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DESTAQUE 1
Paganismo católico regressa a São João de Ver
Com a morte, há um ano atrás, do Padre Caetano que foi pároco de S. João de Ver, pode dizer-se que morreu também naquela freguesia do concelho de Santa Maria da Feira um modelo outro de Igreja, perseverantemente implementado e praticado por ele, ao longo de mais de 30 anos, e que indubitavelmente tinha muito mais a ver com o Concílio Vaticano II e com o Evangelho de Jesus, do que com o Catolicismo religioso-pagão, infelizmente ainda hoje em vigor na generalidade das nossas paróquias católicas romanas. O novo pároco, Padre António Pinto da Costa, de 40 anos de idade, que fez questão de só tomar posse da paróquia depois da morte do Padre Caetano, parece que nem pode ouvir falar no nome do seu antecessor e mostra-se apostado em correr com todos os paroquianos que activamente fizeram Igreja com ele, nomeadamente, os catequistas mais preparados e mais maduros na Fé, e que, desde então, de modo algum estão dispostos a desistir daquele modelo conciliar de Igreja que, na década de sessenta do século passado, o próprio Espírito Santo quis que fosse acolhido e assumido por toda a Igreja católica romana. E não é que neste seu cego empenho em fazer regressar a evangelizada paróquia de S. João de Ver ao tradicional catolicismo religioso-pagão e aos cultos em honra dos seus alienantes e fúteis deuses e deusas, o novo pároco conta com o incondicional apoio da Diocese do Porto, enquanto que os amigos e companheiros do agora definitivamente ressuscitado Padre Caetano são completamente votados ao ostracismo? Jornal Fraternizar passou por aquela freguesia do concelho de Santa Maria da Feira, ouviu pessoas, e pode testemunhar que, nesta altura, a “guerra” do novo pároco contra os amigos e companheiros, elas e eles, do Padre Caetano está ao rubro, o que leva muitos deles a chorar de tristeza e de impotência e, os mais fragilizados, a ter até de recorrer a especialistas em psiquiatria para assim conseguirem superar depressões e outros distúrbios graves de saúde. O que perfaz um crime de lesa-Fé cristã católica e de lesa-Igreja que urge denunciar, combater e, sobretudo, ajudar a superar.
Muito provavelmente, o novo pároco nem será o principal responsável pela grave situação que, logo de entrada, acabou por criar e teimosamente mantém entre a população da freguesia, para gáudio de todos aqueles residentes que, durante o longo mandato do Pe. Caetano, nunca se deixaram evangelizar por ele e sempre lhe moveram uma guerra sem quartel, ora surda, ora declarada. Muito provavelmente, o novo pároco acaba por ser uma vítima mais duma Igreja católica romana que, apesar de ter visto acontecer no seu seio o Concílio Vaticano II, ainda não foi capaz, nomeadamente ao nível da sua hierarquia, de se lhe abrir de par em par e de o pôr alegremente em prática.
O Concílio quis ser e foi na Igreja um novo Pentecostes que deveria refundá-la de raiz e fazê-la passar do catolicismo pagão do Império romano ao Cristianismo de Jesus, o de Nazaré, do qual ela, numa traição pior do que a de Judas, ostensivamente se afastou, quando, no início do século IV, se aliou ao imperador Constantino e, depois, aceitou transformar-se na religião oficial e única de todo o Império. Foram 16 séculos de Cristandade que, duma assentada, deveriam ter sido sepultados no Concílio Vaticano II, para que em seu lugar nascesse o modelo de Igreja comunidade de comunidades, Igreja-Povo-de-Deus, de irmãs/irmãos, radicalmente iguais e diferentes, inteiramente ocupada, toda ela, no serviço maiêutico à Humanidade, de resto, o único tipo de culto que agrada a Deus, o de Jesus.
O problema é que nem a Cúria romana aceitou essa revolução copernicana concretizada, pelo menos, ao nível dos documentos aprovados no Concílio Vaticano II, com destaque para a Constituição Lumen Gentium, que o Espírito Santo fez acontecer no interior da velha Igreja católica, numa altura em que até o mundo civil, felizmente cada vez mais autónomo e secular, já desacreditava dela por completo e a via mais como objecto de museu do que como Igreja viva e interveniente na História.
Ora, se nem a Cúria romana, com o papa à cabeça e os cardeais das diferentes Congregações, fez a páscoa ou passagem do Catolicismo religioso-pagão ao Cristianismo de Jesus, pelo contrário, tudo tem feito, desde o Concílio para cá, para prolongar no tempo o velho modelo de Igreja Cristandade, é então (quase) inevitável que os novos padres, como o Pe. António Costa, formados neste contexto eclesiástico anti-Vaticano II, se comportem sobretudo como sacerdotes pagãos ao jeito da velha Cristandade e, por isso, em lugar de se assumirem como presbíteros da Igreja na imprescindível missão de evangelizar as populações, a tempo e fora de tempo, limitam-se praticamente a fazer-lhes todas as suas vontades, a satisfazer-lhes todas as suas vaidades e a alimentar-lhes todos os seus vícios religioso-pagãos.
E quem é que ainda não sabe que as nossas populações, de tradição católica, são todas naturalmente religioso-pagãs? Do que elas gostam não é de Jesus nem da Boa Notícia de Deus que ele nos trouxe e por causa da qual foi crucificado pelo Império romano, a pedido dos sacerdotes do seu tempo e país, muito menos gostam de Deus Mãe/Pai que Jesus nos revelou mediante práticas radicalmente libertadoras, igualitárias, sororais/fraternas e politicamente transformadoras do mundo e da vida. Do que as populações gostam é de religião nos santuários; de fazer promessas e de as cumprir de forma ostensiva; de sacrifícios, os mais aberrantes; de peregrinações aos santuários de nomeada; de pagar missas rotineiras pelos seus mortos, todas bem distantes de quaisquer práticas solidárias; de caridadezinha em lugar de Justiça social; de zelar altares de imagens mortas de santos e santas; de gastar dinheiro em flores caras para enfeitar altares e andores que depois levam a passear pelas ruas e caminhos da terra; de afrontar os pobres e humilhados da terra com o estoiro dos foguetes das suas vaidades e da sua ostentação. Do que as populações gostam é dos deuses e das deusas imaginados por elas, com os quais iludem os seus medos, as suas mediocridades, as suas alienações e os seus grandes e pequenos vícios, e também os seus egoísmos e as suas ambições desmedidas.
Um Deus, como o de Jesus, que “puxe” por elas, que as faça nascer de novo, do Espírito, que as meta no mundo e na História, que faça delas populações com causas, que as retire do sagrado e as meta até aos ossos no profano, comprometidas até ao sangue na transformação do mundo, é manifestamente impopular, e contará sempre com poucos adoradores entre as populações católicas romanas. Desde que a Humanidade é humanidade, Deus Vivo, anunciado e revelado pelos seus profetas, particularmente por Jesus e pelos pobres da Terra, nunca pôde contar com muitos adoradores entre elas. As populações sempre preferem correr para os deuses e as deusas dos cultos do Paganismo e relacionar-se com eles e com elas, como quem faz negócio, em dias, horas e locais especiais, exclusivamente destinados a esse fim. A religião das populações resume-se a isso, ao longo de cada ano. E, em cada novo ano, tudo se repete como nos anos anteriores. Sempre nos mesmos dias do mês, nos mesmos locais, com os mesmos ritos, num ciclo de natureza que não pode ser quebrado, não vão os deuses e as deusas zangarem-se e cuspirem toda a sua fúria contra elas.
Os párocos católicos que as populações das freguesias, particularmente das aldeias do interior, ainda não dispensam existem, no entender delas, para garantirem e alimentarem este tipo de coisas religioso-pagãs. Elas não esperam deles outra coisa, outro serviço. O que mais querem é que eles sejam sacerdotes, na continuidade dos sacerdotes do Paganismo religioso, que presidam a todos os seus cultos religiosos. De modo algum, as populações estão dispostas a tolerar que os párocos sejam verdadeiros presbíteros da Igreja, com a missão prioritária e quase exclusiva de lhes anunciar o Evangelho de Jesus, a Boa Notícia de Deus Vivo que, segundo o dizer-revelar de Jesus - que veio directamente do seu seio e por isso sabe bem do que fala - não gosta nada destas coisas próprias do religioso-pagão, mas só de misericórdia, de perdão, de justiça, de partilha dos bens, de política que transforme e humanize o mundo e, sobretudo, gosta de ver cada pessoa, cada população, cada terra, cada povo crescer em estatura, em idade, em sabedoria e em graça, até sermos capazes de assumir as nossas próprias vidas como se Ele não existisse. Em suma, o que as populações mais querem é que os párocos sejam os sacerdotes sempre à mão de semear para o seu Catolicismo religioso-pagão, para os seus cultos públicos sempre os mesmos. Nem sequer querem que eles exerçam uma profissão secular, da qual vivam como os demais cidadãos. E estão, até, dispostas a pagar-lhes o que for preciso hoje, os novos párocos exigem salários de executivo e carros de grande cilindrada para poderem correr, como baratas tontas à roda da chama duma vela, duma paróquia para outra, já que são párocos de duas, três, quatro, cinco ou mais paróquias, uma verdadeira loucura eclesiástica, a que nenhum bispo diocesano se atreve a pôr cobro! nem que, para isso, tenham de privar-se dos bens essenciais à sua própria subsistência e à dos seus filhos e filhas. Pode-lhes faltar o pão para a boca e os estudos para os filhos, a casa digna e saudável para a família viver, os cuidados com a saúde dos membros da sua família, mas o que de modo algum pode faltar são os cultos nos templos e os sacerdotes bem pagos que a eles presidam. O medo é assim. E o medo dos deuses e deusas é mil vezes pior. É gerador de posturas irracionais que as sociedades estranhamente suportam e até estimulam, em nome da liberdade religiosa! E medo, muito medo, é o que continua por aí a fazer girar o mundo das populações e a mantê-las em movimento, mas sempre como escravas acorrentadas dos deuses e das deusas, nunca como filhas, filhos adultos de Deus, responsáveis pelo mundo e pela História.
O Pe. Caetano, pároco de S. João de Ver, durante 33 longos anos, tentou e conseguiu, em grande parte, ser presbítero da Igreja, mais do que sacerdote do catolicismo religioso-pagão que se pratica por essas paróquias católicas romanas além. Formou consciências. Fez crescer as pessoas em lucidez e em dignidade. Promoveu a cidadania da Fé cristã jesuânica entre os seus concidadãos, concidadãs. Não cuidou do templo de pedra, mas do templo vivo que é cada baptizado/crismado. Foi parteiro de mulheres e homens novos, audazes, metidos no mundo, nos sindicatos, nos partidos políticos, nas associações de base, nas associações de pais/mães. Combateu o bom combate, na linha inaugurada e consumada por Jesus. Evangelizou as populações e foi evangelizado por elas, sobretudo pelos jovens, que nunca deixaram que ele se fossilizasse, mesmo quando os anos já lhe pesavam. Numa palavra, levou longe a sua audácia no interior da Igreja do Porto e pagou o preço, pois com isso granjeou para ele o distanciamento da hierarquia, inclusive do bispo da diocese e de alguns colegas no presbiterado, entre os quais o que veio a ser nomeado seu sucessor na paróquia. E também de uma parcela da população da freguesia que não lhe perdoou por ele lhe dar o Evangelho de Jesus, em lugar de foguetes e vaidades de todo o tipo.
Ao contrário dele, o pároco António Costa que lhe sucedeu há um ano e que está manifestamente empenhado em apagar a memória dele e tudo o que possa perpetuar o seu nome e a sua influência evangélica entre a população, tem já o mundo a seus pés, a começar pelos que mais combateram a acção pastoral do Pe. Caetano e a culminar na cúria da diocese, bispo incluído.
Aos cristãos de S. João de Ver, elas e eles, que cresceram na Fé jesuânica, graças ao ministério presbiteral do Pe. Caetano cabe, agora, a difícil missão de levarem por diante a Igreja conciliar que ele tão bem entendeu e procurou fazer acontecer entre a população da freguesia. Sem sectarismos estéreis, mas também sem cedências, numa busca ininterrupta de diálogo que não dispensa a saudável confrontação de pontos de vista e de projectos. Alimentem-se do Evangelho e do Espírito de Jesus, em redor de mesas partilhadas, acompanhadas, sempre que possível, de comidas sororais/fraternas. Sempre de olhos postos e ouvidos e pés no mundo, na sociedade, nas alegrias e nas esperanças, nas dores e nas angústias das populações, mais do que no que o actual pároco António Costa possa fazer e dizer, ou deixar de fazer e de dizer. Até que também ele, finalmente, se converta ao Evangelho de Jesus e aos pobres. E passe a viver longe dos templos e dos altares, como presbítero da Igreja do Porto.
Querido Padre Caetano
Conheço-te desde que fui pároco de Paredes de Viadores, no Concelho de Marco de Canaveses, a paróquia que me foi confiada, logo após ter sido expulso de capelão militar da Guerra Colonial, na Guiné-Bissau. Tu residias e trabalhavas no vizinho Concelho de Baião. Dirigias então um pequeno jornal regional que incomodava certas consciências adormecidas e certas vidas demasiado acomodadas, entre as quais as vidas de alguns clérigos da região. Depressa, soubeste de mim e do Espírito evangelizador que me animava. E, enquanto uma significativa parte dos meus colegas párocos do concelho começaram logo a hostilizar-me, devido à minha alegria e à minha liberdade no exercício do ministério presbiteral, totalmente gratuito e solidário com os mais pobres e bem centrado no Evangelho de Jesus que, como presbíteros da Igreja, haveremos de anunciar, oportuna e inoportunamente, tu, pelo contrário, fizeste-te logo próximo de mim e até me convidaste a escrever regularmente no jornal que dirigias, o que passei a fazer com muito gosto. Graças a ti, passei também a ter acesso a notícias e a iniciativas então proibidas e clandestinas. Conheci músicas e canções que a Pide e a Censura não toleravam. E sempre tive em ti um companheiro e um irmão que me apoiava e estimulava a permanecer fiel ao Espírito de Deus e ao Evangelho de Jesus. Tornaste-te desde então uma referência na minha vida, uma luz que nunca mais deixou de brilhar e de me acompanhar, mesmo depois que fui obrigado pelo Administrador Apostólico da Diocese a deixar a paróquia, ao fim de apenas 14 meses. Já então eras um padre/presbítero saudavelmente secular, mais longe dos templos e dos altares do que metido na sacristia, um especialista nos assuntos do Mundo, particularmente dos empobrecidos, dos humilhados, dos Ninguém, dos Sem-Terra e Sem-Futuro. Algumas das jovens da minha paróquia de Paredes de Viadores chegaram a frequentar com proveito a OBER, Obra do Bem-Estar Rural que ajudaste a fundar no Concelho de Baião e que dinamizaste de forma libertadora, não paternalista, e nunca mais o futuro delas foi igual. Felizmente.
Mais tarde, já como pároco de São João de Ver, e eu como pároco de Macieira da Lixa, e depois de, nessa qualidade, ter sido preso pela Pide e julgado-absolvido no Tribunal Plenário do Porto, ainda tiveste a audácia de me convidar para pregar na tua paróquia, mais propriamente, na cripta da igreja paroquial ainda longe de estar concluída. Não mostravas pressa em prosseguir as obras da construção do templo. Toda a tua preocupação ia para o desenvolvimento integral das populações. O que mais desejavas era que elas abrissem os olhos da consciência e que entendessem/transformassem o mundo em que um dia haviam nascido. Aceitei com grande alegria o convite e vivi então contigo cerca de uma semana na casa paroquial. A pregação tinha lugar à noite, depois do jantar e, durante uma parte do dia, eu andava de lugar em lugar a ouvir as pessoas e, na outra parte, recolhia-me num lugar solitário a escutar e a escrever o que o Espírito queria que eu pregasse. Foram pregações arrojadas, naqueles tempos de censura e de medos, de liberdade vigiada e de denúncias pidescas, com muitas centenas de pessoas que vinham propositadamente de muitas freguesias das redondezas, não apenas de São João de Ver. Tais pregações valeram-me, então, da parte do Bispo da diocese, D. António Ferreira Gomes, um inesperado inquérito diocesano, em tudo semelhante aos que a Pide me havia feito antes da prisão política, para apurar a ortodoxia de algumas das minhas afirmações; e, depois, na sequência dos resultados apurados, a proibição do Bispo de eu pregar fora da paróquia, a não ser com expressa autorização dele, pedida por escrito, caso a caso! E tudo, tu aguentaste em comunhão comigo, com audácia e com solidariedade inquebrantáveis. Tornamo-nos ainda mais irmãos e companheiros, centrados no essencial que é o Evangelho de Jesus. E, quando, já depois de ter sido retirada a paróquia de Macieira da Lixa e de ter sido "promovido" à actual situação de padre sem ofício pastoral, avancei com a criação do Jornal Fraternizar, foste dos primeiros a querer que ele fosse vendido na tua paróquia, à saída da missa dominical.
Agora que já integras aquela incontável multidão de pessoas definitivamente vivas, no Deus de Jesus que é de vivos e não de mortos, choras, certamente, ao constatar que o teu sucessor na paróquia está a destruir por completo o que tu edificaste com tanto suor e lágrimas. E que vais fazer?
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DESTAQUE 2
Há “detractores de Fátima”?
Depois do último 13 de Maio, o director da Voz Portucalense escreveu um "Editorial" a convidar "os detractores de Fátima" a rever as suas posições. O director do Jornal FRATERNIZAR leu e comentou no seu sítio na internet. É esse comentário do Pe. Mário, que também atinge o actual Bispo Manuel Clemente, que aqui se publica como Destaque 2. A reflexão, por demais oportuna, já fazia falta. Porque há católicas, católicos que felizmente não crêem em Fátima, nem vão com a sua senhora/deusa e nem sequer os Bispos das respectivas dioceses parecem ter isso em conta. Leiam e meditem. Comentem, se quiserem.
“Admitamos que nem sempre se pautam pelo equilíbrio as manifestações de fé que ali se evidenciam. Mas os detractores do fenómeno de Fátima necessitam de rever as suas posições. E sobretudo ler os sinais dos tempos, à luz da fé, da interpretação dos fenómenos sociológicos e de uma necessária busca do sentido profético dos acontecimentos. E sobretudo, com o olhar da humildade intelectual e com a abertura de coração ao sentido do mistério”. É com estas palavras que termina o “Editorial” intitulado “Religiosidades” da edição de 16 de Maio 2007 do semanário da Diocese do Porto, VP Voz Portucalense, assinado pelo respectivo director.
O que mais me leva aqui a falar/protestar acerca do teor deste Editorial é o rótulo de “detractores” com que M. C. F. mimoseia os críticos e os descrentes do fenómeno de Fátima. E também o facto de, no corpo do seu texto, se referir por duas vezes ao que ele chama “a manifestação de Maria”, a propósito do que se diz ter ocorrido no dia 13 de Maio de 1917 na paróquia de Fátima.
Li o texto e todo eu estremeci por dentro de indignação com estas posições. Porque trata-se de um órgão oficioso da Igreja do Porto que, de algum modo, reflecte posições oficiais/institucionais da Diocese. De resto, todas elas directa ou indirectamente avalizadas pelo próprio Bispo Manuel Clemente que, neste momento, preside a esta nossa Igreja local, concretamente, ao participar com assumida visibilidade nas cerimónias do último 13 de Maio em Fátima, juntamente com outros bispos portugueses e estrangeiros, sem, em momento algum, ter querido saber para nada dos seus irmãos católicos, das suas irmãs católicas que e nalguns casos é público e notório de modo algum se revêem quer naquelas afirmações do Editorial, quer nas posturas fatimistas do Bispo. E que, em nome da Fé cristã católica que professam e vivem, se recusam convictamente a crer no tão badalado fenómeno de Fátima, sem que, entretanto, a sua pertença à Igreja católica e a sua Fé cristã católica saiam minimamente beliscadas, muito pelo contrário.
Toda a gente minimamente informada sabe hoje que o fenómeno de Fátima não faz parte da Fé cristã católica, muito menos, da Fé cristã jesuânica, que há-de ser a Fé da Igreja discípula de Jesus, o de Nazaré. Aliás, é a própria hierarquia da Igreja católica quem publicamente já o reconhece e confessa. O problema é que, depois, como se vê por este exemplo, ai daqueles membros da Igreja católica que não alinharem em toda esta manifestação pública de religiosidade e até se permitirem criticá-la publicamente. Cai o Carmo e a Trindade. São, como aqui se constata, rotulados de “detractores”, senão mesmo de outras coisas muito mais feias.
Ora, como é que uma manifestação de religiosidade popular que não faz parte do núcleo central da Fé cristã católica passa, de repente, a ser o indicador mais decisivo de quem, pelo menos, em Portugal é católico ou não? Não é isto um desvario? Não estamos perante uma situação patológica? Não mostra que somos uma Igreja gravemente enferma e em estado de pecado? E que estamos a tornar-nos numa Igreja esquizofrénica? Dar tanto valor ao que não presta, ao que é acessório, em detrimento do que é essencial, é pastoralmente saudável? Não é ir a reboque da religiosidade popular, em lugar de, oportuna e inoportunamente, evangelizarmos as populações ainda em estado de paganismo religioso, e de que o fenómeno de Fátima entre nós é a manifestação mais conseguida? Será que já esquecemos que as populações e os povos são naturalmente religiosos, isto é, naturalmente pagãos? E não foram a religião e os religiosos que mataram Jesus, constituído por Deus Vivo pela sua Ressurreição dos mortos como o Caminho a Verdade e a Vida de todos os seres humanos, crentes ou não? E porque o mataram? Não foi porque perceberam que ele não só não canonizou o paganismo religioso que se faz nos santuários, desde que a humanidade é humanidade, como até o denunciou como via de perversão humana? Ir a reboque do fenómeno de Fátima, só porque ele movimenta multidões de pessoas e milhões de euros por ano para os cofres dos gestores do santuário é um correcto comportamento pastoral? Alguma vez o paganismo religioso foi caminho de libertação e de salvação da Humanidade? Alguma vez foi via de saúde das pessoas e dos povos? Não é a perversão dos seres humanos e do santo Nome de Deus? Esquecemo-nos de que Jesus veio com a Boa Notícia de Deus e que não é pela via do paganismo religioso que os seres humanos hão-de ir, se quiserem crescer em saúde, em sabedoria e em graça?, isto é, se quiserem crescer em humanidade, em sororidade/fraternidade e em protagonismo social e político? Como Igreja, discípula de Jesus, podemos ir a reboque do paganismo religioso que as multidões não evangelizadas insistem em praticar ao seu jeito e segundo usos e costumes dos antepassados? Não temos, ao contrário, de lhe resistir e de ousar viver e anunciar a alternativa libertadora que é a via paradigmaticamente vivida e anunciada por Jesus, o Cristo de Deus e dos pobres? Não é para viver e anunciar esta via de Jesus que o Espírito Santo surpreendentemente nos convocou e constituiu como Igreja no mundo entre as populações e nos enviou em missão a todos os povos? Deixarmos as populações e os povos entregues à sua religiosidade pagã, ao seu paganismo religioso, sem audácia para lhes anunciarmos o Evangelho de Deus que Jesus nos deu a conhecer com a sua prática e a sua palavra é postura digna da Igreja que somos? Se nos limitamos a ir a reboque das populações e dos povos naturalmente religiosos e pagãos, o que fazemos de extraordinário? Não é o que sempre fizeram os sacerdotes de todos os tempos e culturas, como os sacerdotes de Baal, no tempo do profeta Elias e os sacerdotes do tempo do apóstolo Paulo? Não foi o que fez também o próprio sacerdote Aarão, no deserto, durante a prolongada ausência de Moisés no Monte Sinai?
Por mim, gostaria de ver o director do semanário oficioso da Igreja do Porto a questionar-se e a questionar a Igreja que está no Porto sobre o fenómeno de Fátima, nomeadamente, sobre o que o último 13 de Maio de 2007 pôs a nu. O que poderá significar toda aquela gente em Fátima? E todo o crescente envolvimento de certos católicos, jovens incluídos, em torno de Fátima? Cerca de meio milhão de pessoas em Fátima é motivo de satisfação pastoral, ou motivo de preocupação pastoral? Afinal, se nos mostramos satisfeitos com o paganismo religioso de Fátima, o que fazemos de extraordinário como Igreja cristã católica em Portugal? A verdade é que chegamos ao desplante de dizer, desde o cardeal Cerejeira e com ele, que não foi a Igreja que impôs Fátima às populações e aos povos do mundo, foi Fátima que se impôs à Igreja; e dizemos isto com satisfação. Não deveríamos, antes, constatar o facto com vergonha? Aceitar semelhante facto como exemplar não é reconhecer que vamos a reboque do paganismo religioso das populações e dos povos? Mas se fosse para irmos a reboque do paganismo religioso das populações e dos povos, acham que o Espírito Santo nos convocava e constituía como Igreja em nome de Jesus o Crucificado pelos sacerdotes e pelo santuário de Jerusalém, já então convertido em covil de ladrões? Acham, sobretudo, que o Espírito Santo teria feito acontecer Jesus no meio de nós e connosco? Se o Espírito Santo convocou e constituiu a Igreja, não é para que ela passe a anunciar oportuna e inoportunamente outra via, concretamente a via de Jesus, às populações e aos povos naturalmente seguidores do paganismo religioso que herdaram dos antepassados? Poderá haver na Igreja que se reúne em nome de Jesus e em sua subversiva e conspirativa memória quem tenha dúvidas a este respeito?
Saibam que correr para Fátima é mais do mesmo, dentro do paganismo religioso, é desviar-se perigosamente do Evangelho de Deus, da Boa Notícia de Deus que Jesus, o de Nazaré, fez presente entre nós e connosco com a sua prática libertadora e sanadora e com a sua palavra cheia de sabedoria e de Espírito Santo. Quem disser o contrário mente.
Porém, o que sabemos, desde o início do Cristianismo de Jesus, é que semelhante Boa Notícia de Deus não foi acolhida nem pela maioria dos seus concidadãos, nem pela generalidade dos povos. E ainda hoje continua a não ser acolhida! As populações e os povos são naturalmente pagãos, têm uma ideia e uma concepção de Deus à sua medida e à medida dos seus interesses e não suportam no seu meio a presença de mensageiros que os convidem a passar do Deus dos seus antepassados para o Deus de Jesus. De Deus, as populações e os povos pensam que sabem tudo. Nisso, são como os seus antepassados. E não podem ouvir dizer que alguém vive e anuncia outro Deus diferente do deles, esse mesmo que já os pais deles e os pais dos pais deles sempre reconheceram e adoraram.
Acontece que este é um Deus ídolo que os escraviza e lhes exige sacrifícios sem conta, peregrinações umas a seguir a outras, os animais e os próprios filhos como sacrifícios muitas vezes cruentos, o dinheiro e, finalmente, as próprias vidas. E tudo elas e eles, as populações e os povos, dão aos sacerdotes sem regatear, só para que o seu Deus ídolo lhes seja favorável, proteja os seus gados e as suas sementeiras e colheitas, as suas casas e os seus negócios, nem que seja com recurso a “milagres” arrancados à custa do seu muito pedir, dia e noite, do seu muito rezar, do seu muito repetir as mesmas fórmulas.
É por isso que Jesus, o de Nazaré, começou a sua missão por anunciar a Boa Notícia de Deus contra a Má Notícia de Deus que as populações e os povos conheciam e viviam, desde que a humanidade é humanidade, e que transmitiam de pais para filhos, de geração em geração. E logo acrescenta aquele apelo tão difícil de acatar e de realizar: “Convertam-se! E acolham esta Boa Notícia”.
Só que no nosso moralismo religioso-pagão, próprio do Deus ídolo, sempre entendemos aquele “Convertam-se!” de Jesus como sinónimo de passarmos a frequentar mais assiduamente os cultos no templo, a multiplicar as orações e os sacrifícios, as visitas aos santuários, as promessas e os ritos. Somos naturalmente pagãos e pensamos que converter-se é passar a sermos um bocadinho mais religiosos dentro do paganismo religioso que bebemos no leite materno e no ambiente em que nascemos, para que Deus ídolo passe a ser-nos mais favorável.
Estamos redondamente enganados. E, se as Igrejas não no-lo dizem, não são Igrejas na peugada de Jesus, são Igrejas na peugada dos sacerdotes das religiões do paganismo que o mataram e continuam a matar, isto é, a impedir que ele e a via em que ele foi constituído por Deus, com a sua ressurreição dos mortos, nos façam nascer de novo, do Alto, do Espírito Santo.
Pois bem, aquele “Convertam-se!”, com que Jesus nos sai ao caminho, no início da sua missão de Evangelho vivo de Deus Criador no meio de nós, faz apelo a uma mudança radical. É o mesmo que dizer: Mudem de Deus! Abandonem de vez o Deus Má Notícia do paganismo religioso com que os sacerdotes vos enganam, mediante os seus cultos de rotina, sempre os mesmos, e acolham o Deus Boa Notícia que eu vos anuncio e que conheço como ninguém, porque venho da sua intimidade. Por outras palavras: Deixem Deus Criador ser Deus Criador em vós e convosco e vereis que mudareis também radicalmente de vida: Deixareis os cultos e os sacrifícios, as promessas e os medos, os templos e os sacerdotes e mergulhareis no mundo e na História, sereis criadores com Deus Criador, passareis a ocupar-vos da Terra e a cuidar dela e do vosso bem-estar pessoal e colectivo. Crescereis em humanidade e em fraternidade/sororidade, em cultura e em consciência crítica, em protagonismo social e político e em política, até alcançardes a maioridade de filhas, filhos de Deus no mundo e para o mundo.
Era por aqui que eu gostava de ver ir o director do semanário da Diocese do Porto. E o seu bispo Manuel Clemente. Pelos vistos, preferem um e outro meter-se no atoleiro do paganismo religioso que Fátima é desde o princípio. São sacerdotes do Deus ídolo e da deusa de Fátima, o ídolo maior. Não são Igreja, discípula de Jesus. Baralham tudo. Constroem um Cristianismo religioso, típico do paganismo religioso. E só isso explica que no seu Editorial o director da Voz Portucalense chegue a falar em “manifestação de Maria”, a propósito do fenómeno de Fátima. A baralhação é tanta, que ele confunde Maria, mulher de carne e osso, em tudo igual à mãe de qualquer de nós, e que morreu há cerca de dois mil anos, com a mítica deusa dos cultos do paganismo religioso, puro símbolo poético sem corpo e sem realidade histórica. Chega ao desplante de a pôr, dois mil anos depois dela ter morrido, a manifestar-se em Fátima a três crianças, vergonhosamente tolhidas e aterrorizadas por catequeses moralistas e terroristas dos padres da Missão e do livro Missão Abreviada que era lido em suas casas à noite, à luz da vela. Semelhante baralhação é um insulto à nossa inteligência de seres humanos do século XXI, felizmente cada vez mais informada pela Ciência. E constitui uma humilhação sem nome, porque nos retira toda a iniciativa política e nos reduz a castigados pagadores de promessas, um ano após outro, de um 13 de Maio a outro 13 de Maio, até que a morte nos torne invisíveis aos olhos, definitivamente viventes no Vivente Jesus que Deus Vivo ressuscitou dos mortos, e de quem Maria, sua mãe carnal, também já comunga para sempre, não para agora andar por aí a aparecer e a manifestar-se, mas para trabalhar com o Deus Vivo na transformação da vida e da História.
É público e notório que eu não acredito em Fátima. Mas saibam que nem por isso deixo de ser presbítero da Igreja católica que está no Porto. Bem pelo contrário, sou-o ainda mais do que aqueles que acreditam nessa treta, nessa mentira. Por isso dói-me ver o bispo da Igreja do Porto o meu bispo a tomar tão abertamente posição ao lado de Fátima e da sua mentira. Sem respeito por mim e pelos outros irmãos, pelas outras irmãs católicos que já não vamos nesse tipo de cristianismo pagão religioso. Como bispo, deveria manter-se equidistante e ocupar-se inteiramente no anúncio do Evangelho ou Boa Notícia de Deus, o de Jesus. Ainda confio que um dia, não muito remoto, isto sucederá na nossa Igreja do Porto. E, por tabela, na Igreja católica em todo o mundo, a começar por Roma. Acreditem: É por aqui que também vai Maria, a de Jesus, que, como tenho dito e redito, não tem nada a ver com a mítica senhora de Fátima, deusa cruel que se agrada com a humilhação das populações e dos povos.
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EDITORIAL
Políticos dos povos,
ou executivos do Kapital?
Que país seremos, depois destes próximos seis meses em que o primeiro-ministro José Sócrates - cegamente levado ao colo por uma maioria absoluta socialista totalmente domesticada, anestesiada e instalada nos privilégios que o Poder absoluto sempre garante aos seus incondicionais fiéis - vai ter de ser sobretudo o presidente da União Europeia? Ainda seremos um país onde dê gosto viver? Ou apenas um aborto de país, totalmente à mercê de máfias sem escrúpulos e incapaz de se erguer sobre os seus próprios pés, por isso, em tudo semelhante àquele paralítico do Evangelho de João (cap. 5) que há 38 anos jazia, impotente e imobilizado, junto da piscina de cinco pórticos em Jerusalém? E o que será a Europa dos 27, no final desta presidência portuguesa de Sócrates, por coincidência, em parceria com o nosso Durão Barroso - esse mesmo que vendeu a alma ao diabo (Dinheiro), ao apoiar com entusiasmo a Guerra do Iraque e que logo a seguir deixou o país entregue à famigerada dupla Paulo Portas/Santana Lopes, para se poder tornar no actual presidente da Comissão Europeia? Será que a soma de tanta mediocridade e de tanta irresponsabilidade pode resultar em algo de bom para Portugal e para os povos do velho Continente? Ou funciona como o golpe final de uma tragédia que atingirá todos os povos europeus, hoje, demasiado adormecidos, alienados, instalados nos seus egoísmos e nos prazeres de momento, confrangedoramente esvaziados de projectos com Espírito, o mesmo é dizer projectos com dimensões verdadeiramente ecuménicas, à escala da Humanidade e do universo? E a Igreja que está em Portugal e na Europa, como vai comportar-se durante este período da presidência portuguesa da União Europeia? Chegará, ao menos, a dar-se conta do facto, ou, pelo contrário, prosseguirá, como até aqui, entretida nos seus cultos sem cultura, nos seus ritos religiosos sem profecia e nas suas catequeses moralistas sem Evangelho de Jesus?
Por mim, bem gostava de poder anunciar aqui boas notícias para o nosso país e para os povos da União Europeia. Mas, infelizmente, tudo nos diz que a tragédia em que já estamos mergulhados irá subir de tom e o clamor dos povos conhecerá novas dimensões de dor e de angústia. Estamos a ser governados por executivos ao serviço das multinacionais em lugar de políticos profissionais ao serviço dos povos. E quando os políticos se convertem em executivos, os povos que se cuidem, porque uma desgraça nunca vem só.
De que adianta votarmos em eleições, se, depois, quem nos sai na rifa para governar os nossos destinos nacionais e continentais adopta a postura de viver de cócoras perante os senhores do Dinheiro e, por vezes, nem sequer cuida que aos respectivos povos cheguem, ao menos, algumas migalhas da opulência dos ricos, pelo contrário, tudo faz para que a sua opulência seja cada vez maior e cada vez mais insolente? Não é verdade que hoje, muito mais do que no passado, são os do Dinheiro que, por sinal, nunca vão a eleições, quem manda no mundo, através dos governos-executivos de cada país?
O grande Kapital gosta de estabilidade e de condições de segurança. E nunca olha a meios para assegurar uma e outra nos diferentes países. Ele sabe que a instabilidade social impede a sua acumulação nas mãos de poucos. E, quando fala em segurança, não é no bem-estar dos povos que está a pensar. É sempre e só na sua própria segurança, para mais e melhor se poder reproduzir.
Ora, quanto mais o grande Kapital se reproduz, mais se reproduz também a pobreza estrutural e se multiplica o número dos empobrecidos. Falar de estabilidade e de segurança do grande Kapital é falar de instabilidade e de insegurança dos povos. É por isso que nunca como hoje os povos da Europa são aliciados ao consumismo, não só de produtos essenciais em excesso, mas sobretudo de produtos supérfluos, de luxo, em detrimento da partilha e da solidariedade. Nunca como hoje os povos são aliciados a dar a sua presença nos grandes estádios de futebol, onde as competições entre clubes habilmente transformados em SADs são cada vez mais sofisticadas e mais aguerridas. E também nunca como hoje a oferta de produtos de lazer e de prazer foi tão grande, tão premente e tão massificada. É preciso que os povos, nomeadamente, as suas parcelas mais escolarizadas e mais ilustradas, não tenham nem tempo nem disponibilidade interior para reflectir e para analisar o que se passa à sua volta e no mundo. Tudo está programado para fazer de nós povos nutridos, estressados, ininterruptamente ocupados com mediocridades e superficialidades.
É de povos assim que o grande Kapital carece para poder levar por diante o seu projecto de descriar os seres humanos, numa concorrência demoníaca com o Espírito Criador de Deus Vivo, sempre apostado em fazer de nós suas filhas, seus filhos em estado de maioridade e de liberdade, protagonistas na História, sujeitos e donos dos próprios destinos. O grande Kapital, ao contrário, aposta tudo na descriação dos seres humanos e é isso o que está hoje a fazer na Europa e no Ocidente em geral, enquanto mantém na miséria imerecida e na humilhação a esmagadora maioria dos povos do resto do mundo.
Semelhante acto descriador seria impossível sem a cooperação lacaia e incondicional dos políticos profissionais que foram eleitos pelos povos para organizarem a economia e a sociedade de modo a todos poderem ver satisfeitas as suas reais necessidades, sem a exclusão de ninguém, mas que, depois, uma vez eleitos, logo se passam com armas e bagagens, isto é, com todo o seu saber, todo o seu dinamismo e toda a sua generosidade para o campo do grande Kapital, como seus executivos de luxo, atentos e reverentes. Recebem em troca benesses sem conta, enquanto os povos que os elegeram ficam obscenamente de mãos a abanar e, quase sempre anestesiados com contínuas overdoses de religião e de futebol e de múltiplas outras iniciativas sem Espírito, destinadas a desmobilizá-los das lutas e dos combates.
Longe vão os tempos das insurreições dos povos e das revoluções pacíficas ou mesmo violentas. Bem sei que, pelo menos, as revoluções violentas traziam, enquanto decorriam, ainda mais sofrimento para os povos mais fragilizados e mais incapacitados, mas tinham também o condão de dificultar a ânsia de sucesso ao grande Kapital e obrigavam-no a recuar e a fazer certas cedências aos direitos dos povos que, de outra maneira, nunca teriam ocorrido na História e que hoje já não ocorrem, bem pelo contrário, são-lhes até sistematicamente roubados, um após outro, sem que os povos revelem já sequer capacidade para se organizarem e reagirem, de tão anestesiados, divididos, domesticados, enfraquecidos e entretidos que estão com novelas e futebóis, religiões e outras ninharias que tais. A situação dos povos é tal, que já nem sequer lhes passa pela cabeça reagir e defender-se. Limitam-se a carpir a sua situação em certos telejornais, como se alguma vez o grande Kapital e os governos dos países que funcionam como seus executivos tivessem entranhas de humanidade, fossem capazes de mudar de rumo, converter-se aos povos e à Política, concebida como a arte de fazer os povos felizes.
A situação hoje seria outra, muito outra se sempre tivesse havido em Portugal e na Europa dos 27 Igrejas cristãs jesuânicas, unha e carne com os seus povos, em especial com os povos mais empobrecidos e humilhados, sem voz nem vez. Elas desencadeariam entre eles e com eles a mesma acção consciencializadora e libertadora que Jesus desencadeou entre e com o povo do seu país, exemplarmente representado no homem que jazia há 38 anos (quase uma vida!) junto da piscina com cinco pórticos (alusão aos cinco Livros bíblicos da Lei, ou Pentateuco), a vítima maior da ideologia religiosa e legalista dos sacerdotes do Templo de Jerusalém que colocavam interesseiramente Deus, o do Templo e da Lei, acima dos seres humanos, dos povos, senão mesmo contra os povos. Como se a glória de Deus consistisse em diminuir os seres humanos e os povos e não, como efectivamente consiste, em fazer com que eles cresçam no mundo e na História, como se Deus não existisse.
Vosso companheiro e irmão, Mário,
presbítero da Igreja do Porto.
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ESPAÇO ABERTO
O que se impõe de imediato
é uma revolução energética
Por Fidel Castro (Cuba)
Jornal Fraternizar teve acesso a este texto de Fidel de Castro, datado de 30 de Abril 2007. A sua tradução para português encontra-se em http://resistir.info/. O Comandante cubano continua a falar de revolução. Agora, duma revolução energética. O Império quer transformar alimentos em biocombustíveis para as máquinas. Não se importa que os povos morram à fome. As máquinas é que não podem passar sem combustível. Ninguém deixe de ler e de reflectir. Oportuníssimo.
Nada tenho contra o Brasil. Para não poucos brasileiros, sobre os quais não cessam de martelar argumentos num sentido ou noutro, capazes de confundir pessoas tradicionalmente amigas de Cuba, pareceríamos desmancha-prazeres que não se importariam em prejudicar a entrada líquida de moeda exterior nesse país. Guardar silêncio seria para mim optar entre a ideia de uma tragédia mundial e um suposto benefício para o povo dessa grande nação.
Não vou culpar Lula nem os brasileiros pelas leis objectivas que regeram a história da nossa espécie. Transcorreram apenas sete mil anos desde que o ser humano deixou marcas palpáveis do que chegou a ser uma civilização imensamente rica em cultura e conhecimentos técnicos. Seus avanços não foram conseguidos ao mesmo tempo nem no mesmo lugar geográfico. Pode-se afirmar que, devido à aparente imensidão do nosso planeta, em muitos casos desconhecia-se a existência de uma ou outra civilização. Durante milhares de anos jamais o ser humano viveu em cidades de 20 milhões de habitantes como São Paulo ou a cidade do México, ou em comunidades urbanas como Paris, Madrid, Berlim e outras que vêem transitar comboios sobre carris e colchões de ar, a velocidades de mais de 400 quilómetros por hora.
Na época de Cristóvão Colombo, há apenas 500 anos, algumas dessas cidades não existiam ou a sua população não ultrapassava o número de várias dezenas de milhar de habitantes. Nenhuma gastava um quilowatt para iluminar as suas casas. Possivelmente a população do mundo de então não ultrapassava os 500 milhões de habitantes. Sabe-se que em 1830 atingiu os primeiros 1000 milhões, 130 anos depois multiplicou-se por três, e 46 anos mais tarde a soma dos habitantes do planeta elevou-se a 6500 milhões, que devem compartilhar os produtos alimentícios com os animais domésticos e, doravante, com os biocombustíveis.
A humanidade não contava então com os avanços da computação nem com os meios de comunicação alcançados na actualidade, ainda que já houvessem explodido as primeiras bombas atómicas sobre duas grandes comunidades humanas, o que constituiu um brutal acto de terrorismo contra populações civis indefesas, por razões estritamente políticas.
Hoje o mundo conta com dezenas de milhares de bombas nucleares cinquenta vezes mais poderosas, com portadores várias vezes mais velozes que o som e de uma precisão absoluta, com as quais nossa refinada espécie pode autodestruir-se. Em fins da Segunda Guerra Mundial, que os povos travaram contra o fascismo, surgiu um novo poder que tomou posse do mundo e impôs a actual ordem absolutista e cruel.
Antes de Bush viajar ao Brasil, o chefe do império estabeleceu que o milho e outros alimentos seriam a matéria-prima adequada para produzir biocombustíveis. Lula por sua vez declarou que, a partir da cana-de-açúcar, o Brasil podia fornecer o que fosse necessário; via nesta fórmula um futuro para o Terceiro Mundo, e o único problema de solução pendente seria melhorar as condições de vida dos trabalhadores da cana. Estava bem consciente, e assim o declarou, que os Estados Unidos pelo seu lado deviam suspender as barreiras tarifárias e os subsídios que afectam a exportação do etanol para os Estados Unidos. Bush respondeu que as tarifas e os subsídios aos agricultores eram intocáveis num país como os Estados Unidos, primeiro produtor mundial de etanol à base de milho.
As grandes transnacionais norte-americanas produtoras desse biocombustível, que investem aceleradamente dezenas de milhares de milhões de dólares, haviam exigido ao chefe do império a distribuição no mercado norte-americano de não menos de 35 mil milhões de galões [132 mil milhões de litros] por ano desse combustível. Entre tarifas protectoras e subsídios reais o número anual ascenderá a quase 100 mil milhões de dólares. Insaciável na sua procura, o império havia lançado ao mundo a palavra-de-ordem de produzir biocombustíveis para libertar os Estados Unidos, o maior consumidor mundial de energia, de qualquer dependência externa em matéria de hidrocarbonetos.
A história demonstra que a monocultura da cana esteve estreitamente associada à escravidão dos africanos, arrancados à força das suas comunidades naturais e transportados para Cuba, Haiti e outras ilhas do Caribe.
No Brasil ocorreu exactamente o mesmo com o cultivo da cana-de-açúcar. Hoje, nesse país, quase 80% da cana é cortada manualmente. Fontes e estudos efectuados por investigadores brasileiros afirmam que um cortador de cana, trabalhador tarefeiro, deve produzir não menos de 12 toneladas para satisfazer necessidades elementares. Esse trabalhador precisa efectuar 36630 flexões de pernas, percorrer pequenos trajectos 800 vezes carregando 15 quilos de cana nos braços e caminhar na sua faina 8800 metros. Perde uma média de 8 litros de água por dia. Só em cana queimada se pode atingir essa produtividade por homem. A cana de corte manual ou mecanizado costuma-se queimar para proteger o pessoal de mordidas ou picadas daninhas e sobretudo para elevar a produtividade. Ainda que exista uma norma estabelecida das 8 da manhã às 5 da tarde para realizar sua tarefa, esse corte à tarefa não escapa das 12 horas de trabalho. A temperatura em certas ocasiões atinge os 45 graus Celsius ao meio-dia.
Eu pessoalmente cortei cana não poucas vezes por dever moral, tal como muitos outros companheiros dirigentes do país. Recordo o mês de Agosto de 1969. Escolhi um lugar próximo à capital. A cada manhã ia bem cedo para ali. A cana não queimada era verde, de variedade precoce e de alto rendimento agrícola e industrial. Não cessava de cortar nem um minuto durante quatro horas consecutivas. Alguém se encarregava de afiar o facão. Nem uma vez deixei de produzir um mínimo de 3,4 toneladas por dia. A seguir banhava-me, almoçava sossegadamente e descansava num lugar muito próximo. Ganhei vários bónus pela famosa safra de 1970. Tinha então 44 anos recém feitos. O resto do tempo, até a hora de dormir, dedicava aos meus deveres revolucionários. Detive aquele esforço pessoal quando provoquei uma ferida no pé esquerdo. O facão afiado havia penetrado na bota protectora. A meta nacional era de 10 milhões de toneladas de açúcar e aproximadamente 4 milhões de melaço, como subproduto. Nunca foi atingida, ainda que nos aproximássemos dela.
A URSS não havia desaparecido, parecia algo impossível. O período especial, que nos levou a uma luta pela sobrevivência e às desigualdades económicas com os seus elementos de corrupção inerentes, não havia surgido. O imperialismo acreditou que havia chegado a hora de liquidar a Revolução. Também é honesto reconhecer que nos anos da bonança aprendemos a desperdiçar e não foi pouco o grau de idealismo e de sonhos que acompanharam o nosso heróico processo. Os grandes rendimentos agrícolas dos Estados Unidos foram conseguidos mediante a rotação das gramíneas (milho, trigo, aveia, painço e outros grãos semelhantes) com as leguminosas (soja, alfafa, feijões, etc). Estas incorporam nitrogénio e matéria orgânica nos solos. O rendimento do milho nos Estados Unidos no ano 2005, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), atingiu 9,3 toneladas por hectare.
No Brasil conseguem-se apenas 3 toneladas desse grão na mesma área de terra. A produção total contabilizada desse país irmão foi nesse ano de 34,6 mil milhões de toneladas, consumidas internamente como alimento. Não pode contribuir com milho para o mercado mundial. Os preços desse grão, alimento principal de numerosos países da área, quase duplicaram. O que ocorrerá quando centenas de milhões de toneladas de milho forem dedicadas à produção de biocombustível? E não vou mencionar as quantidades de trigo, painço, aveia, cevada, sorgo e outros cereais que os países industrializados utilizarão como fonte de combustível para os seus motores. A isto acrescenta-se que é muito difícil para o Brasil efectuar a rotação do milho com leguminosas. Dos estados brasileiros que tradicionalmente o produzem, oito deles são responsáveis por 90% da produção: Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Por outro lado, 60% da produção de cana-de-açúcar, uma gramínea que não pode ser alternada com outros cultivos, efectua-se em quatro estados: São Paulo, Paraná, Pernambuco e Alagoas.
Os motores dos tractores, máquinas colhedoras e meios pesados de transporte para mecanizar a colheita gastariam hidrocarbonetos em quantidades crescentes. O incremento da mecanização nada ajudaria para evitar o aquecimento do planeta, algo que está provado pelos especialistas que medem a temperatura anual há mais de 150 anos. O Brasil, sim, produz um excelente alimento especialmente rico em proteína, a soja: 50.155.000 toneladas. Consume quase 23 milhões de toneladas e exporta 27,3 milhões. Será que porventura uma parte importante dessa soja se vai converter em biocombustível? No imediato, os produtores de carne bovina começam a queixar-se de que os terrenos plantados com pastos estão a transformar-se em canaviais.
O antigo ministro da Agricultura do Brasil, Roberto Rodrigues, importante defensor da actual linha governamental e hoje co-presidente do Conselho Inter-americano do Etanol, criado em 2006 a partir de um acordo com o estado da Florida e o Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID) para promover a utilização de biocombustíveis no continente americano, declarou que o programa de mecanização da colheita de cana não gera mais emprego e sim, pelo contrário, que se produziria um excedente de pessoal não qualificado.
Sabe-se que os trabalhadores mais pobres procedentes de diversos estados são os que vão ao corte da cana por necessidade imperiosa. Em certas ocasiões, são pessoas que têm de se separar durante muitos meses dos seus familiares. É o que acontecia em Cuba até o triunfo da Revolução, quando o corte e levantamento da cana era à mão e apenas existia o cultivo e transporte mecanizado. Ao desaparecer o brutal sistema imposto à nossa sociedade, os cortadores, alfabetizados maciçamente, abandonaram a sua peregrinação em muito poucos anos e foi necessário substituí-los por centenas de milhares de trabalhadores voluntários.
A isto acrescenta o último relatório das Nações Unidas sobre a mudança climática, o qual diz o que ocorrerá na América do Sul com a água dos glaciares e a bacia aquífera do Amazonas à medida que a temperatura da atmosfera continue a subir.
Nada impede que o capital norte-americano e europeu financie a produção de biocombustíveis. Poderiam inclusive presentear os fundos ao Brasil e à América Latina. Os Estados Unidos, a Europa e os demais países industrializados poupariam mais de 140 mil milhões de dólares por ano, sem se preocuparem com as consequências climáticas e da fome, que afectariam em primeiro lugar os países do Terceiro Mundo. Sempre lhes restaria dinheiro para os biocombustíveis e para adquirir a qualquer preço os poucos alimentos disponíveis no mercado mundial.
O que se impõe de imediato é uma revolução energética que consiste não só na substituição de todas as lâmpadas incandescentes como também na reciclagem maciça de todos os equipamentos domésticos, comerciais, industriais, de transporte e de uso social, que com as tecnologias anteriores exigem duas a três vezes mais energia.
É doloroso pensar que se consomem anualmente 10 mil milhões de toneladas de combustíveis fósseis, o que significa que a cada ano desperdiça-se o que a natureza levou um milhão de anos a criar. As indústrias nacionais têm pela frente enormes tarefas a realizar e com isso aumentar o emprego. Assim se poderia ganhar um pouco de tempo.
Outro risco de carácter diferente que o mundo corre é o de uma recessão económica nos Estados Unidos. Nos últimos dias, os dólares bateram um recorde de perda de valor. Com essa moeda de papel e os títulos norte-americanos são constituídas a maior parte das reservas em divisas convertíveis de todos os países.
O dia Primeiro de Maio de cada ano é um bom dia para fazer chegar estas reflexões aos trabalhadores e a todos os pobres do mundo.
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Levar a Fé ao interior das almas,
em vez de ficar pelas manifestações externas
Por Pe. José Marcos Bach (Doutor em Teologia, Brasil)
1. Não é só o Vaticano que associa Fé com manifestações de massas. Meca, na Arábia Saudita, tem o poder de atrair até mais fiéis muçulmanos do que Roma consegue em relação ao mundo católico. Mas a fé que ambos os “lugares santos” despertam é basicamente a mesma, pois ambos têm em comum o mesmo objetivo: inspirar em seus fiéis uma “certeza”, a certeza da salvação e a certeza de estar indo ao encontro dela pelo caminho certo!
A “fé” que em ambos os casos se procura estimular e fortalecer nutre-se de “certezas”. Tanto em Roma como em Meca seria linchado, ou ao menos excomungado todo aquele que pusesse em dúvida a veracidade daquilo que lá está sendo proclamado como verdadeiro, certo e indiscutível.
Tanto o mundo muçulmano quanto o mundo cristão pregam a “tolerância zero” em relação a tudo o que pudesse enfraquecer a fé de seus adeptos. Conta-se aos milhões o número de vítimas da “Santa Inquisição” romana. As autoridades muçulmanas abafaram com brutalidade o sufismo. O que os sufis queriam era o mesmo que os místicos cristãos queriam: levar a fé ao interior das almas em vez de contentar-se com manifestações meramente externas!
2. Uma manifestação da fé ou é silenciosa e discreta, ou é falsa. Quando os discípulos pediram a Jesus: “Senhor, ensina-nos a orar”, Jesus lhes respondeu: “Quando orardes, não façais como os gentios e os fariseus, que fazem muito barulho quando rezam, medindo a qualidade da sua oração pelo número de palavras e pela solenidade dos gestos. Vós, quando vos recolherdes para orar, retirai-vos à solidão do vosso quarto e entretei-vos em silêncio com o vosso Pai Celestial”!
É no silêncio que Deus se manifesta de preferência. É no silêncio que Ele tempera os seus futuros colaboradores, do mesmo modo como é o fogo que em silêncio tempera o aço. Um fogo muito brando não serve para temperar um aço de boa qualidade. A capacidade de temperar aço de boa qualidade, o fogo não a deve ao barulho que porventura venha a fazer, mas ao calor que é capaz de produzir.
Uma manifestação de fé muito ruidosa é tão falsa quanto uma declaração de amor feita em praça pública e registada em cartório. A fé que Jesus espera de seus discípulos não os embala num oceano de certezas. Pelo contrário, joga-os na mais absoluta “incerteza”.
3. Para ser boa, uma máquina tem que funcionar de modo certo. Um relógio tem que nos dizer qual é a hora certa do dia ou da noite. Até o final do século passado os cientistas descreviam o cosmos, a natureza, e até o homem, como máquina. Deles se esperava que nos brindassem com informações certas. Para serem confiáveis, as suas informações tinham que ser previsíveis. O filósofo alemão Leibniz ainda definiu o universo como um “Relógio”.
Foi em 1925 que um físico alemão, Werner Heisenberg, escandalizou o mundo científico, inclusive Einstein, afirmando que no mundo subatómico vigoram leis diferentes daquelas que regulam o comportamento de um astro. Sustentou que um átomo, ou outra sub-partícula atómica, como um fóton, não assiste passivamente ao que o observador humano está a fazer. Ele, o átomo, observa o observador e sua resposta não é pré-determinada e não será sempre a mesma em cada experimento.
A relação do espírito humano com o mundo material não pode mais ser vista como a viam os cientistas do século XIX ou como a vêem ainda hoje Jacques Monod e parceiros. A primeira “pá de cal” levou-a a Teoria mecanicista quando Einstein declarou que “a essência da matéria é espiritual”. Se é assim, não se pode mais sustentar a tese de que espírito e matéria são opostos irreconciliáveis. Se a alma (essência) da matéria é espiritual, então não existe espaço para uma luta entre ambos.
Nada, no entanto, perturbou tanto o sono dos cientistas quanto a contribuição dos pais da Teoria Quântica, como passou a ser conhecida. Entre as suas teses mais polemicas está a de que as leis que regem a natureza não fornecem certezas, mas apenas probabilidades. O “Princípio da Incerteza” de Heisenberg continua a escandalizar as mentes conservadoras do planeta.
Não há religião que não imponha aos seus fiéis uma fé incondicional. Em seus Catecismos e em seus Tratados de Teologia não há lugar para uma fé que forneça aos seus crentes menos do que certezas absolutas. A Teoria da Mecânica Quântica ainda não faz parte dos instrumentos de que um teólogo se serve em sua atividade profissional. Para ele o objecto tanto da fé como dos seus estudos é o dogma, uma colectânea de verdades irrefutáveis. Para ele a verdade é um conjunto de certezas. É-lhe completamente estranha a ideia de que a verdade possa ser um conjunto de probabilidades, ou até mesmo de possibilidades!
Mas é assim que os adeptos da Teoria Quântica definem o mundo material. Para eles o universo não é um museu de coisas já feitas, mas um campo experimental de coisas para serem aceites. O Criador lançou a Pedra Fundamental, mas entregou-nos uma obra inacabada.
O cientista quântico não é alguém que avalia e valoriza o que já foi feito. Mas é alguém que volta a sua atenção e o seu interesse intelectual para o que ainda pede para ser completado. O apóstolo Paulo usa a palavra Pleroma, isto é, Plenitude, para definir o que, segundo ele, ainda falta ao Projecto de Cristo para ser completado.
O mundo em que vivemos não é perfeito. Está à espera de quem o complete. Não se sabe onde o apóstolo Paulo tirou esta informação, pois em Romanos 8,21 ele diz o seguinte: “A Criação anseia pela liberdade dos Filhos de Deus, pois como nós, também ela vive na esperança de ser um dia libertada da escravidão, da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos Filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rm 8,20-22).
Para tornar-se perfeito o universo todo tem que ressuscitar como Cristo ressuscitou. E não apenas como Ele, mas com Ele! Para ser plena e total a fé em Cristo tem que abranger não só o destino glorioso da humanidade, mas também o do universo todo! A “Casa” que o Pai Celestial está preparando para seus Filhos não pode ser uma senzala, um espaço confinado e sujeito a regras e limitações. Só pode ser vista como espaço absolutamente livre!
4. Fato que não deixa de ser estranho é este: Paulo, o apóstolo que se define a si mesmo como “fariseu” (Actos 23,6), é de todos o que mais energicamente se empenha na defesa da “liberdade dos Filhos de Deus”! Assim como existem no fundo dos oceanos continentes perdidos, do mesmo modo se pode falar de verdades perdidas, que, como ilhas, outrora florescentes, hoje se encontram submersas no esquecimento!
Uma delas é a relação essencial existente entre a fé em Cristo e a liberdade dos filhos de Deus! Papas, teólogos, canonistas e moralistas fizeram da Sagrada Doutrina da Fé um pacote firmemente atado de verdades absolutas. Esqueceram-se por completo da palavra de Jesus: “Conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,32).
Como pode libertar o espírito do homem uma verdade que não se apresenta à mente humana como opção, mas como necessidade? Pode merecer fé uma verdade que chega à consciência do homem pelo estreito caminho da mão única? Pode ser libertadora uma verdade pronta e acabada a que a consciência do crente nada pode acrescentar?
A fé em Cristo não tem como objecto ou alvo um conjunto de doutrinas, mas a Pessoa de Jesus, pois Ele mesmo o disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Se é a Pessoa de Jesus que é o alvo da fé cristã, não se pode confinar a fé em artigos, dogmas e doutrinas como vem acontecendo. Mas se a Verdade é Jesus, o Homem mais livre que a história conhece, então não se pode reduzir a fé em Cristo a um acto de submissão!
Uma fé que não liberta é falsa, como a mordaça, ela em nada contribui para o bem-estar e a felicidade do crente. Uma fé é tão falsa e tão pouco cristã quanto uma obediência que escraviza. Uma fé que priva o crente de “voar livremente”, de “tudo experimentar”, como ensina o apóstolo Paulo (Rm 12,2), paralisa a consciência humana, impedindo-a de “escolher o melhor”!
5. A verdade em que um cristão deposita a sua fé não é um objecto, menos ainda pode ser tratada como objecto pronto para consumo. Jesus não veio semear a fé dos seus discípulos com certezas. A única certeza que nos veio trazer é esta: “O Pai vos ama” (Jo 16,27). E se amarmos o nosso irmão como Ele o ama, seremos os seus discípulos (Cf. Jo 15,17).
Jesus elevou o Amor à condição de “sacramento supremo da Salvação”! Ou apostamos no Amor e nos convertemos a ele, ou merecemos o mesmo destino inglório que tiveram os habitantes do Continente de Mu e da Atlântida 11.500 anos atrás. O primeiro passo a ser dado por quem quer aderir a Cristo é a “conversão”! “Convertei-vos, porque o Reino de Deus está próximo” (Mt 3,2).
Enquanto até nossos mais conspícuos representantes de Deus e os mais badalados representantes de Cristo na terra continuam apostando mais nos instrumentos do poder do que na fragilidade do Amor, a humanidade toda pode contar com o mesmo destino que colheram nossos antepassados quando resolveram apostar mais nas pompas do poder e nas suas riquezas materiais do que nas riquezas que só o Amor é capaz de produzir.
Depois que Jesus falou, tudo ficou mais simples. O cristianismo poderia e deveria ser a mais simples das religiões. Santo Agostinho percebeu isto. “Ama”, diz ele, “e faz o que bem entendes, pois desta raiz do amor só pode brotar o bem”!
O Papa actual, Bento XVI, só tem contribuído para complicar ainda mais a “fidelidade a Cristo”! Publicou um catecismo onde se encontra a resposta certa a mais de quinhentas perguntas. De que servem tantas respostas a perguntas que ninguém faz? Se a fé cristã consistisse em dar a “resposta” certa à “pergunta certa”, Jesus ter-se-ia empenhado em deixar por escrito tanto a pergunta quanto a resposta. As palavras de Jesus só foram registadas por escrito muitos anos depois de sua morte por pessoas que as tinham guardado na lembrança.
A fidelidade que nasce da fé em Cristo não é a mesma que um judeu deposita nas Escrituras Sagradas. A fé cristã consiste essencialmente em manter-se fiel à Pessoa de Jesus! Não à Pessoa do Jesus histórico, mas a do Cristo Ressuscitado, o mesmo Cristo do qual o apóstolo Paulo dizia: “Mihi vivere Christus est”! “Minha vida é Cristo” (Fl 1,21). “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
Foi e continua a ser um erro pedagógico-didáctico dos mais desastrosos reduzir a fé em Cristo a um gesto de submissão da inteligência a um conjunto de verdades reveladas. Crer em Cristo é muito mais do que aceitar como verdadeiro o que Ele ensinou! É muito mais do que só isto! Ela, a fé em Cristo, nos compromete com a Vida, com todas as formas e manifestações de Vida.
Queres encontrar a Cristo, levanta a primeira pedra que encontras pelo caminho, pois debaixo dela encontrarás “Vida” em abundância! O “objecto” da fé cristã é o “modo como Jesus viveu sua Vida”! Identificar-se com Ele é o mesmo que viver a própria Vida como Ele viveu a dele.
A fé cristã é em sua essência um compromisso existencial da alma com Cristo. A vida temporal de Cristo foi tão simples que até um analfabeto pode imitá-la! “Amai-vos uns aos outros”, dizia o apóstolo São João.”Mestre”, diziam seus ouvintes, “já estamos cansados de ouvir isto sempre de novo”! Ao que João respondia: “É preceito do Senhor, e se for posto em prática, basta para nos justificar”.
6. O que é verdadeiramente certo, estatisticamente previsível em nossas vidas? A morte é talvez a única certeza estatisticamente comprovada. Mas quando, onde e como ela vai acontecer, isso ninguém sabe!
A fé, que Cristo veio pregar fornece-nos poucas certezas, mas fornece-nos um sem número de pistas, capazes de nos conduzir até a Verdade! Mas esta permanecerá sempre distante e inacessível. A verdade é como a vida, quem quer “possuí-la acabará por perdê-la”, como ensina Jesus (Lc 17,33).
No universo não há entidade que não tenha consciência do espaço-tempo que lhe é destinado. “Vivemos num universo consciente”, diria Deepak Chopra, citando um antigo ensinamento dos Vedas. É verdade: o universo pode ser visto como um “oceano de certezas”. Nele tudo é previsível. Tudo, menos o comportamento de um átomo ou de um elétron quando está sendo observado por um cientista. O mundo quântico ou subatómico é imprevisível, pois sua reacção depende do observador humano!
Neste universo tão “certinho” em tudo, o homem é o único ser que destoa, pois tem que aprender como se relacionar com o seu meio ambiente.
É uma ilusão perigosa imaginar que Jesus, o Caminho, a Verdade e a Vida, veio para forrar o caminho da vida de seus discípulos com toda a sorte de certezas. Assim como acontece com quem se joga nas águas de um oceano, também a vida de um discípulo de Jesus não oferece apoio seguro a quem o pretende atravessar! Se quiser manter-se vivo terá que permanecer “nadando”. Se for bom nadador, irá aproveitar a correnteza, caso existir alguma. Para o bem de quem deposita sua fé em Deus, existe no universo esta “correnteza”. Os teólogos dão-lhe o nome de Providência Divina. Os Vedas a definem como Consciência Universal.
No universo tudo existe em conexão com tudo o mais. Cada mónada tem consciência da sua ligação com todas as demais. Lá a colegialidade é a regra, pois tudo tende a se unir para formar unidades cada vez maiores e mais complexas.
A incerteza da fé não é um fim em si, mas apenas um meio de se colocar em contacto com a Verdade Total. É indo de uma incerteza para outra mais próxima da verdade que se progride no caminho da fé em Cristo. Quem não quer ver-se defrontado com a incerteza nem ser atormentado pela dúvida, não deve aventurar-se a navegar por este oceano sem limites nem fronteiras que é a Vida de Fé em Cristo!
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O império do consumo
Por Eduardo Galeano (Escritor uruguaio)
A explosão do consumo no mundo actual faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço.
Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da demanda choca-se com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.
Diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.
“Gente infeliz, essa que vive a compar-se”, lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feito loucos para pagar as prestações”.
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas as partes suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a obesidade mórbida aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos últimos dezasseis anos, segundo pesquisa recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fast free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para ver televisão. Sentado na frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.
Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bem comer, que vêm de longe, contam, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.
A Copa do Mundo de futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco desse M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste Europeu.
As filas na frente do McDonald´s de Moscovo, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloquência quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se em qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do McDonald´s, numa pequena cidade próxima de Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guinness.
As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde.
Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite. No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundo todo. Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com a palavra. Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos.
Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o perfume beija-te e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.
Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar em quem?
O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são frutos somente da extrema pobreza. Também são frutos da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer pobre que veja televisão tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro traz algo tão parecido com felicidade, que a diferença é assunto para especialistas.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todas as partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.
As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém-chegados descobrem é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.
Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano da Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas sentem gosto em juntar-se». Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem se encontra com quem? A esperança encontra-se com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas?
O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.
Os terminais de autocarros e as estações de comboios, que até pouco tempo atrás eram espaços de encontro entre pessoas, estão a transformar-se, agora, em espaços de exibição comercial. O shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines, impõe a sua presença esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés das marcas internacionais mais famosas, tal como antes posavam aos pés da estátua do prócer na praça.
Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam até ao centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.
A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo à descartabilidade mediática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias fabricadas para não durar são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um potencial desempregado.
Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do mundo.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamo-nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque, estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.
Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial. Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.
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Indagações a Bento XVI
Por Frei Betto (Teólogo brasileiro)
Vossa Santidade ressuscitou o que o Concílio Vaticano II havia enterrado: a missa em latim. Uma exigência de monsenhor Lefebre, arcebispo francês excomungado em 1988 por se recusar a aceitar as inovações conciliares.
Criança, assisti a muitas missas em latim, com o celebrante de costas para os fiéis, segundo o rito tridentino de meu confrade, o papa Pio V, que foi dominicano. Por que permitir a volta do latim? Quantos fiéis dominam este idioma? Jesus não falava latim. Falava aramaico. Talvez um pouco de hebraico. E por viver numa região dominada por Roma, com certeza conhecia alguns vocábulos latinos, como a saudação romana Ave, que se introduziu na oração mais popular do catolicismo, a Ave-Maria.
Assim como o grego se universalizou pelo Mediterrâneo graças às campanhas de Alexandre, o latim estendeu-se na proporção das conquistas do Império Romano. Por esta lógica, não seria mais adequado adoptar, hoje, o inglês? Ora, a grande maioria dos fiéis católicos encontra-se, hoje, na América Latina. E não entende grego, latim ou inglês. Excepto poucas palavras, como paróquia, pedra e futebol. Não é bom que participem da missa em língua vernácula?
Considerado o empenho de inculturação da Igreja, não é contraditório voltar o latim à missa? Tenho um amigo, ateu até à medula, que adora frequentar missas em latim. Para ele, a liturgia reduz-se a um espectáculo. É uma questão de estética, não a ponte comunitária entre o nosso coração sedento e o Transcendente.
Inquieta-me a sua afirmação de que é “uma praga” casar pela segunda vez e proibir os católicos que o fazem de acesso à eucaristia. Os evangelhos revelam que Jesus comungou com pessoas que, vistas de hoje, andavam distantes da moral vaticana. Ele defendeu uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos moralistas da época. Curou o fluxo de sangue de uma mulher fenícia sem, antes, exigir dela adesão à fé que ele propagava. Curou também o servo do centurião romano sem primeiro impor-lhe a condição de repudiar os seus deuses pagãos. Jesus fez o bem sem olhar a quem.
Tenho amigos e amigas que contraíram segundas núpcias. Todos por razões muito sérias, que seriam melhor entendidas por padres e bispos se eles, como na Igreja primitiva, tivessem mulher e filhos. (Convém lembrar que Jesus escolheu homens casados para apóstolos, pois curou a sogra de Pedro).
Contrair matrimónio é algo tão transcendente que a Igreja fez disso um sacramento. Ocorre que, antes de ser uma instituição, o casamento é um acto de amor. E há uniões que fracassam, pois somos todos frágeis e pecadores, e as nossas opções, sujeitas a chuvas e trovoadas, deveriam merecer também a misericórdia da Igreja.
Tenho amigos e a amigas divorciados que reconstruíram suas relações afectivas e se recusam a aceitar a proibição de comungar. Minha amiga D., três meses após o casamento, sofreu com o marido um grave acidente de trânsito. Ele ficou tetraplégico. Dois anos depois, com a anuência dele, ela contraiu uma nova relação, pois ouviu do homem com quem se casou na Igreja: “Por te amar, quero-te plenamente realizada como mulher e mãe.” Ela e o novo marido visitavam periodicamente o homem acidentado, que sobreviveu por sete anos e tornou-se padrinho do primeiro filho do casal. Devo dizer a essa amiga que Deus, que é Amor, não está em comunhão com ela e, portanto, trate de manter distância da mesa eucarística, pois a Igreja a considera “uma praga”?
Certa noite eu encontrava-me em Boca do Acre, em plena selva amazónica, numa celebração de Comunidade Eclesial de Base. Dona Raimunda, mãe de seis filhos, cujo marido havia partido para a Transamazónica em busca de trabalho - onde ficou quatro anos sem dar notícias (e ela soube que, lá, ela constituíra outra família) -, disse na missa, no momento da Oração dos Fiéis: “Quero agradecer a Deus por me ter dado um outro marido que é um pai bondoso para os meus filhos.”
Dona Raimunda uniu-se a outro homem que a ajudava na sobrevivência e na educação dos filhos numa situação de extrema penúria. Eu deveria dizer a ela para não se aproximar da mesa eucarística? Naquele momento, o papa João Paulo II, em visita ao Chile, dava comunhão ao general Pinochet.
Querido papa: leio na Primeira Carta de João que “Deus é Amor: aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele” (I João 4, 16). Essas pessoas que citei, e tantas outras que conheço, amam e, portanto, Deus permanece nelas. Devo adverti-las que não são amadas pela Igreja e, portanto, estão proibidas de receber o pão e o vinho transubstanciados no corpo e no sangue de Jesus, o Senhor da compaixão e da misericórdia?
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Um novo Credo
Por Frei Betto
Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os baptismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitectura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.
Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.
Creio no Deus que se faz refracção na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfémias.
Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.
Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do espanto de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.
Creio no Deus que se esconde no avesso da razão ateia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.
Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.
Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso acto de fé.
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Deus-Pai e o problema do mal
Por Manuel Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)
O livro de Hans Jonas, Le Concept de Dieu, après Auschwitz (Payot et Rivages, Paris) dá que pensar. Hans Jonas é um filósofo judeu alemão cuja mãe foi morta em Auschwitz e que, por isso não compreende que o “Pai-nosso que está nos céus” permita o mal no mundo e dele não liberte aqueles que diz amar.
Francamente, sem a inteligência e a erudição de Hans Jonas, sou tentado a levantar a mesma questão: “Que Deus é este que pôde deixar fazer isto?”. Será que Deus é mesmo Pai? Ou, sendo Pai, será que Deus é mesmo omnipotente? Como acreditar que um Pai permita tão cruentos sacrifícios aos seus filhos? A fé em Jesus Cristo resolve este problema?
No meu modesto entender, resolve, mas com uma ideia de fé que não espezinhe e confunda a razão. Responder-me-ão que manifesto, assim, as taras do iluminismo, que excluem a crença do acto cognoscitivo. Mas não foi no iluminismo, em oposição ao reaccionário conluio trono-altar, que se defendeu a liberdade, a igualdade, a fraternidade?
No processo histórico, o iluminismo foi imprescindível; rejeito, no entanto, que só a razão, empirista e experimental, se possa arvorar em conhecimento credível. Mas como invocar a fé, para aceitar meia-dúzia de dogmas que não passam de verdadeiros disparates, como aquele da virgindade de Maria, antes e depois do parto, como se a virgindade excluísse o mal e a imperfeição?
Demais, não acredito que as pessoas com a fé dos dogmáticos, dos integristas, da obediência cega ao Vaticano não tenham defeitos lamentáveis, como a História nos aponta, repetidamente.
Duas perguntas, a propósito: pela mesma razão que temos deformidades morais, sofremos de patologias de vária ordem? Os nossos limites são tanto de ordem física e fisiológica, como espiritual e moral? Não tenho quaisquer dúvidas a este respeito. As minhas dúvidas são outras: como é possível a um Deus-Pai suportar, sem o mínimo de solidariedade, os sofrimentos pluriformes dos seus filhos?
“A fé tem a resposta” dir-nos-ão alguns serenamente. A fé, para eles, porém, não é um saber crítico e, se não é um saber crítico, como posso dizer que tenho fé? Eu sei que, assim como a razão pura não entende verdadeiramente a vida (“a razão não basta para defender a razão”, escreveu Horkheimer), a fé, se não é razão, também a não entende.
Quero eu dizer: racionalismo e fé, segundo a filosofia e a teologia tradicionais, são dois fundamentalismos. Para mim, a fé é a sabedoria de todos aqueles que sentem a necessidade do Deus que Jesus anunciou. A fé parte da consciência da necessidade de Deus e encontra, em Jesus, a resposta. E este encontro não é racional tão-só, porque nele está, sobre o mais, a complexidade humana. O vivido, o experienciado é bem mais do que uma abstracção teórica.
Jesus é um acontecimento histórico e um sinal de Deus. A fé resume-se a procurar entender o sinal que é Jesus de Nazaré, designadamente na sua Paixão, Morte e Ressurreição, onde o mal desabou sobre Ele, o filho do carpinteiro, e não o venceu! Ou seja, ao lado de Jesus, pode vencer-se a morte, o supremo mal! E como? Para mim, pelo sentido que Jesus deu à sua própria vida: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos! Assim, o sofrimento passa a ter sentido, se a vida é um acto de amor! Termino, adiantando que as dúvidas não desaparecem, dentro de mim, mesmo depois daquilo que venho de escrever. Mas, no meio das maiores incertezas, continua a ser Jesus de Nazaré o visível de todo o invisível.
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IGREJA / SOCIEDADE
L. Boff entrevistado pela Revista Forum
Ou mudamos já os nossos padrões
de produção e de consumo, ou poderemos
vir a conhecer o mesmo destino dos dinossauros
Jornal Fraternizar teve acesso à entrevista que o nosso querido amigo e companheiro L. Boff concedeu à Revista Forum. E dá-lhe aqui o devido destaque. As questões colocadas ao grande teólogo do Brasil são mais do que pertinentes. E as respostas de Boff são cheias de lucidez e de audácia proféticas. "As Igrejas - sublinha quase a concluir - devem ajudar os fiéis a adaptarem-se às mudanças climáticas e, com os recursos próprios da religião, a minorarem os efeitos maléficos do aquecimento global."
O papa Bento XVI é diferente do cardeal Ratzinger?
R. Eu pensava que iria ser diferente. Mas vejo que no fundo é o mesmo. Um Papa doutrinário que ainda pensa ser o Cristianismo a única via para a salvação. As demais vias são todas incompletas e não terminam em Deus. Geralmente quando alguém chega ao ponto mais alto do poder, torna-se mais indulgente e flexível. Com o Papa Bento XVI não ocorreu esta conversão. Ele reafirma a tradicional rigidez do Catolicismo romano com as antipatias que provoca e a evasão de fiéis que saem inconformados com caminhos da Igreja que não são adequados ao nosso tempo. Os cristãos têm o direito de serem contemporâneos em sua fé e não apenas reprodutores de um passado antigo.
Que futuro o senhor projecta para a Igreja com o pontificado de Ratzinger?
R. Já dá para se ver que ele é um Papa de pura transição. Por isso não possui projecto próprio de Igreja. É o mesmo do de seu antecessor que ele fundamentalmente ajudou a formular: uma Igreja que se constrói para dentro, reforçando sua identidade mas sempre com receios e medos da modernidade, daquilo que chama de relativismo e de politização da fé como a teologia da libertação.
Na ocasião da escolha de Bento XVI o senhor disse que seria difícil “amar o novo papa”. Essa opinião ainda se sustenta hoje?
R. O documento que publicou Sacramentum Caritatis sobre a eucaristia contém elementos positivos mas reafirma contundentemente a inflexibilidade da doutrina tradicional sobre questões de moral familiar e sexual. Afasta os divorciados da comunhão, não aceita os preservativos, mesmo para evitar a Aids/sida, nega o “casamento” entre homossexuais e pede que ministros de Estado e legisladores católicos se neguem a votar medidas que conflitam com a doutrina católica. Tais coisas escandalizam e tornam o Papa no mínimo antipático. Ele não se faz amável por todos estes e por aqueles que valorizam o bom senso e a misericórdia, ausentes em sua posição tradicional.
Como o senhor vê a condenação ao silêncio de Jon Sobrino, expoente da teologia da libertação, pelo papa Bento XVI?
R. Eu vejo como uma escaramuça a mais contra a teologia da libertação, a mais viva em todo o Terceiro Mundo. Roma deu-se conta de que, no fundo, perdeu a batalha contra a teologia da libertação. Produziram-se dois documentos: um claramente contra, em 1984 e outro resgatando alguns elementos positivos, em 1986. Mas de pouco adiantou. Esta teologia nasceu de ouvir o grito dos pobres. Esse grito hoje virou clamor. Então ela continua sendo fiel às suas origens, o que irrita o Vaticano. Mas ela não pode fazer outra coisa se quiser ter o mínimo de responsabilidade ética face à miséria na qual vive grande parte da humanidade. Não escutar este clamor é fazer-se socialmente irrelevante e ser simplesmente cínico. A teologia da libertação salva o cristianismo deste cinismo vergonhoso. Jon Sobrino é um sobrevivente do massacre que dizimou toda sua comunidade de jesuítas em 1989 em El Salvador. É um dos teólogos mais respeitados da teologia mundial exactamente por sempre e de novo propor a urgência de pensar a fé a partir das vítimas e de conclamar a Igreja para que tome a sério seu serviço libertador para com os oprimidos do mundo. Como isso não está nas estratégias centrais do Vaticano e Jon tem bom acolhimento por toda a parte, foi enquadrado e silenciado. Batem nele mas visam a Igreja latino-americana, para que não tente retomar seus ideais formulados em Medellin (1968) com a libertação, em Puebla (1979) com a opção pelos pobres e em Santo Domingo (1992) com a inculturação nas culturas dos oprimidos.
Como se estabelece hoje a sua relação com a Igreja? Às vezes o senhor evita tratar de certas questões, por quê?
R. Depois que me auto-promovi a leigo e isso foi aceite por Roma, nunca mais fui perturbado pelas autoridades doutrinais do Vaticano. Minha relação, em termos de opção de vida, continua a mesma: sinto-me dentro da Igreja, como leigo, entretanto mais franciscano que romano. Evito abordar temas de Igreja, porque considero que os grandes problemas hoje que movem a humanidade têm pouco a ver com a Igreja-instituição, como a questão ecológica, a devastação dos pobres, a atmosfera de guerra civil mundial, os fundamentalismos e o terrorismo e agora a incerteza quanto ao futuro do Planeta ameaçado pelo aquecimento global e as mudanças climáticas inevitáveis. Esta é a verdadeira galáxia de problemas e não as questões, por vezes, ridículas e despistadoras, suscitadas por Roma.
Como se deu exactamente a guinada conservadora da Igreja Católica?
R. O aparato romano chamado Cúria, quer dizer, aquelas instituições responsáveis pela condução da Igreja universal nunca acolheram as reformas feitas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Elas foram derrotadas, mas nunca se renderam. Conseguiram aglutinar-se, ocupar os principais poderes centrais e impuseram o curso tradicional a toda a Igreja. Elas conseguiram fazer o Papa João Paulo II e agora Bento XVI. Criaram o seu exército de soldados fiéis que são a Opus Dei e outros movimentos conservadores como Comunhão e Libertação e em geral os grupos carismáticos. Elas garantem a reprodução do modelo antigo, desfasado do mundo contemporâneo.
O cardeal Ratzinger foi realmente o mentor dessa guinada?
R. O então Card. Ratzinger foi o intelectual orgânico desta guinada, o seu formulador e atacante central. Não sem razão disciplinou cerca de 140 teólogos e colocou sob severa vigilância as Igrejas que estão na periferia do mundo e tentam responder aos desafios das realidades conflitivas nas quais vivem. Criou-se o pensamento único na Igreja: o mesmo catecismo universal, o mesmo direito canónico para o pólo norte e para os trópicos, o mesmo rito romano ao qual se proíbe qualquer inculturação, a mesma doutrina básica extraída dos pronunciamentos papais. Sem liberdade não é possível qualquer criatividade. Dai a impressão velhista que este tipo de Igreja provoca e a enorme emigração de fiéis que no Brasil significa 1% em cada ano.
Como está hoje a CNBB e qual é o seu papel actual? Ela é hoje uma entidade conservadora?
R. No pontificado passado ocorreu uma grande mediocrização dos episcopados do mundo inteiro. Para Roma, de facto, o único bispo é o Papa. Os demais bispos desaparecem à sua sombra. E os profetas foram silenciados ou morreram. Esta política de contenção afectou a CNBB que perdeu muito de seu elã. Mas conserva ainda uma reserva de progressismo, especialmente, nas questões sociais como se depreende das Campanhas da Fraternidade, da iniciativa “Grito do Oprimido”, das pastorais sociais como por terra, tecto, saúde e das pastorais dos índios, dos negros e das mulheres marginalizadas. Aqui e acolá surgem vozes proféticas, mas este não é o tom geral da CNBB. Ela tem demasiadamente os dois ouvidos voltados para Roma e menos para a realidade do povo crucificado. Mas nunca faltaram bispos progressistas e ligados à libertação.
A Teologia da Libertação ainda se mantém viva? Tem conseguido resistir?
R. A teologia da libertação continua viva naquelas igrejas que tomam a sério a opção pelos pobres e contra a pobreza e que acolhem o desafio que vem da injustiça social. Por isso é forte na América Latina, África e Ásia. Mas não possui a visibilidade que possui antes porque não é mais tão polémica como um dia foi.
Onde ela ainda é forte e está mais presente?
R. Quando ocorreu o Forum Social Mundial em Porto Alegre há três anos, houve uma semana antes o Forum Mundial da Teologia da Libertação. Aí estavam representantes, cerca de 300, de todos os Continentes e também do Primeiro Mundo. Aí se pôde notar a vitalidade desta teologia. Se ela não tem muito poder, seguramente possui a hegemonia do discurso, pois sobre as grandes questões que afligem a humanidade sempre tem uma palavra a dizer, como por exemplo, sobre o tipo de globalização económico-financeira que cria milhões e milhões de excluídos, sobre o pensamento único neo-liberal que ameaça a democracia, sobre o fundamentalismo e o terrorismo e sobre questões ambientais que agora põem em risco a sobrevivência da espécie humana.
Como o senhor recebeu o relatório do IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change) de que o aquecimento é decorrência da acção humana e é praticamente irreversível? O senhor imaginava que a situação já havia atingido esse patamar?
R. Pertenço ao pequeno grupo que escreveu a Carta da Terra, iniciativa mundial animada por Michail Gorbachev e alguns membros da ONU que desde 1992 até 2000 mobilizou mais de cem mil pessoas em 46 países para saber o que se deveria fazer para salvar a Terra e a humanidade da sistemática agressão pelo sistema mundial de produção e consumo. Todos os cenários com os quais trabalhávamos indicavam o desastre que foi agora confirmado pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas. Julgo que os dados fornecidos que apontam para um irreversível aquecimento global com as ameaças que implicam em termos de devastação da biodiversidade, riscos de dizimação de milhões de pessoas que não terão tempo para se adaptar nem para minorar os efeitos danosos das mudanças climáticas podem mudar o estado de consciência da humanidade. Agora temos que contar com a era das tribulações em todas as partes da Terra. Ou mudamos já agora nossos padrões de produção e consumo ou então poderemos conhecer o caminho já percorrido pelos dinossauros.
O senhor concorda que está havendo uma overdose de discussão sobre mudanças climáticas e que isso pode levar a uma banalização completa da preocupação ambiental, ou acha que essa ampliação da audiência para esse tipo de questão é saudável?
R. Eu acho que se deu uma versão hollyoudiana ao facto, no interesse dos grandes media que lucram com esta dramatização. Mas o tempo do relógio corre contra nós. Se não fizermos nada e deixarmos as coisas correrem como até agora corriam, podemos ir ao encontro do imponderável e do inevitável e pôr em risco o futuro da espécie até sua completa desaparição. O facto é em si alarmante e exige uma nova responsabilidade colectiva. Antes importava proteger e cuidar e não ultrapassar o limite de suportabilidade da Terra. Agora comprovou-se que já ultrapassamos o limite, em 25% da capacidade de reposição do sistema-Terra. Então temos que mudar radicalmente de paradigma civilizacional. Não podemos continuar no mesmo curso, pois ele nos conduz a um abismo dentro de poucos anos. A Terra poderá continuar sem nós.
Como o senhor vê a gestão do presidente Lula na área? Aprovação dos transgénicos e a transposição do São Francisco aparecem como duas das medidas que desagradam aos ambientalistas, mas que vem sendo encampadas, em algum grau, pelo governo Lula. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
R. Pessoalmente creio que o Presidente Lula possui um deficit considerável com referência à consciência ecológica. Ele é experimentado na relação capital versus trabalho, mas mostra insuficiências na área ambiental e ecológica em geral. Por isso o PAC não prevê nada específico na área ambiental. Apenas são pressupostas as medidas legais vigentes, sempre que um projecto vai-se implantar. Ele precisa da análise prévia de impacto ambiental e a aprovação do Ibama. Mas não há uma política específica, especialmente, com referência à preservação ecológica da Amazónia. Prevêem-se novas fronteiras agrícolas mas pouco ou nada se diz sobre o risco ambiental que elas comportam. Basta considerar os dados do Orçamento para este ano. O Ministério do Meio Ambiente continua a ter seus recursos cortados; o corte mais recente foi de R$212,7 milhões ou 32,7% pois caiu de R$651,2 milhões para R$438,5 milhões. Excepção seja feita da Ministra Marina que luta ferozmente por uma nova concepção do desenvolvimento relacionada com o ambiente e até com um novo paradigma de civilização nos trópicos. Mas é praticamente voz profética no deserto dos que pensam obsessivamente apenas em crescimento.
Como vê a proliferação do etanol e do biodiesel? O senhor considera que isso pode levar o país a concentrar ainda mais produção agrícola em poucos produtos e dar mais fôlego para o agronegócio?
R. Eu vejo com preocupação. Procura-se uma alternativa à matriz energética para manter o mesmo padrão de consumo a que estamos acostumados. Este não é universalizável. Já se fizeram os cálculos. Se quiséssemos universalizar o bem-estar material dos países ricos, deveríamos ter à disposição outras três Terras iguais a nossa actual, coisa que é impossível. O triste é que não se prevê uma alternativa de modelo de sociedade menos energívora e dizimadora de recursos naturais não renováveis. Nesse sentido o memorando Brasil-Estados Unidos ou Bush-Lula contém sérios riscos de perpetuar a crise que por sua vez é responsável pelo aquecimento global. Há ainda o risco de que se roubem terras destinadas aos alimentos e às fibras, portanto, ao estômago, para produzir etanol, a fim de manter o sistema funcionando, portanto, as máquinas. Que não ocorra o que aconteceu em São Paulo com a implantação nos anos 70 do Proálcool que gerou a expulsão das culturas de alimentos, encarecimento de preços dos produtos alimentícios e grande desemprego. Sabe-se que coisa semelhante já está ocorrendo agora em várias regiões de Minas Gerais.
Qual a sua visão de mundo actual? Quais valores lhe parecem mais importantes defender e do ponto de vista de suas convicções quais foram perdendo espaço nos últimos anos?
R. Vejo que estamos consolidando uma nova fase da história da Terra e da Humanidade que é a fase planetária. Depois da dispersão secular dos seres humanos por sobre as partes da Terra, agora estão voltando para o todo, para a única Casa Comum que é o planeta Terra. Somos e nos sentimos uma espécie, a espécie humana sapiens e demens, inteligente e demente, formando a família humana com os mais diferentes filhos e filhas. Mas não estamos ainda preparados para esta nova situação. Continuamos vivendo sob o paradigma da divisão, do império de uns sobre outros e da compartimentação das experiências. Importa estarmos à altura da novidade que se está realizando. Agora é a idade de ferro da globalização sob a regência do económico-financeiro. Este se regula apenas pela competição sem qualquer sentido de cooperação. Somente a competição poderá levar-nos a um imenso impasse de falta de um centro articulador que se preocupa com o planeta e com seus habitantes como um todo. Por isso virá ainda ou se reforçará uma globalização política, ética e também espiritual. Eu pessoalmente vejo que precisamos de uma ética mínima que nos permita viver juntos, assentada em três virtudes básicas, a hospitalidade como direito e dever de todos, a convivência pacífica entre os mais diferentes povos e culturas, evitando assim o fundamentalismo e o terrorismo e por fim a comensalidade, quer dizer, poder sentar juntos ao redor da mesa para comer e beber da generosidade da natureza e sentirmo-nos de facto como família humana. Estou seguro de que isso vai ocorrer um dia. Mas precisamos colocar estes fundamentos já agora para que a habitação inclua a todos não só os humanos mas todos os seres vivos que connosco participam desta aventura planetária no curto tempo que nos tocar viver sobre a Terra.
Como o senhor vê a emergência das igrejas carismáticas populares no Brasil?
R. Não considero tal facto nenhuma tragédia. Como luto pela biodiversidade e a aprecio, aprecio também a diversidade religiosa e eclesial. A Deus ninguém viu e Ele habita numa luz inacessível como dizem as Escrituras judaico-cristãs. Então ninguém detém um saber exclusivo dele, como se a cada momento tivesse uma entrevista particular com Ele. A Ele chegamos por via dos símbolos, das metáforas, dos ritos, das celebrações, das danças, da música e das artes. Cada caminho religioso e espiritual revela algo de Deus e Deus mesmo através destes caminhos visita os seus. A mesma coisa vale para as Igrejas. Todas elas são portadoras, com maior ou menor fidelidade, da herança de Jesus. Ninguém pode pretender ter tudo de Jesus. Nem pensaram assim os Apóstolos e Evangelistas que escreveram não um mas quatro evangelhos e São João no final do seu diz que se quisesse dizer tudo sobre Jesus o mundo seria pequeno para conter todos os livros. Portanto, não há que se espantar de que haja várias Igrejas. A Igreja Católica possui uma pretensão fundamentalista de ser a única herdeira legítima de Jesus. É pura ilusão. Aliás há outras Igrejas católicas que não são a romana como a siríaca, a copta e outras, além da Igreja Ortodoxa grega e russa. Todas elas, por exemplo, não possuem a lei do celibato e nem por isso deixam de ser fiéis ao legado de Jesus. O povo brasileiro é singular, pois é um povo religioso e místico. Ele não precisa crer em Deus. Sabe que Ele existe e o acompanha em toda a sua vida. Crê que no caminho para Deus podemos somar muitas coisas, assumir elementos de outras religiões, dos afro-descendentes, dos índios, dos protestantes, dos espíritas e dos católicos. Tudo termina em Deus. O povo não é dogmático nem fundamentalista, mas percebe Deus em todas estas manifestações. Desta mística lhe vem a alegria de viver no meio de tanta miséria e guarda o sentido lúdico que se manifesta no carnaval. Ocorre que as igrejas carismáticas populares atendem as classes mais marginalizadas, aquelas as quais ninguém dá valor e que são consideradas zeros económicos. Seus fiéis estão cheios de necessidades materiais e ao mesmo tempo têm fome de Deus. Estas igrejas descobriram uma linguagem, que podemos discutir e até criticar, de falar ao profundo destas pessoas e de devolver-lhes auto-estima e sentido de pertença. Sentem-se irmãos e irmãs e amados de Deus. Com isso ganham força para sobreviver e resistir à terrível opressão social pela qual passam. Recuso-me a criticar estas igrejas, com receio de que tiremos o último galhinho, o derradeiro apoio que dá sentido a suas vidas. Mas desejaria que elas introduzissem os temas do trabalho comunitário, da dignidade humana e dos direitos dos cidadãos. Elas são ainda muito milagreiras e para os destituídos anunciam o evangelho da prosperidade.
Que acha do movimento carismático católico no Brasil?
R. Eu sou a favor de enfatizar a dimensão carismática na Igreja pois ela rompe com o monopólio que os padres têm da palavra e da produção de bens simbólicos. Fui talvez o primeiro teólogo a sublinhar este aspecto no Brasil ainda nos inícios dos anos de 70, pois era o núcleo de minha tese doutoral, tão apoiada pelo então professor Joseph Ratzinger na Alemanha no final dos anos de 60. Mas no Brasil o movimento carismático católico aceitou a lógica das religiões de mercado. Estabeleceu-se uma espécie de concorrência: quem atrai mais fiéis é o bispo Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus ou o padre Marcelo Rossi da Igreja Católica? Criou-se a igreja mediática, do espectáculo, das multidões entretidas com a aeróbica divina. Os padres parecem mais animadores de auditório que evangelizadores. Os conteúdos são de uma pobreza intelectual espantosa. Canta-se e dança-se muito. Fala-se do Pai-Nosso, Pai de bondade. Mas quase nunca se ouve o Pão-Nosso e os temas da justiça e do empobrecimento de nosso povo. Tanto o movimento do padre Rossi, quanto a Canção Nova, Shallom e Toca de Assis apresentam nítidos traços fundamentalistas. Jamais fazem qualquer aceno de crítica à instituição. Antes, são bajuladores de padres e bispos. Nada sabem das oitenta mil comunidades de base, de quase quinhentos mil círculos bíblicos e das pastorais da Igreja por terra, por tecto, por saúde, por escola, pelos meninos e meninas de rua. Cantam as flores mas esquecem que o florista está sendo explorado e sendo despejado de sua casa por não ter como pagar aluguer. Tais temas são irrelevantes para esse tipo de evangelização. Ela é “moderna”, está no mercado mas sem qualquer sentido de crítica ao tipo de sociedade e de mundo em que vivemos e sofremos. Eles precisam ser ajudados a unir Pai-Nosso com Pão-Nosso, pois só assim poderão dizer, de verdade, amen.
O que o senhor espera da V Assembleia do CELAM a decorrer na Aparecida?
Eu não espero muita coisa. Também não há muita coisa a inventar para a Igreja na América Latina. O importante seria reconfirmar as conquistas feitas pelo magistério dos bispos em suas várias assembleias: em Medellin (1968) o tema da libertação integral; em Puebla (1979) o tema da opção pelos pobres contra a pobreza; em Santo Domingo (1992) a inculturação da fé nas culturas oprimidas, dos pobres, negros e índios. Nestas assembleias sempre se identificou que a causa maior mas não exclusiva de nossa miséria se deve ao sistema económico, político e cultural que se instalou desde os tempos da colónia que em termos directos se chama de capitalismo, hoje em sua versão neo-liberal. Espero que esta lucidez esteja presente nos documentos de Aparecida. Um tema gostaria que fosse abordado: o do futuro do planeta, da vida e da Terra e de nossa responsabilidade global. Depois dos dados do IPCC vai mudar o estado de consciência da humanidade. As Igrejas devem ajudar os fiéis a se adaptarem às mudanças climáticas e com os recursos próprios da religião a minorar os efeitos maléficos do aquecimento global. A Amazónia brasileira é responsável, em grande parte, pelos climas do mundo. Temos que preservá-la como património comum da humanidade. Isso possivelmente estará na agenda de Aparecida. Se fizer isso terá cumprido sua missão histórica num momento crítico da Terra e da Humanidade.
(www.leonardoboff.com)
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