Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 164, de Janeiro/Março 2007

DESTAQUE 1

De que falamos, quando falamos de educação?

De que falamos, quando falamos de educação? Hoje, ainda faz sentido um ministério da educação e uma ministra ou um ministro da educação, isolados lá em cima no topo da pirâmide do Poder? O que é educar? Quem educa quem? E quem educa a ministra, o ministro da educação? E às professoras, aos professores, quem os educa? E aos outros membros do governo da nação? E aos responsáveis pelos grandes meios (tv e internet, sobretudo) que hoje nos assediam por todos os lados, obcecados que estão em fazer de nós consumidoras, consumidores compulsivos do Mercado e em matar em nós as criadoras, os criadores que estamos chamados a ser? E aos dirigentes das Igrejas, bispos, párocos, catequistas, pastores, quem os educa? É possível educar dentro da actual Ordem económico-financeira mundial? O que a actual Ordem mundial pretende não é simplesmente poder dispor de técnicos/funcionários atentos e reverentes? Mas ajudar a formar técnicos/funcionários atentos e reverentes que nunca chegam a interrogar-se sobre o porquê e o para quê do que executam, um dia após outro, sob as ordens de sinistros donos sem rosto das multinacionais, ainda é educar? Pode haver educação sem revolução e sem rupturas inevitavelmente dolorosas? Sem êxodos individuais e colectivos inspirados no paradigmático êxodo bíblico, conduzido por Moisés? E sem se romper com a Ordem económico-financeira mundial e com os corporativos interesses dos muito poucos que a controlam? Pode haver educação sem nova criação? Sem que se promova o aparecimento de surpreendentes originalidades humanas, tantas quantas os indivíduos que constituímos as sociedades? E a Escola que temos, pública e privada, educa quem a frequenta, ou domestica? É uma escola-parteira de seres humanos com toda a sua originalidade e novidade, ou limita-se a fornecer às novas gerações uma gama de conhecimentos, para que elas façam carreira dentro da Ordem económico-financeira mundial? E Jesus, o de Nazaré, ainda pode trazer algo de novo e de essencial, neste nosso século XXI, ao acto político de educar? O quê em concreto?

São muitas as perguntas. E todas se justificam. Não apenas porque esta­mos a iniciar um novo ano lectivo no país e a “guerra” entre a ministra da Edu­cação e as professoras, os pro­fessores irá continuar na ordem do dia, mas também e sobretudo porque os tradicionais agentes de educação das novas gerações estão a ser irreme­diavelmente desalojados da sua nobre missão de educar por uns quantos te­cno­cratas sem escrúpulos postos à frente dos grandes meios e que não olham aos processos de que lançam mão para poderem alcançar audiências cada vez maiores e, com elas, estúpidos e chorudos lucros financeiros para os res­pectivos donos. E tudo sem que nin­guém lhes saia ao caminho e lhes pe­ça contas por tantos crimes de desedu­cação que estão impunemente a come­ter, um dia após outro, no país.

Educar é um acto nobre, porven­tura, o mais nobre de todos os actos hu­manos. O famoso filósofo e pedago­go Sócrates, da Grécia antiga, foi con­de­nado, como sabemos, a beber a ci­cuta pelos grandes da cidade de Ate­nas, porque na sua relação com os mais novos fazia o contrário do que fazem hoje os programadores das nossas te­levisões, incluídas as que têm o dever do serviço público. Em lugar de ames­trar-domesticar-alienar as novas gera­ções, como faz hoje a generalidade dos programadores das televisões, interpe­la­va-as com as suas sucessivas e perti­nentes perguntas, para que finalmente viesse à luz e se afirmasse a consciên­cia crítica de cada um dos seus mem­bros. A sua pedagogia maiêutica conti­nua aí inultrapassável e é a ela que sempre havemos de regressar, quando os governos se apresentam descara­da­mente amancebados com os interes­ses das multinacionais e estão simples­mente apostados em “produzir” técnicos sem espinha dorsal e sem entranhas de humanidade, prontos para tudo o que o Mercado lhes vier a exigir.

O país conta, nesta altura, com um Sócrates como primeiro-ministro, que, infelizmente, é portador duma filosofia e duma prática governativa nos antípo­das da filosofia e da prática pedagógica do imortal filósofo grego. As popula­ções que o elegeram continuam a dei­xar-se impressionar pelo seu discurso determinado, repetitivo, autista, salaza­rento, autoritário, servido por uma sub­ser­viente comunicação social, cujos do­nos se revêem neste tipo de governação autista sem política e sem humanidade.

Fossem elas populações educadas para a liberdade e para a responsabili­dade, bem adultas e dotadas de cons­ciência crítica, e nunca teriam dado o seu voto maioritário e absoluto a quem já na campanha eleitoral se mostrou tão demagogo para com elas. Ou, ao menos, ter-lhe-iam retirado já a sua con­fiança, perante tão descriador e tecnocrático exercício de funções go­vernativas.

O acto de educar, dentro da actual Ordem económico-financeira em que nascemos e vivemos, tornou-se, hoje, uma missão quase impossível. Nem abundam por aí educadoras, educa­do­res devidamente à altura, nem educan­das, educandos dispostos a irem por aí. As próprias famílias tão pouco estão interessadas numa educação humana­mente consequente para as suas filhas, os seus filhos. O que pretendem é que as suas filhas, os seus filhos tenham sucesso na carreira e ganhem muito dinheiro.

É manifesto que hoje vivemos sob a ditadura do D. Dinheiro e ele, como deus todo-poderoso que é, ao jeito da besta do Apocalipse, exige ser adorado por todos os habitantes da terra; e a quem não tiver o seu sinal na mão di­reita ou na fronte ou o número do seu nome tão pouco ele permitirá comprar ou vender (Ap 13,7-17). Em conse­quência, é também o deus Dinheiro que dita hoje as regras do jogo no acto político de educar. Ou acatamos essas regras e transmitimo-las às novas gera­ções para que se conformem com elas, vida fora – mas isto é amestrar seres humanos, não é educar seres humanos – ou, ao contrário, atrevemo-nos cora­jo­sa­mente a educá-las para a liberdade e para a responsabilidade e, neste caso, trabalharemos, entre elas e com elas, para ajudar a despertar lúcidos e corajosos resistentes à actual Ordem económico-financeira mundial.

Entendamo-nos. Hoje, só há verda­deira educação, se trabalhamos com afinco para despertar entre as novas ge­rações e com elas mulheres e ho­mens que resistam ao todo-poderoso deus Dinheiro e se constituam como alternativas vivas à sua Ordem mundial estabelecida. Por isso, mulheres e ho­mens capazes de viverem na Ordem mundial do deus Dinheiro, mas sem serem dela. Em concreto, mulheres e homens ao jeito de Jesus, o de Nazaré, e que, como ele, se atrevam a resistir às seduções do Dinheiro e aos privi­légios do Poder; e que recusem alinhar na mentira multissecular da crença em deusas e deuses, o que só tem servido para manter as populações tolhidas e submissas aos poderosos do mundo e às hierarquias religiosas e eclesiásti­cas.

O acto político de educar será sem­pre o contrário do acto de colonar. Destina-se a fazer vir à luz o ser huma­no único, mulher ou homem, que é cada uma, cada um de nós, desde que fomos concebidos e nascemos neste mundo. Infelizmente, tem-se sempre confundido, ou quase sempre, educar com colonar, e colonar em série. Só para assim servir às necessidades da Ordem estabelecida, a qual, para se poder perpetuar, carece de seres hu­ma­nos-robots, indivíduos feitos em série, segundo determinado molde. É também por isso que os seus donos não hesitam em contratar uns quantos técnicos para que executem seme­lhante operação de descriação huma­na.

Também não tem faltado quem, ao longo dos séculos, se preste a este papel des-criador de seres humanos e criador de robots em forma humana. E foi porque Jesus, o de Nazaré, jamais se prestou a este papel, e ele próprio tão pouco aceitou ser homem segundo as exigências da Ordem estabelecida do seu tempo e país, pelo contrário, ou­sou ser Homem totalmente habitado e conduzido pelo Sopro ou Espírito Criador de Deus Vivo e alguém que sem­pre liberta para a liberdade quan­tas, quantos aceitem viver na sua companhia e na sua comunhão, que os poucos privilegiados da Ordem estabelecida de então, todos à uma, o condenaram à morte da cruz como um maldito e logo o executaram, para que o seu nome nunca mais fosse pronun­ciado e a sua prática radicalmente li­ber­tadora e alternativa nunca mais fosse actualizada, pelas gerações pos­teriores.

E não é que desde então para cá têm conseguido este sinistro objectivo? É verdade que não conseguiram que o nome Jesus fosse banido das nossas bocas, mas conseguiram – o que é ain­da pior – que o nome Jesus que ainda hoje pronunciamos já não corres­ponda praticamente em nada àquela pessoa histórica que eles crucificaram. E quan­to à sua prática radicalmente liberta­dora e alternativa, também nunca mais foi actualizada, nas sucessivas gera­ções, porque, com o tempo, tudo foi habilmente reduzido a meia dúzia de ritos religiosos sem vida e sem Espírito, repetidos com regularidade nos templos por multidões beatas e crédulas, assus­tadas e submissas, sem audácia para se constituírem como actualizações vivas de Jesus.

Educar/educar-se para a liberdade e para a responsabilidade é sem dú­vida o acto político mais subversivo e mais fecundamente revolucionário. Mas só quem aceite, como Jesus, viver na Ordem mundial do deus Dinheiro sem jamais ser dela é que pode realizar este acto até ao fim com coerência. O que pressupõe renunciar por toda a vi­da aos privilégios do Poder e às se­duções do Dinheiro; tornar-se ateu de todas as deusas e de todos os deuses que se alimentam de gente e viver per­ma­nentemente aberto aos outros e, com eles, por eles e neles, também ao totalmente Outro, em quem todas, todos somos; permanecer preferencialmente na companhia das vítimas, e longe dos seus verdugos; manter-se alegremente e por toda a vida pobre por opção; e constituir-se como presença viva de Paz no meio do mundo, mas daquela Paz revolucionária que nunca deixa de an­dar casada e aos beijos com a Justiça. Só quem, numa palavra, procure ser na sua vida pessoal e no nosso aqui e agora uma actualização viva de Je­sus, o de Na­zaré.


DESTAQUE 2

Continuamos sem saber lidar com a morte

Leia e comente com as suas amigas, os seus amigos esta reflexão teológica em seis pontos sobre a morte. A dos outros e a sua, a acontecer um dia mais ou menos próximo ou remoto. É Evangelho ou Boa Notícia de Deus para o terceiro milénio. Ao mesmo tempo, deite ao lixo as catequeses moralistas e terroristas que recebeu na sua infância e até nos genes. Pratique a Verdade todos os dias com alegria. Porque só a Verdade nos fará livres e progressivamente humanos.

1. Continuamos duma maneira ge­ral sem saber lidar com a morte. A dos outros e a nossa própria, a ocorrer num qualquer dia mais ou menos próximo ou remoto. Chegamos a fazer de conta que a morte não existe, pelo menos en­quanto ela não acontece entre as pes­soas que nos são mais queridas e próximas pelos laços do sangue e/ou dos afectos. E quando ela se torna rea­lidade na pessoa da nossa mãe, do nosso pai, de uma irmã, um irmão, de uma filha, um filho, de uma amiga, um amigo corremos logo a vestir-nos de luto e metemo-nos em casa a chorar mais ou menos inconsolavelmente, sem dis­posição para mais nada. Preferimos delegar numa agência funerária das re­don­dezas todos os passos a dar e pagar sem refilar a factura – por sinal, elevada – que ela dias depois nos apre­senta, e que inclui o custo da urna, do arranjo do espaço onde a urna com o cadáver fica exposta, e até o custo da missa de corpo presente e da missa de sétimo dia, etc, etc, a fazermos to­dos, familiares e amigas, amigos em conjunto, dessa morte acabada de ocor­rer, um acontecimento ou sacra­mento revelador/anunciador de algo novo e fecundo.

A que se deverão estes nossos estranhos comportamentos perante a morte de pessoas que nos são queri­das? Não terão a ver com as cate­queses terroristas sobre a morte e os demais novíssimos que supostamente se lhe seguiriam – Juízo, inferno ou pa­raíso – que as Igrejas impunemente desenvolveram, durante séculos e sé­cu­los, entre as populações, crianças incluídas? Bem vistas as coisas, o que hoje ainda persiste, como marca inde­lével na consciência das populações não ilustradas e não evangelizadas, é essa crença de que a morte é a mais medonha de todas as penas com que Deus, logo no início da Humanidade, cas­tigou para todo o sempre os nossos primeiros pais e, neles, todas, todos nós, seus descendentes, por eles terem comido do fruto proibido, pelos vistos, um pecado terrível que ficou conhecido como pecado original ou das origens.

Ora, se de um castigo se trata, e castigo de Deus que já vem desde o prin­cípio da Humanidade, sem que o suposto ofendido, desde então para cá, alguma vez tenha alterado a sua ma­cabra decisão, quem de nós poderá en­carar a morte de uma, um familiar ou de alguém amigo, ou até a sua pró­pria, um dia, como uma boa notícia e ocasião de festa?

2. Acontece, porém, que o chama­do pecado original historicamente nun­ca existiu. Tão pouco existiram o se­nhor Adão e a senhora Eva, respe­cti­vamente, nosso primeiro pai e nossa primeira mãe. O que existe, e não ape­nas no Génesis bíblico, é um relato mí­tico das origens, tecido com estas duas personagens literárias que nunca fo­ram pessoas históricas. São duas figu­ras míticas. E todo o mito onde elas entram, juntamente com a Serpente (a famosa deusa mítica da fertilidade dos povos cananeus, cujo culto estava mui­to em voga, quando todo o relato foi escrito como parte da Bíblia) não passa disso mesmo: um mito que não pode ser lido como uma página de história, ou como uma reportagem jornalística do nosso tempo. A informação que con­tém não é uma notícia como a dos jornais. Tenta explicar, dentro dos limi­tados conhe­cimentos da época e nas circunstâncias concretas em que viviam os povos no meio dos quais o relato “nasce”, a origem do cosmos e da vida, mas, sobretudo, o porquê da existência do sofrimento humano, nomeadamente, dos inocentes e dos justos, e o porquê da existência da morte. Trata-se duma explicação mítica, não científica, que de­verá ser actuali­zada pelas sucessivas gerações de povos, ao longo da História, à medida que a evolução da vida avança e, com ela, a (cons)ciência dos seres humanos.

Tão pouco se pense que essa pri­meira explicação, dada em forma de mito, foi uma explicação desinteres­sada, ou directamente ditada por Deus. Não foi. Foi mandada escrever por or­dem da casa real de David/Salomão, para servir os seus interesses dinásti­cos e as suas ambições de domínio sobre os demais povos vizinhos. Nessa medida, o relato, apesar de fazer parte da Bíblia, tem muito de perverso e de mentira. Utilizado como catequese pelos sacerdotes da casa real de David, deve­ria contribuir para convencer as popu­la­ções a suportarem o sofrimento como castigo do pecado dos antepassados e dos pecados de cada uma, cada um. E levar as populações a encarar a mor­te como o castigo dos castigos, contra a qual nada havia a fazer, a não ser gemer e penar e, ao mesmo tempo, mul­tiplicar as oferendas a Deus, sem­pre na esperança de que Ele se dei­xasse apaziguar por elas e, em troca, lhes desse o seu perdão.

3. Aliás, os sacerdotes que, abu­sivamente, sempre gostam de se fazer passar por pontífices (= os que fazem a ponte) entre Deus e as populações, ou como intermediários, também estive­ram na origem daquele relato mítico das origens. E terão sido eles quem, pelo século VI-V antes de Cristo, lhe deu a redacção definitiva com que ele hoje se apresenta na Bíblia. Assim como têm sido os sacerdotes quem oficialmente tem interpretado esse mito, a partir, evi­dentemente, dos seus próprios interes­ses corporativos e dos lugares de privi­légio, de que nunca abdicam nas socie­dades onde vivem como um corpo à parte.

Um dos pontos fulcrais desta sua doutrina pode ser resumido assim: “O pecado dos nossos primeiros pais e os nossos próprios pecados ofendem muito a Deus que, por isso, nos casti­ga com toda a espécie de sofrimentos e, finalmente, com a morte. Mas se nós, seres humanos, nos dispusermos a ofe­­re­cer a Deus, através dos sacerdo­tes, sucessivos sacrifícios pelos nossos pecados, quem sabe se Ele não nos per­doa e nos salva?”

Pois bem, foi assim que as popu­lações passaram a oferecer a Deus, por meio dos sacerdotes, os seus melhores animais e os seus melhores frutos da terra. Na intenção das populações, era a Deus que ofereciam, mas na prática os sacerdotes acabavam por ser os prin­cipais beneficiários das oferendas. Fo­ram assim séculos e séculos de mentira e de opressão. E hoje, apesar de já le­varmos mais de dois mil anos depois de Jesus, que foi crucificado também por ter desmascarado todo este negócio e toda esta mentira, é ainda assim que as coisas geralmente se processam.

É verdade que as populações hoje já não oferecem animais para os sa­cerdotes imolarem em honra de Deus. Mas é também verdade que, por exem­plo, nos ambientes de forte tradição católica, como são os nossos, é mani­festo que as populações, ateias ou não praticantes que se digam, ainda man­dam, ou permitem que outros mandem celebrar missas avulso ou em forma de trintário (30 missas em 30 dias seguidos ditas pelo mesmo sacerdote e, se ele falhar um dos dias, terá de começar tudo de novo!) pelos familiares que já faleceram. Mudou o conteúdo da ofe­renda a Deus, não o gesto de fazer a oferenda, mai-lo respectivo custo em dinheiro para o sacerdote. E tão pouco as mesmas populações costumam dis­pensar a presença do pároco católico, a presidir ao funeral dos respectivos familiares falecidos, mesmo que ele an­teriormente nunca tenha mantido qual­quer contacto com eles. E tudo isto é feito na base duma vaga crença (cren­dice?) de que Deus, por estes meios, lhes perdoará os seus pecados e levará as respectivas “almas” para o céu. Po­de lá haver maior manifestação de in­fan­­tilismo e de sem-sentido?

No que respeita às outras Igrejas e seus respectivos pastores, é sabido como estes são mais ou menos hábeis em “convencer” os seus fiéis, elas e eles, a “oferecerem” o dízimo cada vez mais elevado de tudo o que possuírem, venderem ou adquirirem. E os resulta­dos estão aí bem à vista. É por isso que um certo português, ligado ao mun­do da banca, quan­do se apercebeu do filão que esta mentira poderia render em dinheiro, não hesitou em trocar o tra­balho no banco pela fundação de mais uma Igreja pretensamente evan­gé­li­ca, fez-se a si próprio o bispo dos bispos dessa Igreja, e, em poucos anos, juntou uma fortuna que mete inveja a muitos banqueiros… Não conhecem o caso?!

4. Toda esta prática religiosa e ecle­­siástica é, evidentemente, uma bar­baridade sem nome. Não o digo de â­ni­mo leve. Nem como ataque a al­guém. Digo-o com lágrimas! E com mui­ta dor. Parte-se-me a alma, ao ver o que temos feito à sombra do Santo Nome de Deus, puro Dom, pura Graça, puro Amor e pura Liberdade, fonte de todo o Bem, que um dia nos chamou à vida, no de­curso da Evolução, para ser­mos suas filhas, seus filhos em estado de maiori­dade, a fim de levarmos por diante o seu pro­jecto criador que, por o ser, é igualmente salvador. Porque para Deus Vivo, fonte de Amor, criar é o mes­mo que sal­var. Na mais completa gra­tuidade.

Foi na prática gratuitamente liber­ta­dora e universalmente misericordiosa e integradora de Jesus, o de Nazaré, que pudemos chegar a dar-nos conta de toda a Mentira com que, durante séculos e séculos, as Religiões e os seus sacerdotes engana­ram e oprimi­ram as populações do pla­neta. À luz dessa sua prática fecundamente sub­versiva e da palavra cheia de sa­be­doria com que ele sempre fez acom­pa­nhar essa sua prática, tornou-se ma­nifesto para todo o sempre que a sal­va­ção dos seres hu­manos é uma ques­tão que tem mais a ver com Deus Vivo e Criador do que com os seres huma­nos (também tem a ver com estes, mas apenas na linha eucarística da res­pos­ta e do acolhimento, não na linha do mérito ou das boas obras, muito menos, na linha do negócio ou do dinheiro).

Aliás, este dado constitui o núcleo essencial da Boa Notícia ou Evangelho que Jesus trouxe da parte de Deus aos povos de todas as lín­guas, culturas e nações sem exce­pção. E que, desde então, quer ver anun­ciada, a tempo e fora de tempo, às sucessivas gerações de todas as nações, para que os povos todos da terra se libertem/curem radi­cal­mente do Medo e passem da con­dição de povos em estado de Medo e de Violência, à condição de povos em estado de Liberdade e de Graça. Mais: é também a Deus que compete encon­trar a maneira de alcançar a nossa li­ber­­dade e de chegar a dialogar com ela, dentro do processo histórico em que um dia todas, todos nós acontece­mos, por pura graça sua (se preferirmos dizer por puro acaso, também está certo, só que então o acaso ficará como  um outro nome da graça) e que, desde então, nem mesmo a chamada morte biológica consegue interromper, pelo contrário, só pode potenciar, e poten­ciar  infinita­mente mais do que o nosso primeiro parto (a nossa primeira mor­te!), esse mesmo que nos fez sair do úte­ro materno, para podermos chegar a ser pessoas autó­nomas e irrepetíveis.

5. A morte biológica que nos espe­ra é então, não o castigo devido ao(s) pecado(s), mas o mais decisivo par­to-explosão que nos lança-projecta para lá da História; é, não o fim da vida, mas o coroamento da vida única em que cada uma, cada um de nós se tor­nou, quando, por pura graça, acontece­mos no útero materno. A partir de então, nunca mais deixaremos de ser, pelo con­trário, sempre nos transformaremos até chegarmos a ser a Liberdade e o Amor que cada uma, cada um de nós está chamado a ser, no Deus Vivo e Criador, fonte de todo o Bem, de toda a Liberdade, de toda a Graça, de todo o Amor.

Quando, em Igreja, dizemos que cremos na Ressurreição dos mortos ou na ressurreição da carne é esta reali­dade-boa-notícia que anunciamos ao mundo. Essas e outras expressões se­me­lhantes o que querem dizer é que so­mos seres em estado de salvação, desde o primeiro instante da nossa con­cepção no útero materno, ou, no caso de inseminação artificial, da nossa con­cepção in vitro. E não é pelo que faze­mos ou deixamos de fazer que somos salvos. É exclusivamente pela graça que somos salvos. Todas, todos!

Ao criar-nos, no decurso da evolu­ção da vida, Deus Vivo também nos sal­vou para sempre. E é já como salvos que vivemos na História. Tanto mais fe­li­zes e tanto mais realizados como se­res humanos, quanto mais nos deixa­mos conduzir pelo Sopro ou Espírito de Deus Vivo e Criador. Como aconteceu paradigmaticamente com Jesus, o de Nazaré, por isso, muito justamente pro­cla­mado por nós como o nosso Salva­dor.

A morte biológica, quando chegar, não interrompe nem mata este processo. Pelo contrário, abre-lhe novas e impen­sáveis dimensões, para que todas e cada uma, todos e cada um de nós che­­guemos a ser, por pura graça, fi­lhas, filhos de Deus Vivo, como Jesus, o de Nazaré, no infinito Oceano de Liberdade e de Amor que só Ele é.

6. A esta luz, temos de mudar radi­calmente o nosso modo de encarar e pro­tagonizar o nosso ser-viver-mor­rer dentro da História. Não podemos con­tinuar a comportar-nos como os que não têm Esperança.

Havemos de viver na História como pessoas já em estado de salvação e a caminho da salvação em dimensões ou­tras que nem os olhos viram, nem os ouvi­dos ouviram, nem a nossa boca é capaz de relatar. E como pessoas cri­a­doras de humanidade e de sororida­de/frater­ni­dade; salvadoras e curado­ras umas das outras. Especi­al­mente da­quelas de nós que continuem aí a dar sinais de estarem ainda a viver mais no Medo do que na Liberdade, mais na Violência do que na Graça.

Ao mesmo tempo, havemos de pôr definitivamente de lado todas essas catequeses terroristas das Igrejas e das religiões sobre a morte e sobre as pessoas que já morreram, e também todas as práticas li­túr­gicas sem sentido que elas insistem em promo­ver/vender por bom dinheiro, a toda a hora e ins­tante por aquelas pessoas que nos são queridas e que já falece­ram.

Como aqui fica claro, tais práticas, apesar de presididas por pessoas que temos por bem intencionadas, mas que vivem manifestamente equivocadas, não passam objectivamente de mentiras e de fal­sida­des, as mais obscenas e sa­críle­gas. E que sempre encontram pes­soas que as solicitam, encomendam e pagam, porque, no dizer, sem sentido jesuânico, dos sacerdotes e pastores das Igrejas, destinam-se a "aliviar" as almas dos nossos entes queridos!... (Haja, modos, senhores!)

Em alternativa, havemos de ousar fazer da morte de familiares e de pes­soas nossas amigas um momento alto de experiência de Salvação e de anún­cio ao mundo da Boa Notícia que Jesus, o de Nazaré, nos trouxe da parte de Deus Vivo e Criador. Havemos por isso de saber comportarmo-nos em tais oca­­siões, que são as do último "parto" des­sas pessoas que nos são queridas, como filhas, fi­lhos adultos de Deus. Ha­vemos de sa­ber encarar e celebrar ca­da uma des­sas mortes, co­mo o coroa­mento da vida que viveram entre nós e como o seu úl­ti­mo parto-explosão, e anunciar com toda a simplicidade a to­da a naturalidade essa boa notícia ao mundo.

Por isso, em vez de velórios, have­mos de fazer serena festa. Havemos de inventar cantos e danças apropria­dos que nos ajudem a contemplar e a me­ditar com mais profundidade. Have­mos de ousar ser poetas e profetas nessas ocasiões de intensa graça e de intensa Páscoa ou Passa­gem do Sopro ou Espírito de Deus Vivo e Criador. Ha­ve­mos de ler e recitar poe­mas e can­ções que digam com aquele momento. E tudo acompanha­do com a solene proclama­ção, a partir de algum dos qua­tro Evan­gelhos canó­nicos, da prá­tica libertado­ra e miseri­cor­dio­sa de Je­sus, cheia de graça e de verdade. Num clima de igualdade sororal/fraterna tão intensa e verdadeira que, só por si, ini­ba a en­trada no local de um qualquer representante do Poder eclesiástico ou outro. Porque lá onde o Po­der entra e per­manece, sempre gera Medo e Vio­lência, mentira e homicídio.



Será que Deus se deixa subornar com missas?

Há uns quantos tiques sem sentido que se repetem, de geração em geração, por ocasião dos chamados funerais católicos e aos quais até os familiares de ateus e agnósticos assumidos, se costumam submeter, quando algum deles morre e não deixa nada escrito em sentido contrário. Um destes tiques sem sentido é a presença do pároco com poder de jurisdição católica no território onde o cadáver vai a sepultar. Pode o pároco em causa nunca ter falado com essa pessoa nos anos em que ela viveu entre nós e connosco, mas, na hora de dar sepultura ao cadáver dela, ele lá é chamado para presidir. E com ele a presidir, o cadáver lá tem de ser levado até à igreja paroquial, e não se livra duma missa de corpo presente, ou, pelo menos, dumas rezas que o pároco, sem imaginação e sem disposição para inovar e criar, mecanicamente faz a partir de um livro de capas já gastas e de cores tétricas, chamado Ritual de Defuntos!...

E, é claro, o pároco não vai de graça ao funeral. Cobra os chamados emolumentos tablados pela respectiva Diocese. Ou até mais do que está tablado. Porque não hão-de ser os próprios familiares com as amigas, os amigos mais íntimos, a protagonizar intensamente este momento derradeiro? Não lhe emprestariam um toque de originalidade, de criatividade e de surpreendente? Não seria tudo muito mais espontâneo e natural? Não nos edificaríamos mais uns aos outros? Não cresceríamos mais em humanidade? E a memórida da pessoa falecida não seria tratada com muito mais ternura e verdade?

Mas se o funeral é de alguém que foi assumidamente cristão e os familiares também o são, não serão capazes de protagonizar este momento ao seu jeito, sem necessidade do pároco, símbolo do poder eclesiástico, funcionário do sistema que, nesse momento, nos impede de ter vez, nos retira a palavra e nos faz mudos e, ainda por cima, quase sempre tem um discurso com mais de aberração do que de afecto e de humanidade?

E para quê mandar rezar missas, para mais, a troco de dinheiro, por quem faleceu? Será que Deus, o de Jesus, se deixa subornar com missas como os poderosos do mundo com presentes? Não vemos que as missas são um negócio para os párocos?


EDITORIAL

Perversão das perversões

As religiões continuam aí a dar ca­bo das relações entre as pessoas e os povos. Digo-o a respeito de todas as re­ligiões sem excepção. Mas sobretudo das três grandes religiões que, farisaica e competitivamente, se reclamam de ter no lendário Abraão a sua origem mais re­mota: - o Judaísmo, o Catolicismo e o Islamismo. Basta ver os fanatismos vi­o­lentos, as cruzadas e as guerras san­tas em que todas elas se envolve­ram através dos tempos e em que ain­da hoje continuam a envolver-se de múl­tiplos modos. E tudo, em nome de Deus ou de Alá, da Bíblia ou do Alcorão.

Neste tenebroso contexto da nossa actualidade, oiçam bem o que lhes di­go: Às religiões, mas a todas elas sem excepção, pode muito bem aplicar-se aquela sábia palavra que Jesus, o de Na­zaré, que não se agrada de nenhu­ma, disse acerca dos que escandalizam os mais pequeninos das sociedades: Me­lhor seria que atassem a todas uma pe­dra de moinho e as lançassem ao mar. Porque todas mais não fazem do que escandalizar, isto é, mais não fa­zem do que levar os povos ainda não ilus­trados que as seguem, com maior ou menor fanatismo, a tropeçarem uns contra os outros e, muito pior do que isso, a odiarem-se e até a matarem-se uns aos outros. E também se lhes po­deria aplicar aquela outra palavra não menos sábia do mesmo Jesus, o de Nazaré, acerca do sal que perde a força de salgar: é melhor lançá-las fora a todas, para que sejam pisadas pelos seres humanos, à medida que estes se tor­nem ilustrados e evangelizados. Pois que as Religiões, como o sal sem força de salgar, nem para a estrumeira ser­vem.

Saibam todas as pessoas e todos os povos, com absoluta certeza, que não foi Deus quem fundou nenhuma des­tas três grandes religiões que têm vi­vido habitualmente em confronto entre si; assim como também não fundou ne­nhuma das muitas outras religiões me­nores que hoje por aí pululam como co­gu­melos depois das chuvas, cada qual a mais medíocre, a mais néscia, a mais enganadora, a mais mentirosa, a mais interesseira, e cujos pastores ou líderes vivem obcecadamente de olhos postos na carteira e no patri­mónio dos respectivos clientes/fiéis.

Bem sei que hoje ninguém nos diz o que eu aqui rasgadamente digo e es­crevo. Mas não se deixem enganar por vozes bem falantes e beatas. Por­que Deus do que verdadeiramente gos­ta é de Política, não de Religião. E se, por acaso, anda por aí algum Deus que ainda gosta de Religião e não de Polí­tica, então só pode ser um falso Deus, um ídolo, imaginado/criado por seres humanos preguiçosos e alienados, que querem que Ele faça na História o que lhes cumpre a eles fazer, em comunhão inteligente com todos os outros seres humanos de boa vontade!

Toda a Religião – digo-o sem que a voz me trema – é intrinsecamente perversa. Porque é criação dos seres humanos. Visa, em última instância, ter acesso directo a Deus, ou ao Divino, para, de múltiplas maneiras, até com tra­fulhices da pior espécie, O “obrigar” a ser-nos favorável, nomeadamente, a troco de promessas, de sacrifício de ani­mais, de frutos da terra e do traba­lho humano, de longas orações, de ritos, de cultos, de liturgias, com mais ou menos pompa e circunstância, e se­gundo a diversidade de línguas e de cul­turas. Porém, um Deus que se dei­xasse subornar por todo esse tipo de coisas, objectivamente, tão sem jeito, para só então nos ser favorável, não seria Deus, mas um ídolo bem pior do que os seres humanos que se prezam, e que nunca suportarão que outros seus iguais alguma vez na vida se lhes dirijam com gestos e acções desse jaez!

O que entretanto, neste particular, tem baralhado os povos de todas as épo­­cas e culturas, é que, pelo menos, na origem destas três grandes religiões monoteístas que farisaicamente se rei­vin­dicam de Abraão, há relatos de teo­fa­nias, sistematicamente interpretados como outras tantas revelações/manifes­ta­ções de Deus, os quais, obviamente, pa­re­cem dar a todas e a cada uma de­las um carácter de religião verdadeira. Cada uma delas resultaria duma inter­venção directa de Deus.

Por outro lado, há hoje milhares, mi­lhões de livros nas grandes bibliote­cas espalhadas pelo mundo inteiro que vão todos neste sentido. E todos, ou quase, fazem questão de referir a Reli­gião como o patamar mais insigne a que chegaram os seres humanos. Em que ficamos então? Para onde nos ha­vemos de virar?

Sou o primeiro a saber de tudo isso. E mesmo assim, não hesito em dizer que tudo isso não passa de men­tira. Inclusive, todos os relatos teofâni­cos a que se refere a história das re­li­giões são mentira. Porque a Deus, nun­ca ninguém O viu, nem ouviu! Tanto no princípio da humanidade, como nes­tes dias que são os nossos. E quem disser que O viu ou ouviu, para com isso mais facilmente poder sobrepor-se aos demais e obter e justificar a manutenção de benefícios e privilégios (ai, Vaticano, Vaticano!, ai papado, pa­pa­do! ai hierarquia, hierarquia!) é um mentiroso!

Bem sei que a Bíblia está cheia de relatos de teofanias. Abraão, Moisés e os profetas são apresentados como protagonistas de várias teofanias. E o próprio Alcorão diz o mesmo de Mao­mé. É, pois, um facto indesmentível. Mas já não é verdade dizermos que A­braão, Moisés e os profetas bíblicos, ou, séculos mais tarde, Jesus, ou, outros séculos mais tarde, Maomé, protagoni­za­ram todas aquelas cenas espectacu­lares de que a Bíblia e o Alcorão falam. Os relatos existem, mas não são para tomar à letra, como uma reportagem de jornal, hoje.

Entre os relatos teofânicos e a Re­a­lidade relatada por eles há um abis­mo. O relato tenta dizer o Indizível, aler­ta para o Mistério de que anda carrega­da a Realidade em que vivemos e que nós próprios, os seres humanos, tam­bém somos, tenhamos ou não consci­ên­cia disso. O relato pode predispor quem o lê ou escuta a abrir-se ao Mis­tério e a deixar-se fazer por ele. Mas o relato não é o Mistério. É apenas letra que podemos saber de cor e reproduzir a vida inteira como um aplicado papa­gaio, sem que alguma vez o Mistério nos chegue a atingir a consciência.

Quem, entretanto, alguma vez deu pela presença do Mistério, no mais ín­timo da sua consciência, sabe simples­mente que o Mistério é que nos faz, sem que nós alguma vez possamos ma­nipulá-lO. É por isso que quem alguma vez passou por essa experiência-reve­lação, torna-se despojado de tudo e o mais humilde de todos. Viu-se, inopina­da­mente no Mistério, ao mesmo tempo que o Mistério se lhe escapava e lhe re­velava o Invisível como uma Presen­ça/Ausência, absolutamente gratuita. Semelhante experiência é vivida como uma morte/ressurreição que esvazia a pessoa de si mesma e de todas as coi­sas que antes ela tinha como importan­tes, centra-a no essencial e como que a funde no Mistério sempre Invisível aos olhos, ao ponto dela ser, sem o sa­ber, entre os mais, um sacra­mento vivo do Invisível e Indizível, ao mesmo tempo cativador e perturbador, terno e radical, acolhedor e interpelador, ge­ra­dor de alegria e de respeito.

Admito que na origem do que são hoje as Religiões, nomeadamente as três grandes que se reivindicam de A­bra­ão, podem ter estado pessoas que protagonizaram a indizível experiência do Mistério. Nunca o saberemos com ci­ência exacta. Mas uma coisa sabe­mos: Se tiverem estado, nunca elas po­dem ter estado na origem da Religião. Porque a experiência do Mistério leva a pessoa a perceber que não é ela quem alcança Deus, é Deus quem nos alcança e nos faz à sua imagem e se­me­lhança. Por isso, o viver quotidiano de quem foi alcançado por Deus nunca mais se gasta em ritos e actos de culto até à náusea, dentro de templos e de costas para o mundo. O seu viver quoti­diano consome-se todo em respostas pessoais, feitas de acções concretas, que vão de encontro aos clamores das vítimas e dos oprimidos da História. E isto é a Política que Deus gosta e que glorifica o seu nome. Ao contrário da Religião, que é para Deus um vómito!

É por isso que todas as pessoas “apa­nhadas” alguma vez pelo Mistério e, nele, viram como num relâmpago que a Realidade é infinitamente maior do que os nossos sentidos dizem que é, tor­nam-se pessoas fecundamente insu­b­missas, sem religião, e em ruptura com tudo o que seja domínio, poder, pri­vilégio. Simplesmente são! Numa re­la­ção sororal/fraterna universal e cós­mi­ca, em que estão incluídas todas pes­soas e todos os povos sem discrimina­ção, e todos os seres viventes sem ex­cepção. Pois de todos elas se experi­men­tam irmãs/irmãos no afecto e na ac­ção intrinsecamente política.

A religião só pode nascer por inici­a­tiva de pessoas que vivem à sombra das que protagonizaram a experiência do Mistério. Ao verem que essa expe­ri­ência lhes pode trazer e aos do seu clã grandes benefícios em riqueza, em poder, em influência, em projecção so­cial, logo se servem dela e passam a ma­nipular o nome de Deus. É a perver­são das perversões. Mas é isso a Re­ligião. A perversão das perversões. Onde Deus não passa de um “boneco” nas mãos dos líderes religiosos, sacer­dotes e pastores, e que eles agitam co­mo uma árvore das patacas. Ai das po­pulações que caem sob a sua alçada. Su­gam-nas até ao último cêntimo, como fazia o tesouro do Templo de Jerusa­lém, no tempo de Jesus, às viúvas po­bres da Palestina, que as sugava até ao osso. Em nome de Deus!

Vosso companheiro e irmão,

Mário, presbítero da Igreja do Porto.


ESPAÇO ABERTO

O pesadelo dos medicamentos

Entre 2000 e 2003, a quase totali­dade das grandes empresas farmacêu­ti­cas passou pelos tribunais dos EUA, acusadas de práticas fraudulentas. Oito dessas empresas foram condenadas a pagar mais de 2,2 mil milhões de dóla­res de multa. Em 4 destes casos, as em­presas farmacêuticas implicadas – Tap Pharmaceuticals, Abbot, AstraZena­ca e Bayer – reconheceram a sua responsabilidade por actuações crimino­sas que puseram em perigo a saúde e a vida de milhares de pessoas. Se qui­serem saber mais pormeno­res sobre as actuações criminosas das empresas far­macêuticas, leiam o texto que se segue, elaborado pelo Jornal Fraternizar a partir do n.º 141 de Cuadernos CJ (Cristianisme i Justícia), integralmente escrito por Teresa Forcades i Vila, monja beneditina, doutora em medicina e, neste momento, a preparar também um doutoramento em teologia. Verão que a realidade é um verdadeiro pesadelo, a que urge pôr cobro. Como? Eis a questão. Mas o primeiro passo consiste em tomar consciência dele. O monstro tem múltiplas cabeças e é multinacional. Mas não há nenhum “Golias” que não possa ser derrubado pela “pedra” duma “funda” lançada pelo mundo do Pobre, como no-lo revela o relato bíblico do jovem David. Vamos à luta! Esta é a hora, tanto mais quanto as grandes empresas farmacêuticas estão hoje mergulhadas num grande impasse, sem mais imaginação para criar novos medicamentos que respondam às reais necessidades das populações. A febre dos lucros subiu-lhes de tal modo à cabeça, que elas perderam a capacidade de criar e de inovar. Limitam-se a produzir e a vender mais do mesmo, sob rótulos diferentes. E se há causa que possa mobilizar as populações do mundo, do Norte e do Sul, é a causa da saúde e da qualidade de vida. Eis.

As grandes companhias farmacêuti­cas utilizam hoje a sua riqueza e o seu poder para defenderem os seus pró­prios interesses à custa do bem-estar, da saúde e da vida de outras pessoas.

De acordo com o Relatório elab­o­rado no ano passado (2005) pela Co­missão de peritos do Parlamento in­glês, os interesses da indústria farma­cêu­tica e os do conjunto da população não coincidem.

São quatro as principais estratégias utilizadas hoje pela indústria farmacêu­tica para obter os seus lucros multimilionários:

1) Comercializar e efectuar uma ex­traordinária pressão propagandística dos medicamentos que ela própria fa­bri­ca, mesmo que estes não sejam ú­teis às pessoas e até possam ser noci­vos e inclusive mortais; 2) explorar ao máximo os medicamentos (incluídos os es­senciais) sob a forma de monopólio e em condições abusivas que não têm em conta nem as necessidades objecti­vas dos doentes nem a sua capacidade aquisitiva; 3) reduzir ao mínimo ou eli­mi­nar totalmente em alguns casos a in­vestigação das doenças que afectam principalmente os pobres, porque não são rentáveis, e concentrar-se nos pro­blemas das populações com alto poder aquisitivo, mesmo quando não se trate de doenças propriamente ditas, como é o caso da proliferação de “medica­men­tos” contra o envelhecimento; 4) forçar as legislações nacionais e internacionais para que favoreçam os seus interesses, embora à custa da vida de milhões de pessoas.

Eis alguns factos concretos que com­provam a verdade de cada uma des­tas quatro principais estratégias:

1) Dados da agência reguladora dos medicamentos dos EUA mostram que entre 1998 e 2002 registaram-se oito suicídios naquele país entre doen­tes de epilepsia que tomavam gabapen­tina da casa Pfizer (o seu nome comer­cial é Neurontin). No primeiro semestre de 2003, o número de suicídios regista­do foi de 17. Depois que um núcleo de advogados estadoniense tornou pú­bli­cos estes dados e abriu um registo para divulgação de outros incidentes do género, foram documentadas, entre os meses de Setembro de 2003 e Agos­to de 2004, 2.700 tentativas de suicídio entre os doentes que tomavam gaba­pen­tina, dos quais 200 terminaram com a morte do doente. Portanto, em apenas 12 meses, 2500 tentativas de suicídio falhadas, e 200 suicídios consumados!

Os dados foram tornados públicos e, mesmo assim, em 2004 a revista Bri­tish Medical Journal informava que nem a agência reguladora dos medica­mentos do país, nem a empresa Pfizer tomaram qualquer medida, nem sequer a de passar a indicar no prospecto que acompanha o medicamento o alerta pa­ra o risco de suicídio. Actualmente, a página na net da Pfizer já alerta para o risco de suicídio do Neurontin, mas para se chegar a essa informação têm que ler-se primeiro 26 páginas de ex­pli­cações farmacológicas e de possíveis efeitos secundários…

Quanto ao antidepressivo sertralina (Zoloft), também da Pfizer, a referida revista informava que a companhia ha­via ocultado a informação sobre os pos­sí­veis efeitos secundários de tentativa de suicídio e de agressividade. E só depois do chocante caso de Christopher Pittman (um menino de 12 anos que co­me­çou a mostrar um comportamento al­tamente agressivo, poucas semanas depois de iniciar um tratamento com ser­tra­lina e que, dois dias depois que lhe dobraram a doze, assassinou os avós e incendiou a casa), é que a agên­cia europeia de regulação dos medica­men­tos finalmente desaconselhou o seu uso em menores…

Segundo a rede de centros regi­o­nais de farmocovigilância de França, todos os anos, um milhão e 300.000 fran­ceses são hospitalizados no sector público devido a efeitos indesejáveis de um medicamento. Este número re­pre­senta 10% do total das hospitaliza­ções. Ora, de todas estas pessoas, um ter­ço apresenta-se no hospital em esta­do grave; e pelo menos 18.000 morrem cada ano (o dobro do número de mor­tos na estrada no país).

2) Desde que entrou em vigor em 2005 a nova legislação sobre patentes dos medicamentos essenciais, é brutal o seu impacto no acesso a esses medi­camentos essenciais, especialmente nos países pobres. Trata-se de optar pelo prolongamento e pela qualidade de vida das povoações do Norte, à cus­ta de encurtar de forma imediata, em dezenas de anos, a esperança de vida nas populações dos países do Sul. O que equivale a condenar 90% dos que precisam de medicamentos para conti­nu­a­rem a viver, para que os preços se mantenham elevados para apenas 10% de privilegiados. O que perfaz uma obs­ce­nidade e inaugura o que poderemos chamar “um reinado de terror”.

Mas o abuso do actual sistema de ex­ploração de patentes não afecta ape­nas os países do Terceiro Mundo. Nos países ricos do Primeiro Mundo, há cada vez mais pessoas com dificuldade para pagar o preço dos tratamentos prescritos pelos médicos. Para reduzir des­pesas, há já quem tome os medica­mentos dia sim, dia não e quem os par­tilhe com outras pessoas da sua famí­lia. Nos EUA, tomar um medicamento durante um ano pode custar actual­men­te 1.500 dólares. As pessoas com mais de 65 anos chegam a tomar em mé­dia 6 medicamentos por dia, o que perfaz uma despesa anual por pessoa de 9.000 dólares!

3) Em 2001, o grupo de Médicos Sem Fronteiras publicou um Relatório intitulado Desequilíbrio fatal que teve enorme impacto na opinião pública na altura, mas depressa foi esquecido. Se­gundo este Relatório, as doenças que afectam principalmente as populações em­pobrecidas são pouco investigadas e as doenças que afectam exclusiva­mente as populações empobrecidas não são de todo investigadas. Algumas dessas doenças, como por exemplo a fase crónica da doença de Chagas (uma infecção que afecta milhões de pessoas na América Latina) não têm qual­quer opção terapêutica! Do refe­rido Relatório, conclui-se que 90% dos recursos sanitários do mundo são de­di­cados a investigar as doenças que afectam 10% dos doentes do mundo (pre­cisamente, os do Primeiro Mundo). O que quer dizer que apenas 10% da­queles mesmos recursos são gastos a investigar as doenças que afectam os outros 90% de doentes do mundo. Este dado é conhecido como “desequilíbrio 10/90”.

As doenças tropicais, por exemplo, são doenças esquecidas. Do total de 1.397 medicamentos comercializados entre 1975 e 1999, apenas 13 (1%) des­tinavam-se ao tratamento duma do­en­ça tropical. As doenças esquecidas incluem, entre outras: a malária, a tu­ber­culose, a doença de Chagas, a úl­ce­ra de Buruli, e a lepra, a maior parte delas doenças dos pobres!

Alguém poderá objectar que as em­presas privadas têm direito a investir o seu dinheiro onde melhor lhes pare­ça. Porém, a verdade é que o dinheiro que financia as investigações não é só privado, mas provém também de acor­dos com a saúde pública. O que quer dizer que nós, público em geral, pagamos duas vezes pelo mesmo pro­duto e, além disso, não temos qualquer controlo democrático sobre as priori­dades em que se gasta o referido di­nhei­ro. Pagamos, primeiro, para finan­ciar as investigações e depois para ad­quirir os medicamentos. Assim não é de estranhar os lucros multimilionários das empresas farmacêuticas. Por exem­plo: dos 17 ensaios clínicos que va­li­daram os 5 medicamentos mais ven­didos durante o ano de 1995 (Zan­tac, Zovirax, Capoten, Vasotec e Pro­sac), apenas 1 foi financiado pela in­dús­tria farmacêutica. Do conjunto dos estudos considerados decisivos para chegar a desenvolver estes 5 medica­men­tos, concluiu-se que apenas 15% fo­ram financiados pela indústria far­macêutica.

Os investigadores do grupo Médi­cos Sem Fronteiras advertem também que não são só os laboratórios os res­ponsáveis pelo desequilíbrio fatal, mas to­das as instituições públicas e priva­das que colaboram para que a produ­ção de medicamentos se oriente de for­ma exclusiva ao lucro económico e me­nos­preze o sofrimento dos doentes. Se as doenças mais estudadas não são as que mais afectam a humanidade, en­tão quais são elas? Vejam só: Se­gun­do o referido Relatório, a maior par­­te dos esforços financeiros e intele­ctuais da investigação sanitária de to­do o mundo em 2001 foram destinados a investigar a impotência sexual, a obe­si­dade e a insónia!!!

Além de não serem tidos em conta, quando se trata de decidir as priori­dades da investigação de novos medi­ca­mentos, os doentes dos países po­bres – especialmente, os africanos – são utilizados como cobaias para se ob­terem informações sanitárias diver­sas que depois nunca os beneficiam a eles. No Quénia, por exemplo, e sob a responsabilidade da Universidade de Washington, realizaram-se, em finais da década de noventa, estudos clínicos para observar a evolução natural da do­ença da SIDA. O que significa que, com a desculpa de que eles sempre aca­bariam por morrer, centenas de afri­canos foram sujeitos a provas comple­mentares para analisar como se iam de­teriorando até morrerem, à medida que avançava a infecção, sem nunca lhes ter sido oferecido o respectivo tra­ta­mento que poderia tê-la detido!!!

4) A indústria farmacêutica dispõe nos EUA (sede das empresas que domi­nam o mercado global) de um número de lobbys profissionais superior ao nú­mero de congressistas. O que significa na prática que cada parlamentar tem à perna um ou mais destes profissionais que estudam o seu perfil psicológico, a sua história pessoal e laboral e dete­ctam os pontos fracos através dos quais po­dem pressioná-lo para que vote, ou proponha no Parlamento leis favoráveis aos interesses da indústria farmacêuti­ca (por isso, contrários aos do bem co­mum) e para que vote sempre contra as propostas contrárias a esses mes­mos interesses. No ano de 2002, por exemplo, 26 destes 675 lobbys eram ex-parlamentares, 342 eram ex-traba­lhadores do Parlamento, e 20 tinham exercido cargos directivos.

Ao mesmo tempo, as empresas far­macêuticas foram ao ponto de criar or­ga­nizações que se apresentam na soci­e­dade como iniciativas espontâneas de cidadãos, quando mais não são do que or­ganizações financiadas por elas para de­fenderem os interesses delas. Quan­do se trata, por exemplo, de fazer subs­ti­tuir um medicamento por um outro no­vo que vai entrar no mercado, esses ci­da­dãos multiplicam-se em declarações aos media a testemunhar que o novo é que é bom e que já o experimen­ta­ram com resultados espectaculares… Tudo em troca de dinheiro ou outras com­pensações em que são hábeis as gran­des empresas farmacêuticas. Mer­ca­do livre, isto? Mercado selvagem, é o que é.


MANUEL SÉRGIO Reitor do Instituto Piaget

Manuel Reis- Um pensador pós-moderno

Manuel Reis é, hoje, um dos mais altos expoentes de um pensamento que eu chamo pós-moderno, porque anti-dualista, anti-capitalista, anti-individua­lis­ta e porque descobre em Sócrates e Jesus as mensagens “que são o fun­da­mento antropológico e a fundação fi­lo­sófico-teológica de um Projecto só­cio-antropológico inteiro e completo, di­gno, esse sim, da Humanidade e da hu­manização da Espécie, justamente porque repleto da mais acrisolada hu­ma­nitude, tanto em acto, nas duas figu­ras paradigmáticas, como em potencia­ção, para todos os seus seguidores” – Projecto que “tem sido inalteravelmen­te escamoteado e votado ao ostracismo, ferozmente combatido e propositada­men­te ignorado pelas classes dominan­tes e pelas instâncias directoras das So­­ciedades, ao longo dos últimos dois milénios e meio”.

Este texto colhi-o, no terceiro capí­tulo do livro de Manuel Reis (intitulado Sócrates e Jesus: esses desconheci­dos!...) de uma atenção sôfrega, ines­gotável e lucidíssima pelo tempo em que vivemos – tempo de vitória da De­mocracia, como o proclama o Sr. Bush, mas tempo também onde à igualdade política corresponde uma insanável de­si­gualdade social.

O casamanto Demo­cracia-Desigu­al­da­de está aí à vista de todos e até al­guns políticos, ditos de esquerda, quando chegam ao poder, se mostram relapsos em esquecer os crimes da­quela parelha.

Não tenho dúvidas em escrever que a atmosfera espiritual de todos os povos de superior civilização se aproxi­ma ou decorre dos conceitos socráticos e da mensagem de Jesus de Nazaré. Vol­to a Manuel Reis, no livro acima ci­tado (Editorial Estante, 2006, p. 31): “A mensagem do vero e autêntico Jesus histórico apresenta-se centrada no que podemos chamar, com propriedade, um Projecto sócio-antropológico com­ple­to e integral, cuja identidade pró­pria, ao longo da História conhecida (...) tem de reconhecer-se que é abso­lu­tamente incomparável. Mahatma Gan­dhi sabia-o muito bem e ele próprio con­fessou que muito tinha aprendido com Jesus e o seu princípio original da Não-Violência”.

Mas, pós-moderno que é e portan­to rejeitando processos de racionaliza­ção, em que se configura um tipo de ser humano orientado para o domínio e a soberania do mundo, incluindo a pró­pria natureza, e aceitando uma cos­movisão descentrada, dessacralizada e pluralista – Manuel Reis denuncia, com vigor e... senso, o “Extra Ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação), que tem amedrontado e anes­tesiado milhões de crentes e ain­da (o que as Igrejas são, indiscutivel­mente) uma tradição sem contradição, ajoujada de continuidades e determi­nis­mos e sem as necessárias rupturas e descontinuidades.

Observa Manuel Reis que Sócrates e Jesus “ensinaram e estabeleceram o primado absoluto dos Sujeitos Huma­nos inteligentes, livres e responsáveis, sobre os objectos, todos os seres e ob­jectos, sejam eles profanos ou sagra­dos. Em virtude das suas obras e dis­cursos e testemunhos, ambos tiveram de sofrer processos exemplares e pa­ra­di­gmáticos de condenação à morte. Ambos foram posteriormente atraiçoa­dos, na genuinidade das suas mensa­gens, pelos seus seguidores mais ime­diatos e credenciados. Sócrates, por Pla­tão e Aristóteles; Jesus, pelos Após­tolos, a começar por Pedro e por Pau­lo”(p. 47). E, porque foram atraiçoados, isto é, porque o poder eclesiástico e o po­der civil se transformaram em Esta­blishment, acaudatado por mulheres e homens do sistema, bem é que “a morte de Deus se concretize” e que as Igrejas se subordinem à vida e não a vida às Igrejas.

“Sócrates havia proposto o Diálogo maiêutico e dialéctico, em pé-de-igual­dade para todos os humanos, como instrumento e condição sine qua non para elaborar os Conceitos, construir a Justiça e a Verdade e edificar a vera e autêntica Sociedade democrática”. Por seu turno, “a Mensagem sócio-an­tro­pológica de Jesus configurava-se, precisamente, nos antípodas do Ju­daís­mo oficial do Sinédrio.

Desde logo, Jesus havia inaugura­do uma maneira inteiramente nova de encarar e assumir a Lei, o que levava a estabelecer a “lex Amoris”, como a mais básica e suprema lei”(p. 169).

Conheço Manuel Reis, através dos seus livros, e tenho por ele sólida admi­ra­ção. Relembro o seu O Cristão no Mun­do de Hoje, editado pela Livraria Morais Editora, em 1965, onde reli: “Ra­zão e Fé não são, de facto, dois domí­nios autónomos, nem propriamente dois critérios independentes de conhe­ci­mento da verdade; são, outrossim, tão somente dois métodos de comunhão com a mesma verdade (...). Por essa ra­zão, assim como a fé não consiste, propriamente, na conquista e posse da ver­dade, mas na comunhão vital com os seres e o Ser, assim também o co­nhe­cimento da Razão não consiste, pro­priamente, na conquista e posse da ver­dade, mas antes no contacto profundo e vital do sujeito cognoscente com o objecto conhecido” (pp. 179/180).

Recordo também o seu Igreja sem Cristianismo ou Cristianismo sem Igreja?, publicado por Moraes editores, quatro anos depois, onde me surpre­endi, com a ousadia do Manuel Reis: “A nova Teologia radical é marcada por um carácter concreto, histórico, social e principalmente dialéctico. O seu pro­pó­sito fundamental consiste em viver e pensar como cristãos sem Deus – ex­periência que é considerada, antes de mais, como tarefa prático-política e teó­rico-teológica” (p. 75).

O livro que vem de publicar conti­nua e complementa os anteriores, devi­do à extensa cultura humanística do seu autor e ao seu espírito crítico, o que o coloca ao abrigo de soluções re­tró­gradas ou simplistas.

Manuel Reis anda em demanda do Jesuanismo, para além do Cristianismo. Acompanhá-lo é o que se nos pede. Va­mos em boa companhia: Manuel Reis é um intelectual de escol e um militante de causas sem uma nota subserviente ou religiosa. Sócrates e Jesus: esses desconhecidos!... é uma prova eviden­te que o acto de escrever não é um acto solitário, mas solidário. Enfim, um livro para ler, com atenção e... com amor!


FREI BETTO Teólogo brasileiro (1)

Os mandamentos do consumismo

A publicidade cerca-nos de todos os lados - na TV, nas ruas, nas revistas e jornais - e força-nos a ser mais con­sumidores que cidadãos. Hoje, tudo se reduz a uma questão de marketing.

Uma empresa de alimentos geneti­ca­mente modificados pode comprome­ter a saúde de milhões de pessoas. Não tem a menor importância se uma boa má­quina publicitária for capaz de tor­nar a sua marca bem aceite entre os con­sumidores.

Isso vale também para o refrige­rante que descalcifica os ossos, corrói os dentes, engorda e cria dependência. Ao bebê-lo, um bando de jovens exul­tan­tes sugere que, no líquido borbu­lhante, encontra-se o elixir da suprema fe­licidade.

A sociedade de consumo é reli­giosa às avessas. Quase não há clipe pu­blicitário que deixe de valorizar um dos sete pecados capitais: soberba, in­veja, ira, preguiça, avareza, gula e lu­xú­ria.

‘Capital’ significa ‘cabeça’. Ensi­na meu confrade Tomás de Aquino (1225-1274) que são capitais os peca­dos que nos fazem perder a cabeça e dos quais derivam inúmeros males.

A soberba faz-se presente na pu­bli­cidade que exalta o ego, como o feliz proprietário de um carro de linhas ar­ro­jadas ou o portador de um cartão de crédito que funciona como a chave capaz de abrir todas as portas do dese­jo. A inveja faz crianças disputarem qual de suas famílias tem o melhor veí­culo.

A ira caracteriza o nipónico que­brando o televisor por não ter adquiri­do algo de melhor qualidade. A pre­guiça está a um passo dessas sandá­lias que convidam a um passeio de lan­cha ou abrem as portas da fama com direito a uma confortável casa com pis­cina.

A avareza reina em todas as pou­panças e no estímulo aos prémios de carnês. A gula, nos produtos alimentí­cios e nas lanchonetes que oferecem muito colesterol em sanduíches pirami­dais.

A luxúria, na associação entre a mercadoria e as fantasias eróticas: a cerveja espumante identificada com mulheres que exibem seus corpos em reduzidos biquínis.

Os cinco mandamentos da era do consumo são: 1º) Adorar o mercado sobre todas as coisas. Tudo se vende ou se troca: objetos, cargos públicos, influências, ideias etc. Em economias arcaicas, ainda presentes em regiões da América Latina, a partilha dos bens materiais e simbólicos assegurava a so­brevivência humana. Agora, ao valor de uso sobrepõe-se o valor de troca. É preferível deixar apodrecer alimen­tos cujos preços exigidos pelos produ­tores deixam de oferecer a mesma margem de lucro. Segundo o mercado, tom­bam os seres humanos, mas segu­ram-se os preços.

2º) Não profanar a moeda, deses­tabilizando-a. Dizem que outrora po­vos indígenas sacrificavam vidas hu­ma­nas para aplacar a ira dos deuses. Abominável? Nem tanto. O ritual pros­se­gue; mudaram-se apenas os mé­todos.

Em 1985, o Nacional, um dos mai­o­res bancos brasileiros, começou a naufragar. Durante dez anos, graças a operações fraudulentas, o Nacional conseguiu sacar milhares de milhões de dólares do Banco Central. Em ou­tubro de 1995, o governo FHC criou, por decreto, o Proer - um programa de socorro a bancos em dificuldades. Na ocasião, um único banco foi favore­cido: o Nacional, com o equivalente a US$ 6 mil milhões.

3º) Não pecar contra a globali­za­ção. Graças às novas tecnologias de co­municação, o mundo transformou-se numa pequena aldeia. De facto, o Planeta ficou pequeno, frente às imen­su­ráveis ambições das corporações transnacionais. Por que investir na pro­tecção do meio ambiente se isso não aumenta o valor das acções na Bolsa?

4º) Cobiçar os bens estatais e pú­blicos em defesa da privatização. Se não é o bem comum o valor prioritário, e sim o lucro, privatize-se tudo: saúde, educação, rodovias, praias, florestas etc. Privatizar é afunilar a pirâmide da desigualdade social. Os lucros são a­pro­priados por uma minoria, e os pre­juí­zos - o desemprego e a miséria - so­cializados. Menos serviços públicos, maior a parcela da população excluída do acesso aos serviços pagos.

Antes do leilão da Usiminas, uma das maiores siderúrgicas brasileiras, a Nippon subscrevera 14% do capital da empresa. Quando houve aumento do capital da Usiminas, a Nippon não se interessou, o que reduziu sua parti­cipação acionária para 4,8%. Iniciado o processo de privatização, as ações da Usiminas valorizaram e a empresa japonesa obteve o privilégio de resga­tar a sua participação originária pagan­do US$ 39,79 por cada lote de 1.000 ac­ções - quando, na Bolsa, a cotação já atingira US$ 523,90. A Nippon obte­ve lucro de 1.340%.

O património da Usiminas valia US$ 12 mil milhões. Foi vendida por US$ 1,65 mil milhões. E ninguém foi pa­rar na cadeia por este assalto ao pa­trimónio nacional. Do que se arrecadou com o leilão da Usiminas, 73,3% foram pagos com “moedas podres” e 26,4% em Certificados de Privatização. Papéis coloridos. Em dinheiro sonante entra­ram apenas R$ 4,69 mil, metade do preço de um carro “popular”, sem ágio.

5º) Prestar culto aos sagrados ob­je­ctos de consumo. Percorremos acele­radamente o trajecto que conduz da esbeltez física à ostentação pública de celulares, da casa de veraneio ao carro importado, fazendo de conta que nada temos a ver com a dívida social.

Expostos à má qualidade dessa media electrónica que nos oferece fe­licidade em frascos de perfume e refri­gerante, alegria em maços de cigarro e enlatados, já não há espaço para a poe­sia nem tempo para curtir a infân­cia. Perdemos a capacidade de sonhar sem ganhar em troca senão o vazio, a perplexidade, a perda de identidade.

Em doses químicas, a felicidade nos parece mais viável que percorrer o desafiante caminho da educação da subjetividade. Mercantilizam-se rela­ções conjugais e de parentesco e ami­za­de. Nesse jogo, como nos filmes ame­ricanos, quem não for esperto e despudoradamente cruel, morre.

Só há esperança para quem acre­dita que o dilúvio neo-liberal não é ca­paz de inundar todos os sonhos e ousa navegar, ainda que soprem fracos os ventos, nas asas da solidariedade aos excluídos, da luta por justiça, do cultivo da ética, da defesa dos direitos huma­nos e da busca incansável de um mun­do sem fronteiras, também entre abas­ta­dos e oprimidos. Mas isso é outra his­tória, que exige muita fé e certa dose de coragem.

A propósito: o contrário da soberba é a humildade; da inveja, o despoja­mento; da ira, a tolerância; da preguiça, o compromisso; da avareza, a partilha; da gula, a sobriedade; da luxúria, o amor.


FREI BETTO Teólogo brasileiro (2)

Encontros com Fidel

Conheci Fidel em Manágua, na noite de 19 de Julho de 1980, primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Lula e eu estávamos na casa de Sér­gio Ramirez, quando ele chegou para se entrevistar com empresários nicara­guenses. Cumprimentou-nos e refugi­ou-se na biblioteca. Eram duas da ma­drugada, quando o padre Miguel D’Es­co­to, chanceler da Nicarágua, indagou se tínhamos interesse em conversar com o Comandante. O diálogo esten­deu-se até às seis da manhã, observa­do por Chomy Miyar, atento às foto­gra­fias, e um Manuel Piñero sonolento, desabado sobre a espessa barba que servia de anteparo a um longo charuto apagado.

Falamos de religião. Foi quando ele me perguntou se estaria disposto a vir a Cuba para assessorar a rea­pro­xi­mação entre o governo e a Igreja Católica. Respondi que dependeria dos bispos cubanos que, no ano se­guin­te, responderam positivamente à proposta.

Em Fevereiro de 1985 vim a Hava­na, convidado pela Casa de las Amé­ricas. Na véspera do retorno ao Brasil, Chomy convidou-me para jantar em sua casa. Batia a meia-noite quando Fidel chegou. Voltamos ao tema reli­gioso. Desta vez ele deu um longo de­poi­mento sobre a sua formação católi­ca na família e nas escolas dos lassa­listas e jesuítas. Indaguei se estaria disposto a repetir o que me revelara nu­ma pequena entrevista que serviria de fecho ao livro que eu pretendia escrever sobre a Revolução. Assentiu e acer­tamos fazê-la em Maio daquele ano.

Desembarquei na data combina­da, que coincidiu com o início das e­mis­sões da Rádio Martí. Fidel escusou-se, disse que a nova conjuntura o impe­dia de conceder tempo à entrevista, talvez em outro momento. Senti-me como o pescador de “O velho e o mar”, de Hemingway. Eu tinha o “tubarão” na ponta da linha e não deveria deixá-lo escapar. Tanto insisti que me inda­gou que tipo de perguntas eu prepa­rara. Li as primeiras cinco das 64 que havia anotado. “Amanhã iniciamos,” disse ao interromper-me. Foram 23 ho­ras repartidas em quatro conversas, na presença de Armando Hart, e que resul­taram no livro “Fidel e a Religião”, que al­can­çou cerca de 1 milhão e 300 mil exemplares em Cuba e saiu publicado em 32 países, em 23 idiomas. Agora uma nova edição, em inglês, acaba de ser editada na Austrália pela Ocean Press.

Em 1986, desembarquei em Hava­na trazendo uma caixa com 100 exem­pla­res da Bíblia em espanhol. Esvaziou rapidamente, tantos os pedidos que re­cebi de cristãos e comunistas. Certa tarde, encontrava-me a escrever no meu quarto, quando Fidel entrou inespe­radamente. Contei-lhe sobre as Bíblias e ele perguntou: “Não sobrou nenhuma para mim?” Dediquei-lhe a única que me sobrava: “Ao Comandante Fidel, em quem Deus crê e a quem ama.” Ele se sentou numa cadeira de vime e me per­guntou: “Onde está o Sermão da Mon­tanha?” Apontei-lhe as versões de Ma­teus e Lucas. Leu-as e indagou: “Qual das duas você prefere?” Meu lado esquerdista falou por mim: “A de Lucas, porque além das bem-aventuranças, enu­mera também as maldições contra os ricos.” Fidel reflectiu por um momento e reagiu: “Discordo de você. Prefiro a de Mateus, é mais sensata.”

Meus pais tinham vindo comigo a Ha­vana. Uma madrugada, por volta de 2h, o Comandante levou-me à casa onde estávamos hospedados. Pergun­tou se “los viejos” estariam acordados. Falei que não, mas trataríamos de des­pertá-los. Ele objectou, melhor que con­ti­nuassem a repousar. “Comandan­te, não pense no sono deles esta noite. Pense no facto de os netos poderem contar, no futuro, que os avós foram des­pertados em plena madrugada pelo homem que liderou a Revolução Cuba­na.” Convenci-o, acordámos meus pais e, em torno da mesa da cozinha, a conversa prolongou-se até amanhecer.

Minha mãe, especialista em culi­nária, ofereceu-lhe um jantar. De so­bre­mesa, ambrosia, o doce dos deuses, segundo Homero na “Ilíada”. Na ma­nhã seguinte, o chefe da escolta de Fi­del bateu à porta: “Senhora, o Coman­dante manda perguntar se sobrou um pouco da sobremesa de ontem?” Mamã mandou que esperasse e, em poucos mi­nutos, preparou o doce feito à base de leite, ovos e açúcar.

Em março de 1990, Fidel esteve no Brasil, por ocasião da posse de Col­lor, eleito presidente. Em São Paulo, levei-o a um encontro com mais de 1.000 líderes de Comunidades Eclesiais de Base. Encerrámos com cânticos litúr­gicos e todos, de mãos dadas, orámos o Pai Nosso. O Comandante me apertou a mão e, embora seus lábios não se mo­vessem, tive a impressão de ver seus olhos marejados de lágrimas.

Em 1998, logo após João Paulo II despedir-se de Cuba, Fidel convidou um grupo de teólogos para almoçar no Palácio da Revolução. Estava feliz com a visita papal e sinceramente afeiçoado ao pontífice. Um dos teólogos criticou o facto de João Paulo II presentear a Virgen de la Caridad com uma coroa de ouro, cujo valor poderia ter sido re­vertido em prol de medicamentos para crianças ou algo parecido. Fidel reagiu enfático em defesa do papa e deu ao teólogo uma lição sobre a importância da padroeira de Cuba na religiosidade popular. O presente era merecido. O teó­logo engasgou-se com as próprias palavras.

Este é o Fidel que conheço e tanto aprendi a admirar. Tenho-o na conta de um irmão mais velho. Ele disse, por ocasião da entrevista, que “se alguém pode fazer de mim um cristão é Frei Betto.” Ora, como poderia eu pretender evangelizar um homem que fez da sua vida uma dedicação de amor, heróica e integral, ao povo da pátria de Martí? “Eu tive fome e deste-me de comer”, diz Jesus no evangelho de Mateus (cap. 25, 31-44). Se é assim, o que di­zer de um homem que, como Fidel, livrou todo um povo, não apenas da fome, mas também do analfabetismo, da mendicância, da criminalidade e da submissão ao Império?

Feliz edad, Fidel!

La Habana, 13 de agosto de 2006.


L. BOFF Teólogo brasileiro

Os 80 anos de Fidel

O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar os que não gostam de Cuba ou de Fidel Castro. Não me im­por­to com isso. Se não vês o brilho da estrela na noite escura, a culpa não é da estrela mas de ti mesmo.

Em 1985, o então Card. Joseph Ra­t­zinger submeteu-me, por causa do livro Igreja: carisma e poder, a um “silêncio obsequioso”. Acolhi a senten­ça, deixando de dar aulas, de escrever e de falar publicamente. Meses após, fui surpreendido com um convite do Co­mandante Fidel Castro, pedindo-me para passar 15 dias com ele na Ilha, du­rante o tempo de suas férias. Aceitei imediatamente, pois via a oportunidade de retomar diálogos críticos que junto com Frei Betto havíamos entabulado an­teriormente e por várias vezes.

Demandei a Cuba. Apresentei-me ao Comandante. Ele imediatamente, à minha frente, telefonou para o Núncio Apostólico com o qual mantinha rela­ções cordiais e disse: ”Eminência, aqui está o Frei Boff; ele será meu hóspede por 15 dias; como sou disciplinado, não permitirei que fale com ninguém nem dê entrevistas, pois assim observará o que o Vaticano quer dele: o silêncio ob­se­quioso. Eu vou zelar por essa obser­vância”. Pois assim aconteceu.

Durante 15 dias seja de carro, seja de avião, seja de barco mostrou-me toda a Ilha. Simultaneamente, durante a viagem, corria a conversa, na maior liberdade, sobre mil assuntos de po­lí­tica, de religião, de ciência, de marxismo, de revolução e também críticas sobre o deficit de democracia.

As noites eram dedicadas a um lon­go jantar seguido de conversas séri­as que iam madrugada a dentro, às vezes até às 6.00 da manhã. Então levantava-se, estirava-se um pouco e dizia:”agora vou nadar uns 40 minutos e depois vou trabalhar”. Eu ia anotar os conteúdos e depois, sonso, dormia.

Alguns pontos daquele convívio me parecem relevantes. Primeiro, a pessoa de Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é antes ético que político: co­mo fazer justiça aos pobres? Em segui­da, o seu bom conhecimento da teologia da libertação. Lera uma montanha de li­vros, todos anotados, com listas de ter­mos e de dúvidas que tirava a limpo comigo.

Cheguei a dizer: “se o Card. Ratzin­ger entendesse metade do que o Sr. en­tende de teologia da libertação, bem diferente seria o meu destino pessoal e o futuro desta teologia”.

Foi nesse contexto que me confes­sou: “Mais eu mais estou convencido de que nenhuma revolução latino-america­na será verdadeira, popular e triun­fan­­te, se não incorporar o elemento religio­so”.

Foi talvez por causa desta convicção que praticamente nos obrigou, a mim e ao Frei Betto, a darmos sucessivos cur­sos de religião e de cristianismo a todo o segundo escalão do Governo e, em alguns momentos, com todos os ministros presentes. Esses verda­dei­ros cursos foram decisivos para o Governo chegar a um diálogo e a uma certa “reconciliação” com a Igreja Católica e demais religiões em Cuba.

Por fim mais uma confissão sua: “Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles deram-me disciplina, mas não me ensinaram a pensar. Na pri­são, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão norte-ameri­cana, tive que me aproximar da Uni­ão Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu segu­ramente tê-la-ia abraçado e aplicado em Cuba.” E arrematou: ”Se um dia eu voltar à fé da infância, será pelas mãos de Frei Betto e de Frei Boff que retornarei”. Chegámos a momentos de tanta sintonia, que só faltava rezarmos juntos o Pai-Nosso.

Eu havia escrito 4 grossos cadernos sobre nossos diálogos. Assaltaram o meu carro no Rio e levaram tudo. O li­v­ro imaginado jamais poderá ser es­cri­to. Mas guardo a memória de uma experiência inigualável de um chefe de Estado preocupado com a dignidade e o futuro dos pobres.


OUTRAS MENSAGENS

Acompanho a tua persistência

Castelo Branco. Matilde: Neste longo silêncio, parecendo longe, estive sempre perto. Perto, na mesma Fé. Perto, na mesma Esperança. Perto, no mesmo combate. Um combate ao meu jeito. Discreto.

Acompanho a tua persistência, a tua resistência, a tua vontade de antes quebrar que torcer. O nosso mundo precisa hoje, mais do que nunca, de vozes que clamem neste deserto, com a “violência” da convicção. Poucos as querem ouvir. Mas muitos se sentem incomodados. E tentam denegrir.

Tu és uma espécimen em vias de extinção, mas protegida pela Quercus Divina, que anda por aí a agitar, a revolver as águas para que não estagnem… Raros se inscrevem nesta Associação, mas quem a topa fica contagiado e não a larga mais. Só que os dividendos não são ao jeito do mundo, do mundo que tudo faz para a apagar do Mapa, mas sem resultado…

Aqui vai este pequeno contributo para pagamento das minhas assinaturas destes dois últimos anos e uma migalha para o Livro que me bateu à porta e fortaleceu neste combate. És um homem “do terreno” e eu preciso de sentir isso à minha volta. Um abraço muito afectivo.

Parede. A. Pina: Recebi hoje o livro A FACHADA DA IGREJA e um outro, há cerca de uma semana, NA COMPANHIA DE JESUS E DE ATEUS. Este devorei-o de imediato com gosto e proveito, até porque, não obstante o meu agnosticismo, as nossas posições têm mais pontos comuns do que opostos. Como sabe, sou assinante de FRATERNIZAR, onde colho muita inspiração para alguns dos meus textos polémicos com amigos clericais da minha terra (Cabo Verde); inclusive, o Fraternizar já publicou dois textos meus, num dos quais contestava a posição do então cardeal Ratzinger. Estou de acordo consigo que ele, muito provavelmente, como papa irá escaqueirar o que resta do Cristianismo da Cúria romana.

Já li a quase totalidade dos seus livros, tendo começado com CHICOTE NO TEMPLO, há largos anos.

Espero que tenha aproveitado bem as férias e que estas tenham funcionado como Fonte de Juvência para as suas inspirações.

Tive de me socorrer do seu site para conhecer os preços dos livros enviados. Junto cheque de… Se houver diferença a meu favor, que reverta para o Barracão de Cultura. Aquele abraço troglodítico, como costumo escrever para os amigos.

Leiria. J. Vieira: Meu caro amigo, e porque não dizer, orgulhosamente, caro irmão na fé em Jesus?! Felicito-o e dou-lhe os parabéns pela coragem e frontalidade que ousa, através da última edição do nosso FRATERNIZAR. Refiro-me à exortação que faz ao novo Bispo de Leiria-Fátima. Admiro-o pela consciente lucidez sem, como se diz na gíria, “papas na língua”, com vigor e determinação. Como diz o grande filósofo Marden, “é a coragem, nascida da confiança em si próprio que faz surgir de uma das reservas a consciente força de que é dotado”.

Oxalá que muitos dos seus colegas, sacerdotes, conseguissem ter a mesma coragem e deixassem de estar retidos à cobardia. Seria bom para a cultura e para o país.

Acabo de receber o seu último livro NA COMPANHIA DE JESUS E DE ATEUS. Já li algumas das primeiras páginas e digo-lhe com a minha habitual consciência de que não concordo com tudo o que diz. Vou continuar a ler e só depois, sem o pretender ofender, serei livre para me pronunciar mais à vontade, mas dentro da mesma amizade e admiração. Um abraço e parabéns.

P.S. Envio cheque de… cujo valor desejaria ser maior, mas a situação não está famosa nos negócios de hoje. Sempre é uma pequena ajuda para a v/ preciosa obra.

E-mail. David: Lamento por si. Paz à sua alma. Amén.

ND.

Bom dia, David. Estou a chegar de férias. O correio electrónico teve que esperar. Aqui estou. Preferia ser motivo de alegria para si. Pelos vistos, sou apenas motivo de lamento. Se o David tivesse um coração tão ecuménico como o de Deus, certamente, alegrar-se-ia por eu existir. Como Deus se alegra. Como se alegra por o David existir e ser como é. Dou-lhe a minha paz. E o meu afecto.

E-mail, José: Antes de mais, os meus sinceros parabéns pelo seu excelente trabalho. Acredito que deve receber muitos e-mails e comentários depreciativos, mas tenciono aqui fazer exactamente o contrário. Chamo-me José e nasci em Vila Franca de Xira, há 24 anos atrás. Actualmente vivo na pacífica vila de Benfica do Ribatejo onde, como em muito do nosso belo Portugal, a ignorância e falsa verdade abundam. Tive educação católica e apenas fiz um dos sacramentos: Primeira comunhão. Desde aí que comecei a usar a minha cabeça para pensar em coisas simples e lógicas.

Como sou amante de História, pesquiso e interesso-me muito por factos e acontecimentos contraditórios. Obviamente que a religião não me passa ao lado e, graças ao meu irmão mais velho já ter uma maneira de ver as coisas muito mais lúcida do que muito bom jovem que por aí anda a deambular em Fátima (sem saber bem porquê), segui-lhe as pisadas no que toca a analise e conclusão. Sei que caso tivesse nascido noutro lado, sem o meu irmão por exemplo, poderia ser hoje mais uma vítima da “selecção genética” bem aproveitada por Oliveira de Salazar, e seria um fervoroso “temente” a uma entidade superior que oprime todos os que não o agradarem. Foram as “castas” certas para a ilusão perfeita. Naturalmente que não me posso considerar católico mas sim cristão depois de ler diversos livros, entre os quais, a sua obra Fátima Nunca Mais. Sigo com atenção as descobertas científicas do nível mais profundo das origens da religião católica, que acho serem muito reveladoras e até embaraçosas para a Igreja. Obviamente que para se mudar pensamentos são precisos muitos anos e muitas gerações, muita “peneira”, se me permite a expressão.

Sinto que, caso sobreviva a toda a panóplia de perigos de vida constantes na nossa sociedade, e que algum dia tenha a “viabilidade” para criar um filho, lhe transmitirei a minha visão do Mundo. Não como a visão certa e única, mas sempre de uma forma científica e sem absurdos.

Acabei agora de ver um programa na RTP2 sobre Fátima e a farsa gigante que ela é. Obviamente que por o ter reconhecido no programa é que fiz o que já estava para fazer há muito tempo: enviar-lhe um e-mail para lhe agradecer pessoalmente a sua luta. Sua, que também é a minha e é a de todos os que se sentem incrédulos com as mentiras que fazem mover milhões e milhões. Pessoas e dinheiro. Despeço-me, desejando-lhe muitos anos de vida e uma bela carreira na procura da verdade. Teria muito gosto em poder conversar consigo pessoalmente para lhe dar força para continuar a espalhar o seu trabalho magnífico. Caso algum dia venha até Almeirim, terei muito gosto em me encontrar consigo para lhe aconselhar uma óptima sopa-de-pedra e um bom vinho tinto. Abraço e até sempre.

ND

Bom dia, José. Gostei de ler a sua mensagem. É de pessoas assim lúcidas e fecundamente subversivas e rebeldes que o nosso mundo precisa. Estas pessoas podem conhecer a incompreensão e a exclusão de muitas outras, mas é sobretudo graças a elas que as sociedades evoluem e progridem em humanidade. Vejo que o José, embora ainda jovem, já se inclui neste número de pessoas lúcidas e só posso ficar feliz consigo. E em eucaristia. Continue por essa via, que é também a via Jesus, o de Nazaré. Não é a via do sucesso, mas é a via da Verdade, consequentemente, a via da Liberdade responsável.

Quanto a eu ir a Almeirim e à sua terra, é um desafio a ponderar e, porventura, a preparar, desde já. Este ano social que está a começar, gostaria de aparecer mais em sucessivas localidades do país – por isso, a sua pode ser uma delas – para me encontrar ao vivo com aquelas pessoas que queiram aparecer, num local previamente anunciado, e conversarmos juntos a Boa Notícia de Deus para o século XXI, que é Jesus, o de Nazaré (não o das Igrejas e dos pastores). Serão conversas saudavelmente polémicas e subversivas. Libertadoras.

Se o José quiser começar desde já a pensar nisso e a preparar a minha passagem ao vivo por aí, tem luz verde. Fale com o seu irmão e outras pessoas suas amigas, jovens e mais velhos, como quem apalpa o terreno. Se vir que há condições, avançaremos. De contrário, o encontro será restrito a si e a mais dois ou três.

O meu abraço. E a minha comunhão.

E-mail, Ricardo: Boa tarde. Daqui fala o Ricardo. Gostaria de levantar algumas questões, pois gosto muito do que leio de si. 1 - O dilúvio universal houve mesmo? 2 - Deus escreveu nas tábuas de Moisés? 3 - A Bíblia foi inspirada por DEUS? Devemos levar a Bíblia á letra? Os 4 evangelhos são fiáveis?

Boa tarde e um BOM fim-de-semana!!

ND

Bom dia, Ricardo. As respostas às suas perguntas dariam vários livros. Respondo telegraficamente.

1. Dilúvio: Se o Ricardo ler-estudar o meu livro NEM ADÃO E EVA, NEM PECADO ORIGINAL tem lá a resposta que procura muito bem explicada e fundamentada. A Bíblia contém dois relatos de Dilúvio sobrepostos e misturados, escritos com cerca de 4 séculos de diferença entre um e outro. Veja se os descobre. E esteja atento sobretudo à mensagem teológica que neles se nos revela/anuncia. Se não nos deixamos “apanhar” pelo Espírito de Deus Vivo que nos fala e sai ao encontro, também através dos acontecimentos de que é feita a História e a Bíblia, de nada vale lermos a Bíblia…

2. Tábuas de Moisés. Deus não escreveu nas tábuas de Moisés. É um modo literário de dizer, para dar mais autoridade à Lei de Moisés. Provavelmente, nem Moisés escreveu. O Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), tal como hoje o conhecemos, é obra redactorial dos sacerdotes judeus e foi concluído já depois do exílio na Babilónia. Do pós-exílio são, por exemplo, o relato mítico da criação em seis dias, com que abre a Bíblia, e um dos dois relatos do Dilúvio… (Está tudo nesse meu livro).

3. Inspirada? Pode dizer-se que a Bíblia é inspirada por Deus. Mas que Deus?, é a questão. Só pode ser o Deus das vítimas, como eram outrora os escravos hebreus no Egipto, não o Deus dos vitimadores/verdugos, como era outrora o Faraó do Egipto. Inspirada, quer dizer que tem o Sopro ou Espírito de Deus vivo. Não o sopro ou espírito do Império. Ler a Bíblia é sintonizar com este Sopro, não apenas com a letra. Só os fundamentalistas de todos os credos e até ateus é que gostam de se agarrar à letra…

4. Os Evangelhos. São fiáveis, sim. Desde que saibamos escutá-los como deve ser. Como relatos essencialmente teológicos. Que nos revelam/desvendam a Boa Notícia que Deus Vivo é, presente e actuante em Jesus, o de Nazaré, que acabou crucificado pelos senhores do Templo e do Império. O meu abraço.

E-mail. Jorge: Estimado Padre Mário de Oliveira, quero dar os meus parabéns pela excelente entrevista dada na SIC Radical, na passada quarta-feira, dia 12 de Junho. A certa altura, por cada frase do Padre Mário, eu dizia: «Grande Padre!» e a minha mãe, como é inglesa dizia: «Great Man!»

Uma coisa deixou-me na dúvida. Como é que a SIC Radical, sendo um canal do Dr. Pinto Balsemão, deixou passar aquela entrevista no ar? Eles que andam tão preocupados em informar à sua maneira. Um grande abraço

N.D.

Meu caro Jorge

Também eu fiquei surpreendido, quando me convidaram. Mas aconteceu. Talvez por ser na SIC Radical. Sabe, certamente, que os grandes senhores do Dinheiro precisam de dar um ar de tolerância, para melhor poderem impor a sua ditadura. Sem grandes custos. O Salazar é que foi de vistas curtas. E criou a censura e a prisão política. Os ditadores de hoje preferem narcotizar as pessoas e, às vozes incómodas, apresentá-las como “aves raras” que os narcotizados ou não ouvem, ou, se ouvem, já não são capazes de entender. E os poucos que entendem, sentem-se insuficientes para virar o bico ao prego. Ou, o que é pior, já nem estão para aí virados. Quem é hoje militante? Quem vive hoje na clandestinidade? Não à maneira antiga, evidentemente, mas de uma maneira que urge inventar? Para derrubarmos os poderosos dos seus tronos, como, de resto, é propósito do Deus de Maria e de Jesus.

O meu abraço, extensivo à sua mãe.

E-mail. Augusta: Sr. Padre, ouvi ontem num canal de televisão o resto da entrevista que o Sr. Padre deu. Hoje procurei e encontrei o seu mail.

Quero dizer-lhe que sou heterossexual, mas isso não faz de mim diferente dos que o não são e fiquei surpreendida de ouvir da boca de um clérigo palavras tão abençoadas. Bem-Haja!

Todos precisamos de ser amados e saber que o somos, especialmente os que se julgam diferentes. Muito obrigado por me mostrar que na religião que eu professo e que muito me tem desiludido ainda existe, pelo menos uma pessoa que é capaz de nos ver com os olhos com que Jesus Cristo nos via.

Que Deus o proteja e lhe dê força para continuar no verdadeiro caminho de Deus.

N.D.

Bom dia, Augusta. Estou a chegar de férias. O correio electrónico teve que esperar. Bem-haja pelas suas palavras de estímulo.

Efectivamente, a entrevista foi conduzida para esses temas de fronteira. Limitei-me a expressar o meu ponto de vista que procuro que sintonize com o do Espírito de Jesus Ressuscitado. Bem sei que o Vaticano não vai por aí. Mas é o Espírito de Deus que havemos de acolher e seguir, tal como fez Jesus, o de Nazaré.

Também eu sou heterossexual. Mas isso não me dá direito de pensar que só os heterossexuais é que fomos criados por Deus. Na verdade, Deus nos fez heterossexuais e homossexuais e lésbicas. Ainda temos um caminho longo a percorrer. Mas havemos de chegar lá. Um beijo.

E-mail. Jorge

Senhor Padre Mário: sou um médico vivendo nos Açores e procedente de família emigrante mais tarde regressada a Portugal - estou a falar dos fins do séc. XIX e início do séc. XX. Essa família tornou-se protestante de matriz presbiteriana, o que acabou por me estruturar culturalmente e obrigar-me a procurar formas de viver num país que seguia o seu curso baseado em princípios um pouco diferentes dos meus. Apesar de várias vezes ter assistido a exposições de reflexão e de crítica perante aspectos do cristianismo e da instituição Romana, há dois dias num canal da TV cabo em que o senhor falava com um jovem repórter, fiquei admirado com a clareza e a força do seu discurso. Claro que a religião é filha dos nossos medos e que a expressão mais pagã do cristianismo procede de uma sensação de impotência perante as ameaças da natureza, mas talvez por isso mesmo a figura de Cristo, a força da sua mensagem estranha até mesmo agora, as ambiguidades da paixão e do seu motivo, são ainda forças que nos ajudam a esperar qualquer coisa da vida, ou melhor da nossa justificação. Interessante o seu discurso, a vida que ele exprime, o ânimo que respira. Gostei. Um abraço de simpatia.

N.D.

Caro Jorge

Não vi o programa em causa. Mas ainda bem que o Jorge viu e ficou em acção de graças. Fico feliz. A minha alegria é poder mostrar ao mundo que o Cristianismo de Jesus é uma Boa Notícia. Infelizmente, a Igreja tem mostrado praticamente o contrário. Não me cansarei de alertar os meus irmãos padres e bispos que não pode ser assim. Mas eles, pelos vistos, preferem insistir nas suas catequeses terroristas…

Vou de férias amanhã. Levo comigo as suas palavras. De estímulo. Bem-haja.

E-mail. António Macedo: Estimado Padre Mário, acabo de receber mais um número do FRATERNIZAR, de Julho/Setembro2006.

Mais uma vez PARABÉNS pela qualidade não só polémica, mas também de conteúdo, e sobretudo, pelo costumado desassombro a que em tão boa hora nos habituamos e já não podemos passar sem ele!

Entre outras muito boas coisas, achei muito oportuno o desmascaramento do Codigo Da Vinci e o deslinde imprescindível entre a “verdade” e a “mentira”, bem como a oportuna referência ao Evangelho de Judas por Leonardo Boff e a promessa de que se falará sobre o mesmo Ev. de Judas na versão de F.G.Bazan, no próximo número. Ficamos ansiosos!

Por enquanto ainda só estou a lê-lo transversalmente, antes de me deliciar a aprofundá-lo como deve ser, com tantos e tão bons artigos.

Já agora, aproveito para referir que colaborei na revisão da edição portuguesa da tradução do Ev. de Judas feita por Antonio Piñero e Sofia Torallas-Tovar, que a Esquilo editou há pouco. Claro que é uma visão heterodoxa, tipicamente gnóstica, que transborda o espírito dos nossos evangelhos, mas pode ser um complemento interessante para se abordar o “mistério da entrega” segundo uma outra óptica, que não apenas a da vulgar “traição”, e que se pode reinterpretar como “transdoação”.

Repare-se que mesmo nos evangelhos canónicos não se chama “traidor” a Judas, ao contrário do que as traduções correntes nos querem fazer crer (em grego, traição e’ prodosia ou epiboule, e traidor é prodotes): a palavra usada no NT é paradidomi, que significa entregar, e é um terminus technicus dos Mistérios Órficos para significar a entrega do candidato, pelo Hierofante, ao rito da Iniciação. Por exemplo, no Ev. de Marcos lemos: “Judas Iscariotes, o que o entregou” (Marcos 3, 19), e no de João: “Judas, o que o entregava” (João 18, 2). O termo usado é sempre paradidomi, curiosamente o mesmo que João emprega quando Jesus morre: “(Jesus) entregou o espírito” (João 19, 30). Ou seja, parece que há aqui um ritual mistérico que nos transcende, e que a vulgar e grosseira “traição” é incapaz de explicar com alguma coerência e racionalidade... Por isso a tão apregoada “traição” de Judas, parecendo inexplicável, tem feito correr tanta tinta...

Aproveito também para lhe agradecer, do fundo do coração, o simpático e amabilíssimo texto com que destacou o meu modesto trabalho sobre o “Esoterismo da Bíblia”, que – a quem se der ao trabalho de o folhear – espero que possa ajudar a compreender um pouco melhor as tão singelas como transcendentais belezas/verdades/bondades da sublime mensagem de Cristo Jesus.

Bem-haja, e um grande abraço muito amigo.

ND

Meu querido Amigo António Macedo. Quando alguém, no sinistro Portugal de Salazar, denunciava outrem à Pide e lho “entregava”, toda a gente entendia esta “entrega” como uma traição. O verbo significa “dar”, mas dar/entregar alguém ao opressor, no caso de Judas e de Jesus, dar/entregar Jesus ao representante do Poder sacerdotal do Templo e ao representante do Poder do Império de Roma em Jerusalém, é o cúmulo da traição, sobretudo, quando o autor de semelhante gesto é um dos “Doze”, que gozava até então da confiança de todo o grupo, ao ponto de ser o homem da bolsa colectiva. O Evangelho de João, o mais teológico dos quatro evangelhos canónicos, coloca, e bem, o acontecimento historicamente hediondo e criminoso que é a Morte de Jesus, no contexto outro de Deus, que é Amor e, por isso, apresenta-nos Jesus, inclusive no coração desse acontecimento, como o rosto visível de Deus-Amor invisível, onde não se vê nem se respira ponta de ódio, de vingança, de impaciência, de medo, de angústia, apenas Amor, Paz, Humanidade, Ternura, Verdade, Luz. Numa palavra, apresenta-o a adiantar-se aos seus opressores e carrascos e a dizer-lhes: “Eu sou”, exactamente como Deus, segundo o livro bíblico do Êxodo, se havia dito outrora a Moisés no Egipto dos faraós. Não é que não tivesse havido “traição” histórica no acto de Judas entregar/dar Jesus. Houve. Mas, da parte de Jesus, só há amor, entrega/amor, inclusive, a Judas e àqueles que haviam sido enviados pelo Poder de turno para o prenderem.

P. de Mós. M. Augusta: Era importante para mim saber dizer-lhe o que me vai na alma. Não sou capaz, não tenho palavras. Faço-o com um abraço tão forte como o de dois irmãos que se encontram depois duma separação de 60 anos. Um misto de amor, respeito, saudade, gratidão, numa só palavra, fraternidade. Obrigada por me ajudar a cumprir o meu dever; obrigada, Pe. Mário, por tão delicioso presente [o livro Na companhia de Jesus e de Ateus]; e mais obrigada, Jesus, por teres vindo à minha porta e teres deixado a tua palavra no meu coração. Tudo o que posso mandar é para pagar o Jornal que está em atraso e pouco sobra para uma lata de tinta que dê cor ao Barracão de Cultura.

Que pena, quem tem não dá, quem tanto queria partilhar não tem. Fica ainda a dor de saber que estão tantos irmãos a viver esta realidade.

N.D. Querida Augusta. E ainda diz que não tem palavras!... Mas que belo poema este que me enviou!


IGREJA/SOCIEDADE

XXVI Congresso de Teologia de Madrid sobre Cristianismo e Bioética

Nas questões decisivas da vida cada

pessoa deverá seguir a sua consciência

"Não repartimos preservativos nem vacinas, lá onde têm feito falta; e isso não é bom". Por estranho que possa parecer aos ouvidos de muitos bispos e de outros católicos conservadores, a verdade é que este foi um dos pecados de omissão publicamente assumidos, no decorrer da celebração eucarística com que encerrou o XXVI Congresso de Teologia de Madrid. A celebração aconteceu no salão de congressos das "Comisiones Obreras", onde anteriormente, de 7 a 10 de Setembro 2006, tiveram lugar as sessões de trabalho. Jornal Fraternizar esteve presente, na pessoa do seu director, e dá conta aqui às suas leitoras, aos seus leitores do que de mais pertinente lá foi apresentado e debatido. Uma das conclusões a que chegou, no final dos trabalhos, foi que nas questões decisivas da vida, entre o acto de nascer e o acto de morrer, cada pessoa deverá seguir a sua consciência bem formada e bem informada. Sem que seja permitida a interferência de outras pessoas, nomeadamente, padres e outros líderes das Igrejas e das religiões, psicólogos e outros que tais. Aos Estados de cada nação, o que havemos de exigir é que se deixem conduzir pelo bom senso, sempre que forem chamados a fazer e aprovar leis, para que a vida de todos os seres humanos seja integralmente defendida, num ambiente que também se quer saudável e ecológico.

"Visitei um hospital muito moderno, conheci as suas áreas de investigação e deu para perceber que toda aquela ciência não tem alma. Tudo ali depen­de do dinheiro. A vida humana custa dinheiro, a saúde das crianças custa dinheiro... Temo que na minha aldeia as pessoas saibam que o meu filho ga­nha dinheiro com a doença das pes­so­as. O mesmo dinheiro que num sítio cuida da saúde, noutro sítio assassina a vida que ajudou a salvar." O testemu­nho, de pôr os nossos cabelos em pé, saiu aflitivo da boca de um chefe indí­gena do centro oeste do Brasil, depois que foi assistir à festa de homenagem ao seu filho recém-formado em medi­cina. Partilhou-o com dor e sobressalto ao seu conterrâneo e amigo, o monge be­neditino Marcelo Barros, biblista e conselheiro das Comunidades eclesi­ais de base do Brasil. E foi com este testemunho que o referido monge, con­vi­dado para intervir no Congresso, a­briu a sua comunicação sobre "A Bio­ética a partir dos pobres". O testemu­nho calou fundo na consciência das pesso­as que o escutaram e logo deu para per­ceber que há pelo menos duas bio­éticas no nosso mundo, a dos ricos e a dos pobres, melhor, empobrecidos.

As questões da vida, quer humana, quer de todo o Cosmos, deveriam ser a menina dos olhos de toda a investiga­ção científica. As descobertas que se sucedem deveriam aproveitar a todas as pessoas do planeta que delas pos­sam estar necessitadas, em determina­dos momentos da sua vida, indepen­den­te­mente delas terem dinheiro ou não.

Mas não é que as multinacionais até com a doença das pessoas são ca­pa­zes de obter lucros, os mais cho­ru­dos? A vida, todas, todos nós a rece­bemos de graça. Ninguém a adquiriu por dinheiro. Mas, hoje, o maldito Di­nheiro não olha a meios para crescer cada vez mais nas mãos de alguns, cada vez em menor número, e até com a doença das pessoas é capaz de fazer negócio. Quem tem dinheiro para pagar é atendido e beneficia das descobertas da ciência, quem não tem dinheiro ar­ris­ca-se a morrer mais cedo. É assim no Brasil e na generalidade dos países do Sul. E já começa a ser cada vez mais assim também nos países da Europa, já que os respectivos Estados, quando têm que cortar nas despesas públicas, começam quase sempre pela saúde dos que não têm dinheiro para pagar.

Mas é do Brasil pobre que vem um exemplo a seguir: "Nos últimos anos, as comunidades de matriz negra e in­dí­gena têm desenvolvido uma pastoral de saúde que valoriza os alimentos ori­­ginários de cada região, reagindo ao colonialismo que havia exportado para lá os alimentos ocidentais como sendo os fundamentais. Em todo o país, as pessoas começam a contar com um sistema de saúde alternativo e de con­fiança, não para as emergências, mas para a medicina preventiva. É uma me­di­cina mais comunitária e mais humilde e em comunhão com a natureza."

O monge beneditino não se ficou por aqui. E avançou na denúncia das grandes multinacionais europeias que gostam de se apresentar na Europa como respeitadoras da vida, no Brasil não passam de predadoras. "A ética que está por trás da questão dos trans­génicos está mais para a bioprosti­tui­ção que para a bioética", já que as em­presas "em tudo querem ganhar sem­pre e sempre mais".

Da África, veio também uma voz com dor e com denúncia. Também com apelos à conversão do Ocidente, para que o planeta chegue a ser a casa co­mum que terá de ser, se quisermos que seja um planeta bioético. Mas as multi­na­cionais da nossa vergonha fazem ore­lhas moucas e os seus gestores não frequentam congressos de teologia, a não ser para observarem como correm as coisas e que ventos é que sopram pelas salas onde decorrem as sessões de trabalho. Enquanto os ventos forem de palavreado e de boas intenções, eles podem continuar impunemente nas suas acções criminosas, que as su­as vítimas não lhes saem ao caminho.

E assim tem sido. As Igrejas do Ocidente não sabem o que seja profe­cia. São Igrejas nem frias nem quentes que assistem, indiferentes, às economi­as e às políticas mais ferozes e selva­gens, indignas do homo sapiens que dizemos ser. Basta ver como tratamos os milhões de emigrantes que vêm até nós. Como nos fechamos contra eles. Como os "matamos", ao deixá-los mor­rer à porta das nossas costas maríti­mas. Como os devolvemos à procedên­cia, no jeito de quem devolve uma mer­ca­doria estragada. E isto, ao mesmo tempo que promovemos conferências e congressos sobre bioética. Nem bio (= vida), nem ética. Hipocrisia, sim. Por­que até a Teologia que não se torna teopráxis, é mais do mesmo e só serve para manter o status quo oci­dental. Depois, não nos queixemos, qu­ando nos atacarem os "terroristas". A fome e sede de justiça quando se apo­de­ram dos empobrecidos e humilhados da História levanta-os como um exér­cito em linha de batalha. E tenham eles consciência disso ou não, as suas ac­ções, violentas que sejam, são acções de Deus, do Deus dos pobres que não descansa enquanto não derruba as mul­tinacionais dos seus tronos e das suas vaidades e distribui pelos famintos as riquezas que elas insensatamente teimam em acumular cada vez mais.

O Congresso ainda não abriu ca­mi­nhos nesta direcção. Seria desenca­dear ventos que depois dificilmente po­deríamos domesticar. E pode não ter so­ado ainda a hora destas acções vio­lentas e em massa, por parte das víti­mas da História. Mas os países do Oci­dente têm de compreender que, se não arrepiarem caminho, essa hora soará. Só que então poderá ser tarde demais.

As Igrejas que estão na Europa é que não podem continuar a fazer ore­lhas moucas. Se crêem em Deus, têm que o praticar e não apenas reflectir sobre Ele. Têm que praticar Deus, não apenas fazer orações. Praticar Deus é praticar o Amor em acções concretas que produzam libertação.

Infelizmente, preferimos praticar ca­ri­dadezinhas. Para adormecer e do­mesticar as vítimas. Mas com as multina­cionais cada vez mais devoradoras como as de hoje, não há caridadezi­nhas que resistam, nem paciência por parte dos empobrecidos que aguente.

É hora de agir. De praticar Deus. De resistirmos activamente às multina­cionais da nossa vergonha e impedir­mos a concretização dos seus projectos genocidas. É hora de sermos bioéticos e de termos práticas bioéticas, que vão até à doação da própria vida.


Conferência integral da teóloga Elfried Hart

sobre os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres

Não abortar, contra a própria consciência, é pecado

"Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesado no seu coração e consciência os diferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agisse contra a sua consciência não abortando. Trata-se duma decisão grave e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a destruição duma vida humana pode justificar-se."

Quem o diz, sem que a voz lhe trema, é a teóloga Elfried Harth, do Colectivo Católicas pelo Direito a Decidir. A afirmação faz parte da conferência que proferiu no XXVI Congresso de Teologia de Madrid, que aqui apresentamos na íntegra. Não percam.

Convidaram-me para dar o meu contributo à reflexão que, como cristãs, cristãos estamos a realizar aqui neste Congresso sobre a bioética, com um destaque a partir da perspectiva dos di­reitos reprodutivos e sexuais das mu­lheres.

Talvez seja bom começar por ten­tar examinar o que é que entendemos por “Direitos reprodutivos e sexuais”. A­grada-me muito uma definição que de­ram umas mulheres camponesas me­xicanas, num dos muitos encontros que o colectivo Católicas pelo Direito a De­cidir realiza no México e noutros países latino-americanos onde trabalha. For­mu­laram-no mais ou menos assim: É o direito das pessoas a sentir-se agrade­cidas pelo corpo que Deus lhes deu, um corpo dotado, por um lado, da ca­pacidade do prazer e, por outro, da ca­pa­cidade de produzir novos seres hu­ma­­nos; é o direito a explorar e a viver plena e positivamente essas duas ca­pa­ci­dades, e a viver e a desfrutar ple­na­­mente cada uma de per si; é o di­reito a construir-se como pessoa moral­men­te autónoma, adulta e responsável através do exercício dessas capacida­des e poder exercê-las plenamente; é o direito à integridade física e psico­ló­gica; é o direito a saber e a exigir que o princípio fundamental de cada relação íntima de casal é a justiça, a responsabilidade pelo próprio corpo e o bem-estar, assim como pelo corpo e o bem-estar do casal; é o direito a de­terminar o número de filhos que se quer ter, assim como o momento em que se quer ter; é o respeito por esse dom tão precioso que Deus nos deu, o nosso corpo, respeito que a nossa tra­dição católica proclama e ritualiza, por exemplo, no sacramento da unção dos doentes e nos ritos da sepultura dos mortos.

Quais as condições para viver esses direitos?

O matrimónio por toda a vida é sem dúvida alguma uma instituição muito importante no contexto do exercício da sexualidade humana, antes de mais quando uma pessoa ou um casal opta pela procriação, e se trata duma rela­ção estável que proporcione segurança e continuidade na tarefa da criação dos filhos. Porém, sabemos todas, todos que não é a forma jurídica duma rela­ção, nem o seu carácter heterossexual ou monossexual o que garante a sua qualidade, e, por isso, o que chamamos “direitos sexuais e reprodutivos”, mas sim a justiça que reina dentro da rela­ção de casal. Para poder desfrutar os seus direitos sexuais e reprodutivos, as pessoas têm que respeitar-se, pri­meiro, a elas próprias e depois o res­pectivo casal.

Direitos sexuais e reproduti­vos não devem confundir-se com libertinagem e irresponsabilida­de. Trata-se, pelo contrário, de que a so­ciedade, todas as mulheres, todos os homens criemos as condições que per­mi­tam que as pessoas possam desfru­tar o seu corpo de maneira sadia. Come­çando por rejeitar rotundamente todo o tipo de violência e de coerção, que é precisamente a negação da justiça. Começando por proporcionar a cada menina, menino e a cada adolescente uma educação sexual e emotiva que lhes permita desenvolver uma atitude respeitosa e responsável perante o cor­po, uma atitude positiva perante a se­xualidade e uma consciência madura perante o que significa trazer um filho ao mundo. O corpo e as suas facul­da­des são algo precioso que não se des­perdiça, mas que se cuida e que se desfruta.

Trata-se de que toda a pessoa co­nhe­ça e tenha acesso aos meios que lhe permitam exercer a sua sexualidade de forma gozosa e sem riscos para a sua saúde física e mental. Começando por saber dizer NÃO a algo que não se deseja. Uma adolescente, uma mu­lher, toda a pessoa tem que saber que é legítimo dizer NÃO a relações carnais que ela não esteja a desejar, a relações que contenham riscos para a sua saúde, a relações que não incluam métodos de protecção contra infecções ou con­tra uma gravidez não desejada. Deve, por exemplo, saber que é legítimo e sin­toma de responsabilidade usar e re­clamar o uso do preservativo, para pre­venir uma gravidez não desejada ou uma infecção.

Em Dezembro passado, o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir orga­nizou uma viagem pelo Perú e pelo Bra­sil para um grupo de seis parla­mentares de vários países europeus. O objectivo da viagem era permitir a essas seis legisladoras europeias ex­plo­rar o impacto que a religião tem so­bre os direitos sexuais e reproduti­vos das mulheres na América Latina.

Tiveram que ouvir horrores em todo o lado sobre o empenho que a hi­erarquia eclesiástica põe para os obstruir, desde a educação sexual da juventude nos colégios até ao acesso a meios contraceptivos para a popula­ção pobre. Ao mesmo tempo, houve também experiências muito comovedo­ras, como o encontro com uma freira brasileira que colabora com o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, do Bra­sil.

Essa mulher trabalha na pastoral de prostitutas e há pouco tempo con­cluiu uma tese de teologia com Maria José Rosado, a directora do colectivo Católicas, que trabalha na Universida­de católica de S. Paulo. Trata-se duma tese sobre a religiosidade das prosti­tutas, sobre a mariologia destas mu­lheres. Contava-nos que têm uma imen­sa devoção a Maria, na qual vêem a grande consoladora, uma pobre mu­lher do povo, que compreende as suas penas, sem as julgar. No fundo, vêem nela o rosto compassivo de Deus. E é precisamente este um dos objectivos maiores do trabalho da religiosa: anunciar a essas mulheres a Boa Notícia, trabalhar sobre os tremendos sentimen­tos de culpabilidade que as oprimem.

Há algumas que há anos não vol­taram a comungar, embora sintam uma grande sede de se aproximar da mesa do Senhor. Vão à missa, mas ficam no último banco, pois sentem-se indignas de ir mais acima. Sentem que pecaram e que terão que voltar a pecar, pois são mães e têm que dar de comer aos seus filhos. Sofrem por ter cometido do­ze, quinze abortos, por não terem po­dido proteger-se contra uma gravidez não desejada. Sofrem de cada vez que tiveram que negar a vinda ao mundo de um filho, mas fizeram-no porque que­riam evitar-lhes o destino que os esperava como filhos de prostituta.

A re­ligiosa faz-lhes ver que o que ela reconhece nos actos que tanto as culpabilizam é, afinal, amor: concreta­men­te, optaram por carregar com uma culpa por amor ao próximo, por amor a essa criatura não nascida, por amor aos filhos que já têm e para os quais um irmãozito mais seria uma carga muito pesada. E então ela apoia o co­lectivo Católicas pelo Direito a Decidir na sua luta pela despenalização do aborto, por amor e respeito para com estas mulheres. Sabe que cada vez que uma delas tenha que praticar um aborto clandestino, a sua vida corre perigo. E tem a convicção de que a vida de cada uma delas é amada por Deus e que cada uma delas tem o direito à vida, à integridade física, à dignidade.

Defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é por­tanto uma opção pelos po­bres. É lutar por que o acesso à edu­cação sexual, aos meios contraceptivos e em último recurso ao aborto não sejam privilégio exclusivo de quem tem dinheiro para os comprar. Para que também a adolescente mais humilde e a mulher mais indigente não tenham que arriscar a sua vida e a sua saúde, mas que se lhes reconheça a dignida­de de serem agentes morais no que res­peita à sua sexualidade e à sua ca­pacidade de reprodução e que possam viver uma sexualidade sadia, positiva e gozosa, em relações justas e responsáveis.

Agora perguntareis: E que tem tu­do isto a ver com a bioética, es­ta disciplina recente que se vem for­jando na intersecção da biologia, me­dicina, filosofia, teologia, direito e po­lítica?

Diria que o aparecimento da bioé­tica como disciplina é precisamente um dos muitos sintomas duma revolução pro­funda e global de nossos conheci­mentos, em que estamos comprometi­dos todas, todos, e que exerce um tre­mendo impacto sobre todos os aspectos das nossas vidas e da nossa consciên­cia como seres humanos.

O que significa esta revolução para as mulheres? O que significa pa­ra o seu corpo e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O que si­gni­fica para a sua capacidade reprodu­tiva e para os seus direitos relativa­mente à sua capacidade reprodutiva? O que significa para a sua sexualidade e para os seus direitos relativamente à sua sexualidade? O que significa para a ordem de poder da nossa sociedade, uma ordem baseada na diferença dos se­xos, por sua vez, organizada numa hierarquia dos sexos, na qual o mascu­lino prima e reina sobre o feminino?

Estas são apenas um par das mui­tas perguntas que surgem quando en­tra­mos nesta problemática. E é muito difícil formular respostas. Penso que, quanto a certezas e verdades encontra­mo-nos actualmente numa situação parecida à do povo eleito, nos tempos do Faraó: O Espírito que é como um vento invisível que não se deixa encur­ralar, mas sopra livremente por onde quer, está a convidar-nos ao êxodo, a partir para horizontes desconhecidos, sem mais garantias que a fé numa pro­mes­sa e a esperança de alcançar o pro­metido. Encontramo-nos numa si­tua­ção em que todo o tipo de fronteiras começam a desvanecer-se. E com isso começa a cambalear a ordem social. E é esse o motivo que explica o recru­descimento de todos os fundamentalis­mos a que estamos a assistir na actuali­da­de, fundamentalismos que são sinto­mas do medo perante as incertezas e os questionamentos da ordem social, sintomas duma resistência a toda a mudança, à necessidade de reformular ou reinterpretar os mitos fundadores das nossas tradições.

É altura de sublinhar que todos os fundamentalismos, sejam cristãos, mu­çulmanos, judeus, nacionalistas, ou de qualquer outro tipo, têm uma preocu­pação chave, que é a negação dos di­reitos sexuais e reprodutivos das mu­lheres, o afã por controlar o corpo das mulheres. Embora possam estar em guer­ra uns contra os outros, já em matéria de negação dos direitos sexu­ais e reprodutivos das mulheres, os fundamentalistas são incondicionais alia­dos.

Assim a Santa Sé, graças ao pri­vilégio que goza de ser a única reli­gi­ão à qual se reconhece o estatuto de observador não membro das Nações Unidas, não tem o menor escrúpulo em unir-se aos governos de Estados como Sudão, Iraque, Líbia para obstruir todo o avanço ao nível de política internacio­nal em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. E com a che­gada de George W. Bush à presi­dência dos Estados Unidos, este país passou a ser o seu melhor aliado nesse campo, motivo pelo qual os bispos americanos apoiaram a sua reeleição em 2004, em detrimento do seu oposi­tor católico. Preferiram que voltasse a ser eleito presidente, um protestante que desencadeou a guerra no Iraque e que governa contra os pobres no seu país, desde que isso viesse a impedir a chegada à presidência de um católico partidário dos direitos sexuais e repro­du­tivos das mulheres.

Porque se sentem tão ameaça­dos os fundamentalistas pelos de­senvolvimentos científicos re­cen­tes?

Porque estes questionam profun­da­mente os fundamentos antropológi­cos que regem a simbologia dos nossos sistemas de poder, tanto a simbologia religiosa como a política.

Com o desenvolvimento das tecno­lo­gias da reprodução assistida, da clo­nagem, por exemplo, as categorias de oposição e de complementaridade dos sexos, isto é, a fronteira que os sepa­rava, que servia para estabelecer e jus­tificar uma determinada ordem social, começa a deixar de ser pertinente.

Se até à data a reprodução bioló­gica da espécie humana requeria a exis­tência duma humanidade sexuada e a interacção sexual entre dois seres de sexo oposto, vislumbra-se que isto não continuará a ser indispensável no futuro. Pelo menos, não o será cientifi­camente, teoricamente. Isto é, ainda que os nossos legisladores continuem a proibir a clonagem reprodutiva e os nossos cientistas respeitem essa lei, o que o nosso entendimento nos permite vislumbrar, o que a nossa mente actual­mente é já capaz de imaginar e de pen­sar, não deixará de ter um profundo impacto sobre a antropologia e, como corolário, sobre a teologia.

Demonstrou-se que é possível pro­du­zir um novo mamífero a partir de um ovozito nucleado desta espécie de ma­mífero à qual se implantou o núcleo de outra célula de qualquer outro indi­ví­duo dessa espécie. Quer isto dizer que a reprodução deixa de depender ex­clusivamente da sexualidade. Repro­dução e sexualidade são duas coisas distintas e desligadas uma da outra. É concebível criar um indivíduo da raça humana, distinto dos demais da sua es­pécie, a partir de um ovozito, e sem necessidade de esperma. Ainda se pre­cisará, para o desenvolvimento desse clone, de um útero, pois a ciência ain­da não conseguiu desenvolver incuba­do­ras que possam suprir o ventre da mulher.

Significa isto, à distância - ao me­nos teoricamente - que se continuaria a precisar de mulheres, mas já não ha­veria necessidade de varões, para que a espécie humana continue a perpetu­ar-se e não desapareça da face da terra.

Podemos então imaginar uma soci­e­dade humana configurada por indiví­duos que já não são “o fruto do ho­mem”, ou para dizer de maneira mais pre­cisa, “o fruto do varão”. Porém, o que significam então, nessas condições, categorias antropológicas e, como co­rolário, políticas e religiosas como as de “pai”, “irmão”, “filiação”, “linhagem”, “des­cendência”, “antepassados”, “gera­ção”?

Dar-nos-emos conta de que não pre­cisamos de chegar até à biorevo­lução para que muitas destas catego­rias sejam redefinidas. Já estamos a assistir a isso, por exemplo, com o re­conhecimento do matrimónio gay. A bio­revolução no fundo só concede maior plausabilidade às mudanças an­tropológicas que estamos a viver, cor­roborando no biológico o que já esta­mos a experimentar no social e no jurí­dico: que as fronteiras que nos pare­ciam inquestionáveis e evidentes – a Lei Natural ditada por Deus e reflexo da sua vontade divina desde um prin­cípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos amén – cada dia o são menos.

O que significa então ser mu­lher? E que significa ser varão? Admito que, embora julgo intuí-lo, defi­nindo-me eu mesma como uma mulher, a verdade é que sinto-me incapaz de dar uma definição categórica e essen­cia­lista, que estabeleça sem ambigui­dade alguma a fronteira entre os dois seres, catalogando um na categoria “va­rão” e o outro na categoria “mulher”. Sinto que a fronteira entre ambos está a desvanecer-se, é cada mais opaca.

O que significa esta biorevolução para o corpo das mulheres e para os seus direitos relativamente ao seu cor­po? O corpo das mulheres foi sempre em todos os sistemas políticos e econó­micos que conhecemos, a matéria pri­ma destinada a produzir e a reproduzir o bem mais precioso da espécie huma­na que é a sua própria sobrevivência e a sua própria perpetuação. Foi a fon­te da força de trabalho necessária para criar tudo o que a humanidade tenha podido considerar como riquezas, e isto antes de que estas riquezas pos­sam ser acumuladas ou repartidas. Os va­rões também desempenharam um papel indispensável neste trabalho, mas uma diferença económica central entre varão e mulher é que a quanti­dade de tempo que o varão precisa in­vestir no desempenho do seu papel bio­lógico de reprodutor é sumamente breve, apenas um par de instantes, enquanto que a parte que incumbe à mulher se prolonga no mínimo por um período de nove meses.

Num mundo em que a única fun­ção dos varões e das mulheres fosse a re­pro­dução, e que um va­rão fecundasse apenas uma mu­lher por dia, um varão precisaria du­mas 300 mulheres para optimizar a sua capacidade reprodutiva, enquanto que a uma mulher bastaria ter relações reprodutivas com um ho­mem cada 300 dias para optimizar a sua. Numa povoação de igual número de varões e de mulheres, sobrariam 299 varões por cada mulher. Ou para o formularmos em linguagem eco­nó­mica: o valor biológico-econó­mi­co duma mulher seria equiva­len­te ao de 299 varões. Pelo menos em sociedades em que a reprodução biológica da espécie humana se opere segundo a tradição sexuada-sexual. Pois no horizonte duma reprodução por clonagem, o valor biológico do va­rão chega ao zero, zero.

Todos os povos que se dedicaram à criação de animais compreenderam desde os mais remotos tempos histó­ricos esta diferença no valor dos sexos: Conservam as preciosas fêmeas que pro­porcionam leite e crias ou ovos, e sa­crificam os machos de valor incompa­ravelmente inferior, para proporciona­rem carne para a dieta do grupo, con­servando unicamente um par de repro­dutores.

E podemos estar seguros de que a origem remota de toda a ordem social e política de que se dotou a espécie homo sapiens radica na apropria­ção e no controlo desse valor in­com­parável que representa na so­ciedade humana a capacidade re­produtiva inerente ao corpo das mulheres. E a ordem patriarcal con­siste em que aqueles indivíduos do sexo masculino que consigam apro­priar-se ou ao menos controlar o corpo e o produto do corpo das mulheres, são também aqueles que detêm o po­der. E a obsessão pelo controlo do cor­po das mulheres é talvez a melhor me­di­da para apurar o grau de funda­mentalismo patriarcal de qualquer sis­tema de poder.

O exemplo mais flagrante pro­por­ciona-o a nossa Santa Mãe Igreja Católica Apostólica e Ro­mana. Essa “senhora”, que é uma es­trutura de poder que em realidade está constituída exclusivamente por varões que renunciaram à sua capacidade reprodutiva biológica, em troca do má­ximo título de autoridade patriarcal que é o de “pai”, é um colectivo exclusiva­men­te masculino que decide quais são as regras que regem a sexualidade.

Primeiro, a daqueles varões que preferiram renunciar ao poder dentro da dita estrutura a favor do exercício da sua sexualidade [os leigos]. A Santa Mãe Igreja impõe-lhes que a única se­xu­a­lidade legítima é a heterossexual, isto é, aquela que implica interacção com o corpo duma mulher, com a qual estejam unidos em matrimónio indisso­lúvel. E de harmonia com a sexualidade das mulheres. Porém, o que antes de mais ela se arroga é o controlo exclusi­vo dos corpos das mulheres, quando estas se encontram em gestação, redu­zindo-as a seres portadores no seu seio de um espaço extraterri­to­rial, uma espécie de enclave do qual se vêm expropriadas en­quanto se esteja desenvolvendo ali um fenómeno biológico que pode chegar a culminar na vinda ao mundo de um novo indivíduo da espécie humana.

Po­rém, este afã por expropriar a mulher gestante do seu corpo e do que este está a produzir, será realmente um afã para proteger a vida de um ser humano? Então, como explicar que pela destruição duma vida humana haja sanções diferentes, segundo os casos?

O direito canónico estipula que a sanção para o aborto é a excomunhão. Esta sanção não se aplica nem ao ho­micídio nem ao assassinato. Nem se­quer ao massacre ou ao genocídio.

Se uma mulher grávida não quer assumir essa maternidade, e decide des­truir a vida que está a gestar-se no seu útero, ela tem duas possibilida­des: Ou aborta, talvez aos dois ou três meses de gravidez, isto é, opta pela destruição do fruto do seu ventre antes de dar à luz, ou então dá à luz e mata logo a seguir o bebé que deu à luz.

Pois bem, o Direito Canónico considera os dois actos como crimes, mas distintos, dos quais o aborto me­rece uma pena muito maior que o in­fanticídio!

Com o aborto, uma mulher demons­tra que reivindica a integridade do seu corpo, esteja este em fase de gestação ou não, e nega-se a aceitar uma “ex­tra­territorialidade” dentro de si, sobre a qual outros possam deter a autoridade e o controlo. Por isso, estes ameaçam a mulher com a excomunhão. Não se tra­ta de castigar em primeiro lugar a des­truição duma vida humana, mas a rei­vin­dicação da soberania moral da mu­lher, a reivindicação do controlo sobre o seu próprio corpo.

Aqui radica a importância do re­conhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: é a con­di­ção para que todas as mulheres possam reivindicar a integridade do seu corpo. É necessário que se reconheça a cada mulher o direito a decidir qual é a opção legítima para ela, no caso duma gra­videz: ou a de a levar ao fim, ou a de lhe pôr fim. Para que a maternidade seja algo realmente digno e humanizante, é preciso que se reconheça também como legítima a op­ção do aborto. Pois a minha mater­nida­de só é realmente uma opção po­sitiva e livre, se eu posso legi­timamente optar pelo aborto, rea­lizando-o. E embora o Vaticano, no seu afã de poder, tente es­condê-lo, essa é a doutrina católica genuína. Pois cabe recordar aqui que uma das com­ponentes fundamentais da tradição católica é que a consciência individual bem (in)formada é a suprema instância moral.

Um acto não é um crime porque sim, mas segundo as circunstâncias em que se cometa. Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesa­do no seu coração e consciência os di­ferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agis­se contra a sua consciência não abor­tando. Trata-se duma decisão gra­ve e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a des­truição duma vida humana pode jus­tificar-se. Assim, desenvolveu toda uma teologia da guerra justa, por exem­plo. Nela enumera as condições nas quais se justifica destruir vidas de seres humanos nascidos, de pessoas. Ao con­trário, é muito pouco o que existe no campo da teologia do aborto jus­to. Praticamente reduz-se ao que compilámos e sistematizámos em Ca­tólicas pelo Direito a Decidir, e que é parte duma teologia feminista da li­bertação.

Assim, perguntamo-nos, por exem­plo: Porque se consideraria que uma mulher é capaz de trazer ao mundo uma criatura humana e de criá-la e de ajudá-la a ser uma pessoa adulta e res­ponsável, mas já não se crê que ela seja capaz de decidir, quando se encontra grávida sem ter optado por isso, se quer e pode ou não assumir es­sa maternidade específica nas circunstâncias concretas da sua vida? E recordamos que, contrariamente ao que sucede no caso da destruição da vida duma pessoa numa guerra, ou num caso de legítima defesa, no caso do aborto a própria Igreja admite que não tem a capacidade de definir o mo­mento em que se sabe com certeza que um embrião ou feto é uma pessoa humana.

Aqui precisamente, os recentes de­senvolvimentos do conhecimento cien­tífico ajudam-nos a ver com maior clari­dade do que nos era possível até há pouco: que o que existe no momento da concepção é um conjunto de célu­las plenipotenciárias sem especificação alguma. Não é possível falar ainda de pessoa humana. Pois é possível por exem­plo que ocorra uma divisão des­tas células de tal forma que resul­tem não um, mas dois embriões. O que será então da alma imortal? Também pode­rá dividir-se em duas, ou será que já pre-existia em duplicado desde o prin­cípio numa só célula?

Intuitivamente podemos compre­en­der que, embora haja destruição de vida humana, não é o mesmo destruir um embrião, que uma pessoa nascida. Basta imaginar a cena seguinte: Uma médica trabalha num laboratório de reprodução assistida. Um dia, uma co­lega deixa-lhe um bebé de um ano no laboratório, enquanto vai resolver um problema no exterior. Pouco de­pois, produz-se um curto-circuito no la­boratório que desencadeia um grave in­cêndio. Soam os alarmes e a doutora sabe que tem apenas um minuto para sair do laboratório e salvar a sua vida. Que decisão será mais ética: que tome nos braços o bebé que dorme na sua alcofa, para o livrar do perigo, ou que sa­crifique esta jovem vida para salvar as 500 vidas de 500 embriões congela­dos que estão guardados na arca fri­gorífica do laboratório?

Lutar contra os direitos re­produti­vos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulhe­res, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora tal­vez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa.

Abortar só uma mulher o pode fa­zer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os a­ctos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupa­ção principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capa­ci­dade de reprodução das mulhe­res, pois aqui encontra-se o fundamen­to da estrutura de poder patriarcal da Igreja. E isto explica porque o Vaticano não pode aceitar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não pode aceitar a igualdade das mulheres, não pode permitir que as mulheres che­guem a simbolizar a autoridade institu­cional dentre da religião, pois toda a es­trutura do poder e da autori­dade da Igreja está baseada na negação da so­berania moral das mu­lheres, no que respeita ao seu próprio corpo, à sua sexuali­dade e à sua capacidade de re­produção.

A obsessão do Vaticano contra o sacerdócio das mulheres não é senão o reverso desta medalha. Não pode o Vaticano permitir o acesso das mulhe­res ao sacerdócio, pois o sacerdócio, tal como o concebe o Vaticano, está ba­seado e pressupõe o controlo da se­xualidade em geral e o controlo da ca­pa­cidade de reprodução das mulheres em particular. No dia em que o Va­ticano conceda às mulheres aces­so ao sacerdócio, este deixa de ser o que é. E no dia em que o sacer­dócio deixe de ser o que é, o Vaticano não terá nenhuma objecção em admitir as mulheres ao sacerdócio.

Será puro acaso que as primeiras reivindicações formais de mulheres pa­ra serem admitidas ao sacerdócio te­nham coincidido com a invenção da pílula contraceptiva? Foi em 1963 que uma suíça e depois duas alemãs envi­aram ao Concílio Vaticano II o pedido de que se considerasse a admissão de mulheres ao sacerdócio.

A pílula contraceptiva tornou inde­pendente a sexualidade da reprodu­ção. A resposta do Vaticano foi a Huma­nae Vitae. Juntamente com a questão do celibato dos sacerdotes, Paulo VI retirou também a questão da contra­ce­pção das deliberações do Concílio Vaticano II. Pensando preservar a auto­ridade da Igreja, o que conseguiu foi dar-lhe um golpe quase mortal, pois confundiu autoridade com poder.

Com a revolução bioética que esta­mos a viver, agora é a reprodução que se está a tornar independente da se­xua­lidade. As relações entre os sexos que anteriormente já haviam experi­men­ta­do uma mudança profunda, co­mo se verão agora afectadas? O que será da ternura, do prazer, do amor? Seremos capazes de aprendê-los, de os experimentar, de os proporcionar, sem passar forçosamente pela reprodu­ção? Pela sexualidade? Pela heteros­se­xua­li­dade? Não são estas manifes­ta­ções humanas, que sempre existi­ram, independentemente da reprodu­ção e da sexualidade e da heterossexualidade, só que pelo afã de controlar a sexualidade e a reprodução muitas vezes nos esquecemos disso, até ao ponto de sermos capazes de justificar e de viver uma sexualidade e uma re­produção talvez heterossexuais, porém totalmente carentes de ternura, de pra­zer e de amor? Não estamos a assistir, precisamente através de fenómenos como o matrimónio gay, a transsexua­lidade, etc, ao aparecimento de novas estruturas sociais que mostram preci­samente que a ternura, o prazer e o amor vão muito mais além das fron­teiras definidas pelos do poder?

Talvez chegue um dia em que a mulher, que o corpo humano sexuado, deixe de ser indispensável para a cria­ção de novos indivíduos humanos, pa­ra a perpetuação da espécie humana. Nesse dia, o controlo sobre esse corpo dotado duma capacidade específica perderá a sua importância e as estru­turas de poder que se formaram para exercer esse controlo perderão tam­bém o seu objecto. Vamos permitir que tenhamos de esperar pela chegada des­se dia, para inventarmos um mun­do mais justo e mais propício para se viver com ternura, prazer e amor?



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