nos havemos de virar?
Sou o primeiro a saber de tudo isso. E mesmo assim, não hesito em dizer que tudo isso não passa de mentira. Inclusive, todos os relatos teofânicos a que se refere a história das religiões são mentira. Porque a Deus, nunca ninguém O viu, nem ouviu! Tanto no princípio da humanidade, como nestes dias que são os nossos. E quem disser que O viu ou ouviu, para com isso mais facilmente poder sobrepor-se aos demais e obter e justificar a manutenção de benefícios e privilégios (ai, Vaticano, Vaticano!, ai papado, papado! ai hierarquia, hierarquia!) é um mentiroso!
Bem sei que a Bíblia está cheia de relatos de teofanias. Abraão, Moisés e os profetas são apresentados como protagonistas de várias teofanias. E o próprio Alcorão diz o mesmo de Maomé. É, pois, um facto indesmentível. Mas já não é verdade dizermos que Abraão, Moisés e os profetas bíblicos, ou, séculos mais tarde, Jesus, ou, outros séculos mais tarde, Maomé, protagonizaram todas aquelas cenas espectaculares de que a Bíblia e o Alcorão falam. Os relatos existem, mas não são para tomar à letra, como uma reportagem de jornal, hoje.
Entre os relatos teofânicos e a Realidade relatada por eles há um abismo. O relato tenta dizer o Indizível, alerta para o Mistério de que anda carregada a Realidade em que vivemos e que nós próprios, os seres humanos, também somos, tenhamos ou não consciência disso. O relato pode predispor quem o lê ou escuta a abrir-se ao Mistério e a deixar-se fazer por ele. Mas o relato não é o Mistério. É apenas letra que podemos saber de cor e reproduzir a vida inteira como um aplicado papagaio, sem que alguma vez o Mistério nos chegue a atingir a consciência.
Quem, entretanto, alguma vez deu pela presença do Mistério, no mais íntimo da sua consciência, sabe simplesmente que o Mistério é que nos faz, sem que nós alguma vez possamos manipulá-lO. É por isso que quem alguma vez passou por essa experiência-revelação, torna-se despojado de tudo e o mais humilde de todos. Viu-se, inopinadamente no Mistério, ao mesmo tempo que o Mistério se lhe escapava e lhe revelava o Invisível como uma Presença/Ausência, absolutamente gratuita. Semelhante experiência é vivida como uma morte/ressurreição que esvazia a pessoa de si mesma e de todas as coisas que antes ela tinha como importantes, centra-a no essencial e como que a funde no Mistério sempre Invisível aos olhos, ao ponto dela ser, sem o saber, entre os mais, um sacramento vivo do Invisível e Indizível, ao mesmo tempo cativador e perturbador, terno e radical, acolhedor e interpelador, gerador de alegria e de respeito.
Admito que na origem do que são hoje as Religiões, nomeadamente as três grandes que se reivindicam de Abraão, podem ter estado pessoas que protagonizaram a indizível experiência do Mistério. Nunca o saberemos com ciência exacta. Mas uma coisa sabemos: Se tiverem estado, nunca elas podem ter estado na origem da Religião. Porque a experiência do Mistério leva a pessoa a perceber que não é ela quem alcança Deus, é Deus quem nos alcança e nos faz à sua imagem e semelhança. Por isso, o viver quotidiano de quem foi alcançado por Deus nunca mais se gasta em ritos e actos de culto até à náusea, dentro de templos e de costas para o mundo. O seu viver quotidiano consome-se todo em respostas pessoais, feitas de acções concretas, que vão de encontro aos clamores das vítimas e dos oprimidos da História. E isto é a Política que Deus gosta e que glorifica o seu nome. Ao contrário da Religião, que é para Deus um vómito!
É por isso que todas as pessoas “apanhadas” alguma vez pelo Mistério e, nele, viram como num relâmpago que a Realidade é infinitamente maior do que os nossos sentidos dizem que é, tornam-se pessoas fecundamente insubmissas, sem religião, e em ruptura com tudo o que seja domínio, poder, privilégio. Simplesmente são! Numa relação sororal/fraterna universal e cósmica, em que estão incluídas todas pessoas e todos os povos sem discriminação, e todos os seres viventes sem excepção. Pois de todos elas se experimentam irmãs/irmãos no afecto e na acção intrinsecamente política.
A religião só pode nascer por iniciativa de pessoas que vivem à sombra das que protagonizaram a experiência do Mistério. Ao verem que essa experiência lhes pode trazer e aos do seu clã grandes benefícios em riqueza, em poder, em influência, em projecção social, logo se servem dela e passam a manipular o nome de Deus. É a perversão das perversões. Mas é isso a Religião. A perversão das perversões. Onde Deus não passa de um “boneco” nas mãos dos líderes religiosos, sacerdotes e pastores, e que eles agitam como uma árvore das patacas. Ai das populações que caem sob a sua alçada. Sugam-nas até ao último cêntimo, como fazia o tesouro do Templo de Jerusalém, no tempo de Jesus, às viúvas pobres da Palestina, que as sugava até ao osso. Em nome de Deus!
Vosso companheiro e irmão,
Mário, presbítero da Igreja do Porto.
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ESPAÇO ABERTO
O pesadelo dos medicamentos
Entre 2000 e 2003, a quase totalidade das grandes empresas farmacêuticas passou pelos tribunais dos EUA, acusadas de práticas fraudulentas. Oito dessas empresas foram condenadas a pagar mais de 2,2 mil milhões de dólares de multa. Em 4 destes casos, as empresas farmacêuticas implicadas Tap Pharmaceuticals, Abbot, AstraZenaca e Bayer reconheceram a sua responsabilidade por actuações criminosas que puseram em perigo a saúde e a vida de milhares de pessoas. Se quiserem saber mais pormenores sobre as actuações criminosas das empresas farmacêuticas, leiam o texto que se segue, elaborado pelo Jornal Fraternizar a partir do n.º 141 de Cuadernos CJ (Cristianisme i Justícia), integralmente escrito por Teresa Forcades i Vila, monja beneditina, doutora em medicina e, neste momento, a preparar também um doutoramento em teologia. Verão que a realidade é um verdadeiro pesadelo, a que urge pôr cobro. Como? Eis a questão. Mas o primeiro passo consiste em tomar consciência dele. O monstro tem múltiplas cabeças e é multinacional. Mas não há nenhum “Golias” que não possa ser derrubado pela “pedra” duma “funda” lançada pelo mundo do Pobre, como no-lo revela o relato bíblico do jovem David. Vamos à luta! Esta é a hora, tanto mais quanto as grandes empresas farmacêuticas estão hoje mergulhadas num grande impasse, sem mais imaginação para criar novos medicamentos que respondam às reais necessidades das populações. A febre dos lucros subiu-lhes de tal modo à cabeça, que elas perderam a capacidade de criar e de inovar. Limitam-se a produzir e a vender mais do mesmo, sob rótulos diferentes. E se há causa que possa mobilizar as populações do mundo, do Norte e do Sul, é a causa da saúde e da qualidade de vida. Eis.
As grandes companhias farmacêuticas utilizam hoje a sua riqueza e o seu poder para defenderem os seus próprios interesses à custa do bem-estar, da saúde e da vida de outras pessoas.
De acordo com o Relatório elaborado no ano passado (2005) pela Comissão de peritos do Parlamento inglês, os interesses da indústria farmacêutica e os do conjunto da população não coincidem.
São quatro as principais estratégias utilizadas hoje pela indústria farmacêutica para obter os seus lucros multimilionários:
1) Comercializar e efectuar uma extraordinária pressão propagandística dos medicamentos que ela própria fabrica, mesmo que estes não sejam úteis às pessoas e até possam ser nocivos e inclusive mortais; 2) explorar ao máximo os medicamentos (incluídos os essenciais) sob a forma de monopólio e em condições abusivas que não têm em conta nem as necessidades objectivas dos doentes nem a sua capacidade aquisitiva; 3) reduzir ao mínimo ou eliminar totalmente em alguns casos a investigação das doenças que afectam principalmente os pobres, porque não são rentáveis, e concentrar-se nos problemas das populações com alto poder aquisitivo, mesmo quando não se trate de doenças propriamente ditas, como é o caso da proliferação de “medicamentos” contra o envelhecimento; 4) forçar as legislações nacionais e internacionais para que favoreçam os seus interesses, embora à custa da vida de milhões de pessoas.
Eis alguns factos concretos que comprovam a verdade de cada uma destas quatro principais estratégias:
1) Dados da agência reguladora dos medicamentos dos EUA mostram que entre 1998 e 2002 registaram-se oito suicídios naquele país entre doentes de epilepsia que tomavam gabapentina da casa Pfizer (o seu nome comercial é Neurontin). No primeiro semestre de 2003, o número de suicídios registado foi de 17. Depois que um núcleo de advogados estadoniense tornou públicos estes dados e abriu um registo para divulgação de outros incidentes do género, foram documentadas, entre os meses de Setembro de 2003 e Agosto de 2004, 2.700 tentativas de suicídio entre os doentes que tomavam gabapentina, dos quais 200 terminaram com a morte do doente. Portanto, em apenas 12 meses, 2500 tentativas de suicídio falhadas, e 200 suicídios consumados!
Os dados foram tornados públicos e, mesmo assim, em 2004 a revista British Medical Journal informava que nem a agência reguladora dos medicamentos do país, nem a empresa Pfizer tomaram qualquer medida, nem sequer a de passar a indicar no prospecto que acompanha o medicamento o alerta para o risco de suicídio. Actualmente, a página na net da Pfizer já alerta para o risco de suicídio do Neurontin, mas para se chegar a essa informação têm que ler-se primeiro 26 páginas de explicações farmacológicas e de possíveis efeitos secundários…
Quanto ao antidepressivo sertralina (Zoloft), também da Pfizer, a referida revista informava que a companhia havia ocultado a informação sobre os possíveis efeitos secundários de tentativa de suicídio e de agressividade. E só depois do chocante caso de Christopher Pittman (um menino de 12 anos que começou a mostrar um comportamento altamente agressivo, poucas semanas depois de iniciar um tratamento com sertralina e que, dois dias depois que lhe dobraram a doze, assassinou os avós e incendiou a casa), é que a agência europeia de regulação dos medicamentos finalmente desaconselhou o seu uso em menores…
Segundo a rede de centros regionais de farmocovigilância de França, todos os anos, um milhão e 300.000 franceses são hospitalizados no sector público devido a efeitos indesejáveis de um medicamento. Este número representa 10% do total das hospitalizações. Ora, de todas estas pessoas, um terço apresenta-se no hospital em estado grave; e pelo menos 18.000 morrem cada ano (o dobro do número de mortos na estrada no país).
2) Desde que entrou em vigor em 2005 a nova legislação sobre patentes dos medicamentos essenciais, é brutal o seu impacto no acesso a esses medicamentos essenciais, especialmente nos países pobres. Trata-se de optar pelo prolongamento e pela qualidade de vida das povoações do Norte, à custa de encurtar de forma imediata, em dezenas de anos, a esperança de vida nas populações dos países do Sul. O que equivale a condenar 90% dos que precisam de medicamentos para continuarem a viver, para que os preços se mantenham elevados para apenas 10% de privilegiados. O que perfaz uma obscenidade e inaugura o que poderemos chamar “um reinado de terror”.
Mas o abuso do actual sistema de exploração de patentes não afecta apenas os países do Terceiro Mundo. Nos países ricos do Primeiro Mundo, há cada vez mais pessoas com dificuldade para pagar o preço dos tratamentos prescritos pelos médicos. Para reduzir despesas, há já quem tome os medicamentos dia sim, dia não e quem os partilhe com outras pessoas da sua família. Nos EUA, tomar um medicamento durante um ano pode custar actualmente 1.500 dólares. As pessoas com mais de 65 anos chegam a tomar em média 6 medicamentos por dia, o que perfaz uma despesa anual por pessoa de 9.000 dólares!
3) Em 2001, o grupo de Médicos Sem Fronteiras publicou um Relatório intitulado Desequilíbrio fatal que teve enorme impacto na opinião pública na altura, mas depressa foi esquecido. Segundo este Relatório, as doenças que afectam principalmente as populações empobrecidas são pouco investigadas e as doenças que afectam exclusivamente as populações empobrecidas não são de todo investigadas. Algumas dessas doenças, como por exemplo a fase crónica da doença de Chagas (uma infecção que afecta milhões de pessoas na América Latina) não têm qualquer opção terapêutica! Do referido Relatório, conclui-se que 90% dos recursos sanitários do mundo são dedicados a investigar as doenças que afectam 10% dos doentes do mundo (precisamente, os do Primeiro Mundo). O que quer dizer que apenas 10% daqueles mesmos recursos são gastos a investigar as doenças que afectam os outros 90% de doentes do mundo. Este dado é conhecido como “desequilíbrio 10/90”.
As doenças tropicais, por exemplo, são doenças esquecidas. Do total de 1.397 medicamentos comercializados entre 1975 e 1999, apenas 13 (1%) destinavam-se ao tratamento duma doença tropical. As doenças esquecidas incluem, entre outras: a malária, a tuberculose, a doença de Chagas, a úlcera de Buruli, e a lepra, a maior parte delas doenças dos pobres!
Alguém poderá objectar que as empresas privadas têm direito a investir o seu dinheiro onde melhor lhes pareça. Porém, a verdade é que o dinheiro que financia as investigações não é só privado, mas provém também de acordos com a saúde pública. O que quer dizer que nós, público em geral, pagamos duas vezes pelo mesmo produto e, além disso, não temos qualquer controlo democrático sobre as prioridades em que se gasta o referido dinheiro. Pagamos, primeiro, para financiar as investigações e depois para adquirir os medicamentos. Assim não é de estranhar os lucros multimilionários das empresas farmacêuticas. Por exemplo: dos 17 ensaios clínicos que validaram os 5 medicamentos mais vendidos durante o ano de 1995 (Zantac, Zovirax, Capoten, Vasotec e Prosac), apenas 1 foi financiado pela indústria farmacêutica. Do conjunto dos estudos considerados decisivos para chegar a desenvolver estes 5 medicamentos, concluiu-se que apenas 15% foram financiados pela indústria farmacêutica.
Os investigadores do grupo Médicos Sem Fronteiras advertem também que não são só os laboratórios os responsáveis pelo desequilíbrio fatal, mas todas as instituições públicas e privadas que colaboram para que a produção de medicamentos se oriente de forma exclusiva ao lucro económico e menospreze o sofrimento dos doentes. Se as doenças mais estudadas não são as que mais afectam a humanidade, então quais são elas? Vejam só: Segundo o referido Relatório, a maior parte dos esforços financeiros e intelectuais da investigação sanitária de todo o mundo em 2001 foram destinados a investigar a impotência sexual, a obesidade e a insónia!!!
Além de não serem tidos em conta, quando se trata de decidir as prioridades da investigação de novos medicamentos, os doentes dos países pobres especialmente, os africanos são utilizados como cobaias para se obterem informações sanitárias diversas que depois nunca os beneficiam a eles. No Quénia, por exemplo, e sob a responsabilidade da Universidade de Washington, realizaram-se, em finais da década de noventa, estudos clínicos para observar a evolução natural da doença da SIDA. O que significa que, com a desculpa de que eles sempre acabariam por morrer, centenas de africanos foram sujeitos a provas complementares para analisar como se iam deteriorando até morrerem, à medida que avançava a infecção, sem nunca lhes ter sido oferecido o respectivo tratamento que poderia tê-la detido!!!
4) A indústria farmacêutica dispõe nos EUA (sede das empresas que dominam o mercado global) de um número de lobbys profissionais superior ao número de congressistas. O que significa na prática que cada parlamentar tem à perna um ou mais destes profissionais que estudam o seu perfil psicológico, a sua história pessoal e laboral e detectam os pontos fracos através dos quais podem pressioná-lo para que vote, ou proponha no Parlamento leis favoráveis aos interesses da indústria farmacêutica (por isso, contrários aos do bem comum) e para que vote sempre contra as propostas contrárias a esses mesmos interesses. No ano de 2002, por exemplo, 26 destes 675 lobbys eram ex-parlamentares, 342 eram ex-trabalhadores do Parlamento, e 20 tinham exercido cargos directivos.
Ao mesmo tempo, as empresas farmacêuticas foram ao ponto de criar organizações que se apresentam na sociedade como iniciativas espontâneas de cidadãos, quando mais não são do que organizações financiadas por elas para defenderem os interesses delas. Quando se trata, por exemplo, de fazer substituir um medicamento por um outro novo que vai entrar no mercado, esses cidadãos multiplicam-se em declarações aos media a testemunhar que o novo é que é bom e que já o experimentaram com resultados espectaculares… Tudo em troca de dinheiro ou outras compensações em que são hábeis as grandes empresas farmacêuticas. Mercado livre, isto? Mercado selvagem, é o que é.
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MANUEL SÉRGIO Reitor do Instituto Piaget
Manuel Reis- Um pensador pós-moderno
Manuel Reis é, hoje, um dos mais altos expoentes de um pensamento que eu chamo pós-moderno, porque anti-dualista, anti-capitalista, anti-individualista e porque descobre em Sócrates e Jesus as mensagens “que são o fundamento antropológico e a fundação filosófico-teológica de um Projecto sócio-antropológico inteiro e completo, digno, esse sim, da Humanidade e da humanização da Espécie, justamente porque repleto da mais acrisolada humanitude, tanto em acto, nas duas figuras paradigmáticas, como em potenciação, para todos os seus seguidores” Projecto que “tem sido inalteravelmente escamoteado e votado ao ostracismo, ferozmente combatido e propositadamente ignorado pelas classes dominantes e pelas instâncias directoras das Sociedades, ao longo dos últimos dois milénios e meio”.
Este texto colhi-o, no terceiro capítulo do livro de Manuel Reis (intitulado Sócrates e Jesus: esses desconhecidos!...) de uma atenção sôfrega, inesgotável e lucidíssima pelo tempo em que vivemos tempo de vitória da Democracia, como o proclama o Sr. Bush, mas tempo também onde à igualdade política corresponde uma insanável desigualdade social.
O casamanto Democracia-Desigualdade está aí à vista de todos e até alguns políticos, ditos de esquerda, quando chegam ao poder, se mostram relapsos em esquecer os crimes daquela parelha.
Não tenho dúvidas em escrever que a atmosfera espiritual de todos os povos de superior civilização se aproxima ou decorre dos conceitos socráticos e da mensagem de Jesus de Nazaré. Volto a Manuel Reis, no livro acima citado (Editorial Estante, 2006, p. 31): “A mensagem do vero e autêntico Jesus histórico apresenta-se centrada no que podemos chamar, com propriedade, um Projecto sócio-antropológico completo e integral, cuja identidade própria, ao longo da História conhecida (...) tem de reconhecer-se que é absolutamente incomparável. Mahatma Gandhi sabia-o muito bem e ele próprio confessou que muito tinha aprendido com Jesus e o seu princípio original da Não-Violência”.
Mas, pós-moderno que é e portanto rejeitando processos de racionalização, em que se configura um tipo de ser humano orientado para o domínio e a soberania do mundo, incluindo a própria natureza, e aceitando uma cosmovisão descentrada, dessacralizada e pluralista Manuel Reis denuncia, com vigor e... senso, o “Extra Ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação), que tem amedrontado e anestesiado milhões de crentes e ainda (o que as Igrejas são, indiscutivelmente) uma tradição sem contradição, ajoujada de continuidades e determinismos e sem as necessárias rupturas e descontinuidades.
Observa Manuel Reis que Sócrates e Jesus “ensinaram e estabeleceram o primado absoluto dos Sujeitos Humanos inteligentes, livres e responsáveis, sobre os objectos, todos os seres e objectos, sejam eles profanos ou sagrados. Em virtude das suas obras e discursos e testemunhos, ambos tiveram de sofrer processos exemplares e paradigmáticos de condenação à morte. Ambos foram posteriormente atraiçoados, na genuinidade das suas mensagens, pelos seus seguidores mais imediatos e credenciados. Sócrates, por Platão e Aristóteles; Jesus, pelos Apóstolos, a começar por Pedro e por Paulo”(p. 47). E, porque foram atraiçoados, isto é, porque o poder eclesiástico e o poder civil se transformaram em Establishment, acaudatado por mulheres e homens do sistema, bem é que “a morte de Deus se concretize” e que as Igrejas se subordinem à vida e não a vida às Igrejas.
“Sócrates havia proposto o Diálogo maiêutico e dialéctico, em pé-de-igualdade para todos os humanos, como instrumento e condição sine qua non para elaborar os Conceitos, construir a Justiça e a Verdade e edificar a vera e autêntica Sociedade democrática”. Por seu turno, “a Mensagem sócio-antropológica de Jesus configurava-se, precisamente, nos antípodas do Judaísmo oficial do Sinédrio.
Desde logo, Jesus havia inaugurado uma maneira inteiramente nova de encarar e assumir a Lei, o que levava a estabelecer a “lex Amoris”, como a mais básica e suprema lei”(p. 169).
Conheço Manuel Reis, através dos seus livros, e tenho por ele sólida admiração. Relembro o seu O Cristão no Mundo de Hoje, editado pela Livraria Morais Editora, em 1965, onde reli: “Razão e Fé não são, de facto, dois domínios autónomos, nem propriamente dois critérios independentes de conhecimento da verdade; são, outrossim, tão somente dois métodos de comunhão com a mesma verdade (...). Por essa razão, assim como a fé não consiste, propriamente, na conquista e posse da verdade, mas na comunhão vital com os seres e o Ser, assim também o conhecimento da Razão não consiste, propriamente, na conquista e posse da verdade, mas antes no contacto profundo e vital do sujeito cognoscente com o objecto conhecido” (pp. 179/180).
Recordo também o seu Igreja sem Cristianismo ou Cristianismo sem Igreja?, publicado por Moraes editores, quatro anos depois, onde me surpreendi, com a ousadia do Manuel Reis: “A nova Teologia radical é marcada por um carácter concreto, histórico, social e principalmente dialéctico. O seu propósito fundamental consiste em viver e pensar como cristãos sem Deus experiência que é considerada, antes de mais, como tarefa prático-política e teórico-teológica” (p. 75).
O livro que vem de publicar continua e complementa os anteriores, devido à extensa cultura humanística do seu autor e ao seu espírito crítico, o que o coloca ao abrigo de soluções retrógradas ou simplistas.
Manuel Reis anda em demanda do Jesuanismo, para além do Cristianismo. Acompanhá-lo é o que se nos pede. Vamos em boa companhia: Manuel Reis é um intelectual de escol e um militante de causas sem uma nota subserviente ou religiosa. Sócrates e Jesus: esses desconhecidos!... é uma prova evidente que o acto de escrever não é um acto solitário, mas solidário. Enfim, um livro para ler, com atenção e... com amor!
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FREI BETTO Teólogo brasileiro (1)
Os mandamentos do consumismo
A publicidade cerca-nos de todos os lados - na TV, nas ruas, nas revistas e jornais - e força-nos a ser mais consumidores que cidadãos. Hoje, tudo se reduz a uma questão de marketing.
Uma empresa de alimentos geneticamente modificados pode comprometer a saúde de milhões de pessoas. Não tem a menor importância se uma boa máquina publicitária for capaz de tornar a sua marca bem aceite entre os consumidores.
Isso vale também para o refrigerante que descalcifica os ossos, corrói os dentes, engorda e cria dependência. Ao bebê-lo, um bando de jovens exultantes sugere que, no líquido borbulhante, encontra-se o elixir da suprema felicidade.
A sociedade de consumo é religiosa às avessas. Quase não há clipe publicitário que deixe de valorizar um dos sete pecados capitais: soberba, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria.
‘Capital’ significa ‘cabeça’. Ensina meu confrade Tomás de Aquino (1225-1274) que são capitais os pecados que nos fazem perder a cabeça e dos quais derivam inúmeros males.
A soberba faz-se presente na publicidade que exalta o ego, como o feliz proprietário de um carro de linhas arrojadas ou o portador de um cartão de crédito que funciona como a chave capaz de abrir todas as portas do desejo. A inveja faz crianças disputarem qual de suas famílias tem o melhor veículo.
A ira caracteriza o nipónico quebrando o televisor por não ter adquirido algo de melhor qualidade. A preguiça está a um passo dessas sandálias que convidam a um passeio de lancha ou abrem as portas da fama com direito a uma confortável casa com piscina.
A avareza reina em todas as poupanças e no estímulo aos prémios de carnês. A gula, nos produtos alimentícios e nas lanchonetes que oferecem muito colesterol em sanduíches piramidais.
A luxúria, na associação entre a mercadoria e as fantasias eróticas: a cerveja espumante identificada com mulheres que exibem seus corpos em reduzidos biquínis.
Os cinco mandamentos da era do consumo são: 1º) Adorar o mercado sobre todas as coisas. Tudo se vende ou se troca: objetos, cargos públicos, influências, ideias etc. Em economias arcaicas, ainda presentes em regiões da América Latina, a partilha dos bens materiais e simbólicos assegurava a sobrevivência humana. Agora, ao valor de uso sobrepõe-se o valor de troca. É preferível deixar apodrecer alimentos cujos preços exigidos pelos produtores deixam de oferecer a mesma margem de lucro. Segundo o mercado, tombam os seres humanos, mas seguram-se os preços.
2º) Não profanar a moeda, desestabilizando-a. Dizem que outrora povos indígenas sacrificavam vidas humanas para aplacar a ira dos deuses. Abominável? Nem tanto. O ritual prossegue; mudaram-se apenas os métodos.
Em 1985, o Nacional, um dos maiores bancos brasileiros, começou a naufragar. Durante dez anos, graças a operações fraudulentas, o Nacional conseguiu sacar milhares de milhões de dólares do Banco Central. Em outubro de 1995, o governo FHC criou, por decreto, o Proer - um programa de socorro a bancos em dificuldades. Na ocasião, um único banco foi favorecido: o Nacional, com o equivalente a US$ 6 mil milhões.
3º) Não pecar contra a globalização. Graças às novas tecnologias de comunicação, o mundo transformou-se numa pequena aldeia. De facto, o Planeta ficou pequeno, frente às imensuráveis ambições das corporações transnacionais. Por que investir na protecção do meio ambiente se isso não aumenta o valor das acções na Bolsa?
4º) Cobiçar os bens estatais e públicos em defesa da privatização. Se não é o bem comum o valor prioritário, e sim o lucro, privatize-se tudo: saúde, educação, rodovias, praias, florestas etc. Privatizar é afunilar a pirâmide da desigualdade social. Os lucros são apropriados por uma minoria, e os prejuízos - o desemprego e a miséria - socializados. Menos serviços públicos, maior a parcela da população excluída do acesso aos serviços pagos.
Antes do leilão da Usiminas, uma das maiores siderúrgicas brasileiras, a Nippon subscrevera 14% do capital da empresa. Quando houve aumento do capital da Usiminas, a Nippon não se interessou, o que reduziu sua participação acionária para 4,8%. Iniciado o processo de privatização, as ações da Usiminas valorizaram e a empresa japonesa obteve o privilégio de resgatar a sua participação originária pagando US$ 39,79 por cada lote de 1.000 acções - quando, na Bolsa, a cotação já atingira US$ 523,90. A Nippon obteve lucro de 1.340%.
O património da Usiminas valia US$ 12 mil milhões. Foi vendida por US$ 1,65 mil milhões. E ninguém foi parar na cadeia por este assalto ao património nacional. Do que se arrecadou com o leilão da Usiminas, 73,3% foram pagos com “moedas podres” e 26,4% em Certificados de Privatização. Papéis coloridos. Em dinheiro sonante entraram apenas R$ 4,69 mil, metade do preço de um carro “popular”, sem ágio.
5º) Prestar culto aos sagrados objectos de consumo. Percorremos aceleradamente o trajecto que conduz da esbeltez física à ostentação pública de celulares, da casa de veraneio ao carro importado, fazendo de conta que nada temos a ver com a dívida social.
Expostos à má qualidade dessa media electrónica que nos oferece felicidade em frascos de perfume e refrigerante, alegria em maços de cigarro e enlatados, já não há espaço para a poesia nem tempo para curtir a infância. Perdemos a capacidade de sonhar sem ganhar em troca senão o vazio, a perplexidade, a perda de identidade.
Em doses químicas, a felicidade nos parece mais viável que percorrer o desafiante caminho da educação da subjetividade. Mercantilizam-se relações conjugais e de parentesco e amizade. Nesse jogo, como nos filmes americanos, quem não for esperto e despudoradamente cruel, morre.
Só há esperança para quem acredita que o dilúvio neo-liberal não é capaz de inundar todos os sonhos e ousa navegar, ainda que soprem fracos os ventos, nas asas da solidariedade aos excluídos, da luta por justiça, do cultivo da ética, da defesa dos direitos humanos e da busca incansável de um mundo sem fronteiras, também entre abastados e oprimidos. Mas isso é outra história, que exige muita fé e certa dose de coragem.
A propósito: o contrário da soberba é a humildade; da inveja, o despojamento; da ira, a tolerância; da preguiça, o compromisso; da avareza, a partilha; da gula, a sobriedade; da luxúria, o amor.
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FREI BETTO Teólogo brasileiro (2)
Encontros com Fidel
Conheci Fidel em Manágua, na noite de 19 de Julho de 1980, primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Lula e eu estávamos na casa de Sérgio Ramirez, quando ele chegou para se entrevistar com empresários nicaraguenses. Cumprimentou-nos e refugiou-se na biblioteca. Eram duas da madrugada, quando o padre Miguel D’Escoto, chanceler da Nicarágua, indagou se tínhamos interesse em conversar com o Comandante. O diálogo estendeu-se até às seis da manhã, observado por Chomy Miyar, atento às fotografias, e um Manuel Piñero sonolento, desabado sobre a espessa barba que servia de anteparo a um longo charuto apagado.
Falamos de religião. Foi quando ele me perguntou se estaria disposto a vir a Cuba para assessorar a reaproximação entre o governo e a Igreja Católica. Respondi que dependeria dos bispos cubanos que, no ano seguinte, responderam positivamente à proposta.
Em Fevereiro de 1985 vim a Havana, convidado pela Casa de las Américas. Na véspera do retorno ao Brasil, Chomy convidou-me para jantar em sua casa. Batia a meia-noite quando Fidel chegou. Voltamos ao tema religioso. Desta vez ele deu um longo depoimento sobre a sua formação católica na família e nas escolas dos lassalistas e jesuítas. Indaguei se estaria disposto a repetir o que me revelara numa pequena entrevista que serviria de fecho ao livro que eu pretendia escrever sobre a Revolução. Assentiu e acertamos fazê-la em Maio daquele ano.
Desembarquei na data combinada, que coincidiu com o início das emissões da Rádio Martí. Fidel escusou-se, disse que a nova conjuntura o impedia de conceder tempo à entrevista, talvez em outro momento. Senti-me como o pescador de “O velho e o mar”, de Hemingway. Eu tinha o “tubarão” na ponta da linha e não deveria deixá-lo escapar. Tanto insisti que me indagou que tipo de perguntas eu preparara. Li as primeiras cinco das 64 que havia anotado. “Amanhã iniciamos,” disse ao interromper-me. Foram 23 horas repartidas em quatro conversas, na presença de Armando Hart, e que resultaram no livro “Fidel e a Religião”, que alcançou cerca de 1 milhão e 300 mil exemplares em Cuba e saiu publicado em 32 países, em 23 idiomas. Agora uma nova edição, em inglês, acaba de ser editada na Austrália pela Ocean Press.
Em 1986, desembarquei em Havana trazendo uma caixa com 100 exemplares da Bíblia em espanhol. Esvaziou rapidamente, tantos os pedidos que recebi de cristãos e comunistas. Certa tarde, encontrava-me a escrever no meu quarto, quando Fidel entrou inesperadamente. Contei-lhe sobre as Bíblias e ele perguntou: “Não sobrou nenhuma para mim?” Dediquei-lhe a única que me sobrava: “Ao Comandante Fidel, em quem Deus crê e a quem ama.” Ele se sentou numa cadeira de vime e me perguntou: “Onde está o Sermão da Montanha?” Apontei-lhe as versões de Mateus e Lucas. Leu-as e indagou: “Qual das duas você prefere?” Meu lado esquerdista falou por mim: “A de Lucas, porque além das bem-aventuranças, enumera também as maldições contra os ricos.” Fidel reflectiu por um momento e reagiu: “Discordo de você. Prefiro a de Mateus, é mais sensata.”
Meus pais tinham vindo comigo a Havana. Uma madrugada, por volta de 2h, o Comandante levou-me à casa onde estávamos hospedados. Perguntou se “los viejos” estariam acordados. Falei que não, mas trataríamos de despertá-los. Ele objectou, melhor que continuassem a repousar. “Comandante, não pense no sono deles esta noite. Pense no facto de os netos poderem contar, no futuro, que os avós foram despertados em plena madrugada pelo homem que liderou a Revolução Cubana.” Convenci-o, acordámos meus pais e, em torno da mesa da cozinha, a conversa prolongou-se até amanhecer.
Minha mãe, especialista em culinária, ofereceu-lhe um jantar. De sobremesa, ambrosia, o doce dos deuses, segundo Homero na “Ilíada”. Na manhã seguinte, o chefe da escolta de Fidel bateu à porta: “Senhora, o Comandante manda perguntar se sobrou um pouco da sobremesa de ontem?” Mamã mandou que esperasse e, em poucos minutos, preparou o doce feito à base de leite, ovos e açúcar.
Em março de 1990, Fidel esteve no Brasil, por ocasião da posse de Collor, eleito presidente. Em São Paulo, levei-o a um encontro com mais de 1.000 líderes de Comunidades Eclesiais de Base. Encerrámos com cânticos litúrgicos e todos, de mãos dadas, orámos o Pai Nosso. O Comandante me apertou a mão e, embora seus lábios não se movessem, tive a impressão de ver seus olhos marejados de lágrimas.
Em 1998, logo após João Paulo II despedir-se de Cuba, Fidel convidou um grupo de teólogos para almoçar no Palácio da Revolução. Estava feliz com a visita papal e sinceramente afeiçoado ao pontífice. Um dos teólogos criticou o facto de João Paulo II presentear a Virgen de la Caridad com uma coroa de ouro, cujo valor poderia ter sido revertido em prol de medicamentos para crianças ou algo parecido. Fidel reagiu enfático em defesa do papa e deu ao teólogo uma lição sobre a importância da padroeira de Cuba na religiosidade popular. O presente era merecido. O teólogo engasgou-se com as próprias palavras.
Este é o Fidel que conheço e tanto aprendi a admirar. Tenho-o na conta de um irmão mais velho. Ele disse, por ocasião da entrevista, que “se alguém pode fazer de mim um cristão é Frei Betto.” Ora, como poderia eu pretender evangelizar um homem que fez da sua vida uma dedicação de amor, heróica e integral, ao povo da pátria de Martí? “Eu tive fome e deste-me de comer”, diz Jesus no evangelho de Mateus (cap. 25, 31-44). Se é assim, o que dizer de um homem que, como Fidel, livrou todo um povo, não apenas da fome, mas também do analfabetismo, da mendicância, da criminalidade e da submissão ao Império?
Feliz edad, Fidel!
La Habana, 13 de agosto de 2006.
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L. BOFF Teólogo brasileiro
Os 80 anos de Fidel
O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar os que não gostam de Cuba ou de Fidel Castro. Não me importo com isso. Se não vês o brilho da estrela na noite escura, a culpa não é da estrela mas de ti mesmo.
Em 1985, o então Card. Joseph Ratzinger submeteu-me, por causa do livro Igreja: carisma e poder, a um “silêncio obsequioso”. Acolhi a sentença, deixando de dar aulas, de escrever e de falar publicamente. Meses após, fui surpreendido com um convite do Comandante Fidel Castro, pedindo-me para passar 15 dias com ele na Ilha, durante o tempo de suas férias. Aceitei imediatamente, pois via a oportunidade de retomar diálogos críticos que junto com Frei Betto havíamos entabulado anteriormente e por várias vezes.
Demandei a Cuba. Apresentei-me ao Comandante. Ele imediatamente, à minha frente, telefonou para o Núncio Apostólico com o qual mantinha relações cordiais e disse: ”Eminência, aqui está o Frei Boff; ele será meu hóspede por 15 dias; como sou disciplinado, não permitirei que fale com ninguém nem dê entrevistas, pois assim observará o que o Vaticano quer dele: o silêncio obsequioso. Eu vou zelar por essa observância”. Pois assim aconteceu.
Durante 15 dias seja de carro, seja de avião, seja de barco mostrou-me toda a Ilha. Simultaneamente, durante a viagem, corria a conversa, na maior liberdade, sobre mil assuntos de política, de religião, de ciência, de marxismo, de revolução e também críticas sobre o deficit de democracia.
As noites eram dedicadas a um longo jantar seguido de conversas sérias que iam madrugada a dentro, às vezes até às 6.00 da manhã. Então levantava-se, estirava-se um pouco e dizia:”agora vou nadar uns 40 minutos e depois vou trabalhar”. Eu ia anotar os conteúdos e depois, sonso, dormia.
Alguns pontos daquele convívio me parecem relevantes. Primeiro, a pessoa de Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é antes ético que político: como fazer justiça aos pobres? Em seguida, o seu bom conhecimento da teologia da libertação. Lera uma montanha de livros, todos anotados, com listas de termos e de dúvidas que tirava a limpo comigo.
Cheguei a dizer: “se o Card. Ratzinger entendesse metade do que o Sr. entende de teologia da libertação, bem diferente seria o meu destino pessoal e o futuro desta teologia”.
Foi nesse contexto que me confessou: “Mais eu mais estou convencido de que nenhuma revolução latino-americana será verdadeira, popular e triunfante, se não incorporar o elemento religioso”.
Foi talvez por causa desta convicção que praticamente nos obrigou, a mim e ao Frei Betto, a darmos sucessivos cursos de religião e de cristianismo a todo o segundo escalão do Governo e, em alguns momentos, com todos os ministros presentes. Esses verdadeiros cursos foram decisivos para o Governo chegar a um diálogo e a uma certa “reconciliação” com a Igreja Católica e demais religiões em Cuba.
Por fim mais uma confissão sua: “Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles deram-me disciplina, mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão norte-americana, tive que me aproximar da União Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente tê-la-ia abraçado e aplicado em Cuba.” E arrematou: ”Se um dia eu voltar à fé da infância, será pelas mãos de Frei Betto e de Frei Boff que retornarei”. Chegámos a momentos de tanta sintonia, que só faltava rezarmos juntos o Pai-Nosso.
Eu havia escrito 4 grossos cadernos sobre nossos diálogos. Assaltaram o meu carro no Rio e levaram tudo. O livro imaginado jamais poderá ser escrito. Mas guardo a memória de uma experiência inigualável de um chefe de Estado preocupado com a dignidade e o futuro dos pobres.
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OUTRAS MENSAGENS
Acompanho a tua persistência
Castelo Branco. Matilde: Neste longo silêncio, parecendo longe, estive sempre perto. Perto, na mesma Fé. Perto, na mesma Esperança. Perto, no mesmo combate. Um combate ao meu jeito. Discreto.
Acompanho a tua persistência, a tua resistência, a tua vontade de antes quebrar que torcer. O nosso mundo precisa hoje, mais do que nunca, de vozes que clamem neste deserto, com a “violência” da convicção. Poucos as querem ouvir. Mas muitos se sentem incomodados. E tentam denegrir.
Tu és uma espécimen em vias de extinção, mas protegida pela Quercus Divina, que anda por aí a agitar, a revolver as águas para que não estagnem… Raros se inscrevem nesta Associação, mas quem a topa fica contagiado e não a larga mais. Só que os dividendos não são ao jeito do mundo, do mundo que tudo faz para a apagar do Mapa, mas sem resultado…
Aqui vai este pequeno contributo para pagamento das minhas assinaturas destes dois últimos anos e uma migalha para o Livro que me bateu à porta e fortaleceu neste combate. És um homem “do terreno” e eu preciso de sentir isso à minha volta. Um abraço muito afectivo.
Parede. A. Pina: Recebi hoje o livro A FACHADA DA IGREJA e um outro, há cerca de uma semana, NA COMPANHIA DE JESUS E DE ATEUS. Este devorei-o de imediato com gosto e proveito, até porque, não obstante o meu agnosticismo, as nossas posições têm mais pontos comuns do que opostos. Como sabe, sou assinante de FRATERNIZAR, onde colho muita inspiração para alguns dos meus textos polémicos com amigos clericais da minha terra (Cabo Verde); inclusive, o Fraternizar já publicou dois textos meus, num dos quais contestava a posição do então cardeal Ratzinger. Estou de acordo consigo que ele, muito provavelmente, como papa irá escaqueirar o que resta do Cristianismo da Cúria romana.
Já li a quase totalidade dos seus livros, tendo começado com CHICOTE NO TEMPLO, há largos anos.
Espero que tenha aproveitado bem as férias e que estas tenham funcionado como Fonte de Juvência para as suas inspirações.
Tive de me socorrer do seu site para conhecer os preços dos livros enviados. Junto cheque de… Se houver diferença a meu favor, que reverta para o Barracão de Cultura. Aquele abraço troglodítico, como costumo escrever para os amigos.
Leiria. J. Vieira: Meu caro amigo, e porque não dizer, orgulhosamente, caro irmão na fé em Jesus?! Felicito-o e dou-lhe os parabéns pela coragem e frontalidade que ousa, através da última edição do nosso FRATERNIZAR. Refiro-me à exortação que faz ao novo Bispo de Leiria-Fátima. Admiro-o pela consciente lucidez sem, como se diz na gíria, “papas na língua”, com vigor e determinação. Como diz o grande filósofo Marden, “é a coragem, nascida da confiança em si próprio que faz surgir de uma das reservas a consciente força de que é dotado”.
Oxalá que muitos dos seus colegas, sacerdotes, conseguissem ter a mesma coragem e deixassem de estar retidos à cobardia. Seria bom para a cultura e para o país.
Acabo de receber o seu último livro NA COMPANHIA DE JESUS E DE ATEUS. Já li algumas das primeiras páginas e digo-lhe com a minha habitual consciência de que não concordo com tudo o que diz. Vou continuar a ler e só depois, sem o pretender ofender, serei livre para me pronunciar mais à vontade, mas dentro da mesma amizade e admiração. Um abraço e parabéns.
P.S. Envio cheque de… cujo valor desejaria ser maior, mas a situação não está famosa nos negócios de hoje. Sempre é uma pequena ajuda para a v/ preciosa obra.
E-mail. David: Lamento por si. Paz à sua alma. Amén.
ND.
Bom dia, David. Estou a chegar de férias. O correio electrónico teve que esperar. Aqui estou. Preferia ser motivo de alegria para si. Pelos vistos, sou apenas motivo de lamento. Se o David tivesse um coração tão ecuménico como o de Deus, certamente, alegrar-se-ia por eu existir. Como Deus se alegra. Como se alegra por o David existir e ser como é. Dou-lhe a minha paz. E o meu afecto.
E-mail, José: Antes de mais, os meus sinceros parabéns pelo seu excelente trabalho. Acredito que deve receber muitos e-mails e comentários depreciativos, mas tenciono aqui fazer exactamente o contrário. Chamo-me José e nasci em Vila Franca de Xira, há 24 anos atrás. Actualmente vivo na pacífica vila de Benfica do Ribatejo onde, como em muito do nosso belo Portugal, a ignorância e falsa verdade abundam. Tive educação católica e apenas fiz um dos sacramentos: Primeira comunhão. Desde aí que comecei a usar a minha cabeça para pensar em coisas simples e lógicas.
Como sou amante de História, pesquiso e interesso-me muito por factos e acontecimentos contraditórios. Obviamente que a religião não me passa ao lado e, graças ao meu irmão mais velho já ter uma maneira de ver as coisas muito mais lúcida do que muito bom jovem que por aí anda a deambular em Fátima (sem saber bem porquê), segui-lhe as pisadas no que toca a analise e conclusão. Sei que caso tivesse nascido noutro lado, sem o meu irmão por exemplo, poderia ser hoje mais uma vítima da “selecção genética” bem aproveitada por Oliveira de Salazar, e seria um fervoroso “temente” a uma entidade superior que oprime todos os que não o agradarem. Foram as “castas” certas para a ilusão perfeita. Naturalmente que não me posso considerar católico mas sim cristão depois de ler diversos livros, entre os quais, a sua obra Fátima Nunca Mais. Sigo com atenção as descobertas científicas do nível mais profundo das origens da religião católica, que acho serem muito reveladoras e até embaraçosas para a Igreja. Obviamente que para se mudar pensamentos são precisos muitos anos e muitas gerações, muita “peneira”, se me permite a expressão.
Sinto que, caso sobreviva a toda a panóplia de perigos de vida constantes na nossa sociedade, e que algum dia tenha a “viabilidade” para criar um filho, lhe transmitirei a minha visão do Mundo. Não como a visão certa e única, mas sempre de uma forma científica e sem absurdos.
Acabei agora de ver um programa na RTP2 sobre Fátima e a farsa gigante que ela é. Obviamente que por o ter reconhecido no programa é que fiz o que já estava para fazer há muito tempo: enviar-lhe um e-mail para lhe agradecer pessoalmente a sua luta. Sua, que também é a minha e é a de todos os que se sentem incrédulos com as mentiras que fazem mover milhões e milhões. Pessoas e dinheiro. Despeço-me, desejando-lhe muitos anos de vida e uma bela carreira na procura da verdade. Teria muito gosto em poder conversar consigo pessoalmente para lhe dar força para continuar a espalhar o seu trabalho magnífico. Caso algum dia venha até Almeirim, terei muito gosto em me encontrar consigo para lhe aconselhar uma óptima sopa-de-pedra e um bom vinho tinto. Abraço e até sempre.
ND
Bom dia, José. Gostei de ler a sua mensagem. É de pessoas assim lúcidas e fecundamente subversivas e rebeldes que o nosso mundo precisa. Estas pessoas podem conhecer a incompreensão e a exclusão de muitas outras, mas é sobretudo graças a elas que as sociedades evoluem e progridem em humanidade. Vejo que o José, embora ainda jovem, já se inclui neste número de pessoas lúcidas e só posso ficar feliz consigo. E em eucaristia. Continue por essa via, que é também a via Jesus, o de Nazaré. Não é a via do sucesso, mas é a via da Verdade, consequentemente, a via da Liberdade responsável.
Quanto a eu ir a Almeirim e à sua terra, é um desafio a ponderar e, porventura, a preparar, desde já. Este ano social que está a começar, gostaria de aparecer mais em sucessivas localidades do país por isso, a sua pode ser uma delas para me encontrar ao vivo com aquelas pessoas que queiram aparecer, num local previamente anunciado, e conversarmos juntos a Boa Notícia de Deus para o século XXI, que é Jesus, o de Nazaré (não o das Igrejas e dos pastores). Serão conversas saudavelmente polémicas e subversivas. Libertadoras.
Se o José quiser começar desde já a pensar nisso e a preparar a minha passagem ao vivo por aí, tem luz verde. Fale com o seu irmão e outras pessoas suas amigas, jovens e mais velhos, como quem apalpa o terreno. Se vir que há condições, avançaremos. De contrário, o encontro será restrito a si e a mais dois ou três.
O meu abraço. E a minha comunhão.
E-mail, Ricardo: Boa tarde. Daqui fala o Ricardo. Gostaria de levantar algumas questões, pois gosto muito do que leio de si. 1 - O dilúvio universal houve mesmo? 2 - Deus escreveu nas tábuas de Moisés? 3 - A Bíblia foi inspirada por DEUS? Devemos levar a Bíblia á letra? Os 4 evangelhos são fiáveis?
Boa tarde e um BOM fim-de-semana!!
ND
Bom dia, Ricardo. As respostas às suas perguntas dariam vários livros. Respondo telegraficamente.
1. Dilúvio: Se o Ricardo ler-estudar o meu livro NEM ADÃO E EVA, NEM PECADO ORIGINAL tem lá a resposta que procura muito bem explicada e fundamentada. A Bíblia contém dois relatos de Dilúvio sobrepostos e misturados, escritos com cerca de 4 séculos de diferença entre um e outro. Veja se os descobre. E esteja atento sobretudo à mensagem teológica que neles se nos revela/anuncia. Se não nos deixamos “apanhar” pelo Espírito de Deus Vivo que nos fala e sai ao encontro, também através dos acontecimentos de que é feita a História e a Bíblia, de nada vale lermos a Bíblia…
2. Tábuas de Moisés. Deus não escreveu nas tábuas de Moisés. É um modo literário de dizer, para dar mais autoridade à Lei de Moisés. Provavelmente, nem Moisés escreveu. O Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), tal como hoje o conhecemos, é obra redactorial dos sacerdotes judeus e foi concluído já depois do exílio na Babilónia. Do pós-exílio são, por exemplo, o relato mítico da criação em seis dias, com que abre a Bíblia, e um dos dois relatos do Dilúvio… (Está tudo nesse meu livro).
3. Inspirada? Pode dizer-se que a Bíblia é inspirada por Deus. Mas que Deus?, é a questão. Só pode ser o Deus das vítimas, como eram outrora os escravos hebreus no Egipto, não o Deus dos vitimadores/verdugos, como era outrora o Faraó do Egipto. Inspirada, quer dizer que tem o Sopro ou Espírito de Deus vivo. Não o sopro ou espírito do Império. Ler a Bíblia é sintonizar com este Sopro, não apenas com a letra. Só os fundamentalistas de todos os credos e até ateus é que gostam de se agarrar à letra…
4. Os Evangelhos. São fiáveis, sim. Desde que saibamos escutá-los como deve ser. Como relatos essencialmente teológicos. Que nos revelam/desvendam a Boa Notícia que Deus Vivo é, presente e actuante em Jesus, o de Nazaré, que acabou crucificado pelos senhores do Templo e do Império. O meu abraço.
E-mail. Jorge: Estimado Padre Mário de Oliveira, quero dar os meus parabéns pela excelente entrevista dada na SIC Radical, na passada quarta-feira, dia 12 de Junho. A certa altura, por cada frase do Padre Mário, eu dizia: «Grande Padre!» e a minha mãe, como é inglesa dizia: «Great Man!»
Uma coisa deixou-me na dúvida. Como é que a SIC Radical, sendo um canal do Dr. Pinto Balsemão, deixou passar aquela entrevista no ar? Eles que andam tão preocupados em informar à sua maneira. Um grande abraço
N.D.
Meu caro Jorge
Também eu fiquei surpreendido, quando me convidaram. Mas aconteceu. Talvez por ser na SIC Radical. Sabe, certamente, que os grandes senhores do Dinheiro precisam de dar um ar de tolerância, para melhor poderem impor a sua ditadura. Sem grandes custos. O Salazar é que foi de vistas curtas. E criou a censura e a prisão política. Os ditadores de hoje preferem narcotizar as pessoas e, às vozes incómodas, apresentá-las como “aves raras” que os narcotizados ou não ouvem, ou, se ouvem, já não são capazes de entender. E os poucos que entendem, sentem-se insuficientes para virar o bico ao prego. Ou, o que é pior, já nem estão para aí virados. Quem é hoje militante? Quem vive hoje na clandestinidade? Não à maneira antiga, evidentemente, mas de uma maneira que urge inventar? Para derrubarmos os poderosos dos seus tronos, como, de resto, é propósito do Deus de Maria e de Jesus.
O meu abraço, extensivo à sua mãe.
E-mail. Augusta: Sr. Padre, ouvi ontem num canal de televisão o resto da entrevista que o Sr. Padre deu. Hoje procurei e encontrei o seu mail.
Quero dizer-lhe que sou heterossexual, mas isso não faz de mim diferente dos que o não são e fiquei surpreendida de ouvir da boca de um clérigo palavras tão abençoadas. Bem-Haja!
Todos precisamos de ser amados e saber que o somos, especialmente os que se julgam diferentes. Muito obrigado por me mostrar que na religião que eu professo e que muito me tem desiludido ainda existe, pelo menos uma pessoa que é capaz de nos ver com os olhos com que Jesus Cristo nos via.
Que Deus o proteja e lhe dê força para continuar no verdadeiro caminho de Deus.
N.D.
Bom dia, Augusta. Estou a chegar de férias. O correio electrónico teve que esperar. Bem-haja pelas suas palavras de estímulo.
Efectivamente, a entrevista foi conduzida para esses temas de fronteira. Limitei-me a expressar o meu ponto de vista que procuro que sintonize com o do Espírito de Jesus Ressuscitado. Bem sei que o Vaticano não vai por aí. Mas é o Espírito de Deus que havemos de acolher e seguir, tal como fez Jesus, o de Nazaré.
Também eu sou heterossexual. Mas isso não me dá direito de pensar que só os heterossexuais é que fomos criados por Deus. Na verdade, Deus nos fez heterossexuais e homossexuais e lésbicas. Ainda temos um caminho longo a percorrer. Mas havemos de chegar lá. Um beijo.
E-mail. Jorge
Senhor Padre Mário: sou um médico vivendo nos Açores e procedente de família emigrante mais tarde regressada a Portugal - estou a falar dos fins do séc. XIX e início do séc. XX. Essa família tornou-se protestante de matriz presbiteriana, o que acabou por me estruturar culturalmente e obrigar-me a procurar formas de viver num país que seguia o seu curso baseado em princípios um pouco diferentes dos meus. Apesar de várias vezes ter assistido a exposições de reflexão e de crítica perante aspectos do cristianismo e da instituição Romana, há dois dias num canal da TV cabo em que o senhor falava com um jovem repórter, fiquei admirado com a clareza e a força do seu discurso. Claro que a religião é filha dos nossos medos e que a expressão mais pagã do cristianismo procede de uma sensação de impotência perante as ameaças da natureza, mas talvez por isso mesmo a figura de Cristo, a força da sua mensagem estranha até mesmo agora, as ambiguidades da paixão e do seu motivo, são ainda forças que nos ajudam a esperar qualquer coisa da vida, ou melhor da nossa justificação. Interessante o seu discurso, a vida que ele exprime, o ânimo que respira. Gostei. Um abraço de simpatia.
N.D.
Caro Jorge
Não vi o programa em causa. Mas ainda bem que o Jorge viu e ficou em acção de graças. Fico feliz. A minha alegria é poder mostrar ao mundo que o Cristianismo de Jesus é uma Boa Notícia. Infelizmente, a Igreja tem mostrado praticamente o contrário. Não me cansarei de alertar os meus irmãos padres e bispos que não pode ser assim. Mas eles, pelos vistos, preferem insistir nas suas catequeses terroristas…
Vou de férias amanhã. Levo comigo as suas palavras. De estímulo. Bem-haja.
E-mail. António Macedo: Estimado Padre Mário, acabo de receber mais um número do FRATERNIZAR, de Julho/Setembro2006.
Mais uma vez PARABÉNS pela qualidade não só polémica, mas também de conteúdo, e sobretudo, pelo costumado desassombro a que em tão boa hora nos habituamos e já não podemos passar sem ele!
Entre outras muito boas coisas, achei muito oportuno o desmascaramento do Codigo Da Vinci e o deslinde imprescindível entre a “verdade” e a “mentira”, bem como a oportuna referência ao Evangelho de Judas por Leonardo Boff e a promessa de que se falará sobre o mesmo Ev. de Judas na versão de F.G.Bazan, no próximo número. Ficamos ansiosos!
Por enquanto ainda só estou a lê-lo transversalmente, antes de me deliciar a aprofundá-lo como deve ser, com tantos e tão bons artigos.
Já agora, aproveito para referir que colaborei na revisão da edição portuguesa da tradução do Ev. de Judas feita por Antonio Piñero e Sofia Torallas-Tovar, que a Esquilo editou há pouco. Claro que é uma visão heterodoxa, tipicamente gnóstica, que transborda o espírito dos nossos evangelhos, mas pode ser um complemento interessante para se abordar o “mistério da entrega” segundo uma outra óptica, que não apenas a da vulgar “traição”, e que se pode reinterpretar como “transdoação”.
Repare-se que mesmo nos evangelhos canónicos não se chama “traidor” a Judas, ao contrário do que as traduções correntes nos querem fazer crer (em grego, traição e’ prodosia ou epiboule, e traidor é prodotes): a palavra usada no NT é paradidomi, que significa entregar, e é um terminus technicus dos Mistérios Órficos para significar a entrega do candidato, pelo Hierofante, ao rito da Iniciação. Por exemplo, no Ev. de Marcos lemos: “Judas Iscariotes, o que o entregou” (Marcos 3, 19), e no de João: “Judas, o que o entregava” (João 18, 2). O termo usado é sempre paradidomi, curiosamente o mesmo que João emprega quando Jesus morre: “(Jesus) entregou o espírito” (João 19, 30). Ou seja, parece que há aqui um ritual mistérico que nos transcende, e que a vulgar e grosseira “traição” é incapaz de explicar com alguma coerência e racionalidade... Por isso a tão apregoada “traição” de Judas, parecendo inexplicável, tem feito correr tanta tinta...
Aproveito também para lhe agradecer, do fundo do coração, o simpático e amabilíssimo texto com que destacou o meu modesto trabalho sobre o “Esoterismo da Bíblia”, que a quem se der ao trabalho de o folhear espero que possa ajudar a compreender um pouco melhor as tão singelas como transcendentais belezas/verdades/bondades da sublime mensagem de Cristo Jesus.
Bem-haja, e um grande abraço muito amigo.
ND
Meu querido Amigo António Macedo. Quando alguém, no sinistro Portugal de Salazar, denunciava outrem à Pide e lho “entregava”, toda a gente entendia esta “entrega” como uma traição. O verbo significa “dar”, mas dar/entregar alguém ao opressor, no caso de Judas e de Jesus, dar/entregar Jesus ao representante do Poder sacerdotal do Templo e ao representante do Poder do Império de Roma em Jerusalém, é o cúmulo da traição, sobretudo, quando o autor de semelhante gesto é um dos “Doze”, que gozava até então da confiança de todo o grupo, ao ponto de ser o homem da bolsa colectiva. O Evangelho de João, o mais teológico dos quatro evangelhos canónicos, coloca, e bem, o acontecimento historicamente hediondo e criminoso que é a Morte de Jesus, no contexto outro de Deus, que é Amor e, por isso, apresenta-nos Jesus, inclusive no coração desse acontecimento, como o rosto visível de Deus-Amor invisível, onde não se vê nem se respira ponta de ódio, de vingança, de impaciência, de medo, de angústia, apenas Amor, Paz, Humanidade, Ternura, Verdade, Luz. Numa palavra, apresenta-o a adiantar-se aos seus opressores e carrascos e a dizer-lhes: “Eu sou”, exactamente como Deus, segundo o livro bíblico do Êxodo, se havia dito outrora a Moisés no Egipto dos faraós. Não é que não tivesse havido “traição” histórica no acto de Judas entregar/dar Jesus. Houve. Mas, da parte de Jesus, só há amor, entrega/amor, inclusive, a Judas e àqueles que haviam sido enviados pelo Poder de turno para o prenderem.
P. de Mós. M. Augusta: Era importante para mim saber dizer-lhe o que me vai na alma. Não sou capaz, não tenho palavras. Faço-o com um abraço tão forte como o de dois irmãos que se encontram depois duma separação de 60 anos. Um misto de amor, respeito, saudade, gratidão, numa só palavra, fraternidade. Obrigada por me ajudar a cumprir o meu dever; obrigada, Pe. Mário, por tão delicioso presente [o livro Na companhia de Jesus e de Ateus]; e mais obrigada, Jesus, por teres vindo à minha porta e teres deixado a tua palavra no meu coração. Tudo o que posso mandar é para pagar o Jornal que está em atraso e pouco sobra para uma lata de tinta que dê cor ao Barracão de Cultura.
Que pena, quem tem não dá, quem tanto queria partilhar não tem. Fica ainda a dor de saber que estão tantos irmãos a viver esta realidade.
N.D. Querida Augusta. E ainda diz que não tem palavras!... Mas que belo poema este que me enviou!
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IGREJA/SOCIEDADE
XXVI Congresso de Teologia de Madrid sobre Cristianismo e Bioética
Nas questões decisivas da vida cada
pessoa deverá seguir a sua consciência
"Não repartimos preservativos nem vacinas, lá onde têm feito falta; e isso não é bom". Por estranho que possa parecer aos ouvidos de muitos bispos e de outros católicos conservadores, a verdade é que este foi um dos pecados de omissão publicamente assumidos, no decorrer da celebração eucarística com que encerrou o XXVI Congresso de Teologia de Madrid. A celebração aconteceu no salão de congressos das "Comisiones Obreras", onde anteriormente, de 7 a 10 de Setembro 2006, tiveram lugar as sessões de trabalho. Jornal Fraternizar esteve presente, na pessoa do seu director, e dá conta aqui às suas leitoras, aos seus leitores do que de mais pertinente lá foi apresentado e debatido. Uma das conclusões a que chegou, no final dos trabalhos, foi que nas questões decisivas da vida, entre o acto de nascer e o acto de morrer, cada pessoa deverá seguir a sua consciência bem formada e bem informada. Sem que seja permitida a interferência de outras pessoas, nomeadamente, padres e outros líderes das Igrejas e das religiões, psicólogos e outros que tais. Aos Estados de cada nação, o que havemos de exigir é que se deixem conduzir pelo bom senso, sempre que forem chamados a fazer e aprovar leis, para que a vida de todos os seres humanos seja integralmente defendida, num ambiente que também se quer saudável e ecológico.
"Visitei um hospital muito moderno, conheci as suas áreas de investigação e deu para perceber que toda aquela ciência não tem alma. Tudo ali depende do dinheiro. A vida humana custa dinheiro, a saúde das crianças custa dinheiro... Temo que na minha aldeia as pessoas saibam que o meu filho ganha dinheiro com a doença das pessoas. O mesmo dinheiro que num sítio cuida da saúde, noutro sítio assassina a vida que ajudou a salvar." O testemunho, de pôr os nossos cabelos em pé, saiu aflitivo da boca de um chefe indígena do centro oeste do Brasil, depois que foi assistir à festa de homenagem ao seu filho recém-formado em medicina. Partilhou-o com dor e sobressalto ao seu conterrâneo e amigo, o monge beneditino Marcelo Barros, biblista e conselheiro das Comunidades eclesiais de base do Brasil. E foi com este testemunho que o referido monge, convidado para intervir no Congresso, abriu a sua comunicação sobre "A Bioética a partir dos pobres". O testemunho calou fundo na consciência das pessoas que o escutaram e logo deu para perceber que há pelo menos duas bioéticas no nosso mundo, a dos ricos e a dos pobres, melhor, empobrecidos.
As questões da vida, quer humana, quer de todo o Cosmos, deveriam ser a menina dos olhos de toda a investigação científica. As descobertas que se sucedem deveriam aproveitar a todas as pessoas do planeta que delas possam estar necessitadas, em determinados momentos da sua vida, independentemente delas terem dinheiro ou não.
Mas não é que as multinacionais até com a doença das pessoas são capazes de obter lucros, os mais chorudos? A vida, todas, todos nós a recebemos de graça. Ninguém a adquiriu por dinheiro. Mas, hoje, o maldito Dinheiro não olha a meios para crescer cada vez mais nas mãos de alguns, cada vez em menor número, e até com a doença das pessoas é capaz de fazer negócio. Quem tem dinheiro para pagar é atendido e beneficia das descobertas da ciência, quem não tem dinheiro arrisca-se a morrer mais cedo. É assim no Brasil e na generalidade dos países do Sul. E já começa a ser cada vez mais assim também nos países da Europa, já que os respectivos Estados, quando têm que cortar nas despesas públicas, começam quase sempre pela saúde dos que não têm dinheiro para pagar.
Mas é do Brasil pobre que vem um exemplo a seguir: "Nos últimos anos, as comunidades de matriz negra e indígena têm desenvolvido uma pastoral de saúde que valoriza os alimentos originários de cada região, reagindo ao colonialismo que havia exportado para lá os alimentos ocidentais como sendo os fundamentais. Em todo o país, as pessoas começam a contar com um sistema de saúde alternativo e de confiança, não para as emergências, mas para a medicina preventiva. É uma medicina mais comunitária e mais humilde e em comunhão com a natureza."
O monge beneditino não se ficou por aqui. E avançou na denúncia das grandes multinacionais europeias que gostam de se apresentar na Europa como respeitadoras da vida, no Brasil não passam de predadoras. "A ética que está por trás da questão dos transgénicos está mais para a bioprostituição que para a bioética", já que as empresas "em tudo querem ganhar sempre e sempre mais".
Da África, veio também uma voz com dor e com denúncia. Também com apelos à conversão do Ocidente, para que o planeta chegue a ser a casa comum que terá de ser, se quisermos que seja um planeta bioético. Mas as multinacionais da nossa vergonha fazem orelhas moucas e os seus gestores não frequentam congressos de teologia, a não ser para observarem como correm as coisas e que ventos é que sopram pelas salas onde decorrem as sessões de trabalho. Enquanto os ventos forem de palavreado e de boas intenções, eles podem continuar impunemente nas suas acções criminosas, que as suas vítimas não lhes saem ao caminho.
E assim tem sido. As Igrejas do Ocidente não sabem o que seja profecia. São Igrejas nem frias nem quentes que assistem, indiferentes, às economias e às políticas mais ferozes e selvagens, indignas do homo sapiens que dizemos ser. Basta ver como tratamos os milhões de emigrantes que vêm até nós. Como nos fechamos contra eles. Como os "matamos", ao deixá-los morrer à porta das nossas costas marítimas. Como os devolvemos à procedência, no jeito de quem devolve uma mercadoria estragada. E isto, ao mesmo tempo que promovemos conferências e congressos sobre bioética. Nem bio (= vida), nem ética. Hipocrisia, sim. Porque até a Teologia que não se torna teopráxis, é mais do mesmo e só serve para manter o status quo ocidental. Depois, não nos queixemos, quando nos atacarem os "terroristas". A fome e sede de justiça quando se apoderam dos empobrecidos e humilhados da História levanta-os como um exército em linha de batalha. E tenham eles consciência disso ou não, as suas acções, violentas que sejam, são acções de Deus, do Deus dos pobres que não descansa enquanto não derruba as multinacionais dos seus tronos e das suas vaidades e distribui pelos famintos as riquezas que elas insensatamente teimam em acumular cada vez mais.
O Congresso ainda não abriu caminhos nesta direcção. Seria desencadear ventos que depois dificilmente poderíamos domesticar. E pode não ter soado ainda a hora destas acções violentas e em massa, por parte das vítimas da História. Mas os países do Ocidente têm de compreender que, se não arrepiarem caminho, essa hora soará. Só que então poderá ser tarde demais.
As Igrejas que estão na Europa é que não podem continuar a fazer orelhas moucas. Se crêem em Deus, têm que o praticar e não apenas reflectir sobre Ele. Têm que praticar Deus, não apenas fazer orações. Praticar Deus é praticar o Amor em acções concretas que produzam libertação.
Infelizmente, preferimos praticar caridadezinhas. Para adormecer e domesticar as vítimas. Mas com as multinacionais cada vez mais devoradoras como as de hoje, não há caridadezinhas que resistam, nem paciência por parte dos empobrecidos que aguente.
É hora de agir. De praticar Deus. De resistirmos activamente às multinacionais da nossa vergonha e impedirmos a concretização dos seus projectos genocidas. É hora de sermos bioéticos e de termos práticas bioéticas, que vão até à doação da própria vida.
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Conferência integral da teóloga Elfried Hart
sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres
Não abortar, contra a própria consciência, é pecado
"Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesado no seu coração e consciência os diferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agisse contra a sua consciência não abortando. Trata-se duma decisão grave e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a destruição duma vida humana pode justificar-se."
Quem o diz, sem que a voz lhe trema, é a teóloga Elfried Harth, do Colectivo Católicas pelo Direito a Decidir. A afirmação faz parte da conferência que proferiu no XXVI Congresso de Teologia de Madrid, que aqui apresentamos na íntegra. Não percam.
Convidaram-me para dar o meu contributo à reflexão que, como cristãs, cristãos estamos a realizar aqui neste Congresso sobre a bioética, com um destaque a partir da perspectiva dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.
Talvez seja bom começar por tentar examinar o que é que entendemos por “Direitos reprodutivos e sexuais”. Agrada-me muito uma definição que deram umas mulheres camponesas mexicanas, num dos muitos encontros que o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir realiza no México e noutros países latino-americanos onde trabalha. Formularam-no mais ou menos assim: É o direito das pessoas a sentir-se agradecidas pelo corpo que Deus lhes deu, um corpo dotado, por um lado, da capacidade do prazer e, por outro, da capacidade de produzir novos seres humanos; é o direito a explorar e a viver plena e positivamente essas duas capacidades, e a viver e a desfrutar plenamente cada uma de per si; é o direito a construir-se como pessoa moralmente autónoma, adulta e responsável através do exercício dessas capacidades e poder exercê-las plenamente; é o direito à integridade física e psicológica; é o direito a saber e a exigir que o princípio fundamental de cada relação íntima de casal é a justiça, a responsabilidade pelo próprio corpo e o bem-estar, assim como pelo corpo e o bem-estar do casal; é o direito a determinar o número de filhos que se quer ter, assim como o momento em que se quer ter; é o respeito por esse dom tão precioso que Deus nos deu, o nosso corpo, respeito que a nossa tradição católica proclama e ritualiza, por exemplo, no sacramento da unção dos doentes e nos ritos da sepultura dos mortos.
Quais as condições para viver esses direitos?
O matrimónio por toda a vida é sem dúvida alguma uma instituição muito importante no contexto do exercício da sexualidade humana, antes de mais quando uma pessoa ou um casal opta pela procriação, e se trata duma relação estável que proporcione segurança e continuidade na tarefa da criação dos filhos. Porém, sabemos todas, todos que não é a forma jurídica duma relação, nem o seu carácter heterossexual ou monossexual o que garante a sua qualidade, e, por isso, o que chamamos “direitos sexuais e reprodutivos”, mas sim a justiça que reina dentro da relação de casal. Para poder desfrutar os seus direitos sexuais e reprodutivos, as pessoas têm que respeitar-se, primeiro, a elas próprias e depois o respectivo casal.
Direitos sexuais e reprodutivos não devem confundir-se com libertinagem e irresponsabilidade. Trata-se, pelo contrário, de que a sociedade, todas as mulheres, todos os homens criemos as condições que permitam que as pessoas possam desfrutar o seu corpo de maneira sadia. Começando por rejeitar rotundamente todo o tipo de violência e de coerção, que é precisamente a negação da justiça. Começando por proporcionar a cada menina, menino e a cada adolescente uma educação sexual e emotiva que lhes permita desenvolver uma atitude respeitosa e responsável perante o corpo, uma atitude positiva perante a sexualidade e uma consciência madura perante o que significa trazer um filho ao mundo. O corpo e as suas faculdades são algo precioso que não se desperdiça, mas que se cuida e que se desfruta.
Trata-se de que toda a pessoa conheça e tenha acesso aos meios que lhe permitam exercer a sua sexualidade de forma gozosa e sem riscos para a sua saúde física e mental. Começando por saber dizer NÃO a algo que não se deseja. Uma adolescente, uma mulher, toda a pessoa tem que saber que é legítimo dizer NÃO a relações carnais que ela não esteja a desejar, a relações que contenham riscos para a sua saúde, a relações que não incluam métodos de protecção contra infecções ou contra uma gravidez não desejada. Deve, por exemplo, saber que é legítimo e sintoma de responsabilidade usar e reclamar o uso do preservativo, para prevenir uma gravidez não desejada ou uma infecção.
Em Dezembro passado, o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir organizou uma viagem pelo Perú e pelo Brasil para um grupo de seis parlamentares de vários países europeus. O objectivo da viagem era permitir a essas seis legisladoras europeias explorar o impacto que a religião tem sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na América Latina.
Tiveram que ouvir horrores em todo o lado sobre o empenho que a hierarquia eclesiástica põe para os obstruir, desde a educação sexual da juventude nos colégios até ao acesso a meios contraceptivos para a população pobre. Ao mesmo tempo, houve também experiências muito comovedoras, como o encontro com uma freira brasileira que colabora com o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, do Brasil.
Essa mulher trabalha na pastoral de prostitutas e há pouco tempo concluiu uma tese de teologia com Maria José Rosado, a directora do colectivo Católicas, que trabalha na Universidade católica de S. Paulo. Trata-se duma tese sobre a religiosidade das prostitutas, sobre a mariologia destas mulheres. Contava-nos que têm uma imensa devoção a Maria, na qual vêem a grande consoladora, uma pobre mulher do povo, que compreende as suas penas, sem as julgar. No fundo, vêem nela o rosto compassivo de Deus. E é precisamente este um dos objectivos maiores do trabalho da religiosa: anunciar a essas mulheres a Boa Notícia, trabalhar sobre os tremendos sentimentos de culpabilidade que as oprimem.
Há algumas que há anos não voltaram a comungar, embora sintam uma grande sede de se aproximar da mesa do Senhor. Vão à missa, mas ficam no último banco, pois sentem-se indignas de ir mais acima. Sentem que pecaram e que terão que voltar a pecar, pois são mães e têm que dar de comer aos seus filhos. Sofrem por ter cometido doze, quinze abortos, por não terem podido proteger-se contra uma gravidez não desejada. Sofrem de cada vez que tiveram que negar a vinda ao mundo de um filho, mas fizeram-no porque queriam evitar-lhes o destino que os esperava como filhos de prostituta.
A religiosa faz-lhes ver que o que ela reconhece nos actos que tanto as culpabilizam é, afinal, amor: concretamente, optaram por carregar com uma culpa por amor ao próximo, por amor a essa criatura não nascida, por amor aos filhos que já têm e para os quais um irmãozito mais seria uma carga muito pesada. E então ela apoia o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir na sua luta pela despenalização do aborto, por amor e respeito para com estas mulheres. Sabe que cada vez que uma delas tenha que praticar um aborto clandestino, a sua vida corre perigo. E tem a convicção de que a vida de cada uma delas é amada por Deus e que cada uma delas tem o direito à vida, à integridade física, à dignidade.
Defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é portanto uma opção pelos pobres. É lutar por que o acesso à educação sexual, aos meios contraceptivos e em último recurso ao aborto não sejam privilégio exclusivo de quem tem dinheiro para os comprar. Para que também a adolescente mais humilde e a mulher mais indigente não tenham que arriscar a sua vida e a sua saúde, mas que se lhes reconheça a dignidade de serem agentes morais no que respeita à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução e que possam viver uma sexualidade sadia, positiva e gozosa, em relações justas e responsáveis.
Agora perguntareis: E que tem tudo isto a ver com a bioética, esta disciplina recente que se vem forjando na intersecção da biologia, medicina, filosofia, teologia, direito e política?
Diria que o aparecimento da bioética como disciplina é precisamente um dos muitos sintomas duma revolução profunda e global de nossos conhecimentos, em que estamos comprometidos todas, todos, e que exerce um tremendo impacto sobre todos os aspectos das nossas vidas e da nossa consciência como seres humanos.
O que significa esta revolução para as mulheres? O que significa para o seu corpo e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O que significa para a sua capacidade reprodutiva e para os seus direitos relativamente à sua capacidade reprodutiva? O que significa para a sua sexualidade e para os seus direitos relativamente à sua sexualidade? O que significa para a ordem de poder da nossa sociedade, uma ordem baseada na diferença dos sexos, por sua vez, organizada numa hierarquia dos sexos, na qual o masculino prima e reina sobre o feminino?
Estas são apenas um par das muitas perguntas que surgem quando entramos nesta problemática. E é muito difícil formular respostas. Penso que, quanto a certezas e verdades encontramo-nos actualmente numa situação parecida à do povo eleito, nos tempos do Faraó: O Espírito que é como um vento invisível que não se deixa encurralar, mas sopra livremente por onde quer, está a convidar-nos ao êxodo, a partir para horizontes desconhecidos, sem mais garantias que a fé numa promessa e a esperança de alcançar o prometido. Encontramo-nos numa situação em que todo o tipo de fronteiras começam a desvanecer-se. E com isso começa a cambalear a ordem social. E é esse o motivo que explica o recrudescimento de todos os fundamentalismos a que estamos a assistir na actualidade, fundamentalismos que são sintomas do medo perante as incertezas e os questionamentos da ordem social, sintomas duma resistência a toda a mudança, à necessidade de reformular ou reinterpretar os mitos fundadores das nossas tradições.
É altura de sublinhar que todos os fundamentalismos, sejam cristãos, muçulmanos, judeus, nacionalistas, ou de qualquer outro tipo, têm uma preocupação chave, que é a negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o afã por controlar o corpo das mulheres. Embora possam estar em guerra uns contra os outros, já em matéria de negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os fundamentalistas são incondicionais aliados.
Assim a Santa Sé, graças ao privilégio que goza de ser a única religião à qual se reconhece o estatuto de observador não membro das Nações Unidas, não tem o menor escrúpulo em unir-se aos governos de Estados como Sudão, Iraque, Líbia para obstruir todo o avanço ao nível de política internacional em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. E com a chegada de George W. Bush à presidência dos Estados Unidos, este país passou a ser o seu melhor aliado nesse campo, motivo pelo qual os bispos americanos apoiaram a sua reeleição em 2004, em detrimento do seu opositor católico. Preferiram que voltasse a ser eleito presidente, um protestante que desencadeou a guerra no Iraque e que governa contra os pobres no seu país, desde que isso viesse a impedir a chegada à presidência de um católico partidário dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Porque se sentem tão ameaçados os fundamentalistas pelos desenvolvimentos científicos recentes?
Porque estes questionam profundamente os fundamentos antropológicos que regem a simbologia dos nossos sistemas de poder, tanto a simbologia religiosa como a política.
Com o desenvolvimento das tecnologias da reprodução assistida, da clonagem, por exemplo, as categorias de oposição e de complementaridade dos sexos, isto é, a fronteira que os separava, que servia para estabelecer e justificar uma determinada ordem social, começa a deixar de ser pertinente.
Se até à data a reprodução biológica da espécie humana requeria a existência duma humanidade sexuada e a interacção sexual entre dois seres de sexo oposto, vislumbra-se que isto não continuará a ser indispensável no futuro. Pelo menos, não o será cientificamente, teoricamente. Isto é, ainda que os nossos legisladores continuem a proibir a clonagem reprodutiva e os nossos cientistas respeitem essa lei, o que o nosso entendimento nos permite vislumbrar, o que a nossa mente actualmente é já capaz de imaginar e de pensar, não deixará de ter um profundo impacto sobre a antropologia e, como corolário, sobre a teologia.
Demonstrou-se que é possível produzir um novo mamífero a partir de um ovozito nucleado desta espécie de mamífero à qual se implantou o núcleo de outra célula de qualquer outro indivíduo dessa espécie. Quer isto dizer que a reprodução deixa de depender exclusivamente da sexualidade. Reprodução e sexualidade são duas coisas distintas e desligadas uma da outra. É concebível criar um indivíduo da raça humana, distinto dos demais da sua espécie, a partir de um ovozito, e sem necessidade de esperma. Ainda se precisará, para o desenvolvimento desse clone, de um útero, pois a ciência ainda não conseguiu desenvolver incubadoras que possam suprir o ventre da mulher.
Significa isto, à distância - ao menos teoricamente - que se continuaria a precisar de mulheres, mas já não haveria necessidade de varões, para que a espécie humana continue a perpetuar-se e não desapareça da face da terra.
Podemos então imaginar uma sociedade humana configurada por indivíduos que já não são “o fruto do homem”, ou para dizer de maneira mais precisa, “o fruto do varão”. Porém, o que significam então, nessas condições, categorias antropológicas e, como corolário, políticas e religiosas como as de “pai”, “irmão”, “filiação”, “linhagem”, “descendência”, “antepassados”, “geração”?
Dar-nos-emos conta de que não precisamos de chegar até à biorevolução para que muitas destas categorias sejam redefinidas. Já estamos a assistir a isso, por exemplo, com o reconhecimento do matrimónio gay. A biorevolução no fundo só concede maior plausabilidade às mudanças antropológicas que estamos a viver, corroborando no biológico o que já estamos a experimentar no social e no jurídico: que as fronteiras que nos pareciam inquestionáveis e evidentes a Lei Natural ditada por Deus e reflexo da sua vontade divina desde um princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos amén cada dia o são menos.
O que significa então ser mulher? E que significa ser varão? Admito que, embora julgo intuí-lo, definindo-me eu mesma como uma mulher, a verdade é que sinto-me incapaz de dar uma definição categórica e essencialista, que estabeleça sem ambiguidade alguma a fronteira entre os dois seres, catalogando um na categoria “varão” e o outro na categoria “mulher”. Sinto que a fronteira entre ambos está a desvanecer-se, é cada mais opaca.
O que significa esta biorevolução para o corpo das mulheres e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O corpo das mulheres foi sempre em todos os sistemas políticos e económicos que conhecemos, a matéria prima destinada a produzir e a reproduzir o bem mais precioso da espécie humana que é a sua própria sobrevivência e a sua própria perpetuação. Foi a fonte da força de trabalho necessária para criar tudo o que a humanidade tenha podido considerar como riquezas, e isto antes de que estas riquezas possam ser acumuladas ou repartidas. Os varões também desempenharam um papel indispensável neste trabalho, mas uma diferença económica central entre varão e mulher é que a quantidade de tempo que o varão precisa investir no desempenho do seu papel biológico de reprodutor é sumamente breve, apenas um par de instantes, enquanto que a parte que incumbe à mulher se prolonga no mínimo por um período de nove meses.
Num mundo em que a única função dos varões e das mulheres fosse a reprodução, e que um varão fecundasse apenas uma mulher por dia, um varão precisaria dumas 300 mulheres para optimizar a sua capacidade reprodutiva, enquanto que a uma mulher bastaria ter relações reprodutivas com um homem cada 300 dias para optimizar a sua. Numa povoação de igual número de varões e de mulheres, sobrariam 299 varões por cada mulher. Ou para o formularmos em linguagem económica: o valor biológico-económico duma mulher seria equivalente ao de 299 varões. Pelo menos em sociedades em que a reprodução biológica da espécie humana se opere segundo a tradição sexuada-sexual. Pois no horizonte duma reprodução por clonagem, o valor biológico do varão chega ao zero, zero.
Todos os povos que se dedicaram à criação de animais compreenderam desde os mais remotos tempos históricos esta diferença no valor dos sexos: Conservam as preciosas fêmeas que proporcionam leite e crias ou ovos, e sacrificam os machos de valor incomparavelmente inferior, para proporcionarem carne para a dieta do grupo, conservando unicamente um par de reprodutores.
E podemos estar seguros de que a origem remota de toda a ordem social e política de que se dotou a espécie homo sapiens radica na apropriação e no controlo desse valor incomparável que representa na sociedade humana a capacidade reprodutiva inerente ao corpo das mulheres. E a ordem patriarcal consiste em que aqueles indivíduos do sexo masculino que consigam apropriar-se ou ao menos controlar o corpo e o produto do corpo das mulheres, são também aqueles que detêm o poder. E a obsessão pelo controlo do corpo das mulheres é talvez a melhor medida para apurar o grau de fundamentalismo patriarcal de qualquer sistema de poder.
O exemplo mais flagrante proporciona-o a nossa Santa Mãe Igreja Católica Apostólica e Romana. Essa “senhora”, que é uma estrutura de poder que em realidade está constituída exclusivamente por varões que renunciaram à sua capacidade reprodutiva biológica, em troca do máximo título de autoridade patriarcal que é o de “pai”, é um colectivo exclusivamente masculino que decide quais são as regras que regem a sexualidade.
Primeiro, a daqueles varões que preferiram renunciar ao poder dentro da dita estrutura a favor do exercício da sua sexualidade [os leigos]. A Santa Mãe Igreja impõe-lhes que a única sexualidade legítima é a heterossexual, isto é, aquela que implica interacção com o corpo duma mulher, com a qual estejam unidos em matrimónio indissolúvel. E de harmonia com a sexualidade das mulheres. Porém, o que antes de mais ela se arroga é o controlo exclusivo dos corpos das mulheres, quando estas se encontram em gestação, reduzindo-as a seres portadores no seu seio de um espaço extraterritorial, uma espécie de enclave do qual se vêm expropriadas enquanto se esteja desenvolvendo ali um fenómeno biológico que pode chegar a culminar na vinda ao mundo de um novo indivíduo da espécie humana.
Porém, este afã por expropriar a mulher gestante do seu corpo e do que este está a produzir, será realmente um afã para proteger a vida de um ser humano? Então, como explicar que pela destruição duma vida humana haja sanções diferentes, segundo os casos?
O direito canónico estipula que a sanção para o aborto é a excomunhão. Esta sanção não se aplica nem ao homicídio nem ao assassinato. Nem sequer ao massacre ou ao genocídio.
Se uma mulher grávida não quer assumir essa maternidade, e decide destruir a vida que está a gestar-se no seu útero, ela tem duas possibilidades: Ou aborta, talvez aos dois ou três meses de gravidez, isto é, opta pela destruição do fruto do seu ventre antes de dar à luz, ou então dá à luz e mata logo a seguir o bebé que deu à luz.
Pois bem, o Direito Canónico considera os dois actos como crimes, mas distintos, dos quais o aborto merece uma pena muito maior que o infanticídio!
Com o aborto, uma mulher demonstra que reivindica a integridade do seu corpo, esteja este em fase de gestação ou não, e nega-se a aceitar uma “extraterritorialidade” dentro de si, sobre a qual outros possam deter a autoridade e o controlo. Por isso, estes ameaçam a mulher com a excomunhão. Não se trata de castigar em primeiro lugar a destruição duma vida humana, mas a reivindicação da soberania moral da mulher, a reivindicação do controlo sobre o seu próprio corpo.
Aqui radica a importância do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: é a condição para que todas as mulheres possam reivindicar a integridade do seu corpo. É necessário que se reconheça a cada mulher o direito a decidir qual é a opção legítima para ela, no caso duma gravidez: ou a de a levar ao fim, ou a de lhe pôr fim. Para que a maternidade seja algo realmente digno e humanizante, é preciso que se reconheça também como legítima a opção do aborto. Pois a minha maternidade só é realmente uma opção positiva e livre, se eu posso legitimamente optar pelo aborto, realizando-o. E embora o Vaticano, no seu afã de poder, tente escondê-lo, essa é a doutrina católica genuína. Pois cabe recordar aqui que uma das componentes fundamentais da tradição católica é que a consciência individual bem (in)formada é a suprema instância moral.
Um acto não é um crime porque sim, mas segundo as circunstâncias em que se cometa. Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesado no seu coração e consciência os diferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agisse contra a sua consciência não abortando. Trata-se duma decisão grave e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a destruição duma vida humana pode justificar-se. Assim, desenvolveu toda uma teologia da guerra justa, por exemplo. Nela enumera as condições nas quais se justifica destruir vidas de seres humanos nascidos, de pessoas. Ao contrário, é muito pouco o que existe no campo da teologia do aborto justo. Praticamente reduz-se ao que compilámos e sistematizámos em Católicas pelo Direito a Decidir, e que é parte duma teologia feminista da libertação.
Assim, perguntamo-nos, por exemplo: Porque se consideraria que uma mulher é capaz de trazer ao mundo uma criatura humana e de criá-la e de ajudá-la a ser uma pessoa adulta e responsável, mas já não se crê que ela seja capaz de decidir, quando se encontra grávida sem ter optado por isso, se quer e pode ou não assumir essa maternidade específica nas circunstâncias concretas da sua vida? E recordamos que, contrariamente ao que sucede no caso da destruição da vida duma pessoa numa guerra, ou num caso de legítima defesa, no caso do aborto a própria Igreja admite que não tem a capacidade de definir o momento em que se sabe com certeza que um embrião ou feto é uma pessoa humana.
Aqui precisamente, os recentes desenvolvimentos do conhecimento científico ajudam-nos a ver com maior claridade do que nos era possível até há pouco: que o que existe no momento da concepção é um conjunto de células plenipotenciárias sem especificação alguma. Não é possível falar ainda de pessoa humana. Pois é possível por exemplo que ocorra uma divisão destas células de tal forma que resultem não um, mas dois embriões. O que será então da alma imortal? Também poderá dividir-se em duas, ou será que já pre-existia em duplicado desde o princípio numa só célula?
Intuitivamente podemos compreender que, embora haja destruição de vida humana, não é o mesmo destruir um embrião, que uma pessoa nascida. Basta imaginar a cena seguinte: Uma médica trabalha num laboratório de reprodução assistida. Um dia, uma colega deixa-lhe um bebé de um ano no laboratório, enquanto vai resolver um problema no exterior. Pouco depois, produz-se um curto-circuito no laboratório que desencadeia um grave incêndio. Soam os alarmes e a doutora sabe que tem apenas um minuto para sair do laboratório e salvar a sua vida. Que decisão será mais ética: que tome nos braços o bebé que dorme na sua alcofa, para o livrar do perigo, ou que sacrifique esta jovem vida para salvar as 500 vidas de 500 embriões congelados que estão guardados na arca frigorífica do laboratório?
Lutar contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulheres, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora talvez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa.
Abortar só uma mulher o pode fazer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os actos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres, pois aqui encontra-se o fundamento da estrutura de poder patriarcal da Igreja. E isto explica porque o Vaticano não pode aceitar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não pode aceitar a igualdade das mulheres, não pode permitir que as mulheres cheguem a simbolizar a autoridade institucional dentre da religião, pois toda a estrutura do poder e da autoridade da Igreja está baseada na negação da soberania moral das mulheres, no que respeita ao seu próprio corpo, à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução.
A obsessão do Vaticano contra o sacerdócio das mulheres não é senão o reverso desta medalha. Não pode o Vaticano permitir o acesso das mulheres ao sacerdócio, pois o sacerdócio, tal como o concebe o Vaticano, está baseado e pressupõe o controlo da sexualidade em geral e o controlo da capacidade de reprodução das mulheres em particular. No dia em que o Vaticano conceda às mulheres acesso ao sacerdócio, este deixa de ser o que é. E no dia em que o sacerdócio deixe de ser o que é, o Vaticano não terá nenhuma objecção em admitir as mulheres ao sacerdócio.
Será puro acaso que as primeiras reivindicações formais de mulheres para serem admitidas ao sacerdócio tenham coincidido com a invenção da pílula contraceptiva? Foi em 1963 que uma suíça e depois duas alemãs enviaram ao Concílio Vaticano II o pedido de que se considerasse a admissão de mulheres ao sacerdócio.
A pílula contraceptiva tornou independente a sexualidade da reprodução. A resposta do Vaticano foi a Humanae Vitae. Juntamente com a questão do celibato dos sacerdotes, Paulo VI retirou também a questão da contracepção das deliberações do Concílio Vaticano II. Pensando preservar a autoridade da Igreja, o que conseguiu foi dar-lhe um golpe quase mortal, pois confundiu autoridade com poder.
Com a revolução bioética que estamos a viver, agora é a reprodução que se está a tornar independente da sexualidade. As relações entre os sexos que anteriormente já haviam experimentado uma mudança profunda, como se verão agora afectadas? O que será da ternura, do prazer, do amor? Seremos capazes de aprendê-los, de os experimentar, de os proporcionar, sem passar forçosamente pela reprodução? Pela sexualidade? Pela heterossexualidade? Não são estas manifestações humanas, que sempre existiram, independentemente da reprodução e da sexualidade e da heterossexualidade, só que pelo afã de controlar a sexualidade e a reprodução muitas vezes nos esquecemos disso, até ao ponto de sermos capazes de justificar e de viver uma sexualidade e uma reprodução talvez heterossexuais, porém totalmente carentes de ternura, de prazer e de amor? Não estamos a assistir, precisamente através de fenómenos como o matrimónio gay, a transsexualidade, etc, ao aparecimento de novas estruturas sociais que mostram precisamente que a ternura, o prazer e o amor vão muito mais além das fronteiras definidas pelos do poder?
Talvez chegue um dia em que a mulher, que o corpo humano sexuado, deixe de ser indispensável para a criação de novos indivíduos humanos, para a perpetuação da espécie humana. Nesse dia, o controlo sobre esse corpo dotado duma capacidade específica perderá a sua importância e as estruturas de poder que se formaram para exercer esse controlo perderão também o seu objecto. Vamos permitir que tenhamos de esperar pela chegada desse dia, para inventarmos um mundo mais justo e mais propício para se viver com ternura, prazer e amor?
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