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DESTAQUE 1
Se há restos mortais de Jesus,
significa isso que Jesus não ressuscitou?
* Maria Madalena, esposa de Jesus e mãe de um filho de ambos?!
Jesus volta a estar na berlinda. Agora é um documentário cinematográfico, assinado pelo mesmo realizador de Titanic, que tenta pôr em questão o que há de verdadeiramente essencial no Cristianismo, a ressurreição de Jesus. O argumento de peso a favor desta hipótese mirabolante, apresentada com todo o ar de tese, pelo menos no pensar-dizer da publicidade mundial que tem sido feita ao documentário é este: foi encontrado em Jerusalém um túmulo do século primeiro com restos de humanos que podem muito bem ser duma família judia. Os nomes inscritos no túmulo constam do Novo Testamento e remetem-nos para a possibilidade de serem da família de Jesus, inclusive, de um filho de Jesus e de Maria Madalena, chamado Judas.
É logo de suspeitar que o “picante” em toda esta estória não residirá tanto no “facto” ressurreição de Jesus poder ser definitivamente posto em causa, ao jeito de quem diz: se existe um túmulo com restos mortais de Jesus e de familiares de Jesus, isso é a prova provada de que Jesus, afinal, não ressuscitou. (Vejam só que argumento mais bobo, este, como se a ressurreição de Jesus pudesse ser entendida como a simples reanimação do cadáver de Jesus, quando ela o que pretende é revelar/anunciar uma dimensão totalmente outra de Jesus crucificado, que o Templo e o Império que o mataram nem sequer são capazes de suspeitar, muito menos reconhecer). O “picante” em toda esta estória estará em querer saber se Jesus andou ou não perdido de amores com Maria Madalena, se ambos chegaram a casar e se, inclusive, tiveram um filho. O Código Da Vinci foi, se bem se lembram, o maior divulgador desta delirante hipótese, o que garantiu ao seu hábil inventor, Dan Brown, milhões e milhões de dólares de lucro e deixou um enorme amargo de boca nos milhões de incautos em todo o mundo ocidental que caíram no engodo e correram a comprar e a ler o seu romance como se de um livro de história se tratasse, e só depois é que se deram conta de que, afinal, haviam sido levados e bem levados, porque tudo aquilo não passa de um romance, uma obra de ficção. Viram-se então na desconfortada situação dos hilariantes “apanhados” televisivos. Só que aqui com graves danos morais e emocionais para as inúmeras vítimas desta sofisticada versão século XXI do conto do vigário.
Saibam, a propósito de todo este “picante”, que nem sequer os relatos evangélicos do Novo Testamento, absolutamente essenciais para podermos compreender a “alma” de Jesus e o seu projecto político do Reino de Deus, escondem que entre ele e Maria Madalena há uma relação muito especial. Pelo contrário, apresentam-na até como paradigmática para todos os futuros discípulos de Jesus, elas e eles. Por isso, dão-lhe ainda muito mais destaque do que à relação entre Jesus e Maria, sua mãe carnal. Esta também aparece realçada, mas bastante menos e quase sempre de modo negativo. Enquanto na relação entre Jesus e Maria Madalena há manifestamente companheirismo e comunhão de projecto, total identidade de pontos de vista e franco entendimento, inclusive ao nível da indispensável partilha de bens destinada a apoiar e a possibilitar a acção libertadora e misericordiosa de Jesus (cf. Lucas 8, 1-3), já entre Jesus e Maria, sua mãe, há manifesto desentendimento, distanciamento, total desacordo no projecto e na acção, ao ponto de sua mãe chegar a liderar um grupo de irmãos de Jesus que, num dado momento crucial da vida militante dele, saem abruptamente ao seu encontro, determinados a detê-lo, na convicção de que ele só podia ter perdido por completo o juízo (cf. Marcos 3, 21; 31-35).
Foi a nossa Igreja católica, sobretudo depois que aceitou tornar-se constantiniana e imperial, a primeira a escandalizar-se com esta relação de intimidade e de total comunhão na acção entre Jesus e Maria Madalena, testemunhada nos Evangelhos canónicos de forma ainda mais acentuada do que, por exemplo, a pretensa “tese” do primado de Pedro que a mesma Igreja constantiniana e imperial depressa aceitou e integrou, como se fosse uma manifestação do próprio querer de Jesus, quando efectivamente não é. Do seu querer é precisamente o contrário, e Jesus tem até o cuidado de dizer ao grupo dos Doze, sempre a sonhar com o poder e com os primeiros lugares, que jamais fossem como os chefes das nações e os grandes deste mundo, mas apenas simples servidores uns dos outros, uma vez que ele próprio viera não para ser servido mas para servir (cf. Marcos 10, 35-45). Foi também esta Igreja constantiniana e imperial que, a pretexto de que aquela relação de intimidade entre Jesus e Maria Madalena, de raiz indubitavelmente jesuânica, dificilmente poderia ser anunciada/acolhida no seio duma sociedade machista e patriarcal como era a do império romano e do mundo helénico, tudo fez para a silenciar e impedir que ela viesse a fazer caminho no seu interior, de modo que, assim, ela própria pudesse perpetuar-se no tempo como Igreja totalmente pensada e organizada à imagem e semelhança do Império romano e do seu Direito, e não ao jeito de Jesus, o de Nazaré, crucificado pelo Império e ao jeito do Evangelho.
Aliás, como poderia esta “nova” Igreja católica romana, nascida duma espúria aliança entre a sua cúpula e a cúpula do Império romano, dirigida por clérigos, simultaneamente privilegiados funcionários do Império romano, continuar a aceitar Jesus-Maria Madalena como o seu princípio fundador, como tão claramente o fazem, por exemplo, as Comunidades cristãs que estão na origem do Evangelho de João (cf. capítulo 20), se o relato desse princípio fundador da Igreja começa por anunciar urbi et orbi, a Jerusalém e ao Império, como definitivamente vivo, aquele que acabara de ser crucificado pelo Templo e pelo Império, ao mesmo tempo que deixa claro que ele nunca mais sairá da História, até que esta chegue a ser Reino de Deus em plenitude? Como é que semelhante boa notícia fundadora da Igreja podia fazer o seu curso no interior duma Igreja, como a de Roma, que havia caído na tentação de se tornar constantiniana e imperial, bem ao jeito de César e não mais ao jeito de Jesus, o crucificado por ele e ressuscitado por Deus, O-que-vive?
Pois bem, foi a partir desta histórica traição ao Evangelho, bem pior do que a traição atribuída a Judas Iscariotes, que se inventaram e escreveram as piores coisas acerca de Maria Madalena, como se a vida privada dela antes de ter conhecido Jesus, tivesse sido de prostituição, a mais incontrolada e refinada (saibam que os “sete demónios” dos quais se diz que Jesus a libertou não são, como ensinam as catequeses moralistas eclesiásticas, a totalidade da Perversão. Os 7 “demónios” representam a totalidade do Medo, todos os Medos, sobretudo os inconscientes que oprimem e condicionam o viver histórico de cada ser humano que vem a este mundo e que, enquanto não forem “expulsos”, não nos deixam ser nós próprios. O que o relato evangélico quer então dizer com esta referência é uma boa notícia a respeito de Maria Madalena, concretamente, que ela, depois que se encontrou com Jesus e aceitou fazer-se sua discípula e prosseguir o mesmo Projecto dele, experimentou-se Mulher radicalmente livre do Medo, de todos os medos, por isso, tão livre para amar e servir a Humanidade quanto Jesus, coisa que no Evangelho não se diz nunca de mais ninguém, muito menos dos homens que compunham o grupo dos Doze!). Com todas essas coisas sujas que escreveram contra ela, pretendia-se denegri-la por todo o sempre, para que a autêntica Maria Madalena, dos Evangelhos canónicos, deixasse para sempre de existir no imaginário das populações dominadas/controladas pelos clérigos católicos e, em seu lugar, passasse a figurar uma outra, a Maria Madalena pecadora, a maior pecadora da História, arrependida, é certo, mas nunca a discípula paradigmática de Jesus para toda a Igreja, sem a qual nem sequer teria começado a haver Igreja.
Com esta difamação-crime, os da cúpula eclesiástica conseguiram dois objectivos, ambos perversos: a) Fizeram esquecer por completo o princípio fundador da Igreja que é Jesus-Maria Madalena, manifestamente incompatível com a Igreja Poder e de privilégios que eles haviam acabado de criar com a aliança que fizeram com o Império romano (basta dizer, por exemplo, que ainda hoje, entrados já no século XXI, o papa de Roma continua a ser, para as nações e estados do mundo, mais chefe-de-estado-do-Vaticano do que bispo de Roma, continua a remeter-nos mais para o poderoso César de Roma do que para o Crucificado Jesus); b) desterraram as mulheres da Igreja (e, por arrastamento, da sociedade em geral, enquanto esta foi controlada por eles) para os lugares e os papéis mais subalternos e humilhantes, nomeadamente, fizeram delas eternas zeladoras de altar, freiras sem sexualidade e sem vontade própria, criadas dos clérigos, mulheres de limpeza dos locais de culto, sempre olhadas como tentadoras e perigosas, permanentemente impuras, devido à perda cíclica do sangue menstrual, súbditas dos maridos, menores que precisavam de tutor, cujos filhos e filhas nasciam inevitavelmente em pecado, devido ao pecado da primeira de todas elas, Eva, sempre entendida como mulher de carne e osso, quando, afinal, não passa duma figura mítica/literária dos poéticos relatos das origens, também do relato do Génesis das nossas Bíblias.
É por isso imperioso e urgente resgatar Maria Madalena do atoleiro moralista em que a meteram em todos estes séculos para trás, e deixar que ela volte a brilhar na nossa Igreja do Concílio Vaticano II, como a paradigmática companheira/discípula de Jesus, o de Nazaré, na qual todas as futuras discípulas, todos os futuros discípulos de Jesus havemos de pôr os olhos. Não se trata, obviamente, de se ser companheira/companheiro de Jesus, na dimensão sexual-genital, manifestamente limitada ao espaço e ao tempo e apenas enquanto a morte biológica não lhe vem pôr termo de modo definitivo, mas sim na ilimitada dimensão teológica do Deus Amor/Agapê, que está já para lá da morte, ainda que possa e deva começar a ser vivida, como conspiração e insurreição/ressurreição, dentro do Tempo e no Espaço que são os de cada qual. Curiosamente, é este papel de “esposa”, em sentido puramente teológico, que inevitavelmente nos remete para o insuperável poema Cântico dos Cânticos bíblico, que o Evangelho de João (capítulo 20) não hesita em atribuir a Maria Madalena, e, nela, a todas as futuras discípulas, todos os futuros discípulos de Jesus, naquele relato cheio de Encanto e de Mistério da manhã do primeiro dia da semana, como o primeiro dia do novo Génesis, com a mulher e o homem já definitivamente constituídos na Liberdade/Maioridade e na sororidade/fraternidade. E como a dizer/revelar que tais havemos de ser todas as mulheres, todos os homens, em quem o Espírito do Ressuscitado Jesus habitar por completo e de modo permanente. Tais mulheres, homens não mais agirão movidos pela necessidade, mas apenas pela graça. Não mais amarão como quem conquista e se apodera do amado, da amada para si, mas como quem se dá ao amado, à amada num agapê totalmente livre de interesses egoístas, puro dom, pura entrega, como numa Nova Criação, e os dois se dão ao mundo como um fecundo Sopro que sempre liberta e visa suscitar autonomias, lá por onde PASSAR.
É manifesto que esta dimensão exemplar e paradigmática de Maria Madalena, como discípula/companheira/esposa de Jesus, entendida em sentido teológico, tem sido sistematicamente escondida pela Igreja, nomeadamente, pela sua hierarquia. Esta não abre mão do poder e dos privilégios com que se fez rodear através dos séculos. Ela sabe que no dia em que Maria Madalena reaparecer em plena luz como o paradigma de discípula, discípulo de Jesus, nunca mais a nossa Igreja católica poderá continuar a ser Igreja constantiniana e imperial, hierárquica e de Poder. Terá de voltar a ser o que sempre deveria ter sido até hoje: Igreja ao jeito de Jesus-Maria Madalena, por isso, radicalmente inclusiva e igualitária, mais feminina que masculina, mais ternura que poder, mais carisma que instituição, mais humana que divina, mais misericórdia que autoridade, mais política que religião, mais mundo que santuário, numa palavra, mais Jesus que Cristo. Desde que Cristo/Verbo se fez ser humano em Jesus, o de Nazaré, não há mais Cristo fora dele, fora do humano, dos seres humanos concretos que somos todas, todos nós, qualquer que seja a cor da pele, a língua e a cultura, que nos possa libertar/salvar. Mas infelizmente é o que mais nos têm dado, nestes dois mil anos de Cristianismo eclesiástico, um Cristo sem Jesus, o de Nazaré, ou um Cristo com Jesus, mas um Jesus inteiramente mítico, não o de Nazaré que acabou crucificado e como o maldito. Eis no que deu a aliança Império-Igreja católica, que o Concílio Vaticano II bem quis enterrar para sempre, mas que a Cúria Romana e a hierarquia eclesiástica (bispos residenciais e párocos em união com eles) não estão dispostos a consentir e tudo fazem, consciente ou inconscientemente, para que não aconteça nunca. O combate é duélico e contra o Espírito Santo, contra o Espírito de Jesus, o Crucificado que Deus ressuscitou. A minha alegria maior é saber que a Cúria romana e a hierarquia eclesiástica acabarão por perder. À medida que a História avança, a Cúria romana e a hierarquia eclesiástica perderão credibilidade e terreno. E se persistirem na delas, acabarão a falar sozinhas. Não é com elas que o Espírito de Jesus ressuscitado está. É com a Humanidade, a partir da mais oprimida e empobrecida. É sobretudo com as vítimas delas e do Império que Ele está. E trabalha, ininterruptamente, na edificação do Reino de Deus na História. A sua arma é a Ternura contra o Poder, a Debilidade contra a Arrogância, a Fecundidade contra o Lucro, o Amor contra o Ódio, o Carisma contra o Institucional, a Fé contra o Medo, a Liberdade contra Cretinice, a Luz contra o Obscurantismo, a Verdade contra a Mentira, a Prática política libertadora contra o Rito, numa palavra, Maria Madalena contra a Hierarquia e Jesus, o de Nazaré, contra o Mito.
É para aqui que aponta o acontecimento teológico da Ressurreição de Jesus, o de Nazaré que foi crucificado pelo Templo e pelo Império. Não se trata de afirmar a reanimação do seu cadáver (de pouco valia, pois voltaria a morrer daí a uns tempos!), mas de proclamar que Deus Vivo é com ele que está e não com os seus carrascos ou verdugos; é com ele que está e não com os sacerdotes do Templo e os poderosos do Império. E, se é com ele que Deus Vivo está, então também está com todas as vítimas da História, com todas as vítimas dos sacerdotes do Templo e dos poderosos do Império. Deste modo, afirmar que Deus ressuscitou Jesus é perfeitamente compatível com a existência do cadáver de Jesus e a existência de um túmulo com o nome de Jesus. Saibam, duma vez por todas, que Jesus já era ressuscitado e o seu cadáver ainda estava pregado na cruz. Jesus já era Jesus-com-Deus-para-sempre (é outra maneira de dizer Ressurreição), quando o seu cadáver foi tirado da cruz e lançado à vala comum pelos soldados romanos.
O primeiro ser humano da História a cair na conta deste subversivo e conspirativo Evangelho que muda radicalmente o sentido da História e lhe garante plena realização, é Maria Madalena, por isso muito justamente chamada apóstola dos apóstolos. Não é nenhum homem do grupo do Doze, de resto, totalmente desfeito com a tríplice negação de Simão Pedro, o primeiro da lista, e a traição de Judas Iscariotes, o último da lista, e com a fuga/deserção de todos (como é que alguns na Igreja ainda hoje pretendem apresentar-se aos irmãos e irmãs na Fé, como sucessores deles? Não é a pensar no poder e nos privilégios que o fazem? Acham que é a pensar no serviço martirial e duélico à Causa do Evangelho e de Jesus?).
É, por isso, a Maria Madalena, muito mais do que a Pedro, que temos de regressar como Igreja católica. Quanto antes. Ontem já era tarde. Se o não fizermos, ficaremos em guerra aberta contra o Espírito Santo. E não teremos futuro como Igreja católica. As portas do Abismo/Inferno levarão mesmo a melhor sobre ela! Não esqueçam que é de Jesus, o do Evangelho de Mateus (16, 18-19), esta advertência. Porque então seríamos uma Igreja que, de forma contumaz, não liga na terra tudo o que Deus Vivo liga no céu, nem desliga na terra tudo o que Deus Vivo desliga no céu. Seríamos uma Igreja com interesses diametralmente opostos aos de Deus, o de Jesus. Com um projecto que não é o de Deus, o de Jesus. Um projecto que Maria Madalena soube fazer seu para sempre. Ao contrário duma Igreja que teimasse em manter-se constantiniana e imperial para sempre.
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DESTAQUE 2
Carta aberta do pe. Mário aos seus irmãos Bispos
Fátima 1917-2007: 90 anos de Mentira,
a mais cruel, e de crime, o mais horrendo
Meus irmãos Bispos
1. Completam-se, agora, como sabeis, 90 anos (1917-2007) sobre a grosseira mentira, posta a circular em 1917 no nosso país acerca dumas pseudo aparições de nossa senhora, sempre ao dia 13 de cada mês e durante seis meses consecutivos, de Maio a Outubro, a três crianças da freguesia de Fátima. Uma mentira que alguns párocos de Ourém e arredores logo habilmente aproveitaram (se é que não foram eles próprios os seus inventores, como tudo leva a crer que sim) e, depois, tudo fizeram para que ela fosse acolhida e interiorizada pelas populações católicas como a maior das verdades. Este crime sem perdão, que também perfaz um pecado contra o Espírito Santo viria a ser publicamente corroborado e apoiado, não muito tempo depois, por alguns bispos residenciais do país, nomeadamente, de Lisboa, Évora, Beja, Faro, Coimbra, Braga, Angra, Funchal e até do Porto, numa operação concertada, com tudo de maquiavélico e de perverso. Aliás, a diocese do Porto até cedeu um dos seus padres cónegos para 1.º Bispo residencial da Diocese de Leiria, restaurada, poucos meses depois (e não se diga que foi mera coincidência!). D. José Alves Correia viria a revelar-se como a principal peça-chave na consolidação definitiva de toda esta ignomínia.
2. A grosseira mentira teve, por isso, desde a primeira hora, pés para andar, até porque, além do mais, as populações católicas do país eram na altura (infelizmente, ainda hoje são!) populações esmagadoramente analfabetas em teologia jesuânica e viviam, por aqueles dias, visivelmente desorientadas e em pânico, devido à recente implantação da República e às drásticas medidas que aquela não se inibiu de tomar, e bem, contra os seculares e até então intocáveis privilégios do clero e da Igreja católica romana em Portugal.
Por outro lado, eram também populações completamente aterrorizadas por catequeses e pregações terroristas, proferidas noite dentro ou antes do nascer do sol, à luz fantasmagórica de velas (não havia luz eléctrica), proferidas do alto dos púlpitos paroquiais pelos padres da chamada Santa Missão, todas elas inspiradas no mais terrorista dos livros portugueses do século XIX que dá pelo nome de Missão Abreviada, escrito por um padre português, de seu nome Manoel Couto, ele próprio um perturbado e aterrorizado capelão de freiras em Chaves que via demónios em todo o lado, pecados mortais em todas as acções dos seres humanos, mesmo as mais inocentes, como dançar, namorar, abraçar e beijar, e horrendos castigos de Deus concretizados em insuportáveis labaredas do inferno que torturavam e faziam ganir como cães raivosos, dia e noite e por toda a eternidade, as almas dos pobres pecadores condenados, praticamente todas as pessoas até então falecidas (basta ver que, no dizer dessas terroristas catequeses e pregações, era mais fácil encontrar um corvo branco do que salvar-se uma alma!!!).
3. Digo-vos aqui publicamente, meus irmãos Bispos, e sem que a voz e a mão me tremam: São 90 anos de mentira, a mais grosseira e a mais cruel. E 90 anos de crime, o mais blasfemo e o mais horrendo, porque os seus mentores e divulgadores não hesitaram nem hesitam em meter os nomes de Deus, de Jesus e de Maria, sua mãe, em todo este “cozinhado” eclesiástico-católico sem pés nem cabeça, convertido, com o passar dos anos, numa engenhosa fábrica de fazer dinheiro sem paralelo no resto do país, porventura, até na Europa, totalmente isento de impostos (não é por acaso que qualquer congregação religiosa de frades ou de freiras não descansou, enquanto não conseguiu abrir uma casa em Fátima, o mais espaçosa possível, para nela acolher “peregrinos”, pois claro!), e num espaço-altar onde se promove e alimenta um certo tipo de cristianismo católico desgraçado, sem dúvida, o principal responsável por muito do saudável ateísmo generalizado com que hoje estamos cada vez mais confrontados no país e na Europa ocidental. (E como se não bastassem a enorme basílica-túmulo que lá funciona e a espaçosa esplanada com a sua capelinha-cofreforte-ou-banco, ainda se lhes junta este ano mais uma medonha Igreja, denominada da SS.ª Trindade, como se Deus Vivo, o de Jesus, alguma vez vivesse em templos construídos pela mão dos homens, nomeadamente, os homens do poder e dos privilégios, como são os clérigos que nesses locais, mentirosamente ditos sagrados, a tudo presidem como pequenos deuses infalíveis e intocáveis!...)
4. Quem lê com um mínimo de atenção ilustrada e evangélica e também com um mínimo de sentido de dignidade humana, a Documentação Critica de Fátima (hoje, já com vários volumes publicados), compilada com o propósito expresso de justificar cientificamente a veracidade das “aparições”, só pode concluir que, do primeiro ao último momento, tudo aquilo está atolado/conspurcado por pés, mãos e cabeças de clérigos e de bispos residenciais, completamente esvaziados de teologia jesuânica, todos firmemente apostados em impor aquela grosseira mentira ao país e ao mundo. Não há em todo o processo uma única voz dotada de bom senso e de sanidade mental e teológica. Todos os intervenientes actuam manifestamente com o típico espírito de zelosos “cruzados de Fátima”, numa causa que a hierarquia católica por nada deste mundo quis que ficasse pelo caminho, porque representava o seu maior trunfo-vingança contra a República e contra os seus nobres ideais de Verdade, de Liberdade, de Igualdade, de Justiça e de Dignidade humana.
5. O processo que se arrastou, ao longo destes últimos 90 anos e vai certamente prosseguir por muitos mais tem infelizmente contado com a criminosa cumplicidade, feita de distanciamento e de silêncio, de intelectuais católicos e não católicos, inclusive de teólogos e biblistas de todas as Igrejas, que teimam em optar pelo faz-de-conta, como se não fosse nada com eles. E, assim, o que pode ter começado por ser um ingénuo teatrinho catequético, concebido pelos padres da Santa Missão para tentar impor às populações das aldeias a reza do terço, a pia devoção ao Imaculado Coração de Maria e a confissão mensal, e também para meter algum “medo” e “respeito” aos “maçons”que fizeram a revolução da República, engrossou depois, através dos tempos, como um caudal de águas envenenadas, sempre com novos e surpreendentes dados, que nem os principais protagonistas de 1917 conheciam, e que foram sucessivamente acrescentados por clérigos sem escrúpulos, segundo as necessidades e as conveniências de cada momento histórico.
As delirantes Memórias da Irmã Lúcia, iniciadas em 1935 por pressão desses mesmos clérigos que faziam da pobre freira gato-sapato, são, neste particular, o que há de mais aberrante exemplo de manipulação clerical e de delírio eclesiástico. Mas são essas famigeradas Memórias que estão na origem da chamada “Fátima Dois”, por sinal, ainda totalmente desconhecida à data (1930) em que o 1.º Bispo de Leiria publicou a sua Carta Pastoral a dar como “dignas de crédito” as aparições e toda a mentira de Fátima que elas objectivamente constituem. Será que vós, meus irmãos bispos, não sabeis estas coisas? Será que preferis ser cegos e guias cegos?
6. Na retaguarda de toda esta mentira, tem estado sempre, desde o primeiro momento até aos nossos dias, um núcleo duro de cérebros clericais, poucos, mas bem concertados entre si. Ora, vestiram o papel de jornalistas que faziam caricatas perguntas às três crianças, ou o papel de inquiridores sobre o “fenómeno”, junto de crédulos e submissos paroquianos escolhidos a dedo. Eles próprios deram as respostas a essas perguntas como melhor convinha aos seus maquiavélicos propósitos (nada foi deixado ao acaso, mas foi assim que nasceu a chamada Documentação crítica de Fátima, toda ela cheia de parra e uva nenhuma, compilada/tratada “cientificamente” e editada, também ela por outros clérigos!); ora vestiram o papel de confessores e de directores espirituais das crianças, sobretudo da sobrevivente Lúcia, depois que esta foi empurrada por eles para a vida de freira de clausura (uma barbaridade sem nome, muito pior do que um ocasional crime de pedofilia!); ora vestiram e ainda vestem o papel de bispos que tudo aprovam e justificam como do interesse de Deus (para este tipo de eclesiásticos, os interesses da Igreja, mesmo os mais inconfessáveis e perversos são sempre interesses de Deus!); e, finalmente, até vestiram o papel de papa de Roma, com destaque para o polaco João Paulo II, um compulsivo fatimista primário, porventura bem-intencionado, mas que tudo tentou para levar de novo a Igreja do Vaticano II aos tempos e às alienantes devoções pre-conciliares, sem se aperceber que todas elas são pagãs, deístas, inumanas, e referentes ao universo religioso das deusas e dos deuses inventados por ancestrais medos das populações não ilustradas e não evangelizadas.
7. Como já disse, nada foi deixado ao acaso, desde o primeiro instante. Até que, em Outubro de 1930, a Mentira das aparições foi declarada digna de crédito pelo 1.º Bispo da restaurada diocese de Leiria, mediante uma Carta Pastoral que, só por si, deveria fazer corar de vergonha a Igreja do Concílio Vaticano II. O documento episcopal, datado de 13 de Outubro de 1930 foi publicado na íntegra, três dias antes, na edição de 10 de Outubro pelo diário católico “Novidades”!!! Apoia-se todo ele num extenso e prolixo Relatório, escrito pelo Cónego Nunes Formigão (querem agora beatificá-lo e canonizá-lo, certamente como recompensa pelos serviços que prestou à causa da mentira de Fátima!), o qual, por sua vez, quase se limita a transcrever pedaços inteiros dos delirantes livros que ele próprio havia escrito e editado anteriormente, sempre sob o pseudónimo de Visconde de Montelo, com o notório objectivo de impor como verdade a mentira de Fátima ao país e ao mundo.
8. A data escolhida para a aprovação oficial da mentira de Fátima também não foi inocente. O Estado Novo de Salazar dava então os primeiros passos e carecia como de pão para a boca duma mãozinha do “céu” (entenda-se, dos clérigos católicos) para se impor definitivamente no país contra a República de 1910 e contra os seus nobres ideais (e não é que há até uma carta atribuída à delirante Irmã Lúcia que fala de Salazar como o escolhido por Deus para conduzir de novo o nosso país aos caminhos da religião católica?!). Ora, como um favor com outro favor se paga, Salazar, uma vez consolidado no Poder, lá assinou a Concordata com o Estado do Vaticano e restituiu à Igreja portuguesa os privilégios dos clérigos e muito do património eclesiástico anteriormente nacionalizado.
9. Entretanto, das três crianças instrumentalizadas para ajudar a dar corpo à mentira de Fátima, todas elas de muito tenra idade e sem saberem ler nem escrever, Jacinta e Francisco eram irmãos de sangue, primos e vizinhos de Lúcia, a mais velhinha, a quem por isso coube naturalmente o papel de actriz principal em todo aquele teatrinho de mau gosto. Foi também a única que sobreviveu a todo aquele frenético alvoroço eclesiástico das pseudo-aparições, já que Jacinta e Francisco, de tão fragilizados e aterrorizados pelo medo do inferno incutido pelos pregadores da Santa Missão não resistiram à pneumónica que, pouco tempo depois da mentira de Fátima, grassou na região e dizimou muita gente (como vêem, meus irmãos Bispos, nem a senhora de Fátima, com tanta fama de milagreira lhes valeu, nem valeu às populações empobrecidas da região). Mas o que ainda mais dói, na morte antes de tempo destas duas crianças irmãs é o escandaloso abandono a que Jacinta e Francisco foram votados, durante a doença, por parte dos clérigos que as utilizaram, como a deixar perceber que até lhes convinha que elas morressem. A mentira de Fátima teria assim mais facilmente pés para andar. O que veio a suceder, sobretudo depois que conseguiram manter sequestrada por toda a vida e em progressivo estado de delírio, a única sobrevivente, Lúcia.
10. Eis, meus irmãos Bispos o que achei por bem dizer-vos nesta ocasião dos 90 anos da mentira de Fátima. Não me queirais mal por isso. Sabei que o que me move é o amor à causa do Evangelho que, como presbítero da Igreja do Porto, me cumpre anunciar oportuna e inoportunamente. Ai de mim, se não evangelizar. Bem sei que a mentira de Fátima é por vós oficialmente apresentada, desde a primeira hora, como uma epifania de Deus. Mas esse é o seu pecado maior. Porque a Deus, o de Jesus, nunca ninguém o viu nem verá. “O Filho unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, é que O deu a conhecer" (Jo 1, 18). Sabeis como eu que o que não for assim é mentira, delírio, perversão demoníaca. Nem argumenteis que há fenómenos que nos ultrapassam e que não somos capazes de explicar. Porque, em nome da Fé de Jesus, uma coisa sempre teremos de dizer: Pois se não sabeis explicar este ou aquele fenómeno, investigai mais, até conseguirdes. E, enquanto não conseguirdes, livrai-vos de, em momento algum admitir que pode ser uma manifestação miraculosa de Deus. Nesse momento, abristes a porta à idolatria, a mais abjecta. E não será por sermos um país caído em idolatria, praticamente desde a fundação da nacionalidade, que somos hoje o povo que somos? Pensai nisto que vos digo, meus irmãos bispos. E, se tiverdes coragem, mudai radicalmente de vida e de Deus. Abandonai o falso Deus da senhora de Fátima, com tudo de vampiro e de demoníaco, e deixai-vos amar/conduzir pelo Deus Vivo, o de Jesus. E de Maria. Deixo-vos o meu afecto e a minha paz.
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EDITORIAL
História, lugar e Deus
É Jesus, o de Nazaré, quem nos revela com a sua prática política libertadora e a sua palavra fecundamente maiêutica que a História sempre foi e há-de continuar a ser o grande palco onde o Espírito de Deus trabalha dia e noite sem descanso. A Boa Notícia, de tão inesperada e tão contra a corrente do multi-secular sentir-dizer-fazer das Religiões, continua aí, ainda hoje, a esbarrar com a resistência da generalidade das populações e dos povos, tradicionalmente educados/enquadrados por elas. E - o que é verdadeiramente chocante - continua a esbarrar também com a resistência das grandes Igrejas que, não muitos anos depois da Morte crucificada de Jesus, se vieram a constituir em seu nome e em sua memória.
A História como lugar teológico e como kairós, ou tempo favorável nunca soou bem aos ouvidos dos religiosos e dos eclesiásticos, nomeadamente, quando eles se concebem a si mesmos - há lá auto-engano maior?! - como sacerdotes ou pastores constituídos pelo próprio Deus para actuarem em seu nome em espaços sagrados e reservados ao culto religioso, regra geral, um culto sem cultura e sem profecia. No seu entendimento, a História é demasiado profana para poder ser atravessada por Deus, o totalmente Outro, e fecundada pelo seu Espírito Criador. Deus, dizem, só está presente e actuante em espaços previamente seleccionados e consagrados. E quem quiser estar com Ele, beneficiar da sua Presença e da sua Acção, tem que deslocar-se a esses espaços previamente seleccionados e consagrados e reconhecer/aceitar a mediação dos sacerdotes e dos pastores escolhidos pelo próprio Deus para esse fim. Em vez de lugar teológico, a História é, no entender-dizer destes religiosos, o palco privilegiado do pecado, do profano, do sem-sentido, numa palavra, da perdição/condenação da Humanidade.
Chegou-se, inclusive, a dada altura, a falar de "fuga do mundo", que é o mesmo que dizer fuga da História, como modo privilegiado de encontrar Deus e de beneficiar da sua Presença e das suas bênçãos. Não se pense que semelhante mentalidade está hoje já definitivamente ultrapassada. Não está. Aí estão a confirmá-lo as ordens religiosas de estrita clausura, a apontar no limite às populações e aos povos este caminho dos seres humanos para Deus e de Deus para os seres humanos. De resto, a própria Igreja católica, quando pensa em beatificar/canonizar alguém, é sobretudo nesse universo que costuma fazer a sua selecção. Porque as pessoas que optaram por viver no Profano, na História, à intempérie, não são modelo de ser humano para ninguém. Porque o profano, em última instância, afasta de Deus, diz ela.
Jesus, o de Nazaré, pensa/diz exactamente o contrário. A História/o Profano é o único lugar teológico onde Deus, o de Jesus, se nos revela. Ou Deus encontra-nos e encontra-se connosco no Profano, na História, ou não passará de um ídolo, feito por nós à nossa imagem e semelhança, e bem à medida dos nossos medos, dos nossos interesses e das nossas ambições.
Será até por isso que as grandes Igrejas não gostam de Jesus, esse mesmo que foi crucificado, morto e sepultado. É demasiado profano e demasiado histórico para poder ser de Deus, dizem.
O curioso é que, ao pensarem assim, as Igrejas mais não fazem do que subscrever a veredicto oficial dos sacerdotes do Templo de Jerusalém e dos seus teólogos de serviço, no qual atribuíam a Belzebu, entendido na altura como o chefe dos demónios, tudo o que Jesus fazia e dizia, tão às avessas do que eles oficialmente diziam e faziam. Compreende-se. Para poder ser de Deus o que eles diziam e faziam, só podia ser do Diabo o que Jesus fazia e dizia. E a verdade é que Jesus acabou crucificado sob Póncio Pilatos, procurador do Império Romano na Judeia, por instigação e pressão dos sacerdotes, e estes puderam prosseguir, depois do crime, com as suas funções sagradas, como se nada fosse.
É certo que as primeiras comunidades cristãs vieram, algum tempo depois, muito provavelmente, alguns anos depois (é o que significa a expressão evangélica "terceiro dia"), dizer-testemunhar que Jesus crucificado é o Ressuscitado por Deus e, com esta proclamação, testemunham também que é com Jesus que Deus Vivo e o seu Espírito estão, não com os sacerdotes do Templo nem com o representante do Império. Mas, até hoje, os sacerdotes das Religiões e os representantes do Império não acreditaram neste seu testemunho. E a prova é que têm prosseguido nos seus negócios e nas suas ideologias feitas de mentira, como se Acontecimento Jesus nunca tivesse existido.
As próprias Igrejas, nomeadamente, as grandes, que sempre gostam de se auto-apresentar como continuadoras das primitivas comunidades cristãs, alinham pelo mesmo diapasão, embora não deixem de afirmar que reúnem em nome e em memória de Jesus. Dificilmente, será o Jesus Crucificado pelos sacerdotes do Templo e pelos representantes do Império, o único, aliás, que Deus ressuscitou, isto é, o único que Deus reconhece como o seu filho muito amado e em quem se nos deu definitivamente a conhecer.
Só pode ser então um Jesus habilmente fabricado pelas grandes Igrejas à sua imagem e semelhança, à imagem e semelhança do Templo e do Império, por isso, um Jesus sem Espírito, que elas/eles podem manipular a seu belo prazer. O nome é o mesmo, mas é outro o seu ser, a sua substância. De Jesus, a vítima histórica por antonomásia do Império e do Templo, passou a Jesus, o deus oficial do Império e do Templo, com direito a culto público nos santuários, presidido sistemática e exclusivamente por sacerdotes, defendido/protegido e, por vezes, imposto pelos soldados e outros funcionários do Império. Numa adúltera e execrável aliança que, além do mais, serve para continuar a impor a todos os povos como de Deus a presente Ordem Económica Mundial, constitutivamente perversa, contra a qual ninguém poderá conspirar, muito menos, poderá subverter e derrubar. E, se o tentar, nunca deverá ser tomado a sério pelo conjunto dos cidadãos que se prezam e, se for reincidente e conseguir gerar um movimento social com significativa dimensão, logo deverá ser desacreditado e, finalmente, banido da face da terra, como um maldito. "Vão deitar-vos as mãos e perseguir-vos, entregar-vos às sinagogas e meter-vos nas prisões; hão-de conduzir-vos perante reis e governadores, por causa do meu Nome (...) Sereis entregues até pelos pais, irmãos, parentes e amigos. Hão-de causar a morte a alguns de vós e sereis odiados por todos, por causa do meu Nome. Mas não se perderá um só cabelo da vossa cabeça. Pela vossa constância é que sereis salvos." (Lc 21, 12-19)
Por estas palavras de Jesus, o de Nazaré, temos de reconhecer que ele sempre se assumiu, no seu tempo e país, como um homem na História, inclusive no coração dos conflitos de que a História também é feita. Temos de reconhecer, igualmente, que Jesus sempre tomou partido pelas vítimas, até acabar por se tornar uma delas, no gesto maior que a solidariedade é capaz de protagonizar na História. Como podemos então aquelas, aqueles que nos reclamamos de suas discípulas, seus discípulos inverter totalmente a situação e sair/fugir da História, das lutas políticas pela Justiça, dos combates políticos pelo Pão Repartido e pela Dignidade roubada às maiorias empobrecidas e oprimidas, dos conflitos políticos, que podem chegar a ser duélicos, pela Verdade que é sistematicamente mantida cativa na injusta Ordem Mundial do Dinheiro e do Poder?
É a Política que salvará o mundo. O Poder oprime-o e mata-o sem dó nem piedade. Hoje, mais do que nunca, está à vista de todos os povos que é assim. Nunca o Poder foi tanto e tão concentrado nas mãos de poucos. Nunca como hoje a Humanidade esteve tão à mercê de loucos que podem destruí-la de um momento para o outro. E também nunca como hoje as possibilidades e as potencialidades para mudar/salvar o mundo foram tantas e tão realizáveis. Mas as possibilidades e as potencialidades nas mãos do Poder são mais Morte e mais Opressão para os povos. Só a Política salvará o Mundo. A prática libertadora e a palavra fecundamente maiêutica de Jesus, o de Nazaré, é isto que revelam, que só a Política salvará o Mundo. Por isso, Jesus não correu a fundar uma religião, nem a revitalizar a religião do seu povo. Meteu-se até à perda/entrega da própria vida na prática política de abrir os olhos da consciência às maiorias que a minoria do Poder mantinha cegas a vida inteira. E outra coisa não quer que façamos nós, suas discípulas, seus discípulos. Vosso,
Mário, presbítero.
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ESPAÇO ABERTO
Manuel Sérgio
Reitor do Instituto Piaget
Por um Socialismo do século XXI
1. Em O que é a filosofia? lembra Ortega y Gasset que, no Sofista, Platão define a filosofia como a ciência dos desportistas. Se a realidade é ontologicamente fixa, imóvel, ou em estado de permanente devir, qualquer filósofo de inteligência pronta e espírito vivo encontra aí vários motivos de reflexão. “De facto, o homem revela-se numa perfeita continuidade biológica com aquilo que o precede. Em contrapartida, a descontinuidade humana situa-se num plano totalmente diferente e constitui um fenómeno extraordinário: trata-se de uma evolução de comportamentos, de uma etiologia que, no essencial, deixou de ser determinada por fenómenos biológicos. No caso da vida, é a primeira célula que cria o substracto da evolução (a evolução biológica); no caso do homem, é o momento a partir do qual, em virtude de uma evolução biológica, o ser humano começa a engendrar uma cultura que interage com as suas possibilidades cognitivas. A partir daí, a sua evolução comportamental e o desenvolvimento das suas capacidades técnicas cessam totalmente de ser algo de biológico e passam a ser exclusivamente de ordem cultural” (Albert Jacquard e Axel Kahn: O Futuro não está escrito, Instituto Piaget, Lisboa, 2004, p. 29). Na realidade, “a transmissão da maior parte dos comportamentos não se deve aos genes” (idem, ibidem, p. 69). Que o mesmo é dizer: o determinismo biológico tem os seus limites. Darwin não o entendia assim: com o domínio dos mecanismos da evolução e das leis da natureza, encontrar-se-ia a chave da compreensão da produção cultural humana.
Não sou um perito na matéria, mas julgo que, hoje, a sociobiologia diz o mesmo.
No entanto, será possível o progresso com o itinerário que aponta a “lei do mais forte” e com os desmandos que dela decorrem? É possível ponderar o progresso, sem solidariedade social? “A teoria liberal baseia-se na apologia do egoísmo. Quando lemos Adam Smith, encontramos este tipo de asserção: se temos pão para nos alimentarmos, isso não se deve à bondade do padeiro mas, bem pelo contrário, ao seu egoísmo. Com efeito, o padeiro dirigiu-se ao mercado a fim de vender o seu pão o mais caro possível e, ao mesmo tempo, outros foram lá comprar o seu pão o menos caro possível. Ora, segundo Adam Smith, é do encontro desses egoísmos que resulta o optimum colectivo. A visão actual dos americanos é absolutamente idêntica: sejamos egoístas, pois dessa forma contribuiremos para melhorar a sorte colectiva” (idem, ibidem, pp. 101/102).
Jean-Pierre Dupuy alerta para o facto de uma primeira série dos argumentos adiantados por Hayek (um liberal confesso) já se encontra gravada por Rawls, na sua Teoria da Justiça. “Os resultados do mercado são em si mesmos desprovidos de qualquer valor moral. São eticamente cegos. Tudo o que se pede ao mercado é que seja eficaz” (Ética e Filosofia da Acção, Instituto Piaget, Lisboa, 2001, p. 299). As desigualdades chocantes, as conflagrações mundiais, a ausência de relação dialógica, a globalização da injustiça social compõem este cenário que o neoliberalismo promove e que a embriaguez do lucro tornará absolutamente insuportável. Francis Fukuyama julgou-se um jovem impertinente que se permitia atitudes rebeldes quando referiu a democracia liberal como o “fim da História”. Demais, os aplausos estrugiram, entre aqueles que o rodeavam. Ora, o fim da História será o fim da humanidade o que não se vislumbra, à vista desarmada. E, porque a flecha do tempo é incontornável, procuremos, por entre a crise do capitalismo, os novos paradigmas para as novas e incómodas questões que percorrem os nossos dias. O socialismo é, no mundo da política, o primeiro dos paradigmas favoritos...
2. Leio o livro de Umberto Eco, A Passo de Caranguejo, e lá encontro o seguinte: “Em geral, as ditaduras precisam de manter o consenso popular, em relação às suas decisões e, por isso, denunciam a existência de um país, de um grupo, de uma raça, ou de uma sociedade secreta, que conspiram contra o povo dominado pelo ditador. Todas as formas de populismo, incluindo o contemporâneo, procuram obter o consenso, através de uma suposta ameaça, que tanto pode vir do exterior como de grupos internos” (p. 54). Umberto Eco apresenta depois dois exemplos paradigmáticos de demagogia ditatorial: Hitler e Mussolini. Eles decidiam tudo por conta própria mas, porque aos seus discursos assistiam multidões de basbaques acríticos, empurrados e ordenados pelas “forças da ordem”, logo eles proclamavam que o povo aceitava, com irrestrita confiança, as suas deliberações. Ao mesmo tempo, as centrais de manipulação da opinião pública não cessavam de repetir que os ditadores, para além do seu patriotismo inultrapassável, eram mentes claras, previsoras, lucidíssimas. E o povo acreditava, ou era obrigado a acreditar. Estaline, por exemplo, conseguiu mesmo fazer do marxismo não uma filosofia, mas uma crença dogmática que canonizava o socialismo científico. Porque se julgam possuidores da Verdade, os ditadores, designadamente os de esquerda, são os grandes aliados do neoliberalismo que nos sufoca. O capitalismo envelheceu e segrega desencanto e fadiga moral, mas o socialismo dos caudilhos, porque intolerante e manipulador, não é menos reaccionário.Uma sociedade alternativa ao capitalismo não pode usar os métodos de um capitalismo mascarado de socialismo. Vivemos o apogeu do capitalismo e, como tal, da exploração. Ele, está mais do que provado, não resolve os problemas da liberdade, da igualdade, da fraternidade. Só que o fracasso das revoluções socialistas, que se conhecem, também se tornou evidentíssimo, deixando as pessoas descrentes, entre a apatia e o conformismo. O socialismo estatizado e estatizante divide a sociedade em classes: o poder burocrático e os assalariados, obrigados pelo terror ao absentismo. As purgas de Estaline, mandando fuzilar companheiros de ideal, é igual a outras purgas, com outros ditadores, à direita ou à esquerda, noutros países. Trotsky retratou, com fidelidade, já em 1935, o que se passava, na União Soviética: ”no lugar da ditadura do proletariado, implantou-se a ditadura burocrática”.
Repito-me: são verdadeiros regimes burocrático-autoritários os regimes socialistas que por aí definham e que não são alternativa ao capitalismo vigente. A ideia de sociedade, que a eles preside, é de um conservantismo extremo, onde todos são forçados a manifestar os mesmos ideais e os mesmos valores. Quem revelar a mínima discordância põe em perigo a sua liberdade. Há pouco, “o dissidente cubano René Gómez Manzano foi libertado pelas autoridades, após passar 18 meses detido sem qualquer acusação”. Trata-se de um opositor ao regime e pretende que se processe, na sua pátria “uma mudança pacífica para a democracia” (Diário de Notícias, 2007/2/10). Como se vê, um “criminoso temível” que merece o desprezo dos seus compatriotas!... Mas, não será o socialismo o próximo regime, para um mundo onde o capitalismo apodrece? Não tenho dúvidas, a este respeito: o século XXI será o de um novo socialismo! Um novo socialismo e portanto que não se confunde , nem com o de Mário Soares, de Felipe González, de Tony Blair, etc., nem com o da URSS, ou de Cuba, ou daquele que Chávez anuncia, governando por decreto e beneficiando da chamada Lei da Responsabilidade Social, onde as críticas ao governo se consideram “ameaça à segurança social” (Veja, S. Paulo, 2007/1/31). Um ponto parece indisputável: a humanização do capitalismo (que faz da mais-valia a fonte de acumulação do capital) é impossível e o Estado-Deus-Paternalista, castigador e protector, castrador da energia social, falhou (e falhará) também. O que nos resta? Criar o ainda-por-fazer, visando o socialismo e rejeitando tanto a estatolatria como o “socialismo democrático” que, sem uma ruga de inquietação, procura salvar o capitalismo.
3. A estratégia da luta contra o capitalismo, procurando a tomada do poder e estabelecendo outra ditadura, está exaurida, pelos falhanços sucessivos. O novo socialismo constrói-se, no meu modesto entender, introduzindo, com firmeza e lucidez, a máxima democratização, a qual se oriente contra o capitalismo, as suas instituições, a sua lógica e a sua cultura. E não reformando cautelosamente o que aí está, de molde a tornar o capitalismo mais suportável. Pelo contrário, é preciso expô-lo a uma nudez fragilizada, onde se tornem evidentes os disfarces da sua própria degradação, já que o socialismo deve entender-se, acima do mais, como socialização do poder político, ou seja, criação iniludível de uma democracia participativa, que substitua a democracia unicamente representativa; estabelecimento de uma economia norteada pela lógica das necessidades e da produção de “sujeitos económicos”; e, ainda, promoção de uma cultura associativa, onde possa realizar-se o ideal da solidariedade; e, por fim, crítica incessante às novas formas de organização social, como expressão e nutriente do que se vai teorizando e praticando. Ora, tudo isto é incompatível com a democracia neoliberal que nos governa que, se produz crescimento (quando produz...), se encontra nas mãos de um empresariado agressivamente classista e sem um assomo sequer de sensibilidade social, embora utilizando hipocritamente, aqui e além, uma espectacular filantropia. Não abundo, no entanto, nas ilusões de Engels e de Lenine, que julgavam que a extinção das classes implicaria a dissolução do Estado. Sou em crer, embora a vocação anti-estatal do “novo socialismo” que, nele, o Estado é para converter-se em semi-Estado e não para ser erradicado totalmente. O Estado tem sido, inalteravelmente, um instrumento de dominação. Urge convertê-lo ao serviço de todos, socializá-lo, transformá-lo em democracia participativa, onde os políticos sejam capazes de ceder o poder a todos os cidadãos organizados... diariamente e não só no período das eleições! Uma cidadania activa é o cerne do “novo socialismo”.
Como concretizar a democracia participativa? Resumo assim o que pretendo dizer, servindo-me do livro do chileno Tomás Moulian, Socialismo del Siglo XXI la quinta via (Ediciones LOM, Santiago 2000), que me inspirou na feitura deste artigo: fragmentação do poder político em espaços de honesta participação activa; iniciativa popular em matéria legislativa; democracia interna nos partidos que, hoje, são tão classistas como o mundo capitalista donde nascem; espaço político, aberto e plural, sem classe dominante espaço compatível com uma sociedade verdadeiramente deliberativa; institucionalização de associações autónomas, onde se defendam, sem cessar, os Direitos Humanos e se pratique uma severa auto-crítica, isto é, a coragem de apontar a injustiça e o erro, nas instituições que se representam; reforço da liberdade pessoal de decisão sobre os problemas de ordem axiológica; se a nova fonte de riqueza é o conhecimento, não devemos esquecer-nos que “a epistemologia só surge como inicial, se a questão ontológica estiver resolvida” (Fernando Ilharco, A Questão Tecnológica - Ensaio sobre a Sociedade Tecnológica Contemporânea, Principia, Cascais, 2004, p.. 105). Ou seja, a própria competência tecnológica e científica e o talento e a honradez e a coerência de que se fizer acompanhar não deve também perder o sentido da construção do “novo socialismo”. Volto a Fernando Ilharco, no livro atrás citado: “O que é mais decisivo, o que é mais raro, por isso o que gera riqueza, é o que é criado e gerado, nos termos do novo mundo e para o novo mundo. Não é tanto falar da tecnologia, alinhar a tecnologia, utilizar a tecnologia, mas antes voltar ao mais essencial, à satisfação das necessidades concretas das pessoas individualmente consideradas” (p. 106).
4. Impor mordaças ao povo, para falar, horas intermináveis, em seu nome, é a mais abjecta das dominações; instituir a censura, alegando que se trata de meio de autodefesa contra “mercenários”, a soldo de potências estrangeiras, e não ver nela tão-só uma profilaxia provisória, alargando-a, indefinidamente, a qualquer escritor ou jornalista e a todos os órgãos da Comunicação Social; um governante que vive do que fez, em emotiva consonância com os interesses do seu país, e tudo sacrifica a esse evento de forte carga patriótica, localizado e datado, como se de uma aparição divina se tratasse nada disto me parece próprio de um socialista, mas apenas de uma pessoa infeliz que obriga os seus concidadãos a participarem da sua infelicidade. O socialismo, em que acredito, há-de definir-se, singularizar-se, principalmente, como democracia participativa, economia de necessidades e cultura solidária e deverá ser construído, com o destemor do risco, por todos os cidadãos, proletários ou não. O “novo socialismo” não pode estar de acordo com certas situações a que o velho socialismo contribuiu, ardorosamente, ao afirmar-se representante do proletariado tão-só, dado que em socialismo a extinção das classes é inevitável. De facto, ao novo socialismo corresponde uma economia nova, que deverá orientar-se para a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, para uma relação íntima entre a propriedade privada e a propriedade social e para o surgimento de “sujeitos económicos”, isto é, de produtores e consumidores, capazes de participarem nos processos de decisão e que não esperam, de mão estendida, que seja a gula do capital ou o paternalismo estatal a determinar as suas necessidades. Assim, através da participação, a economia politiza-se e recusa visceralmente que se confunda fruição pessoal com egoismo, bem-estar com descaso pela miséria do nosso semelhante e solidariedade com “caridadezinha”.
Enfim, o “novo socialismo” (que não pode considerar-se adquirido, uma vez por todas, mas é um processo contínuo) não aceita unanimidades, nem leituras definitivas, mas caminha decididamente para uma cultura do ser, em oposição à burguesa cultura do ter, uma cultura comunitária, em oposição a uma cultura individualista. A cultura do ser não aposta no despojamento de quaisquer bens materiais, mas numa cultura onde os valores de fraternidade, igualdade e solidariedade entrem em competição permanente com a exploração, alienação e a marginalização social. No entanto, a luta hodierna, por um mundo novo, não passa pela apropriação, armada ou não, do poder, fazedora de mais uma ditadura, mas pela contestação da modernidade ocidental, a partir de uma perspectiva pós-capitalista, pós-colonial, pós-eurocêntrica e criação experimental do futuro luta levada a cabo, por diversos protagonistas, visando a soberania popular e a emancipação social; luta da qual devemos sair reconciliados com os outros e connosco mesmos. E deixem-me terminar com a definição de fé em Unamuno: “A fé não consiste em crer no que não vemos, mas em criar o que não vemos”.
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Frei Betto
Teólogo brasileiro
As trapalhadas de Bush
Joseph Stiglitz ganhou o Prémio Nobel de Economia e foi economista-chefe do Banco Mundial. Linda Bilmes ensina finanças públicas em Harvard. Juntas, as duas cabeças calculam que Bush já gastou 2,2 triliões de dólares na guerra do Iraque. O orçamento real é 22 vezes maior que o oficialmente declarado. Isso é mais de duas vezes o PIB do Brasil.
Bush demitiu, em 2003, o seu mais alto assessor económico, Larry Lindsey, por ter ousado sugerir que o custo da guerra podia chegar a 200 biliões de dólares. A Casa Branca irritou-se na época e desdobrou-se no Congresso para acalmar os parlamentares. Despachou Paul Wolfowitz (era o número 2 do Pentágono e é, hoje, presidente do Banco Mundial) para ir lá e jurar a deputados e senadores que o próprio Iraque financiaria tudo com o petróleo que jorra de seu solo...
A intervenção dos EUA no Iraque resulta de uma sequência de mentiras. Primeiro, Bush alardeou que o governo de Saddam estaria envolvido no 11 de Setembro. A acusação jamais foi comprovada. Depois, acusou-o de estocar armas de destruição em massa. Saddam abriu as portas do país e permitiu que peritos da CIA o revirassem de cabeça para baixo. Após um ano de investigações, nada foi encontrado. Os grandes jornais dos EUA chegaram a pedir desculpas aos leitores por terem acreditado no engodo. Enfim, Bush tentou justificar o atoleiro em que se meteu prometendo fazer do Iraque uma democracia capaz de disseminar-se pelo mundo árabe. Forjou eleições, dividiu a nação e aprofundou a mortandade.
Saddam Hussein foi enforcado sob acusação de matar 104 xiitas. Na época, o Iraque estava em guerra com o Irão e o ditador era um títere às mãos do Tio Sam [EUA]. O apoio foi levado a Bagdá por Donald Rumsfeld, que até há pouco monitorava o Pentágono e a guerra no Iraque.
Bush está desesperado. Com a aprovação popular em míseros 27%, e as derrotas nas eleições da Câmara e do Senado.
Já morreram no Iraque 3 mil soldados made in USA e 700 mil iraquianos. Como cota de urgência estão seguindo mais 20.000 soldados número insignificante numa Bagdá com 5 milhões de habitantes hostis à presença dos EUA.
Ao referir-se ao custo da guerra, Bush omite os gastos com cerca de 20 mil militares feridos. Hoje, as máquinas de guerra oferecem blindagens mais resistentes. Diminuem o total de mortos, mas produzem mais feridos: daí os enormes gastos com amputações, internamentos, indemnizações, aparelhos ortopédicos, etc. Calcula-se que só os danos cerebrais consomem 35 mil milhões de dólares.
Com a invasão do Iraque, Bush concedeu ao terrorismo status de guerra, ampliou o poder de recrutamento de suas organizações e ofereceu-lhes objectivos e alvos concretos. No Iraque, o terror sabe onde e em quem atirar, enquanto as tropas de ocupação miram em alvos imprecisos e penalizam a população civil.
O que fará Bush? Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Nem pode retirar as tropas do Iraque, excepto admitindo a derrota, nem sabe como, porque e até quando mantê-las ali. Além da guerra coordenada pelo Pentágono, há também uma guerra civil que cindiu a unidade nacional iraquiana. Os EUA não podem apoiar os sunitas, seus inimigos históricos. Não podem apoiar os xiitas, aliados do Irão. Não podem apoiar os curdos, porque a Turquia não toleraria.
A milícia xiita, conhecida como Exército do Mahdi, liderada pelo clérigo Moqtada al-Sadr, conta com 60 mil combatentes, tacticamente apoiados por 2 milhões de xiitas que habitam o leste de Bagdá. O Exército e a polícia iraquianos são constituídos predominantemente por xiitas. Como oferecer segurança aos bairros habitados por sunitas, que apoiam seus rebeldes?
O grave é que o que move Bush é a sede de vingança. Não se conforma de seu pai ter fracassado na tentativa de derrubar Saddam Hussein, em 1991, e de sua família ter sido sócia dos Bin Laden em negócios de petróleo. Como bem escreve Herman Melville em Moby Dick: “Ah, Deus! Que tormentos sofre o homem que se consome com seu desejo de vingança. Dorme de mãos cerradas e acorda com as unhas ensanguentadas cravadas nas palmas.”
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L. Boff
Teólogo brasileiro
Opção Terra
A marca registrada da Igreja da libertação com sua correspondente reflexão reside na opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e em favor da vida. Nos últimos anos, começou-se a perceber que a mesma lógica que explora as pessoas, outros países e a natureza, explora também a Terra como um todo, em vista do consumo e da acumulação a nível planetário. Daí a urgência de se inserir na opção pelo pobres o grande pobre que é hoje a Terra. A opção não é tanto pelo desenvolvimento, ainda que sustentável, nem pelos ecocossistemas em si, mas pela Terra. Ela é a condição prévia para qualquer outra realidade. Ela tem que ser preservada.
O relatório do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) que envolveu 2.500 cientistas de 130 países, revelou dois dados estarrecedores: primeiro, o aquecimento global é irreversível e já estamos dentro dele - a Terra busca um novo equilíbrio; segundo, o aquecimento é um fenómeno natural mas que, após a Revolução Industrial, foi enormemente acelerado pelas actividades humanas a ponto de a Terra não conseguir mais regular-se a si mesma.
Segundo James Lovelock, em A Vingança de Gaia (2007), anualmente lançam-se na atmosfera cerca de 27 mil milhões de toneladas de dióxido de carbono que, condensadas, equivaleriam a uma montanha de um 1,5 quilómetros de altura com uma base de 19 quilómetros de extensão. É o efeito estufa que pode elevar a temperatura global, consoante o Painel, ainda neste século, entre 1,8 a 6,4 graus Celsius. Com as medidas que possivelmente serão tomadas, a elevação de três graus é tida como a mais provável, mas inevitável. As conseqüências serão incontroláveis, os oceanos subirão entre 18 e 59 cm, inundando cidades litorâneas como o Rio de Janeiro, haverá devastação fantástica da biodiversidade e milhões de pessoas correm risco de desaparecer.
Jacques Chirac, presidente da França, face a tais dados, disse com acerto: “Chegou a hora de uma revolução no verdadeiro sentido da palavra: uma revolução das consciências, da economia e da ação política”. Efectivamente, como não podemos parar a roda do aquecimento, podemos, pelo menos, desacelerá-la mediante duas estratégias básicas: adaptar-se às mudanças; quem não se adapta, corre risco de morrer; minorar as conseqüências deletérias permitindo sobrevida à Gaia, aos organismos vivos, especialmente, aos humanos.
Aos três famosos “R”s: reduzir, reutilizar e reciclar, há-de acrescentar-se um quarto: rearborizar todo o planeta, porquanto são as plantas que capturam o dióxido de carbono e reduzem consideralvemente o aquecimento global.
Esse quarto R é fundamental para a preservação da Amazónia. Suas florestas húmidas são as grandes reguladoras do clima terrestre. O desafio é como combinar desenvolvimento com a manutenção da floresta de pé. Não podemos desmatar no nível que se estava fazendo. Mas nem de longe somos os campeões do desmatamento, como revelou recentemente E. E. Moraes em seu livro Quando o Amazonas Corria para o Pacífico (2007). A África mantém só 7,8% de sua cobertura florestal; a Ásia, 5,6%; a América Central, 9,7%; e a Europa (que mais nos acusa) apenas 0,3%. O Brasil conserva ainda 69,4% das suas florestas primitivas e 80% da floresta amazónica.
Isso não desculpa os nossos níveis de desmatamento, nem é motivo de orgulho, mas representa um desafio à nossa responsabilidade global para o bem do clima de todo o Planeta.
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Outras Mensagens
NÃO, P. MÁRIO, NÃO VOU POR SI!
Dornes. Rosa Maria: No seu último jornal pode ler-se a propósito da questão do aborto: “Vão, pois, por mim. E no dia 11 de Fevereiro de 2007, reconheçam às mulheres o direito a escolherem em consciência se hão-de levar a gravidez ao fim ou se hão-de interrompê-la no ambiente humano e afectivo de um hospital público.” NÃO, Pe. Mário! NÃO VOU POR SI!
Sabe, Pe. Mário estou cansada do FRATERNIZAR, da sua linguagem aparentemente evangélica, aparentemente bonita, aparentemente afectuosa, como parece à primeira leitura desse pequeno texto que transcrevi em cima; mas qual ambiente humano e afectivo? Na realização dum crime pode falar-se assim? Onde está o Pe. Mário a defender os pobres, os doentes, os PEQUENOS? Será que os HOMENS se medem aos palmos? Ou não será um Homem/Mulher o ser que uma grávida sustenta no seu seio?! NÃO VOU POR SI, porque num estado de direito, que encerra maternidades (por razões económicas), faz sentido investir o dinheiro dos nossos impostos em abortos sem razão clínica? Não faça do aborto uma questão abstracta, mas pense um pouco nas torturas que são infligidas ao embrião. Também para ele o ambiente será humano e afectivo…?
Pe. Mário, eu sou pela VIDA! Pois, se até criamos associações para defender os animais em vias de extinção, como não defender e proteger a Vida Humana? Somos uma espécie em perigo! O Homem é lobo do Homem e do mais pequenino! As razões da mulher são outra questão que merecem atenção e resposta, mas não por esta via. Esta via é um passo para outros desregramentos sociais. O Cristo de que tanto fala é o Senhor da Vida desde o princípio, não é só da vida da mulher que está em apuros, mas da VIDA TODA! São dele estas palavras: “Eu sou o caminho, a verdade e a VIDA”.
Agora quero pedir-lhe que interrompa o envio do jornal. Certo?! Apesar de tudo, junto envio cheque para minorar o atraso do pagamento da assinatura. Olhe que o seu Jesus é o mesmo que o meu, e é pela Vida! Até sempre!
N.D.
Querida Rosa Maria
Tenho pena que decida interromper o envio do Jornal. Mas, se esta é uma decisão ditada pela sua consciência (e não tenho razões para pensar que não é), não me resta outra alternativa que não seja acatá-la. Por isso, a próxima edição a menos que até lá nos diga que pensou melhor e decidiu outra coisa já não entrará na sua caixa do correio. Custa-me que assim seja. E mais me custa que o faça pelas razões que aponta na sua carta. Mas cada qual é como é. Espero, entretanto, que, com o passar dos anos, a Rosa Maria venha a compreender que o caminho que o FRATERNIZAR propôs, no referendo do passado dia 11 de Fevereiro, ainda é o que mais se coaduna com as entranhas de Jesus, o de Nazaré. Veja que não se tratava de escolher entre abortar ou não abortar, mas entre abortar na abortadeira ou abortar num estabelecimento de saúde pública. Essa era a questão básica e fulcral com que estávamos confrontados no Referendo. Porque se fosse entre abortar ou não abortar, acredite que nem sequer Referendo haveria.
Vejo que a Rosa Maria, nesta matéria, raciocinou como os nossos Bispos que, pelos vistos, toleram, ou, pelo menos, não fazem nada, nem sequer barulho nas ruas para denunciar o facto de que as mulheres abortem clandestinamente nas abortadeiras e nas clínicas privadas, mas já ficam “furiosos” e fora deles, se as mesmas mulheres forem abortar, às claras, num estabelecimento de saúde pública. Em ambos os casos, há um aborto, exactamente o mesmo aborto, só que, num caso, é realizado nos estabelecimentos de saúde pública e, por isso, oferece às mulheres em causa condições de dignidade, de higiene, de saúde e até de reflexão acompanhada que as pode levar a desistirem de abortar. E no outro caso, o aborto (pelo menos, o da abortadeira) é realizado em condições de indignidade total, de falta de higiene, com graves consequências para a saúde das mulheres e sem nenhum tempo de reflexão acompanhada. Acha, então, que a sua maneira de ver/legislar e de agir, relativamente às mulheres que decidiram abortar, defende mais a vida do que a maneira de ver/legislar e de agir defendida por mim e pelo Jornal? Respeito a sua posição, mas não vou por ela. Prefiro ir pela minha.
Pelos vistos, entre os milhões de portuguesas/portugueses que foram votar no Referendo, a esmagadora maioria sente e vê como eu. Somos então um país de assassinos?! Veja que nem os Bispos foram capazes de dizer semelhante coisa, depois de verem que o país, desta vez, já não se deixou impressionar pela sua linguagem moralista/terrorista.
Finalmente, quanto ao que a Rosa Maria diz sobre a minha “linguagem aparentemente evangélica, aparentemente bonita, aparentemente afectuosa” chega quase a ser ofensivo. Quero que saiba que essa é a linguagem que me dita o coração e a mente. Mas se calhar o que mais a incomoda é que seja uma linguagem libertadora, um discurso com Espírito, na linha da Profecia bíblica e do Evangelho de Jesus. Por alguma coisa o Jornal se chama FRATERNIZAR. Deveria ser FRATERNIZAR/SORORIZAR, mas, quando nasceu, há 20 anos, ainda não estávamos tão sensibilizados para a linguagem inclusiva e de género, como hoje felizmente estamos e praticamos.
Agradeço-lhe, em meu nome e em nome do FRATERNIZAR o seu cheque de estímulo e de apoio. Dou-lhe um beijo fraterno/sororal, sobretudo, por reconhecer, no final da sua carta, que “o seu Jesus é o mesmo que o meu”. Afinal, não estamos assim tão de costas voltadas. E nem percebo porque é que a Rosa Maria desiste do FRATERNIZAR. Não quer mesmo pensar melhor e mais a frio esta sua decisão? Fico na expectativa. E no afecto.
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Frei Gilvander visitou Cuba e partilha
com o Fraternizar o seu emocionado testemunho
A Revolução fez nascer um Povo culto e solidário
Falar de Cuba, do socialismo e do grande líder revolucionário Fidel Castro ainda causa muito constrangimento e indignação. Os media, geralmente, desfilam um rosário de preconceitos acerca do regime político cubano e da história da Revolução. Todavia, mesmo correndo o risco de causar constrangimentos e indignação, quero assumir o compromisso e a responsabilidade de compartilhar a experiência de conhecer de perto a resistência e a determinação desse povo que luta contra o capitalismo e contra o imperialismo criminoso dos Estados Unidos da América. Faço-o em 10 pontos.
1. Primeiras impressões
Antes de emitir qualquer opinião sobre Cuba, acredito ser relevante ter em mente dois aspectos fundamentais: o primeiro, a localização estratégica da ilha que fica apenas a 150 km do maior império da actualidade. Esta é a distância que separa Cuba do estado da Flórida nos Estados Unidos. O segundo aspecto é o fato de o país ter sofrido, e continuar a sofrer, ao longo de sua história, permanentes tentativas de invasão, exactamente em vista de sua posição estratégica na entrada do golfo do México.
Cuba é uma ilha de 110.000 Km2, estreita e comprida, semelhante a um jacaré. Com 11 milhões de habitantes, é uma ilha encantada por sua beleza natural e encantadora pelo seu povo. Cristóvão Colombo, ao chegar em Cuba, em 1492, já afirmara: “Esta é a terra mais bela que olhos humanos viram.”
Nos dias actuais, pode-se afirmar que em Cuba, além de vermos coisas que nossos olhos nunca tinham visto antes, vamos sentir uma grande nostalgia diante de tantos objectos antigos que fizeram parte do nosso quotidiano num tempo em que nossas vidas eram bem mais simples e livres do actual estresse em que vivemos. Vamo-nos deparar com coisas totalmente inusitadas e criativas: táxis em bicicletas, carros remendados com madeira e plásticos, ónibus construídos sobre antigas carretas, chamadas “camelos”. Tudo isso permite àquele povo resistir, com intrepidez e dignidade ao criminoso e diabólico bloqueio estadunidense. Convivem, no mesmo cenário, recursos materiais limitados, tão abundantes nos países ocidentais, com o que há de mais moderno e avançado na criação humana. Seja nas ciências, nas artes, nos desportos, os cubanos destacam-se sempre.
Ouvi relatos e reflexões que meus ouvidos nunca tinham ouvido. Procurei ouvir mais do que emitir qualquer parecer acerca do modo de vida que surge e que se actualiza desde o triunfo da Revolução, em 1959. Aliás, este um facto que gera tanta especulação: as possibilidades de sobrevivência do regime socialista cubano diante da globalização, da pressão capitalista em todos os moldes e, principalmente, após a previsível morte de Fidel.
Com ouvido atento, procurei descobrir a beleza daquela grande nação. O tempo todo, tinha a sensação de estar na ilha imaginária de Thomas Morus, UTOPIA, na qual o autor, inspirado na República, de Platão, pensa uma sociedade ideal em todos os sentidos, solidária, sem propriedade privada, sem violência e com dignidade para todas as pessoas. No entanto, não tenho a pretensão de defender a existência de uma sociedade perfeita. O meu propósito nesta reportagem é mostrar que, somando o que há de bom em Cuba, fica um grande saldo, dadas as limitações existentes, sobretudo se levarmos em conta que a maioria das carências impostas ao povo advêm não do regime político socialista e sim do bloqueio da política imperialista dos Estados Unidos, que causa enormes danos à economia cubana.
2. O impacto já ocorre na chegada
À chegada a Havana, capital de Cuba, já é possível sentir a diferença de se estar num Estado socialista. Do aeroporto José Marti ao centro da capital, há um percurso de aproximadamente 30 quilómetros. Neste trajecto somos presenteados com uma delicada e bem cuidada paisagem, onde não há sequer uma única propaganda comercial. Nas ruas de Havana, ocorre o mesmo, nenhum outdoor que estimule o consumo. Só podem ver-se, e poucas, propagandas do regime socialista. Lembro-me de algumas:
“Neste momento mais de 2 milhões de crianças estão passando fome nas ruas do mundo, nenhuma delas é cubana.” “Pela vida: Não ao bloqueio económico dos Estados Unidos.” “Che Guevara, teu exemplo é uma luz na nossa marcha socialista.” “Em Cuba, 100% das crianças estão na escola.”
Em 1961, após uma intensa campanha de alfabetização, Cuba foi declarada território livre do analfabetismo. Vimos pelas ruas pessoas simples e trabalhadoras que nos dão a certeza da existência, naquele território, de um povo educado e saudável. Também chama a atenção a enorme diversidade, nas pessoas, nas cores dos carros, no modo de vestir. Pessoas alegres e que falam com muito orgulho do seu país. Determinados mesmo quanto à independência e da opção e luta obstinada pelo socialismo e pela soberania.
Nos quatro canais de TV abertos, todos estatais - há vários outros canais regionais - não há também propaganda comercial. Só há programas culturais, informativos e desportivos. Poucos são os programas de entretenimento, dentre eles uma novela brasileira, actualmente, “Senhora do Destino”, à qual os cubanos se referem com grande entusiasmo. Gostam muito de telenovelas e radionovelas. Vale até lembrar que se orgulham de terem criado as radionovelas, a primeira que se tornou famosa no Brasil, “O direito de nascer”.
3. A relação de Cuba com os demais países da América Latina
A eleição de Hugo Chaves, na Venezuela, criou novos laços entre os países da América Afrolatíndia e desenvolveu uma outra forma de solidariedade entre as nações do continente. Cuba recebe o petróleo venezuelano em troca do apoio na área da saúde. São milhares de médicos e outros profissionais a trabalhar na Venezuela. Milhares de venezuelanos estão a ir a Cuba fazer tratamento de saúde. A excelência cubana na área da saúde também tem ajudado muitos outros países como o Brasil e a Bolívia.
Ao visitar o Museu da Revolução, antiga sede presidencial do ditador Fulgêncio Batista, encontrámos um grupo de jovens bolivianos, orgulhosos do governo Evo Morales. Aqueles jovens informaram que, logo após assumir a presidência, Morales enviou 400 jovens para cursar medicina em Cuba. Formados, serão missionários de uma revolução no sistema de saúde boliviano e poderão trabalhar também noutros países, voluntariamente.
Na ELAN Escola Latina Americana criada em 1999, há 4 mil jovens latino-americanos cursando medicina. O estado cubano custeia tudo: além dos professores e da manutenção da universidade, oferece hospedagem, alimentação, livros, cadernos e ainda dá uma ajuda de custo mensal. Os livros usados são devolvidos no final de cada ano, para que outros estudantes possam estudar neles. É interessante registar: enquanto nos Estados Unidos são gastos 350 mil dólares para formar um médico, em Cuba 120 mil dólares são suficientes.
Há milhares de estudantes estrangeiros em Cuba, na graduação e na pós-graduação. Só do Brasil são 700 jovens, 70 dos quais são enviados pelo MST para fazer medicina e outros cursos.
4. Contra o bloqueio, muita criatividade
Cuba foi inicialmente uma colónia espanhola. Em 1898 foi ocupada militarmente pelos Estados Unidos. A partir de então, cresceram os negócios dos norte-americanos na ilha que só em 1902 se tornou um país independente. O destino de Cuba foi profundamente marcado pela influência norte-americana, tanto no plano político, mediante o apoio a partidos ou grupos, quanto no económico. A beleza caribenha e a localização estratégica atraíram também para o local o lazer e a orgia dos ianques. Também uma chaga que gera um grande incómodo: uma base militar dos Estados Unidos em território cubano, a base de Guantánamo. Essa base militar resultou das negociações para a retirada das tropas americanas na independência.
Após a Revolução em 1959, muitos cubanos emigraram para os EUA; e, por discordarem do regime, são, ainda nos dias actuais, manipulados e financiados pelo governo estadunidense com o intuito de derrubar o regime liderado por Fidel Castro. Hoje, incluindo os descendentes, há mais de um milhão de cubanos que vivem naquele país. A grande maioria colabora efectivamente para a economia cubana enviando dólares para os parentes que moram na ilha. Uma minoria, conhecida como a máfia cubana de Miami, que perdeu dinheiro e poder após a Revolução de 1959, conspira o tempo todo contra a política socialista. Essa pressão de uma minoria cubana interessa à política imperialista dos Estados Unidos que usa de artifícios para isolar o último país de resistência socialista existente no planeta.
Basta ver que quando um estrangeiro chega clandestinamente aos Estados Unidos é imediatamente mandado de volta ao seu país. Os cubanos são a excepção. Para incentivar a saída de Cuba, o governo dos Estados Unidos acolhe como cidadãos os cubanos que chegam ao seu território. Ou seja, os únicos estrangeiros que têm visto de permanência incondicional nos Estados Unidos são os originários de Cuba.
O bloqueio dos Estado Unidos a Cuba consiste na proibição do comércio dos produtos cubanos nos Estados Unidos e a venda de qualquer produto norte-americano a Cuba. Além, é claro, da proibição do uso de tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos. Não existe relação diplomática e comercial entre os dois países. Isso gera enormes dificuldades à economia cubana, devido ao custo do transporte que é acrescido a todos os produtos que vêm de países bem mais distantes, como os países europeus, o Canadá ou a China. Cuba tem de pagar sobretaxas para importar produtos norte-americanos de outros países.
Deste modo, a única forma de o governo cubano sobreviver ao bloqueio, é usar de muita criatividade e contar irrestritamente com o apoio de um povo educado e que conhece muito bem a sua história.
Vimos muita criatividade no sistema de transporte cubano: táxis em triciclos, uns motorizados, como os cocotáxis para os turistas, outros movidos somente com a força do pedal por valentes condutores, que levam passageiros a pequenas distâncias. Automóveis que foram sofisticados na década de 1950 e que continuam rodando sumptuosos pelas avenidas de Havana. Pequenos automóveis Fiat, parecendo miniaturas dos antigos 147. Carros russos, como o Lada, das décadas de 1970 e 1980. Alguns seminovos, numa grande variedade de tipos e cores. Micro pick-ups com apenas 3 rodas, ónibus antigos tipo jardineira e os “camellos”, carretas com a carroceria transformada em “super-ónibus”, como base para o transporte colectivo dos trabalhadores, quase de graça. Incrível a diversidade de tipos e cores dos meios de transporte em Cuba.
Vimos um grande número de pessoas à boleia e muitos motoristas a oferecer boleia, especialmente nos horários de pico. Depois soubemos que cerca de 80% dos automóveis são estatais e são orientados a dar boleia. Os carros particulares, que são poucos, também cultivam essa prática de dar boleia. É muito difícil ver uma pessoa sozinha no veículo. Normalmente andam duas, três ou quatro pessoas no mesmo automóvel, inclusive nos táxis. Percebemos que dar e receber boleia é um valor socialista e faz parte da cultura, é o normal. Muita gente vai trabalhar e volta sem ter que pagar pelo transporte. Não existe o menor receio de violência como seria de se esperar no Brasil. Também uma forma bastante inteligente de economizar energia. O petróleo é muito oneroso para o governo cubano.
E desta e de outras maneiras, Cuba vai driblando o bloqueio norte-americano.
5. Exercício do poder em Cuba
Conversámos com taxistas, médicos, lixeiros, comerciantes, professoras, psicólogas, agrónomos, advogados. Não vimos nem uma pessoa reclamar de Fidel Castro, nem do socialismo, nem da Revolução cubana. Pelo contrário, ouvimos o reconhecimento e a constatação de que a Revolução deu dignidade para milhares de pessoas em Cuba. Conforme já afirmámos, o diabólico bloqueio económico que o (des)governo dos Estados Unidos impôs a Cuba desde 1961 é identificado pelo povo cubano como o responsável pelas dificuldades enfrentadas em todos os níveis.
Em Havana, as praças públicas são realmente públicas. O povo circula à vontade. Não vimos ninguém alertando sobre riscos de roubo e assalto. A população está desarmada. Afirmam que existem armas guardadas em vários locais e que podem ser disponibilizadas à população em caso de invasão dos Estados Unidos. “Aqui não há delinquentes nem delinquência. Aqui temos paz social, fruto da justiça social existente. É muito raro acontecer um assassinato ou um assalto”, diz uma criminóloga cubana. E acrescenta: “Em caso de invasão, cada um dos cubanos sabe onde deve estar imediatamente.”
Perguntámos a várias pessoas: “Como é exercido o poder em Cuba? Fidel manda muito?” Explicaram-me: “A base do exercício do poder em Cuba está nos CDRs Comitês de Defesa da Revolução. Esses comitês que surgiram para proteger a população das tentativas de golpe, existem em todas as quadras das cidades e também na zona rural. No CDR todas as pessoas da quadra estão cadastradas. Fazem assim um retrato de toda a população. Sabem quantas crianças, quantos idosos e gestantes existem no país, com uma margem de erro insignificante. Há em cada comitê um/a presidente/a, um secretário/a e um vigilante que é o responsável pela saúde, educação das pessoas que moram naquele local. Além do CDR, há o delegado de circunscrição que exerce a função como voluntário, isto é, não recebe salário para desempenhar a função. De três em três meses, esse delegado presta contas ao povo. Vinte delegados escolhem um delegado de território.
A organização política cubana inclui também uma Assembleia municipal (poder executivo + legislativo) que cuida de finanças, desporto, educação, saúde, moradia, comércio, transporte, ruas e estradas, comunidades. Existem ainda as Assembleias provinciais (14 províncias).
Da Assembléia Nacional fazem parte 601 deputados. Vale destacar que recebem apenas o necessário para viver. Exercem o mandato de deputado e continuam a trabalhar na sua profissão e por isso recebem salário, não pelo facto de serem deputados, mas como padeiros, professores, médicos, ou qualquer outra profissão que exerçam. Em Cuba uma pessoa é reconhecida na sociedade pelo que faz em prol da colectividade e não pelo que consegue angariar para si mesma, como pela capacidade de ganhar dinheiro ou ter sinais exteriores de riqueza.
Há um Conselho de Ministros com um presidente, que agora é Ricardo Alareni. As grandes decisões nacionais são tomadas na Assembleia Nacional. Fidel Castro é, desde o triunfo da Revolução em 1959, reeleito como deputado. É o primeiro secretário do PCC e comandante das Forças Armadas. Ilude-se quem pensa que Fidel decide tudo sozinho. É claro que ele tem muita influência nas decisões por razões históricas e pela idoneidade moral que adquiriu e conserva.
Conforme vemos, há uma rede de participação que vai dos CDRs até ao Comitê Central da Revolução. Essas pessoas são integrantes do Partido Comunista de Cuba, mas só se ingressa no Partido após verificar com rigor a idoneidade e o interesse da pessoa pelo bem comum.
7. Idoneidade comunista
“Cuba é uma fábrica de médicos”, exclama Mongui, um cubano que se sente embaixador do Brasil em Havana. Na medicina a excelência cubana tem o seguinte objectivo: conquistar os melhores remédios para todos com o custo mais económico possível e de forma sustentável. O Ministério da saúde, as faculdades de medicina e os médicos incentivam e incluem cada vez mais todos os tipos de medicina alternativos e naturistas homeopatia, geoterapia, ervas medicinais, massagem. Prioriza-se muito a medicina preventiva que passa necessariamente por uma boa alimentação.
Há 60 mil médicos cubanos a trabalhar voluntariamente em missões internacionalistas, em 69 países, contribuindo para o resgate da saúde de milhares de pessoas. Na Venezuela, actualmente, existem cerca de 20 mil médicos cubanos alavancando uma revolução no sistema público de saúde. São responsáveis pelo atendimento primário da população, algo parecido com o médico de família. Estão nas favelas e bairros pobres; lá vivem e atendem com competência e dedicação os pobres. Recordo-me de ter ouvido em Caracas, no 6.º Fórum Social Mundial, três jovens camelôs dizendo com veemência: “Por mais de 50 anos, os médicos venezuelanos recém-formados recusaram-se a ir para interior, para os bairros, para a periferia. Só queriam ficar na capital, ganhar dinheiro às custas da dor. Agora, com Hugo Chávez, eles tiveram sua chance de ajudar o povo. Não quiseram. Então foi preciso apelar para a solidariedade. Vieram os médicos de Cuba e estamos tendo acesso à saúde nos lugares mais distantes e pobres”. Ainda, em Caracas, em conversa com duas médicas e um médico, ouvimos, entre tantas coisas, o seguinte: “Não viemos aqui para ganhar dinheiro, mas por amor ao próximo. Estudamos medicina para cuidar das pessoas, nunca para ganhar dinheiro. Quando terminamos o curso de medicina em Cuba, fazemos um juramento de cuidar sempre da vida ameaçada em Cuba e em qualquer país do mundo. Quando se é de esquerda, socialista, somos mais cristãos, pensamos mais no próximo. Todo o povo do mundo é meu próximo, é minha família. Somos e devemo-nos comportar todos como irmãos. Vivo para servir a sociedade. Aqui na Venezuela, recebemos apenas uma ajuda de custo para pagar o metro, ónibus colectivo e comprar alimentos e alguma coisa mais necessária.” O estipêndio recebido pelos médicos cubanos não chega a um salário mínimo da Venezuela, que é cerca de R$405,00.
Mesmo com as dificuldades internas para a produção de alimentos, em Cuba, todas as crianças até aos 7 anos de idade e as gestantes têm garantido um litro de leite por dia.
Cuba é administrada considerando todos os cubanos como sendo uma só família. Fidel é o pai de todos e os cubanos são todos irmãos e irmãs. Por isso todos são tratados com igualdade de oportunidades. Há prioridades que devem ser satisfeitas: alimentação, saúde, educação, transporte público, cultura e desporto. As reivindicações pessoais são atendidas, desde que sejam viáveis e no interesse de todos. Por exemplo, só tem computador individual o que é um “luxo” em Cuba quem está desenvolvendo um trabalho social relevante e que precisa deste instrumento. Só será permitido comprar celular, quando se encontrar um sistema que seja acessível a todos. E estão quase conseguindo.
O povo cubano é um povo sadio. Come-se o necessário para viver, sem exageros. Não vimos sequer uma pessoa obesa. A alimentação é orientada por nutricionistas e contém todos os nutrientes necessários para uma boa saúde.
Norma, uma psicóloga cubana, passou três meses no Rio de Janeiro. Contou-nos que, convidada para participar de diversos churrascos e rodízios, estranhou muito diante de tanta fartura de carne e tão pouca fartura na cultura e nas artes. Quando quis ir assistir a um show de Gilberto Gil no Canecão avisaram-lhe que era muito caro. Ela revelou: “Entre comer muito, participar de rodízios, prefiro alimentar meu espírito. O que mais nos alimenta são os bens espirituais: cultura, arte, desporto e trabalho voluntário, tudo isso dentro do espírito revolucionário socialista. A sociedade capitalista enche a barriga das pessoas, mas deixa o espírito vazio .”
Vimos que a agricultura está directamente associada à saúde. Os alimentos são produzidos de forma orgânica e ecológica. Usa-se muito pouco produtos químicos na agricultura. Está em curso um grande projecto de reflorestamento com árvores nativas e exóticas.
7. Telenovelas brasileiras em Cuba
Em Cuba, a TV veicula uma telenovela por noite. Uma noite, uma telenovela cubana e, na noite seguinte, uma telenovela brasileira ou de outro país. Antes de ser emitida, uma comissão do sector de relações internacionais analisa a telenovela estrangeira, dá um parecer, corta cenas de sexo, de banalização.
Perguntei a várias pessoas cubanas se já tinham pensado sobre os possíveis efeitos das telenovelas brasileiras sobre o povo cubano. Caridad, psicóloga do sector de relações internacionais da TV cubana me explicou: “A programação dos 4 canais cubanos é basicamente cultural. O povo estava pedindo mais programas de entretenimento. É muito melhor passar uma telenovela latino-americana do que filmes dos Estados Unidos, filmes que geram uma cultura de violência e de consumo. A questão central não é veicular ou não uma novela. A questão é como veicular. Em Cuba as telenovelas são veiculadas sem nenhum comercial, apenas uma por dia. Assim o/a telespectador/a acompanha mentalmente o desenrolar da ficção. No Brasil, são muitas novelas por dia e são envenenadas pela propaganda intermitente, entremeada na novela. Quando o/a telespectador/a começa a raciocinar, interrompe-se a novela e entra a publicidade. A pessoa deixa de pensar na novela e começa a pensar na publicidade. Esta mistura de novela com publicidade faz um estrago mental em quem está a assistir. Fica como abelha tonta. É impedida de pensar. Resultado: a novela “vira” tranquilizante. Além disso, em Cuba o povo é culto e não aceita pacificamente o que é apresentado na tv. Também não encontra na realidade o luxo espelhado nas telenovelas. Fica só na ficção.”
8. Cristãos em Cuba
Participamos de uma celebração na Igreja Baptista, presidida pelo pastor Raul Soares, deputado do PCC Partido Comunista de Cuba. De origem camponesa, já está no 3.º mandato como deputado. É um dos três pastores deputados em Cuba. Além de Raul, há um outro da igreja episcopal e outro presbiteriano. Raul Soares disse-nos: “Não há contradição entre ser pastor e ser deputado socialista. Em Cuba 80% das pessoas declararam-se religiosas. Acreditam em Deus. Seguimos o testemunho do Concílio Vaticano II, das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação. Os pobres nos evangelizam. Em 1959, a Igreja Católica cubana traiu os pobres, Jesus e Deus, porque colocou-se contra a Reforma Agrária que Fidel Castro estava a fazer. Sou um pastor de esquerda. Espero que Lula não traia os pobres e que faça uma verdadeira reforma agrária no Brasil. Não há saída para a humanidade fora do socialismo. Precisamos melhorar o socialismo. Capitalismo é anti-cristão e anti-humano.”
Conhecemos o Centro Martin Luther King, com sede nas dependências da Igreja Baptista. A partir da pedagogia de Paulo Freire, esse centro tem ajudado a construir cerca de 60 casas populares, por ano, em mutirão com a participação activa dos sem-casa. Esse centro participa de brigadas populares de limpeza de praças públicas em trabalho voluntário.
9. Produção de alimentos
Sentimos como Cuba vive, desde o fim do apoio soviético ao país, um grande desafio para alimentar o seu povo. Todavia, mesmo diante dessa dificuldade, em Cuba, os produtos transgénicos são proibidos. Lá, de facto, as sementes são património da humanidade. Preserva-se a diversidade das sementes e espécies.
A produção de alimentos, em Cuba, acontece de forma diversificada. Há “granjas”, grandes fazendas do Estado, que produzem cana-de-açúcar, tabaco, arroz e gado. Poucas pessoas, com implementos agrícolas, garantem uma grande produção para o abastecimento de toda a população ou industrializa os seus produtos de exportação, como o açúcar e os famosos charutos e rum cubanos. Há pequenas, médias e grandes CCS Cooperativas de Crédito e Serviço que reúnem muitas famílias de pequenos proprietários; são empreendimentos mistos: privado e estatal. O cultivo é feito em sistema de rodízio. Por exemplo, ara-se um pedaço de terra, planta-se banana (só um pé em cada cova, 1,5 metro entre as fileiras, pois assim produz mais). Após a colheita, ara-se novamente a terra e planta-se uma nova cultura que pode ser mandioca, ou milho, depois feijão, tomate, e assim por diante. Deste modo, é preservada a fertilidade da terra. Há ainda as “fincas”, que são pequenas chácaras, nas quais a agricultura familiar é tocada por uma, duas ou três pessoas. Em Cuba a maior parte da terra rural pertence ao Estado. É muito raro o comércio de terras. O agricultor possui, geralmente, apenas o usufruto da área em que trabalha.
Actualmente o Estado cede terra para usufruto por três anos. Se a pessoa progride, passa a ter direito sobre aquela porção de terra. Se não, a terra é devolvida ao Estado que a repassa para outro.
Todos os trabalhadores, tanto do campo quanto os da cidade, têm todos os direitos respeitados. Aposentadoria aos 60 anos para os homens e 55 para as mulheres, férias mesmo para aqueles que trabalham por conta própria, saúde e educação, licença de maternidade de 1 ano para as mães. Em Cuba há apenas 3% de desempregados.
Após a queda do socialismo real, em Novembro de 1989, Cuba entrou num Regime Especial. A agricultura urbana é incentivada e está a ser desenvolvida para melhorar a alimentação do povo da cidade. Lotes vagos, fundo de quintal e pequenos espaços de terra na cidade estão a ser aproveitados na produção da horticultura. Há técnicos agrícolas que orientam o plantio. Sementes são doadas. Fertilizante orgânico e húmus a partir de minhocas chinesas garantem o êxito da produção de verduras.
10. Economia cubana
Em Cuba a economia é estatal. Cada pessoa só pode ter uma casa e os que têm, só podem ter um carro. Existem diversos mecanismos para se impedir a acumulação de riquezas. Com uma economia tão “engessada” diriam os economistas de plantão, Cuba cresceu mais de 12,5% no ano passado.
Em Cuba é proibido enriquecer-se, pois o enriquecimento de uns gerará o empobrecimento de outros. Para garantir esse princípio, uma série de medidas económicas são tomadas. Por exemplo, de dois em dois anos, mais ou menos, muda-se a moeda para evitar acumulação. Quem juntar dinheiro em casa, ainda que pouco-a-pouco, vendendo artesanato, com táxi, turismo, só poderá trocar pouco dinheiro velho pelo novo. Assim controla-se e impede-se a acumulação.
Em 2005, foi proibido o comércio com dólar em Cuba. Agora o turista é obrigado a trocar o dólar para “peso convertible” com uma desvalorização de 20%, isto é, 1 dólar vale 0,80 de peso “convertible”. Este vale 24 “pesos nacionais”, que é a moeda utilizada pelos cubanos. Uma pessoa cubana paga em peso nacional a maioria dos produtos. Um estrangeiro paga em peso “convertible”.
É proibida a existência de classes entre os cubanos. O salário-mínimo está em 225 pesos nacionais por mês, piso mínimo para os aposentados. Há acréscimos como prémio aos melhores funcionários. Uma pessoa não consegue ganhar mais do que 900 pesos nacionais por mês, incluindo todos os incentivos e prémios por mérito. As empresas estatais dão “estímulos”, tais como cesta-básica, direito de fazer um curso especial em Cuba ou no exterior.
Em Cuba as tarifas por serviços públicos são baixíssimas. A tarifa de energia é de 9 pesos nacionais (cerca de 35 centavos de real) para 100 quilowatts de energia. Tanto as famílias quanto as empresas pagam o mesmo valor por 100 quilowatts. Paga-se muito pouco também pelo consumo de água e gás de cozinha.
Os cartões de crédito excepção feita ao American Express e aos emitidos nos Estados Unidos são aceites em Cuba, em muitos lugares.
Muitos se perguntam como se pode viver com tão pouco em Cuba. O incrível é que não há violência no país, pelo rosto vê-se que as pessoas gozam de boa saúde, todos estudam ou só não estuda quem não quer. Quase todos têm trabalho. Não falta alimento nutritivo para ninguém. Só não há luxo e desperdício alimentar. Como a educação e a cultura são prioridades do governo, os cubanos pagam muito barato para entrar nos teatros, nos museus, e em todos os locais que custam mais caro para os turistas. Esse pode ser um exemplo a ser seguido por outros povos.
Se olharmos bem, após conhecer Cuba, podemos ver que Cuba é um país para todos. Uma cubana provocou-nos: “O Brasil é um país lindo, mas me dói o coração e me deixa indignada ver os deputados brasileiros aumentarem em quase 100% seus próprios salários, já astronómicos. Isso é uma desumanidade gritante. Não entendo como o povo brasileiro não se levanta contra essa e tantas outras injustiças.”
A maioria dos cubanos admira a Teologia da Libertação, frei Betto, Leonardo Boff, as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs - o MST e os Movimentos Populares do Brasil. Isso fortalece os nossos laços de amizade e a vontade de voltar ao país que recebe a todos como irmãos.
Engana-se quem pensa que Cuba se esfacela após Fidel Castro. A admiração e o respeito que os cubanos têm pelo Grande Comandante, a ponto de o chamarem de “nosso pai”, garantirão a firmeza na marcha socialista, mesmo após sua morte. Fidel está interiorizado no povo e será muito mais vivo e forte após sua morte. Em Cuba pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que há 11 milhões de defensores da Revolução. Quem viver verá!
Frei Gilvander Moreira
gilvander@igrejadocarmo.com.br
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IGREJA /SOCIEDADE
II Forum Mundial de Teologia e Libertação decorreu entre 16 e 18 de Janeiro em Nairobi (kenya)
Espiritualidade para outro mundo possível
Breve notícia, em 8 parágrafos, elaborada
por Evaristo Vilar e divulgada por EcleSALia
Na impossibilidade de se deslocar a Nairobi, no Kenya, para acompanhar ao vivo o II Forum Mundial de Teologia e Libertação, Jornal Fraternizar tem, no entanto, a alegria de poder partilhar com as suas leitoras, os seus leitores a breve notícia eleborada por Evaristo Vilar e difundida pela EcleSalia. Partilha também, logo a seguir, o texto condensado da conferência que o nosso companheiro e amigo, o teólogo ibérico Juan José Tamayo, proferiu naquele evento de tanta monta. Ninguém deixe de ler/dialogar/divulgar
1. Participaram umas 300 pessoas. A cidade de Nairobi que acolheu o Fórum tem quase 3 milhões de habitantes. Línguas mais faladas, inglês e kiswahili. Três quartas partes da população vivem em bairros pobres (“slums”), que formam uma cintura de miséria e de degradação a contrastar com um centro colonial, comercial e administrativo mais próspero. Tal como o I Fórum, em 2005, no Brasil, também este aconteceu imediatamente antes do Forum Social Mundial e na mesma cidade.
2. A grande novidade deste II Fórum foi o grande número de comunicações apresentadas e o grande número de grupos de trabalho que debateram de forma acalorada e fecunda as espiritualidades, as igrejas, o diálogo inter-religioso, intercultural e inter-étnico, os rituais, a justiça económica e ecológica, os direitos humanos, a democracia e a paz, a releitura dos textos sagrados, as diferentes espécies de feminismo, as religiões, etc
3. No primeiro dia, o Forum fez uma análise sócio-económica, estrutural e de conjuntura, do neoliberalismo reinante. Encarregou-se disso François Houtart, sociólogo e perito do Vaticano II. Fundamentou igualmente o aparecimento urgente duma espiritualidade que encarne/visualize a preferência de Deus pelos pobres. Houtart sublinhou a brecha crescente que se está a abrir entre o Norte e o Sul, com o dramático resultado de um holocausto implacável contra a população do Sul, cada dia mais empobrecida. Entre outros eixos da acumulação e da usura capitalista, destacou com particular ênfase o agro-negócio, a privatização dos serviços públicos e o controlo da biodiversidade.
4. A resposta a esta dramática situação veio pela mão de três teólogos que reflectiram a partir dos perdedores: Tinyko Maluleke, africano, que destacou o contributo que as religiões podem dar neste combate; Rohan Silva, asiático, que aprofundou a necessária cumplicidade das igrejas com os movimentos sociais; e Jon Sobrino que, a partir da América Latina, voltou a realçar a centralidade das vítimas na experiência de fé das comunidades cristãs.
5. No segundo dia, a manhã foi dedicada à reflexão sobre a realidade sócio-religiosa africana. O diálogo entre os teólogos John Lukwata, ugandês, e Philomena Mwarua, keniata, pôs em evidência alguns aspectos menos edificantes do actual processo sócio-religioso africano e as possibilidades de o enfrentar mediante um encontro sólido entre o cristianismo e as religiões autóctones. A tarde proporcionou aos participantes a marcante experiência de imersão nos bairros de miséria de Nairobi. “Onde encontrar Deus neste lugar de morte?”, parecia perguntar a algaraviada das crianças vestidas de sujidade e de miséria que nos saltavam ao caminho.
6. O terceiro dia foi de trabalho de grupos. Formaram-se 24 grupos. No seu conjunto, tentaram captar os principais desafios com que a espiritualidade dos seres humanos está hoje confrontada: os bairros de miséria; a luta contra a SIDA, a prostituição; o tráfico de mulheres e crianças; os direitos humanos espezinhados; a democracia e a paz que ainda não há; a superação da teologia do Império e dos fundamentalismos.
7. Na manhã do quarto e último dia, duas mesas redondas. Uma dedicada ao diálogo entre as tradições religiosas numa perspectiva libertadora e à espiritualidade e respeito pela diversidade. A outra abordou as patologias a superar pela nova espiritualidade e a disposição de aceitar os novos paradigmas que se avizinham. Foi nesta mesa redonda que participou o teólogo madrileno, Juan José Tamayo (ver texto da sua comunicação ao lado).
8. A concluir, fica aqui uma síntese do grupo de trabalho sobre “espiritualidade laica”, animado pela Rede Europeia e não isento de polémica. Integraram o grupo os teólogos Hugo Castelli, Maria José Arana, José M.ª Vigil e Evaristo Vilar. Eis algumas pistas-força:
a. O cristianismo europeu está a atravessar uma grande crise, devido às transformações da consciência religiosa que já não nos permite “crer da mesma maneira”.
b. Uma primeira transformação é consequência do crescente pluralismo religioso. Depois de séculos a viver a experiência de um cristianismo como a “única religião verdadeira”, hoje a biodiversidade, também religiosa, é captada como um valor sagrado que não permite aqueles exclusivismos. Esta nova consciência está a afectar já a nossa forma de viver e de compreender a nossa espiritualidade e o nosso cristianismo.
c. Uma segunda grande transformação é causada pelo avanço dos saberes no seu conjunto. Na nova era do conhecimento em que estamos a entrar, a religião já não pode continuar a desempenhar os papéis que jogou nos milénios anteriores. A forma de expressão religiosa que a espiritualidade do ser humano adoptou nos últimos milénios está em crise. Precisa de outra forma de expressão. Obriga-nos a viver em estado de procura, assediados de novas perguntas ainda sem respostas.
d. Neste contexto, onde encontrar um núcleo comum sobre o qual assentar no futuro a nossa espiritualidade? Muitos de nós cremos encontrar esse núcleo na assim chamada regra de oiro: “Trata os outros como queres ser tratado por eles”, que é a mais universalizável colaboração entre as religiões e também o mais seguro caminho para a paz. Entre os cristãos, a regra de oiro expressa-se no imperativo categórico do amor-justiça libertador que, nas últimas décadas, se formulou como “opção pelos pobres”. Por aí passa, a nosso ver, o núcleo comum do que hoje seria a espiritualidade essencial.
e. Mais em concreto: para que tipo de espiritualidade caminhamos? A espiritualidade vai deixar de ser um campo separado da vida e submetido à religião, para converter-se numa dimensão profunda da vida em plenitude Será uma espiritualidade em geral desvinculada das religiões, laica, simples e profundamente humana. Talvez estejamos a ir para um “pós-cristianismo”, ou um “pre-cristianismo”, um fenómeno espiritual como o movimento de Jesus “antes do cristianismo”.
f. Se esta hipótese estiver certa, então deveremos propormo-nos os seguintes objectivos: reconhecer o pluralismo religioso existente como ponto de partida e via de superação de toda a forma de exclusivismo e de inclusivismo teológico confessional e como condição necessária para a aceitação da igual dignidade de todas as religiões. Deveremos tomar consciência da mudança epocal que se está a verificar na consciência do ser humano e no conjunto de todos os saberes, assim como da crise que está a afectar muito seriamente a plausibilidade da fé, para encaminharmos conjuntamente toda a humanidade para um lugar comum, prévio e para além das religiões, onde seja possível o encontro de todos os seres humanos, crentes ou não.
g. Em resumo: Diante da desigualdade e da exclusão que fazem alargar a brecha de separação entre os seres humanos, uma espiritualidade para “Outro mundo possível” deverá regressar à regra de oiro presente em quase todas as religiões, como base comum e impulso ético capaz de implantar uns mínimos de justiça e de liberdade, que dignifiquem a vida humana e a própria continuidade do planeta terra.
h. Em consequência, uma espiritualidade para “Outro mundo possível terá que estar sempre muito colada à vida e à terra, exercendo adultamente a sua liberdade e responsabilidade no mundo, sendo crítica com todos os poderes fácticos que pretendam tutelá-la e emancipando-se de todas as instâncias e instituições - mesmo as religiosas - que tentem condicionar/controlar a identidade do ser humano. Dito de outra maneira: Uma espiritualidade que não renuncie nunca à aventura de viver, e de viver em plenitude.
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Juan José Tamayo foi um dos intervenientes no Fórum
Sem dimensão política,
a espiritualidade desemboca no espiritualismo
- Conferência traduzida e condensada pelo Jornal Fraternizar
Aos meninos, às meninas de Kibera, em Nairobi, o subúrbio mais povoado de África - 800.000 pessoas - e símbolo da exclusão por amor da globalização neo-liberal, que me acolheram carinhosamente com a saudação de “Karibu” (= bem-vindo!) e com quem sonhei por umas horas um “outro mundo possível”. Oxalá o Fórum Mundial de Teologia e Libertação e o Fórum Social Mundial, celebrados estes dias na cidade de Nairobi, despertem a consciência dos governantes e gerem a rebelião dos excluídos.
Centrarei a minha intervenção na diversidade religiosa e cultural, em cujo horizonte é necessário re-pensar e viver a espiritualidade. Divido a minha exposição em três partes. A primeira refere-se às patologias da espiritualidade. A segunda analisa o fenómeno da diversidade religiosa e cultural como um facto, como uma necessidade e como riqueza do humano que deve ser potenciada. A terceira é a proposta de um novo paradigma de espiritualidade que apresenta quatro características: inter-culturalidade, inter-identidade, inter-espiritualidade e inter-libertação. Começo com uma breve introdução sobre a espiritualidade como dimensão fundamental do ser humano e a sua relação com outras das suas dimensões.
1. A espiritualidade, dimensão fundamental do ser humano
A espiritualidade é tão inerente ao ser humano como a sua corporeidade, a sua sociabilidade, a sua praxicidade. Possui autonomia relativa, já que “bebe” nas condições em que vivem os seres humanos: condições políticas, sociais, económicas, culturais, biológicas, ao mesmo tempo que as ilumina e transforma.
É necessário evitar dois perigos: a separação absoluta da espiritualidade das demais dimensões do ser humano, que desembocaria no dualismo e no espiritualismo; e a identificação com as outras dimensões, como um todo indiferenciado. A relação tem de ser dialéctica.
Não é possível vida espiritual sem vida real e histórica, como tão pouco é possível viver com espírito sem que este se faça carne.
2. Patologias da espiritualidade hoje
A espiritualidade vive hoje uma série de patologias que a desviam da sua função libertadora e transformadora. Debruçar-me-ei sobre seis dessas patologias: a) Espiritualidade entendida e praticada como negócio e sujeita ao assédio do Mercado; b) Espiritualidade manipulada politicamente por interesses espúrios ao serviço do Império e posta ao serviço dele; c) Espiritualidade vivida e praticada patriarcalmente nas religiões monoteístas; d) Espiritualidade uniforme e monolítica nos discursos identitários e nos monoteísmos; e) Espiritualidade institucional sem e(E)spírito; f) Privatização e despolitização da espiritualidade.
a) O negócio da espiritualidade
Actualmente, até a espiritualidade acabou por cair nas redes do Mercado, sujeitando-se às suas férreas leis. Tornou-se um objecto mais de consumo e de compra-e-venda. O Wall Street Journal revelava no ano 2000 que a espiritualidade movimentava no mundo mais de mil milhões de dólares. Por mim, acho que será ainda bem mais. Basta ver como a magia e a superstição, na sua versão religiosa e laica, se apoderaram da espiritualidade e a comercializam a preços de mercado, depois de a esvaziar da sua dimensão vital profunda. Aproveita-se da debilidade psicológica e cultural das pessoas e faz-se negócio até com os seus sentimentos que são o que elas têm de mais sagrado. Aumenta o número de clientes da “cultura dos horóscopos”, que se converteram numa religião de pessoas crédulas, carentes de sentido crítico diante da publicidade enganosa. Aumentam as consultas a videntes, cartomantes, adivinhos, bruxas. O preço que se paga é elevado, quer no plano económico, quer no plano humano. Estamos perante uma nova forma de simonia, ainda mais perversa que a descrita no Livro dos Actos dos Apóstolos (8, 14-24). Na religião do mercado, a espiritualidade converte-se em idolatria, já não ao bezerro de ouro, como nos tempos de Moisés, mas ao ouro do bezerro!
Também as religiões orientais acabaram convertidas no Ocidente em mais um negócio. O que, à partida, é um maravilhoso capital antropológico, sapiencial e místico da humanidade passou a ser uma forma de exploração de pessoas crédulas, sem capacidade de autodefesa perante as agressões de manipuladores sem escrúpulos.
Na religião do Mercado não há lugar para a gratuidade, nem para a com-paixão, muito menos para o com-partilhar.
Os traços comuns a toda a espiritualidade são os seguintes: o respeito pelo mistério, que é imanipulável, a gratuidade, o encontro gozoso com a natureza, a experiência comunitária da fé, a relação pessoal com a divindade e com o que nos transcende, a contemplação, o silêncio, a estética do sagrado, o fascínio pelo santo, o compartilhar, o reconhecimento do O(o)utro e suas consequências éticas, a com-paixão. Mas na religião do Mercado, não há lugar para nada disto. E no seio das religiões ou igrejas tradicionais do Ocidente, também não.
b) A manipulação da espiritualidade na religião do Império
A espiritualidade está sujeita ao assédio do Império, na nova religião que este construiu à sua imagem e semelhança. O Império apropria-se do Deus cristão como seu aliado e ao seu serviço, nomeadamente, da guerra. Apropria-se de Jesus de Nazaré, cuja personalidade subverte. Faz do cristianismo a sua religião oficial e converte-a numa espiritualidade de reconquista, de combate, de trincheira contra o Islão, considerado por Samuel Huntington, um dos ideólogos do Império, como “a civilização menos tolerante das religiões monoteístas”. O Deus do cristianismo acaba transformado num ídolo e a religião cristã numa mediação idolátrica. A manipulação de ambos acaba por legitimar os comportamentos bélicos do Império. O Deus da vida torna-se assim no Deus da morte. A espiritualidade do Império é por isso uma espiritualidade necrófila, semeia a morte e a destruição por toda a parte: na humanidade, na natureza e até na atmosfera.
c) Espiritualidade androcêntrica nas religiões monoteístas
As religiões estão configuradas patriarcalmente. E a espiritualidade institucional adquire feições patriarcais e androcêntricas. Na tradição cristã, o lugar das mulheres tem sido junto à cruz, a sua espiritualidade tem sido a do sofrimento redentor, sem nunca chegarem à ressurreição, quando, afinal, até foram mulheres as primeiras testemunhas do Ressuscitado. Ao contrário, a espiritualidade do varão é a do mérito, da autoridade, do êxito, do reconhecimento, da visibilidade, muito parecida com a do fariseu do evangelho. A das mulheres caracteriza-se pelo silêncio, abnegação, submissão, invisibilidade, o cuidado pela vida, a entrega, o serviço, à semelhança de Cristo que não veio para ser servido mas para servir.
d) Espiritualidade uniforme nos discursos
Hoje, predominam os discursos identitários, para fazerem frente ao “outro”, aos “outros”. São discursos que não assumem nem integram as diferenças culturais e religiosas de cada qual, mas fomentam o choque, o confronto, e estão na origem de novas guerras de religiões e de culturas.
Dois exemplos emblemáticos de discurso identitário fechado: um, cultural, e outro, religioso. O cultural está representado por Samuel Huntington que defende o choque de culturas e de civilizações como lei da História no século XXI: “A fonte essencial de conflito neste mundo novo não será fundamentalmente ideológica nem económica. As grandes divisões da humanidade e a fonte predominante do conflito serão de tipo cultural. As nações-Estado continuarão a ser os actores mais poderosos na política mundial, porém, os principais conflitos produzir-se-ão entre nações e grupos de civilizações distintas. O choque de civilizações dominará a política mundial. As linhas divisórias entre civilizações serão as frentes de batalha do futuro”.
O discurso identitário religioso está representado pelo documento Dominus Iesus, publicado em 2000 pela Congregação para a Doutrina da Fé. O seu objectivo é duplo: fixar nitidamente a ortodoxia católica na relação com as outras religiões, segundo o velho axioma “Fora da Igreja não há salvação”, apresentando Jesus de Nazaré como salvador único e universal (cristologia e eclesiologia excluentes); e condenar as teologias do diálogo inter-religioso e da complementaridade do cristianismo e das religiões, defendendo a superioridade daquele sobre estas. “É, portanto, contrário à fé da Igreja a tese do carácter limitado, incompleto e imperfeito da revelação de Jesus Cristo, que [assim] seria [apenas] complementar à que se encontra nas outras religiões”.
Os discursos identitários, instalados com frequência nas cúpulas das religiões e da política, dão lugar a uma espiritualidade uniforme, fechada sobre si mesma, sem comunicação com outras espiritualidades e experiências.
e) Espiritualidade institucional sem espírito
As religiões tendem a preservar as instituições de toda a ameaça externa e interna e a blindá-las frente a toda a crítica. Pensam que assim asseguram melhor a sua estabilidade e garantem a sua sobrevivência. Esquecem-se com frequência da mensagem original, do espírito dos seus fundadores e do contexto em que todas elas surgiram. Resultado: Ganha corpo uma espiritualidade cheia de poder, mas sem espírito, dotada de disciplina rígida mas sem dinamismo, afirmativa na sua autoridade mas sem liberdade, firme na sua estabilidade institucional mas sem profecia.
f) Privatização e despolitização da espiritualidade
Há hoje uma tendência cada vez mais acentuada para dividir a realidade em dois planos perfeitamente diferenciados e incomunicados: público-privado, sagrado-profano, material-espiritual, celeste-terrestre, humano-divino, mito-história. Como justificação de tal separação, costuma citar-se, fora do contexto e com forte carga ideológica, o texto evangélico: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Deduz-se daqui que o divino subsiste fora do humano e que o lugar natural da espiritualidade é a alma. Eis aí o grau máximo de privatização, despolitização e espiritualização.
Ora, sem dimensão política, a espiritualidade desemboca no espiritualismo, e sem espiritualidade não necessariamente religiosa a política converte-se em razão de Estado e passa a ser pura gestão administrativa rotineira e técnica eleitoral, que existe para legitimar a ordem estabelecida e renuncia por completo à sua função libertadora.
3. Diversidade religiosa e cultural
A diversidade é uma dimensão do humano e constitui a verdadeira riqueza da humanidade. Está na natureza das coisas, é um valor a potenciar. Mais, é a perfeição do universo. A diversidade oferece uma riqueza de possibilidades e possui um grande potencial criativo que está confrangedoramente audente no pensamento único e na uniformidade.
O mesmo se passa no terreno religioso. Vivemos num pluriverso religioso, não num universo religioso. A história das religiões mostra a grande criatividade mítica, sapiencial, ritual, ética e simbólica da humanidade. Mostra que existem múltiplos e variados universos religiosos, cada qual com a sua especificidade cultural em constante intercâmbio e em reformulação dos seus respectivos patrimónios culturais.
Demos dois exemplos: O subúrbio de Kibera, aqui em Nairobi, e o meu próprio país, Espanha. Em Kibera, existem mais de 300 denominações religiosas e 50 etnias e não costuma haver conflitos por razões religiosas. Em Espanha, país de religião e de cultura únicas durante séculos, a católica, devido à expulsão dos judeus e dos muçulmanos e à perseguição do protestantismo, é hoje, felizmente, um caudal fecundo de culturas, religiões e movimentos espirituais em diálogo.
A diversidade religiosa não representa uma ameaça contra a vivência e o desenvolvimento da própria religião. Pelo contrário, é uma vantagem.
A Carta aos Hebreus, da Bíblia cristã, afirma que noutras épocas Deus falou de múltiplos modos através dos profetas e, finalmente, o fez por Jesus Cristo. O Alcorão refere de maneira insistente as diferentes revelações de Deus, desde Abraão a Maomé.
Mas será que a diversidade religiosa conduz ao relativismo da religião e à perda da prática religiosa? Assim pensava o cardeal Ratzinger e ainda pensam alguns dirigentes eclesiásticos. Mas não é verdade. Diversos estudos sociológicos coincidem em que os países e as cidades com maior grau de diversidade religiosa são também os que possuem os índices mais altos de crença e de prática.
4. Novo paradigma de espiritualidade
O nosso mundo e as nossas sociedades requerem um novo paradigma que responda a quatro aspectos hoje fundamentais na espiritualidade:
a) A inter-culturalidade, como sinal dos tempos e imperativo ético.
O choque de civilizações não é uma lei da história humana, tão pouco um sinal do nosso tempo e menos ainda uma espécie de imperativo ético. É uma patologia que resulta duma construção ideológica do Império, para que este continue a dominar o mundo, travestido no papel de “grande irmão”. O sinal dos tempos e o imperativo ético são a inter-culturalidade que, por sua vez, dá lugar à inter-identidade e à inter-espiritualidade.
A inter-culturalidade parte do valor e da dignidade de todas as culturas, da não superioridade apriorística duma sobre as outras. É um antídoto contra o fundamentalismo político, cultural e económico. Além de tolerância, a inter-culturalidade implica comunicação fluida entre grupos diferentes e convivência dinâmica. Implica também assumir os conflitos que ela possa gerar e por vezes gera. Do ponto de vista moral, a inter-culturalidade implica chegar a uns mínimos éticos comuns para uma convivência harmónica. Constitui uma experiência de abertura respeitadora do “outro”, dos “outros”.
b) A espiritualidade no diálogo de civilizações
Este diálogo faz-nos compreender que o “eu” é antes de mais relação com o outro,o “tu”, com todos os “t(T)u”. Leva-nos a perceber que o trabalho não é tudo na vida. Há outros valores fundamentais, como a festa, o jogo, a dança e questiona o crescimento cego, desligado do bem e da felicidade de todos os seres humanos. Exige uma política de “fins” e não apenas de “meios”. Descobre a dimensão nova da fé na política e na cultura e vive a liberdade como participação de cada pessoa no acto criador.
Uma espiritualidade assim entendida e vivida pode livrar-nos do “suicídio planetário” que se manifesta nos seguintes fenómenos: crescimento da desigualdade entre Norte e Sul e, dentro dos países desenvolvidos, entre os que têm e os que não têm; natureza em vias de extinção, devido à contaminação e ao esgotamento dos recursos; estilo de vida ocidental insustentável e não universalizável; lógica da vida sujeita à lógica do mercado. “Uma revolução necessita mais de transcendência do que de determinismo” (Garaudy).
c) Inter-identidade
Não existem identidades puras, incontaminadas, nem religiosas, nem culturais. A identidade constrói-se em diálogo com e em abertura com outras identidades. Em constante dialéctica de encontro e de enfrentamento. “A minha própria identidade depende, de modo crucial, das minhas relações dialógicas com os demais” (C. Taylor).
A Bíblia hebraica e a Bíblia cristã são um bom exemplo desta relação dialógica, crítica e reciprocamente fecunda entre helenismo e judaísmo, entre pensamento grego e cristianismo, entre Atenas e Jerusalém.
d) A inter-espiritualidade como alternativa
Na origem das religiões, há uma experiência mística, vivida na sua radicalidade pelos fundadores e pelos primeiros seguidores que brota do encontro com o mistério. O hinduísmo remonta aos rishis, os sábios do bosque. O Dharma budista arranca do momento da iluminação de Siddharta Gautama, o Buddha. O judaísmo tem a sua origem na revelação de Iahvé aos patriarcas e às matriarcas de Israel, Abraão, Isaac e Jacob, a Moisés o libertador e à sua irmã Míriam, aos profetas e profetisas críticos do culto e defensores da justiça e da subjectividade da fé. O cristianismo nasce do encontro de Jesus com Deus, a quem num gesto de confiança chama Abbá. A origem do Islão encontra-se na revelação de Alá a Maomé e na experiência mística do profeta. É também a mística que constitui o elemento de inspiração e de dinamismo das religiões indígenas de Ameríndia e da religião africana.
O problema é que a religião e a cultura dominantes tentaram sufocar e desacreditar a experiência mística nestas religiões. “A cultura dominante admite os indígenas e os negros como objectos de estudo, mas não os reconhece como sujeitos de história; os indígenas têm folclore, não cultura; praticam superstições, não religiões; falam dialectos, não línguas; fazem artesanato, não arte” (Eduardo Galeano)
A mística como lugar de experiência inter-religiosa e inter-espiritual é incompatível com os dogmatismos instalados nas religiões e constitui um antídoto contra os fundamentalismos e previne o choque de civilizações e de culturas.
e) Inter-libertação
É necessário realizar a grande revolução dos valores que comece pelo próprio ser humano e se estenda até às estruturas. Uma revolução que implica: a libertação da nossa riqueza e bem-estar sobreabundntes e a opção por uma cultura do com-partilhar; a libertação da nossa prepotência e a opção pela virtude que se afirma na debilidade; a libertação do nosso consumo que nos leva a consumir-nos até a nós próprios, e a opção pela austeridade; a libertação do nosso domínio sobre os outros e a natureza, e a opção por umas relações assimétricas e não opressivas; a libertação da nossa apatia diante da dor humana, e a opção pela misericórdia com as pessoas que sofrem; a libertação da nossa pretensa inocência ética e da nossa pretensa neutralidade política, e a opção pelo compromisso na vida política, nos movimentos sociais e nas ONGs; a libertação da nossa mentalidade patriarcal e machista, e a opção pela igualdade não clónica de homens e mulheres; a libertação de todo o poder opressor, e a opção pela amizade, o diálogo, a convivência, a gratuidade, a proximidade, a fraternidade-sororidade; a libertação de espiritualismos evasivos, e a opção pela “santidade política”, como reclama Dietrich Bonhoeffer.
f) Para uma espiritualidade feminista
Na nova espiritualidade, a mulher redescobre-se como sujeito e não aceita mediações clerico-patriarcais ou hierárquico-institucionais que, no fundo, pretendem negar a sua subjectividade.
O lugar da nova espiritualidade é o mundo sem fronteiras, a natureza, a vida como dom e tarefa, a realidade sem dualismos, numa palavra, todos os recantos onde respirem seres humanos e o E(e)spírito. É uma espiritualidade sapiencial, política, não intimista, activa, que levanta a voz e luta a favor das pessoas indefesas e da natureza. Por isso, é uma espiritualidade rebelde e inconformista com o Sistema excluente e caracteriza-se por uma profunda inspiração ético-práxica, consciente de que uma espiritualidade sem ética é vazia e uma ética sem espiritualidade é cega.
A nova espiritualidade expressa-se através da linguagem dos símbolos, dos corpos, dos sentimentos, das paixões, da experiência. É, enfim, é uma espiritualidade ecológica.
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