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DESTAQUE 1
Falta de Padres,
ou de outros modelos de Igreja?
Pela primeira vez nos últimos 50 anos, a Diocese do Porto não teve um único candidato a padre/presbítero para apresentar na tradicional ordenação de verão. O Bispo Manuel Clemente mostra-se de cabeça perdida e culpa Deus. Inclusive, publicou uma Nota Pastoral com um rol de medidas de emergência que, bem analisadas, não passam de mais do mesmo. Ora, assim, não vamos lá. É a Igreja clerical a lutar contra o Espírito Santo. Porque o que faz falta são outros modelos de Igreja e outros modelos de ministérios eclesiais, com as mulheres em pé de igualdade com os homens. Sem que ninguém seja tratado como menor e como um castrado à força. Haverá audácia para tanto?
“Estes irmãos que [hoje] acedem às ordens sacras são certamente fruto da oração da Igreja. E podemos dizer que ainda seriam mais e muitos mais, se também maior e mais insistente fosse a nossa oração. Não nos lamentemos, pois. Agradeçamos o que temos e decidamo-nos a pedir o que falta”.
Quem isto diz é o Bispo do Porto, Manuel Clemente, na homilia da missa de ordenação, segundo domingo de Julho 2007, na sua Sé Catedral. É por isso uma afirmação do seu magistério episcopal ordinário. Leio e quase nem posso crer no que leio. Porque esta afirmação revela bem o tipo de Fé que o anima e que anima a generalidade dos bispos e dos presbíteros da nossa Igreja católica, tanto a do Porto, como a das demais Igrejas locais ou diocesanas do país e do Ocidente. E se a Fé da generalidade dos bispos e dos presbíteros é desta qualidade tão pouco jesuânica, o que dizer da Fé dos demais católicos?
O Bispo Manuel Clemente está visivelmente aflito com a falta de padres e de vocações para padre. E culpa Deus por essa falta. Acha que se lhe pedíssemos muito mais do que o temos feito até agora, haveria padres em abundância. E como há falta, muita falta, conclui, precipitadamente, que é porque temos pedido pouco a Deus! Parece que nos culpa a nós, por não termos pedido bastante. Mas na verdade culpa Deus, porque um Deus que pode fazer com que haja padres em número suficiente na sua Igreja e não lhos dá, só porque nós não lho pedimos a toda a hora e instante, só pode ser um Deus cruel e sádico, com nada de Jesus e tudo de Bush, a quem, por isso, será preciso tentar convencer das nossas necessidades, como se, sem essa nossa persistente intercessão, Ele se estivesse nas tintas para nós.
Por outro lado, com este seu ensinamento, o Bispo Manuel Clemente dá também a entender que a oração que fazemos é para comover e convencer Deus a ser-nos favorável, o que perfaz um insulto a Deus-Amor. Então não é Deus quem sempre toma a iniciativa e nos sai ao caminho? Não é Deus quem primeiro nos ama e cuida de nós? Aliás, orar não é dispormo-nos a deixar Deus ser Deus em nós? No caso concreto da falta de padres, não é dispormo-nos, como Igreja, a abandonar os nossos esquemas eclesiásticos, as nossas tradições sem Tradição e, sobretudo, sem Evangelho, abandonar este modelo clerical de Igreja que teimamos em prolongar no tempo, à revelia do que de melhor nos revelou e apontou o Concílio Vaticano II? Não é abrirmo-nos ao Espírito que está aí empenhado em fazer novas todas as coisas, também em suscitar ministérios eclesiais outros, bem mais conformes ao novo tempo que estamos a viver e bem mais de acordo com as exigências do Terceiro Milénio? Numa palavra, orar não é convertermo-nos a Deus, ao seu projecto, à sua vontade, em lugar de querermos converter Deus a nós, aos nossos projectos, aos nossos egoísmos corporativos, aos nossos privilégios clericais, às nossas rotinas e às nossas vaidadezinhas?
Pelos vistos, vocações para Bispo, ainda há muitas na Igreja. Ninguém pode começar a falar em crise de vocações para Bispo. Por este andar, chegará ainda o tempo em que haverá mais bispos do que padres! Mas o mais curioso e elucidativo é que, na mesma altura em que o Bispo Manuel Clemente lançou este seu dramático apelo a mais e mais oração e até fazia publicar uma breve Nota Pastoral sobre o problema da falta de padres, o Papa Bento XVI nomeava mais um bispo auxiliar de Braga, e, com isso, “roubava” mais um padre à diocese do Porto. Poderia e deveria ter escolhido um padre da arquidiocese de Braga, mas não; optou por um da diocese do Porto. E não é que ele aceitou, apesar de haver tanta falta de padres? Trata-se de um padre da Sociedade Missionária Boa Nova, António Couto, de seu nome. Terá, inclusive, de abandonar o cargo de Superior geral daquela Sociedade Missionária, para se tornar bispo auxiliar de Braga, mas, pelos vistos, isso não é problema.
O facto, porém, prova que a nomeação para bispo ainda continua a encontrar muitos candidatos disponíveis. E isto, sem chegar a ser necessário que os fiéis católicos multipliquem os seus pedidos a Deus em oração!... Na hora, os candidatos sempre aparecem e avançam.
Sem entretanto querer fazer juízos de intenção, é de suspeitar que os candidatos ao episcopado o são, não tanto por fidelidade ao Espírito Santo, como sobretudo por vaidade pessoal. Ou o episcopado não aparecesse aos olhos das populações de tradição católica romana e dos próprios padres/presbíteros candidatos, como uma dignidade, uma honraria, aquele passo que lhes faltava para atingirem o topo da carreira eclesiástica e clerical. Se fosse, como deveria ser, a fidelidade ao Espírito Santo a mover quem aceita ser bispo, os nomeados em causa teriam necessariamente, depois de ordenados, outro comportamento eclesial e social, outra prática episcopal bem mais evangélica e jesuânica. A sua vivência de bispo seria assumida sobretudo como incruento martírio a favor da libertação dos pobres e oprimidos do mundo, não como um privilégio de casta, muito menos como o topo da carreira eclesiástica.
Infelizmente, são poucos, muito poucos os bispos mártires entre nós e na Igreja católica ocidental. Abundam os bispos-poder, os bispos funcionários eclesiásticos, os bispos súbditos da Cúria do Vaticano e vassalos de Roma. Quem, de todos os bispos hoje em exercício na Igreja em Portugal, está a ser inequivocamente bispo mártir, testemunha viva de Jesus e do seu projecto? Não são todos sobretudo funcionários eclesiásticos, mais atentos à Cúria romana e ao Núncio apostólico residente no país, do que ao Espírito Santo e aos pobres?
Ao contrário do que ocorreu até há bem pouco na Igreja católica em Portugal e por todo o Ocidente da Cristandade, são hoje quase nenhumas as chamadas vocações para padre/presbítero. Pode-se por isso dizer que esse já foi chão que deu uvas, quando ser padre ainda aparecia aos olhos das populações católicas humilhadas e empobrecidas do interior como uma oportunidade de o candidato a padre sair da pobreza e da humilhação. Ter um filho padre dava prestígio à família em causa e assegurava-lhe uma certa prosperidade material e social. Só isso explicará a abundância de vocações para padre nos tempos passados que eram também de generalizada miséria imerecida e de generalizado analfabetismo das populações. E explicará igualmente a escassez com que hoje a Igreja se depara. Não é, por isso, uma questão de mais oração, ou de menos oração, como erradamente ensina o Bispo Manuel Clemente. Pelo menos, para se ser padre deste modelo clerical e piramidal de Igreja católica romana.
A oração tem, evidentemente, o seu lugar na Igreja, mas quando é feita para nos converter (não para converter Deus!), concretamente, quando é feita para nos levar a desejar/acolher padres/presbíteros, mulheres e homens, cheios de Espírito Santo e de Fé, da mesma Fé de Jesus, como Estêvão e Barnabé, por exemplo, logo no início paradigmático da Igreja, em Jerusalém. Porque, para se ser funcionário eclesiástico, clérigo instalado nas rotinas e nos ritos, como é o que hoje os bispos eclesiásticos, súbditos de Roma, mais pretendem que os padres sejam, não contemos nunca com a intervenção do Espírito Santo. Ele simplesmente não tem lugar numa Igreja assim eclesiástica e clerical. E, por isso, a oração, por mais que se multiplique numa Igreja assim não passará de oração à maneira dos pagãos que pensam que é no muito repetir e no muito pedir que serão atendidos. Não são, porque Deus não é Deus de rotinas nem de ritos, nem de carreirismos eclesiásticos, nem de vaidadezinhas clericais. É Deus de vivos, que vê sem cessar a situação de miséria imerecida dos povos oprimidos e escuta os seus clamores e está aí ininterruptamente apostado em libertá-los, mediante sucessivas Páscoas sociais e políticas que visam fazer novas todas as coisas. Porque a uma Igreja de rotinas e de ritos, como a nossa Igreja católica romana hoje é, também aqui no Porto, Deus Vivo só pode vomitá-la da sua boca.
Rezam os factos que este ano, pela primeira vez nos últimos 50 anos, a diocese do Porto não conseguiu apresentar um único candidato a padre/presbítero nesta habitual ordenação de verão. É verdade que houve ordenações, muito poucas, no segundo domingo de Julho passado, mas nenhum era da Igreja diocesana, propriamente dita. Estão sob a jurisdição do Bispo do Porto, mas provêm directamente de Congregações religiosas, que têm a sua própria autonomia canónica; não provêm do seminário da diocese. Este dado objectivo é deveras perturbador, se for visto à luz do actual modelo clerical de Igreja que o Papa e os Bispos insistem em perpetuar como se fosse querido por Deus (que futuro pode ter este modelo de Igreja clerical, se não consegue ter candidatos para ordenar?!). Terá sido este dado que desencadeou no Bispo Manuel Clemente justificada aflição. Como há-de ele continuar a ser o bispo do Porto, se tem cada vez menos padres clérigos para colocar à frente das centenas de paróquias? E se os que actualmente se mantêm à frente delas estão já, na sua maioria, na casa dos 70 anos de idade e, mesmo assim, ainda têm de assumir duas, três ou mais paróquias ao mesmo tempo? Perante uma realidade eclesiástica tão desoladora, o Bispo que veio do Patriarcado de Lisboa, onde era auxiliar, para titular do Porto e que, quando tomou posse, há meses, era todo sorrisos e ar de felicidade, está agora aos papéis, pois vê o chão fugir-lhe de debaixo dos pés. E tão aos papéis, que nem hesita em responsabilizar Deus por este beco eclesiástico sem saída!...
Ainda não percebeu o Bispo Manuel Clemente que é este modelo clerical de Igreja e este modelo clerical de ministério ordenado que estão condenados a desaparecer! E quem mais empenhado está nisso é o próprio Espírito Santo. Basta sabermos ler os sinais dos tempos para chegarmos a essa conclusão. É por isso que não se trata de pedir a Deus para que nos dê muitos e bons sacerdotes, como sempre fez a Igreja clerical, nos séculos passados e, pelos vistos, ainda persiste em fazer hoje. Do que se trata é de passarmos a ser uma Igreja que consente que Deus, o de Jesus, seja Deus nela e por ela. Com todas as consequências. Os ministérios ordenados e não-ordenados acontecerão então segundo as necessidades e com a roupagem secular que hoje as sociedades já têm e que a Igreja também há-de passar a ter. Por isso, ministérios protagonizados igualmente por homens e por mulheres de Fé jesuânica comprovada, casados, viúvos ou celibatários por opção (nunca celibatários à força como agora), com formação académica ou sem ela, mas sempre com capacidade de discernir os sinais dos tempos e de ajudar a fazer crescer na Fé as comunidades, isto é, com capacidade para fazer com que as comunidades cristãs sejam comunidades empenhadas, historicamente comprometidas com as causas da Humanidade, a começar pela mais empobrecida e oprimida.
Infelizmente, o Bispo Manuel Clemente, como de resto, os seus irmãos no episcopado, a começar pelo Bispo de Roma e papa da Igreja universal, preferem assobiar para o ar e convidar as pessoas católicas a multiplicarem a recitação de fórmulas de oração, como se a nós católicos nos pertencesse convencer Deus a ser-nos favorável, quando, afinal, Deus é o primeiro a sair-nos ao caminho, para que lhe demos a oportunidade de ser Deus em nós e por nós, tal como aconteceu, de forma plena e definitiva, com Jesus, o de Nazaré. Infelizmente, é nesta errada direcção que vai a homilia proferida por ele na referida missa de ordenação. E é igualmente nessa mesma direcção que vai também a Nota Pastoral, divulgada por ele, na mesma ocasião. Em concreto, são estas as orientações que a Nota Pastoral nos apresenta, por sinal, todas demasiado vagas e, pior, sem que haja quem lhes possa dar corpo na diocese. Transcrevo:
“Reforçar a pastoral de conjunto; corresponsabilizar ainda mais os vários agentes da pastoral, clérigos e leigos, desenvolvendo a formação para o diaconado e os ministérios; incrementar a formação a todos os níveis; intensificar a pastoral vocacional; acompanhar de perto os padres, diáconos e leigos comprometidos na pastoral; olhar mais criativamente as novas fronteiras da evangelização, na sociedade e na cultura; agilizar os serviços de apoio à pastoral e redefinir eventualmente a quadrícula diocesana (regiões pastorais, vigararias…).”
No meu modo de ver, trata-se de uma orientação pastoral certamente bem intencionada, mas que acabará por deixar tudo na mesma, pois não consegue descolar dos lugares comuns, já tantas vezes repetidos na Igreja católica romana, quando, do que hoje se nos exige é que façamos novas todas as coisas. Para vinho novo, odres novos, sublinha Jesus, o dos Evangelhos Sinópticos. Ora, do que hoje se trata é de termos a humildade e a audácia de deixar de continuar a gastar o melhor das energias das pessoas e das organizações católicas em rotinas eclesiásticas sem sentido e alienantes, e de atrevermo-nos a colocar toda a Igreja do Porto em estado de missão, onde a prioridade das prioridades vá inteira, não para os ritos e os cultos sem profecia, para as devoções e os sacramentos sem militância no mundo, mas para a missão de Evangelizar os pobres, oportuna e inoportunamente e, entretanto, saber esperar, com a atenção vigilante e comprometida das chamadas virgens sábias do Evangelho de Mateus, que o Espírito Santo suscite novos modelos não mais clericais e paroquiais de fazer Igreja e os correspondentes ministérios ordenados e não-ordenados que a levem a ser Igreja no mundo e na História, inteiramente ocupada em mudar a face da terra, mediante a implementação de práticas económicas e políticas outras, geradoras de sororidade/fraternidade universal.
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DESTAQUE 2
Emigrantes: são 300 milhões
e exigem nova Ordem Mundial
São hoje 300 milhões os emigrantes em todo o mundo. Por isso, a presente Ordem Mundial do Dinheiro, do Templo e do Império que os pariu a todos, que se cuide. Porque tanto sofrimento, tanto desenraizamento, tanta exploração, tanto cinismo e tanta arrogância, à mistura com tanta fome de justiça, vão acabar por exigir e fazer surgir uma outra Ordem Mundial bem mais decente e à medida da dignidade dos povos. Não há já sinais?
O lema do XXVII Congresso de Teologia de Madrid sobre a emigração, "Fui emigrante e acolhestes-me", não podia ser teologicamente mais desafiador e provocador. Recorda-nos que em cada emigrante que deixa a sua terra, o seu país e quase sempre também a própria família de sangue e vai para um país desconhecido e distante, em busca de trabalho melhor remunerado e de mais e melhor qualidade de vida para si e para os seus, é o próprio Jesus - o próprio Deus - que misteriosa e inesperadamente nos visita e espera ser acolhido por nós.
Soubessem disto os países da abundância e os respectivos povos e a realidade da emigração, hoje tão premente e massiva, seria indubitavelmente encarada de outro modo bem mais humano. Em lugar de história de dor e de humilhação, de desprezo e de exploração que continua a ser na maior parte dos casos, tornar-se-ia acontecimento maior de acolhimento e de encontro de povos e de culturas, numa comunhão e partilha de valores que nos havia de enriquecer a todos.
Infelizmente, o nosso mundo vive hoje, mais ainda do que no passado, sob uma Ordem Económica Mundial constitutivamente perversa e cainita, que não olha a meios para conseguir satisfazer os seus apetites de mais e mais Dinheiro e de mais e mais Poder - é a lógica do grande Capital e das suas multinacionais sem entranhas de humanidade - dentro da qual não há, quase não há lugar para os seres humanos anónimos e sem muito Ter, muito menos há lugar para Deus, sobretudo, para aquele Deus que faz questão de se tornar misteriosamente presente entre nós na pessoa de homens, de mulheres e de povos em situação de aflição e de grande carência, de desemprego e de busca de melhores condições de vida. Aliás, já não houve lugar para Ele, quando Ele paradigmaticamente se fez Jesus, o de Nazaré, a reclamar de nós e de todos os povos entranhas de misericórdia e de acolhimento, de partilha da riqueza produzida e de comunhão de vidas. "Veio para o que era seu, e os seus não o receberam", revela para todo o sempre o Evangelho de João. E recusa a recebê-lo começou logo pelos principais dirigentes políticos e pelos proprietários maiores de então, os quais, como sucede ainda hoje, beneficia(va)m mais do que ninguém da Ordem Económica Mundial.
Hoje, porém, a realidade da emigração em todo o mundo conhece proporções que o passado nunca conheceu. Estudos recentes e sérios revelam que são 300 milhões os emigrantes em toda a terra. Revelam também que são dramáticas as condições de vida em que a maior parte dos emigrantes é condenada a ter de viver, num contraste sacrílego e blasfemo com o espavento e o fausto em que insistem em viver as minorias privilegiadas dos países aonde os emigrantes se estabelecem e vêem a sua força de trabalho ser vergonhosamente explorada por empresas sem escrúpulos. Semelhante contraste brada aos céus e atinge não só o coração de Deus Vivo, mas também o coração e a mente dos próprios emigrantes de carne e osso.
Não se pense que semelhante clamor continuará a ser por todo o sempre politicamente estéril e inconsequente. Não será mais assim. Pelo contrário, o século XXI será um século de viragem e de parto de uma nova Ordem Económica Mundial, mais condizente com a justiça e a dignidade dos seres humanos e dos povos, qualquer que seja a cor da sua pele, a cultura e a nacionalidade. Tão grande número de emigrantes, quando gerar um colectivo à Moisés bíblico, tornar-se-á imparável no mundo e na História. A sua força política será semelhante à de um tsunami que derrubará a presente Ordem Económica Mundial e estabelecerá as condições propícias ao desenvolvimento de uma outra bem mais humana. Poderá ser uma revolução global conduzida pela inteligência e pela ternura. Como poderá ser uma revolução global violenta. Por parte dos emigrantes e de todos os que estamos com eles na mesma fome de justiça e de dignidade, será uma revolução global conduzida pela força da ternura e pela inteligência. Só recorreria á força da violência, se os detentores dos privilégios permanecessem tão grosseiramente surdos e insensíveis que não entendessem outra linguagem senão essa.
O XXVII Congresso de Teologia de Madrid que decorreu, como de costume, na sala de actos das Comisiones Obreras, constitui um momento de graça e de verdade para os cerca de mil participantes, muitos dos quais, mulheres e homens, integram múltiplos colectivos de imigrantes em Espanha. Aliás, algumas delas, alguns deles tiveram voz e vez no Congresso e marcaram a ferro em brasa a consciência dos demais.
Jornal Fraternizar que esteve presente, na pessoa do seu director, desde a sessão de abertura à de encerramento, percebeu que os tempos europeus e mundiais estão a ficar maduros para uma inevitável revolução global, com os emigrantes como principais protagonistas. Se não forem os que primeiro cá chegaram, serão os seus filhos e filhas, ou os seus netos e netas que assumirão esse serviço libertador. Uma coisa é certa: A presente Ordem Mundial do Dinheiro, do Templo e do Império não tem futuro, de tão perversa e assassina que é. Se persistir em ser cega, surda e muda, nos seus dirigentes políticos maiores, a mudança será cruenta, mas será!
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A emigração produz famílias transnacionais
O XXVII Congresso de Teologia de Madrid não poderia ter começar melhor, a nível de comunicações, de partilha de ideias e de pontos de vista. Enrique de Castro, o pároco de Entrevías (foto) que há meses resiste com ternura e paz à guerra aberta que o Arcebispo de Madrid não hesitou em abrir contra ele e contra o trabalho pastoral exemplar que ele está a levar a cabo, fez a apresentação, logo seguido da primeira conferência proferida por Carlos Jiménez. Este Prof. da Universidade Autónoma de Madrid surpreendeu todo o Congresso, ao colocar toda a ênfase nos aspectos positivos da emigração. "A emigração produz a criação de famílias transnacionais e obriga a ultrapassar o tradicional figurino Estado-Nação". Já a conferência de encerramento do Congresso coube ao belga de renome mundial, François Houtart, Director do Centro Tricontinental, sem dúvida o mais aplaudido pelos congressistas, elas e eles.
"Calculo - começou por dizer Enrique de Castro, vestido com a máxima simplicidade e invulgar alegria - que um dos motivos por que me convidaram a apresentar este congresso de teologia deve-se ao apoio que nestes últimos meses tendes dado à nossa paróquia, pelo que, nesta ocasião, quero, sobretudo, dar-vos um muito obrigado em nome de toda a nossa comunidade". E prosseguiu (leiam até final, que é exemplar como procedem):
"Não foi só uma manifestação de apoio, mas uma constatação de que todos nós estamos empenhados em provar que é possível recuperar o sentido genuíno da Igreja de Jesus, baseada na utopia (talvez hoje entendemos melhor esta palavra do que a palavra reino), a justiça da reconciliação e a solidariedade.
«Fui emigrante e acolhestes-me». Na nossa paróquia tudo começou no final de 2001. Chegaram da América Latina, do Magreb, subsarianos, alguns do leste europeu e até dois da Mongólia. Pretendiam os papéis ou a legalização, mas viviam na rua, sem casa. Descobrimos que não bastava apoiar as suas reivindicações, havia outros noutras paróquias e diversos centros e, em diversas cidades, promoveram-se manifestações massivas de apoio. Não nos foi difícil perceber que, enquanto procuravam os seus objectivos, precisavam de satisfazer as suas necessidades mínimas de alimentação, tecto e afecto, porque já tínhamos a experiência dos chamados meninos da rua. A única coisa que os distinguia destes é que eram estrangeiros. Em tudo o mais, é a mesma coisa: têm, como eles, que assegurar a própria subsistência e são também perseguidos como eles, mas ainda com maior requinte. Vimos que não tinham apoio, devido a estar fora da sua terra, não sabiam onde refugiar-se ou esconder-se como os de cá, eram desconfiados e os marroquinos mal balbuciavam a nossa língua...
Começaram então a viver nas nossas casas, sobretudo, os do Magrebe, o que foi para eles passar a sentir segurança e confiança. Na paróquia e nas nossas casas acolhemos centenas deles. Tomamos contacto com as suas famílias e em diversas ocasiões fomos mesmo conhecê-las ao vivo, no país de origem, o que fez com que desde então nos considerem sua família em Espanha.
Hoje, temos muitos menores de 18 anos que estão a ser abusivamente expulsos, sem qualquer garantia jurídica, sem que se conheça a sua situação familiar, enganando-os, lesando os seus direitos fundamentais. A equipa de advogados da paróquia conseguiu arrancar literalmente do avião, por ordem judicial, muitos destes rapazes que iam ser repatriados clandestinamente.
Não posso alongar-me. Quero só assinalar que há diversos grupos no nosso país, crentes e não crentes, que estão a viver esta mesma experiência com os imigrantes. Através dela passamos da convivência e do apoio à luta mais ou menos organizada, na qual participam os próprios, os antigos rapazes da rua e os diversos grupos que se organizaram já nos anos oitenta, as mães incluídas.
Quero assinalar outro aspecto da ligação entre eles e nós. No final de 2001, celebrámos a eucaristia aos domingos, como sempre. Para isso eles tinham que retirar da sala onde celebrávamos os colchões, mantas e objectos pessoais. Entretanto, todos faziam questão de permanecer na nossa celebração. Para os imigrantes de língua castelhana, cristãos na sua maioria, não era difícil, mas para os muçulmanos sim.
Começámos por isso a fazer celebrações comuns, lendo também versículos do Alcorão que eles traduziam, dizendo nós Amén à oração deles em árabe e unindo eles as suas mãos às nossas no Pai-Nosso. Eles dizem “a mesa de Jesus”, partilham connosco o pão e o vinho, tal como os ateus e agnósticos e um ou outro diz: “Sou muçulmano, mas esta é a minha igreja”. De facto, consideram a paróquia como a sua casa, participam em tudo, celebramos juntos as suas festas e as nossas e eles também gritam o “NO, NO NOS MOVERÁN”. Hoje, não há diferença entre nós, entre os de cá e os de lá, são muitos os laços que nos unem, inclusive a fé que nos leva a superar obstáculos e medos.
Os imigrantes são parte dos pobres e dos excluídos da terra, portanto são a herança, a igreja do Deus de Jesus. Nós só somos Igreja de Jesus se convivemos com eles e lutamos com eles.
Queria ainda fazer convosco uma reflexão em vários pontos, a partir do que fomos descobrindo estes anos na paróquia, agora que se tornam tão evidentes aos olhos de todos as diferenças entre a concepção da Igreja vaticanista e a que podemos chamar Igreja de base.
Em primeiro lugar, pensamos que seria importante mudar a concepção de paróquia como lugar de culto para a transformar em lugar de encontro. Se a Igreja de Jesus é dos pobres, as paróquias e as comunidades são o lugar dos pobres e, hoje, que falamos deles, também dos imigrantes. Os que já estamos dentro delas teremos que abrir-lhes as portas e facilitar-lhes que descubram a fé como motor da vida humana, das suas próprias vidas, não por discursos, mas encontrando com eles a riqueza que existe na desnudez de cada um. Não se abre uma paróquia se não se abrem as nossas casas e os nossos tempos, se não se verifica um encontro e uma convivência em igualdade, onde todos mergulhamos no interior dos outros, escutando necessidades, problemas, procurando soluções e, quando estas acontecem, celebrá-las. A celebração, a festa, a eucaristia deixarão então de ser vazias, porque celebraremos o que estamos a descobrir e a viver.
Isto fará mudar a nossa concepção assistencialista e moralista que diz: “Temos que ajudar os pobres”. Todos os que formamos a paróquia e a comunidade nestes anos, já descobrimos que foram eles, os pobres/imigrantes os que deram sentido às nossas vidas, porque primeiro nos ofereceram as suas. Fizeram com que caíssem os nossos esquemas, as nossas concepções burguesas, o nosso protagonismo. Tornaram possível que descobríssemos a fé no ser humano e na nossa capacidade de mudança. Trouxeram-nos a boa notícia.
O segundo momento desta reflexão é sobre a liturgia nas nossas paróquias e comunidades. Os pobres - e aqui incluo os jovens - devem percebê-la como algo seu. Mas como? Com estas roupagens? Já lhes basta Cañizares! Com estes cânticos? Com estes monólogos dos párocos?
Em muitas comunidades isto está a mudar, nós aprendemos com elas, e em algumas paróquias há grupos que celebram de outra maneira, mas às escondidas. Penso que temos de ir superando medos, para que numa sociedade cada vez mais laica as nossas paróquias não escorracem as pessoas por aborrecimento ou por indiferença. Não vemos nem sequer os mais velhos fugir das celebrações em que todos participamos. Apenas se afastaram os submissos, os que colocam a norma por cima do ser humano.
O último ponto a que me quero referir é o da luta. Quando facilitamos uma casa a um imigrante, ou o ajudamos a conseguir os papéis, ou lhe facilitamos um posto de trabalho, já fizemos muito por ele. Porém, isso ainda é assistencialismo. Mas se estás vinculado pessoalmente, denuncias quando o maltratam, protestas contra a sua expulsão, ou esconde-lo, dás-lhe um trabalho clandestino, tornas-te cúmplice, incondicional, encobridor, que ninguém lhes toque porque já são algo de ti. A caridade deixa de ser assistencialismo e converte-se em justiça, baseada no amor, não na lei. E tudo isto vivido não isoladamente, mas em grupo, em comunidade, torna possível a utopia, isso que nós chamamos reino.
Estamos a assistir a situações espantosas dos emigrantes nas travessias pelo mar e nos desembarques ilegais, a perseguições, inseguranças e expulsões de multidões de pessoas que só procuram viver. Penso que este congresso nos ajudará a construir uma Igreja que responda não ao que reclamam os hierarcas investidos de poder, mas às expectativas de quantos andam à procura da boa notícia.
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François Houtart:
Hoje o capitalismo procura novas fronteiras
"Hoje, tudo - Estado, media, escolas [e até Igrejas?] - está ao serviço da acumulação do capital. Também a emigração. Abrem-se, ou fecham-se fronteiras, conforme interessa à acumulação do capital. Hoje, o capitalismo procura novas fronteiras". São lúcidas palavras de François Houtart, no encerramento do Congresso de Teologia.
O conhecido sociólogo belga, cristão ilustrado e comprometido, nomeadamente com os povos empobrecidos do Sul, advertiu também que o capitalismo, na sua fome insaciável de acumulação do capital, vai matar, dentro de muito poucos anos, tudo o que ainda resta de agricultura camponesa. Ficará apenas a agricultura empresarial. O Banco Mundial já o diz abertamente e está a trabalhar para que assim se faça. Age, sem querer saber dos milhões de pessoas que vivem/sobrevivem da agricultura camponesa. Todos serão expulsos das terras que trabalham. Em vários países da América Latina, são centenas de milhões. A acumulação do capital exige este passo e ele acabará por ser dado. De resto, a lógica do capitalismo é reduzir o ser humano a mercadoria. E a emigração também. Será que os povos ainda vão conseguir resistir a este destino? Ou embarcam nesta carruagem, mais ou menos alienados? Os emigrantes/imigrantes resistirão, ou embarcarão, seduzidos pelas ilusões que o capital tão habilmente sabe criar, junto das pessoas? Ainda iremos a tempo e obrigaremos o Capital a parar na sua insaciável fome? Conseguiremos que as pessoas e os povos estejam primeiro, valham mais do que o capital?
Houtart não hesitou em apontar a solidariedade como caminho a ter de ser percorrido pelos povos. Mas alertou para o perigo de um certo tipo de solidariedade paternalista que ainda cai dentro da lógica do capitalismo e, à distância no tempo, acaba por o fortalecer ainda mais, quando é urgente enfraquecê-lo, dominá-lo, controlá-lo, domesticá-lo.
Receitas estruturais e imediatas, não há. Há indícios, sinais, iniciativas que suscitam esperança e podem abrir o futuro ao presente. Em concreto, apontou a recente criação do Banco do Sul, ainda a dar os primeiros passos, mas que pretende vir a afirmar-se como alternativa ao Banco Mundial. Fala também da necessidade premente de redefinir a Economia e de a reconstruir. E agrada-se perante o socialismo século XXI, de que fala com entusiasmo o presidente Hugo Chávez, da Venezuela.
Outra via que aponta e que há-de ser assumida pelos povos é privilegiar o valor de uso sobre o de troca. E lembrou a necessidade premente de generalizarmos a prática da democracia participativa, incluída, obviamente, a democracia económica e de género.
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Mensagem final
do XXVII Congresso de Teologia
De 6 a 9 de Setembro de 2007, cerca de mil pessoas participamos no XXVII Congresso de Teologia, celebrado em Madrid, sob o lema “Fui emigrante e acolhestes-me”.
1. É evidente que nos últimos anos em Espanha produziu-se uma grande mudança sociológica, devido aos fortes fluxos migratórios que puseram à prova a capacidade solidária da população em geral e dos cristãos em particular, assim como a capacidade legislativa e executiva dos sucessivos governos para fazer frente aos problemas derivados desse novo fenómeno social. De país de emigração, Espanha transformou-se num país de imigração. E a realidade mostra que nem sempre soubemos estar à altura das exigências que a nova sociedade nos coloca.
2. Temos que encarar esta nova realidade não apenas numa perspectiva sociológica e económica, com suas repercussões directas no mercado de trabalho e na economia, mas também na sua dimensão religiosa e cultural, sobretudo, se temos em conta que uma percentagem muito elevada dos imigrantes integram culturas, religiões e igrejas cristãs de tradições diferentes da maioria em Espanha.
3. Do ponto de vista religioso, a fé cristã não faz distinção de raças nem estabelece fronteiras de separação, portanto deve promover uma sociedade inclusiva, na qual todos e todas possam ocupar um espaço digno em igualdade de oportunidades; uma sociedade na qual não haja estrangeiros nem apátridas e os “papéis” não condicionem nem a dignidade nem as oportunidades das pessoas.
4. As migrações massivas obrigam-nos a recordar a mensagem paulina: “Acolhei-vos uns aos outros como Cristo nos acolheu” (Rom 15, 7). Ou o texto-lema do nosso Congresso: “Se um emigrante [estrangeiro] vier residir contigo na tua terra, não o oprimirás. Será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque também vós fostes emigrantes na terra do Egipto” (Lev 19, 33-34). Este “acolher o outro”, sem qualquer discriminação, sem paternalismos nem exclusivismos de nenhum tipo, é o núcleo da boa notícia ou Evangelho [de Jesus] e a chave para criar uma nova sociedade.
5. Como população receptora de imigrantes, Espanha tem que aprender a vê-los não como um problema, mas como uma fonte de riqueza, tanto do ponto de vista cultural e espiritual, como pela contribuição que eles estão a dar ao desenvolvimento do país. Não se trata de ”mão-de-obra barata”, da qual se poderá prescindir quando o ritmo da economia afrouxe ou as circunstâncias o aconselhem, mas de pessoas, sujeitos de direitos: direito ao acolhimento, direito à dignidade, direito à defesa jurídica, direito à livre circulação, direito a beneficiar de um marco jurídico que lhes proporcione estabilidade, direito à prática da sua própria religião e património cultural, direito a uma casa digna, direito à reunião da família… Numa palavra, são pessoas às quais devem ser reconhecidos todos os direitos humanos, incluído o sufrágio eleitoral, como cidadãos que são para todos os efeitos.
6. O Congresso revelou especial sensibilidade para com as mulheres imigrantes, dupla ou triplamente oprimidas: por ser imigrantes, por ser mulheres e, em muitos casos, por pertencer a culturas, raças e etnias discriminadas. E assumiu o firme propósito de trabalhar neste terreno para conseguir a sua plena integração na sociedade e o reconhecimento dos seus direitos em todos os campos: laboral, familiar, económico, educativo e social.
7. Numa palavra, temos que aprender a valorizar a riqueza cultural e económica que a presença dos imigrantes nos traz, sempre no respeito pela diferença, num marco de igualdade jurídica em que possam ser criados espaços comuns de convivência, nos quais temos de exercer a solidariedade de maneira activa e generosa.
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À margem da temática do Congresso
Reconhecimento a Jon Sobrino
"Somos milhões os que te acompanhamos, mas sobretudo acompanha-te Jesus de Nazaré". São palavras vigorosas e proféticas do Bispo Pedro Casaldáliga, escutadas durante a sessão pública de reconhecimento a Jon Sobrino, o teólogo maior da Igreja dos pobres, recentemente condenado pela Cúria Romana. A sessão foi promovida pelo XXVII Congresso de Teologia de Madrid. Recordou aquelas palavras, com visível emoção, o próprio presidente da Associação de Teólogas/teólogos João XXIII, Júlio Lóis.
O mesmo teólogo citou também a tomada de posição dos 19 directores da Revista internacional de Teologia Concilium. Nela se afirma que a Notificação da Cúria Romana "não tem em conta o desenvolvimento que a teologia conheceu nestes últimos 50 anos e recorre a uma argumentação dedutiva que não pode fazer justiça ao enfoque contextual e hermenêutico de Jon Sobrino, muito menos ao seu compromisso académico com o avanço exegético e teológico". E acrescenta: "O caso Jon Sobrino tem as suas implicações sobre o modo em que o magistério da Igreja se relaciona com os teólogos, assim como sobre o modo em que os teólogos se relacionam com a fé dos pobres do mundo."
Também o conhecido teólogo ibérico, J. M.ª Castillo, integrou a mesa da sessão. E abriu a sua intervenção indignada com a Cúria Romana e solidária com Jon Sobrino, com uma eloquente pergunta: "Porquê a Cúria Romana se incomoda tanto com a forma como Sobrino fala e testemunha sobre Jesus, o dos pobres, e não sobre tantos outros temas que ele aborda libertadoramente na sua teologia?" E respondeu: "Porque o Vaticano tem medo dos pobres. Para o Vaticano, primeiro estão os dogmas, só depois a realidade e, desta,os pobres que são a realidade mais real. A Igreja no Vaticano tem medo dos pobres e só os encara como objecto de caridade. Não pode com os pobres como sujeito. Metem-lhes medo! E defende-se deles com os dogmas."
Por sua vez, o grande teólogo José Tamayo Acosta interveio com uma comunicação objectiva e contundente contra o Vaticano. Sobretudo, pela sua incapacidade em entender, acolher e aprender com o teólogo maior dos pobres e dos mártires que é Jon Sobrino, ele próprio um mártir vivo, sobrevivente da UCA. Mas os cardeais da Cúria passarão e a teologia maior de Sobrino ficará!
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IApresentação da
Agenda Mundial
Numa sessão extra-Congresso, mas no mesmo espaço onde ele decorreu, teve lugar a apresentação da Agenda Latino-americana 2008, que hoje já se assume como agenda mundial. Temática em destaque deste ano é a Política, uma que morreu e outra que tem de erguer-se e praticar-se, sob pena de o nosso presente mundial vir a ficar sem futuro!
O teólogo clareatiniano José M.ª VIGIL, principal cérebro da Agenda, desde o seu primeiro número, em total parceria e comunhão com o Bispo Pedro Casaldáliga, hoje já emérito da Igreja de São Félix do Araguaia, no Brasil, foi um dos rostos da apresentação. Salientou a importância que a edição de 2008 dá à Política. Reconheceu que há hoje um tipo de política que é sinónimo de corrupção e de corruptos, de mentira e de mentirosos, de assassínio em massa e de assassinos, vestidos de dirigentes, de governos e de presidentes de república, totalmente de cócoras perante o grande capital. Mas este facto, longe de nos fazer virar as costas à política há-de, pelo contrário, levar-nos a encarar a Política como Deus a pratica. Na sua reflexão, não chegou a citar o Fraternizar, do qual é leitor e companheiro, mas bem o podia ter feito. Porque não nos cansamos de insistir nessa tese. E o nosso Director até publicou um livro, cujo título diz tudo: E Deus disse: Do que eu gosto é de Política, não de Religião.
A Agenda 2008 será publicada, como as edições anteriores, em bastantes países do mundo, em outras tantas traduções. Infelizmente, o nosso país ainda não conseguiu aderir ao projecto e dar-lhe corpo. Ao contrário do Brasil, onde a Agenda conhece uma edição em língua portuguesa, por sinal muito bem traduzida e apresentada. Contamos falar dela com mais pormenor na nossa 1.ª edição de 2008.
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EDITORIAL
São quatro jovens mulheres
São quatro jovens mulheres. Todas ainda na casa dos vinte anos: Laura, Joana, Ana Sofia e Susana. As suas caras de reclusas ingenuamente felizes e tiradas a papel químico são capa na edição da revista Notícias Magazine, de 16 Setembro 2007. São todas freiras de clausura. No Carmelo de Coimbra. O mesmo que enclausurou até à morte Lúcia, a da mentira católica das aparições de Fátima em 1917. A reportagem ocupa várias páginas de destaque. Li-a integralmente. E fiquei chocado. Decepcionado. Abismado. Tudo aquilo não passa de mais do mesmo do primitivo Paganismo religioso dos povos não ilustrados e não evangelizados, agora na reciclada versão católica que o Império romano de Constantino habilmente conseguiu impor às populações que então dominava e explorava e que, depois, a Cristandade Ocidental que lhe sucedeu, ainda exportou para outros povos de outros continentes, através das chamadas missões católicas. A Cruz e a Espada, lembram-se?! Dilatar a Fé e o Império, lembram-se?! Um crime sem perdão, feito de séculos e séculos de exploração/latrocínio e de escravatura/genocídio, que depressa esquecemos, porque fomos, ainda somos os beneficiários, não as vítimas. A repórter quase se limita a reproduzir, acrítica e ingenuamente, o que lhe disseram e o que lhe mostraram. Não conseguiu ir além da casca. Do habilmente propagandeado. Da mentira do discurso oficial. Do ideológico institucional religioso, que é sempre demoníaco. Ficou-se pelas aparências. Como uma câmara fotográfica. Não conseguiu ver, para lá dos sorrisos das quatro mulheres a quem roubaram tudo, até os corpos, concretamente, todo o hediondo dAquilo que, como oportunamente revela o Evangelho de Jesus, mata o corpo e a alma de quantas lá caem dentro. Não teve a audácia nem a lucidez para interpelar até ao âmago as quatro mulheres e, sobretudo, a instituição-vampiro que as mantém sequestradas, para as poder devorar todos os dias, como ídolo que é e que, para melhor se poder impor e se fazer seguir, até com sorrisos de ingénua felicidade, faz-se passar aos olhos delas mentirosamente por Deus. A repórter não foi capaz de as questionar, às quatro. Nem se indignou perante elas e perante tudo aquilo que lhes estão a fazer, para cúmulo, com o declarado consentimento delas. Não protestou. Pelo contrário, chega até a parecer assustada com o que teve de ver e de relatar. Como sempre acontece diante da Imagem, do Ídolo, do Mítico, do Sagrado, do Santuário! Ainda não se deu conta, como sucede aliás com a maior parte das pessoas, sobretudo, as mais religiosas, que só a Mentira assusta, suscita Medo, esmaga-nos, oprime-nos, come-nos, mata-nos, reduz-nos a Nada. A Verdade, ao contrário, faz-nos livres, solta-nos, liberta-nos para a liberdade, catapulta-nos para a Plenitude do Ser. Porém, nem tudo na repórter é assim tão acrítico e ingénuo como parece. Timidamente, como quem não quer a coisa, não vá magoar o Deus-ídolo a quem estas quatro mulheres a uma só voz, como se de uma cassete se tratasse, dizem amar em exclusivo, lá conseguiu classificar a reportagem que assina, com uma palavra terrível, embora escrita num tipo de letra quase invisível: “RECLUSÃO”. Assim é. Podem dizer por aí à boca cheia que é uma reclusão, sim, mas voluntária. Responderei: Reclusão voluntária? Tanto pior. Um suicídio, se voluntário, não é ainda mais horrível? Saibam, senhoras e senhores, freiras e frades, clérigos católicos e todos os seguidores dos seus espiritualismos moralistas, que fomos criados para a Liberdade. E para a Plenitude do Ser. Não para a Humilhação. Não para o Sacrifício. Não para Alienação.
Da reportagem em questão, o mais asqueroso ainda é o que se relata no final sobre como são preenchidos os dias e as noites das 20 mulheres que actualmente estão reclusas no Carmelo de Coimbra. Todas vivem em função do Ídolo que as hipnotiza e devora, como costuma fazer a víbora assassina, quando quer devorar o pequeno pássaro que começou por hipnotizar. As reclusas chamam-lhe Deus, mas é o Ídolo que habilmente se disfarça de Deus. Só ele existe para elas. Madrugam para se lhe dirigir em orações ritualizadas que as impedem de chegar a pensar próprio, a dizer próprio, a sentir próprio, numa palavra, a ser elas próprias. Todos os dias estão marcados e preenchidos com rezas destas, do levantar ao deitar, sempre as mesmas ou do mesmo tipo. Uma rotina absurda. Estúpida. Criminosa. Destinada a alienar e a manter alienadas todas as vinte mulheres, tanto as muito idosas, como as muito jovens, como é o caso das quatro da reportagem. Um disparatado papagueado, sempre o mesmo para todas por igual. Ano após ano. Vejam só. Já foi esse mesmo papagueado que eu fui encontrar no seminário do Porto, nos anos da minha formação, e de que, felizmente, me libertei, quando cresci na Fé cristã jesuânica. Um horror sem nome.
Por favor, não se escandalizem com o que aqui escrevo. Escandalizem-se com o Horror que se está a praticar todos os dias no Carmelo de Coimbra. E em muitos outros locais como aquele. Em muitas outra vidas de seres humanos católicos e não só. Se a Igreja não põe termo a Isto, torna-se Horror, ela própria. E se, em vez de lhe pôr termo, ainda vai dar mais força a Isto e desacreditar/matar o mensageiro e o Evangelho que ele anuncia?! Lembrem-se que outro tanto fizeram já os chefes da “Igreja” do Templo de Jerusalém a Jesus, o de Nazaré, por ele ter dito que era o Ídolo que eles lá adoravam/idolatravam, dia e noite, sob o disfarce de Deus. Será que não aprendemos nada com a História?
Minhas irmãs, meus irmãos, fujamos do Ídolo! Deus Vivo, o de Jesus, tem a cara e o corpo do Pobre, do Oprimido, do Excluído, do Imigrante, dos Povos Crucificados. É aí que sempre nos espera. Entretanto, vive mais íntimo a nós dos que nós próprias, nós próprios! Por isso, sempre nos sai ao caminho a perguntar: “Onde está a tua irmã/o teu irmão? Que fizeste da tua irmã/do teu irmão? E ainda adverte aquelas/aqueles de nós que nos temos na conta de muito religiosos: “Quem diz que ama a Deus a quem não vê e não ama as irmãs, os irmãos a quem vê é mentiroso”.
Vão por mim: Mudem de Deus! Renunciemos de vez ao Ídolo e deixemos Deus Vivo ser Deus em nós e por nós!
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ESPAÇO ABERTO
A mulher adúltera
Prof. Manuel Sérgio
Tendo passado a noite a orar, no Monte das Oliveiras, Jesus desceu à cidade, nas primeiras horas da manhã e dirigiu-se para o Templo. Mal clareava o dia e as cerimónias religiosas só algumas horas depois começariam. No entanto, os peregrinos, em cavaqueiras intermináveis, já caminhavam, também em direcção ao Templo e em número crescente. Alguns deles, vendo Jesus, acompanhado dos seus discípulos, junto da Porta Dourada, sentaram-se junto d’Ele, na esperança de escutar algumas das suas prédicas. De súbito, como torrente que galga o penedio das margens, uma centena de homens aos gritos aproximou-se. À frente da turba, numerosos escribas e fariseus empurravam uma despenteada e assustada mulher que era vítima de toda a sorte de impropérios. Ao chegar o cortejo bem perto de Jesus, a turba formou um círculo. A mulher ficou no meio, sacudindo-se em intermináveis soluços. Um dos escribas levantou a voz: Mestre, sabemos que és justo e sábio. Aconselha-nos, por isso. “Mas o que se passa?” inquiriu o Mestre. O escriba deitou-se a um pomposo discurso, cheio de citações do Antigo Testamento. Distraído, Jesus agachou-se e começou a desenhar na areia. Findo o exórdio, o escriba concluiu, julgando irrefutáveis as suas palavras: Logo, porque esta mulher é casada e foi apanhada a fornicar com outro homem que não é o seu, esta mulher, segundo a lei de Moisés, deve ser imediatamente delapidada. Qual é a tua opinião, a este respeito? Jesus, sem dar a mínima atenção ao palavreado do orador, continuava a riscar a areia. Exasperado, um fariseu rugiu: Não dizes nada? E outro, já de voz embargada: Diz alguma coisa. Caso contrário, matamos já a mulher...
Quando ouviu a palavra “matar”, Jesus estremeceu e levantou-se. E olhando fixamente os escribas e os fariseus afirmou em voz pausada: “De todos vós quem estiver aqui sem pecado atire contra esta mulher a primeira pedra”. E voltou a acabar os desenhos que iniciara. No entanto, como por milagre, nos riscos que Jesus fizera na areia, surgiram as palavras ladrão, assassino, perjuro, adúltero, burlão: afinal os crimes daqueles hipócritas juízes, embora argumentadores sagazes e argutos, os quais, para Jesus, tinham pecados iguais, ou piores, do que os daquela pobre mulher. Lentamente, os acusadores, transtornados os seus planos, desapareceram e ficaram Jesus e a mulher, olhando um para o outro. Jesus adiantou-se: “Mulher, onde estão aqueles que te acusavam? Ninguém te condenou?”. E ela, ainda de voz embargada: Não, senhor, ninguém me condenou. “Nem eu também te condeno. Vai e não voltes a pecar”.
Grande exemplo o de Jesus! Ele condenou, de facto, os que vêem o argueiro no olho do seu semelhante e não vêem a trave no seu próprio olho. Dias antes, o Mestre tinha perguntado aos discípulos: “Qual de vós, tendo cem ovelhas, e perdida uma, não deixa as noventa e nove e não corre atrás da que se perdeu até achá-la? E, achando-a, não a põe aos ombros e não diz aos amigos: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida? (...). Digo-vos, pois, que haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento”. Em Jesus, não há Index, não há exclusão, não há marginalização. Todos os “homens de boa vontade” cabem na casa do Pai.
Fui dos que ouvia, sem perder nenhuma delas, as homilias do Padre Felicidade Alves. Era uma voz de não-equilíbrio, dinâmica como a vida, e eu encontrava-me saturado, desiludido com os sermões doutros sacerdotes que repetiam o que o Cardeal Cerejeira ordenava: o absentismo mais despudorado diante de uma guerra colonial, sem sentido e sem futuro; o conservantismo de quem temia o próprio Concílio Vaticano II; o reaccionarismo de quem continuava a ver no Estado Novo a barreira inultrapassável para os “ventos da História”. Ignorantes, não sabiam estes arautos de uma religião falida que a verdadeira crença é ao mesmo tempo não-crença, isto é, tensão entre a dúvida e a fé. Daí, a angústia como manifestação típica dos nossos limites, embora os nossos infinitos anseios; daí, a necessidade daqueles que, com fé profunda em Jesus, ou em Jesus Cristo, não aceitam servilmente o “nihil obstat” romano. O Padre Felicidade Alves chegou a dizer que era “ateu” do Deus que lhe pretendiam impingir. Um Deus só de certezas, de abstracções essencialistas, de dogmas perfeitamente disparatados e pueris. Fiquei, por isso, verdadeiramente feliz, quando o actual Patriarca de Lisboa presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves e o recebeu, no seio da igreja lisbonense.
Não era preciso tanto, para o actual Bispo do Porto aceitar o Padre Mário de Oliveira, como padre, em exercício e na efectividade, da diocese do Porto. Ao invés de Jesus, não vi o Bispo do Porto em busca de um presbítero que é necessário, porque (repito: com fé profunda em Jesus de Nazaré) é diferente. Quando será que a Igreja Católica se transforma em espaço de sujeitos (ser sujeito é não sujeitar-se), cada um deles com a sua visão própria da mensagem cristã ou jesuânica? Descamba-se assim na anarquia? Pelo contrário: mais tarde ou mais cedo, pela via do diálogo (ou da racionalidade comunicativa) geram-se os grandes consensos provenientes de princípios partilhados, porque em conjunto livremente se criticaram.
Jesus não condenou a mulher adúltera. Aconselhou-a tão-só a não pecar. Jesus adoptara, desde sempre, a matriz feminina da vida. E sabia que quem ama não peca. Estou a defender o adultério? Não, defendo a necessidade de aprendermos com muitas mulheres adúlteras e com todos os que são capazes de pôr em causa uma bafienta autoridade tradicional. Num sistema em rede, não pode haver um centro controlador, mas um espírito que informe todas as coisas. Quando se lê o Evangelho, depressa somos forçados a concluir que é necessário reenvangelizar a Igreja, que é necessário reenvangelizarmo-nos a nós mesmos.
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Igreja católica, grande seita?
L. boff (Teólogo)
Os acontecimentos ocorridos nos últimos meses dentro da Igreja Romana Católica fazem suscitar a questão do risco de esta assumir claramente comportamentos de seita. Bento XVI está a imprimir um curso perigoso à Igreja Católica, provocando severas críticas não apenas de teólogos, mas também de cardeais, de inteiros episcopados como o da França, de grupos de bispos da Alemanha e, espantosamente, de bispos da romaníssima Itália, além de outros líderes religiosos e de organismos ecuménicos mundiais.
Desde o tempo de Cardeal, ele tem tratado os grupos progressistas e os teólogos da libertação à bastonada, e com pele de pelica os conservadores e tradicionalistas, seguidores do Bispo Lefèbvre, excomungado em 1988 e que à revelia de Roma ordenou bispos e padres.
O Vaticano acabou por acatar os seus seminários onde se forma o clero no rito tradicionalista. E nestes dias recentes acaba de atender mais uma de suas demandas maiores: regressar à missa em latim do Concílio de Trento (1545-1563), com todas as limitações históricas, hoje inaceitáveis. Ai se reza “pelos pérfidos judeus” para que aceitem Jesus como Messias.
O mais grave ocorreu logo em seguida com a publicação de cinco questões sobre a igreja, oriunda da Congregação para a Doutrina da Fé e aprovada pelo Papa, na qual se repete o que o então Cardeal J. Ratzinger em 2000 enfatizava no documento Dominus Jesus, verdadeiro exterminador do futuro do ecumenismo: a única Igreja de Cristo subsiste somente na Igreja Católica, fora da qual não há salvação; as demais “igrejas” não o são, pois possuem apenas “elementos eclesiais” e a Igreja Ortodoxa, tida como uma expressão concreta da catolicidade, foi rebaixada a simples igreja particular. Estas posições reacendem a guerra religiosa, quando todos estão buscando a paz, cuja realização é enfraquecida pela Igreja.
A Igreja está a isolar-se mais e mais de tudo. Sua base social são principalmente os movimentos, medíocres no pensamento e subservientes às autoridades; preferem a aeróbica de Deus a confrontar-se com os problemas da pobreza e da injustiça.
Uma Igreja comporta-se como seita, segundo clássicos como Troeltsch e Weber, quando tem a pretensão absolutista de deter sozinha a verdade, quando se nega ao diálogo, rejeita o trabalho ecuménico e manifesta crescente autofinalização. Nesse sentido, cabe lembrar que o Vaticano não assinou em 1948 a Carta dos Direitos Humanos, recusou-se a entrar no Conselho Mundial de Igrejas, porque se julga acima e não junto das demais Igrejas, negou-se a apoiar a convocação de um Concílio universal de todos os cristãos na perspectiva da paz mundial, sob o pretexto de que cabe exclusivamente a Roma fazê-lo, proibiu a compra dos cartões da UNICEF destinados à infância carente, alegando que esta entidade favorecia o uso de preservativos.
Ao lado disso, cresce o património imobiliário da Igreja que, segundo pesquisas (ADISTA 2/6/07), chega a 1/5 de todo o património italiano e romano. A especulação imobiliária e financeira rendeu ao Vaticano, entre 2004-2005, 1,47 mil milhões de Euros.
A estratégia doutrinal do actual Papa é a do confronto directo com a modernidade, num pessimismo cultural inadmissível em alguém que deveria saber que o Espírito não é monopólio da Igreja e que a salvação é oferecida a todos.
Não causaria espanto se alguns mais radicais, animados por gestos do actual Papa, tentassem um cisma na Igreja. No século IV, quase todos os bispos aderiram à heresia do arianismo (Cristo apenas semelhante a Deus). Foram os leigos que salvaram a Igreja, proclamando Jesus como Filho de Deus. É urgente actualizar esta história, dada a estreiteza de mente e o vazio teológico reinante nos altos escalões da Igreja.
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Felicidade interna bruta
L. Boff (teólogo)
Butão é um pequeníssimo reinado hereditário nas encostas do Himalaia, entre a China, a India e o Tibet. Não tem mais que dois milhões de habitantes, cuja maior cidade é a capital Timfú com cerca de cinquenta mil moradores. Dentro de poucos anos está ameaçado de quase desaparecer, caso os lagos do Himalaia que se estão enchendo pelo degelo transvasem avassaladoramente. Governado por um rei e por um monge que possui quase a autoridade real, é considerado um dos menores e menos desenvolvidos países do mundo. Contudo, é uma sociedade extremamente integrada, patriarcal e matriarcal simultaneamente, sendo que o membro mais influente transforma-se em chefe de família.
Butão possui algo único no mundo e que todos os países deveriam imitar: o “indice de felicidade interna bruta”. Para o rei e o monge governante o que conta em primeiro lugar não é o Produto Interno Bruto medido por todas as riquezas materiais e serviços que um país ostenta, mas a Felicidade Interna Bruta, resultado das políticas públicas, da boa governação, da equitativa distribuição da renda que resulta dos excedentes da agricultura de subsistência, da criação de animais, da extração vegetal e da venda de energia à Índia, da ausência de corrupção, da garantia geral de uma educação e saúde de qualidade, com estradas transitáveis nos vales férteis e nas altas montanhas, mas especialmente fruto das relações sociais de cooperação e de paz entre todos. Isso não chegou a evitar conflitos com o Nepal, mas não tem desviado o propósito humanístico do reinado. A economia que no mundo globalizado é o bezerro de ouro, comparece como um dos items no conjunto dos factores a serem considerados.
Por detrás deste projecto político funciona uma imagem multidimensional do ser humano. Supõe o ser humano como um nó de relações orientado em todas as direções, que possui sim fome de pão como todos os seres vivos, mas principalmente fome de comunicação, de convivência e de paz que não pode ser comprada no mercado ou na bolsa.
Função de um governo é atender à vida da população na multiplicidade das suas dimensões. O seu fruto é a paz. Na inigualável compreensão que a Carta da Terra elaborou da paz, esta “é a plenitude que resulta das relações correctas consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas, com outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(IV, f).
A felicidade e a paz não são construídas pelas riquezas materiais e pelas parafernálias que a nossa civilização materialista e pobre nos apresenta. No ser humano ela vê apenas o produtor e o consumidor. O resto não lhe interessa. Por isso temos tantos ricos desesperados, jovens de famílias abastadas que se suicidam, por não verem mais sentido na superabundância. A lei do sistema dominante é: quem não tem, quer ter, que tem, quer ter mais, quem tem mais diz: nunca é suficiente. Esquecemos que o que nos traz felicidade é o relacionamento humano, a amizade, o amor, a generosidade, a compaixão e o respeito, realidades que valem, mas não têm preço. O dramático está em que esta civilização humanamente pobre está a dar cabo do Planeta no afã de ganhar mais, quando o esforço seria o de viver em harmonia com a natureza e com os demais seres humanos.
Butão nos dá um belo exemplo desta possibilidade. Sábia foi a observação de um pobre de nossas comunidades que comentou: "Aquele homem é tão pobre, mas tão pobre, que tem apenas dinheiro. E é notoriamente infeliz".
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A pedagogia fascista
Rui Manuel Grácio das Neves op (Teólogo)
1. Há anos, desde pequeno, que vivo fora de Portugal. De maneira que, sempre que passo algum tempo em Lisboa, procuro estar com muita atenção a tudo o que acontece por estas terras. Sem querer, a gente compara, mede, pesa... e analisa! Gosto de fazer sociologia do quotidiano, observando o dia-a-dia, o que acontece nas ruas e com as pessoas. Gosto também de ver as montras das livrarias, mas reconheço que o faço ultimamente cada vez mais por cima. Mas, das últimas vezes, chamou-me muito a atenção ver à venda uns livros de leitura da primeira, segunda, terceira e quarta classes... “de antes”! Mesmo do tempo da Dita-dura salazarista! Interroguei-me então porque é que estes livros ainda se vendiam e continuavam a figurar nas montras. Supostamente, a Dita-dura passou (?). O próprio livreiro disse-me, todo contente, que estavam a vender-se bastante... (Como quem diz: “Aquilo é que eram livros de escola!”). Ao princípio, não os comprei. Mas, aos poucos, foi-me entrando o “bichinho” da curiosidade, aquele “bichinho” que levava a recordar aqueles tempos de ensino de criança. (Quando acabei a quarta-classe e o exame aos liceus, já estava a viver em Espanha). Talvez pudesse encontrar nesses livros alguma coisa de interessante que explicasse a minha infância...
2. Uma das últimas vezes que estive em Lisboa, a penúltima, em 2006, decidi finalmente fazer um estudo mais a sério, um estudo pedagógico, analisando esses livros. O objectivo era mais sociológico, o que poderíamos incluir dentro de estudos formais de sociologia do conhecimento. A pergunta da investigação pessoal era: como aparecia a ideologia fascista nuns livros de texto tão aparentemente inocentes, escritos para crianças de seis, sete, oito ou nove anos? Noutras palavras, como é que nos “educaram” (ou nos “amestraram”), como é que foram “fazendo a nossa cabeça” (como dizem no Brasil) para que a Dita-dura nos parecera algo de normal e até positivo? Como nos incutiram os “valores” fascistas na nossa vida? Com estas perguntas, fui à Biblioteca Nacional do Palácio das Galveias e pedi os livros escolares que lá tinham. Dediquei-me então a “estudar” principalmente “O Livro da Primeira Classe”. Mas também li pacientemente “O Livro da Segunda Classe” e no ano seguinte comprei até “O Livro da Terceira Classe” (pois tinha conservado “O Livro da Quarta Classe”). Trabalhei toda a série! A seguir, faço os meus comentários ao “O Livro da Primeira Classe”.
3. Chamou-me imediatamente a atenção a Bandeira Nacional logo na primeira página. Fica bem claro, desde o princípio, o sentido nacionalista (ou melhor, patrioteiro) que o ensino das primeiras letras tinha. Também aparecia a imagem da Igreja logo ao princípio. Era interessante observar a clareza dos objectivos pretendidos, sem mensagens subliminares, especificamente. E aparecia uma imagem de uma Família, possivelmente a família ideal portuguesa. Um bocadinho mais à frente lá estava o Mar, a recordar a vocação marítima “do nosso grande Portugal” e a pôr o acento sobre o aspecto produtivo essencial daqueles anos: a agricultura. Isto ficava muito presente ao longo de todas as páginas. Para além de uma presença abundante de Natureza no texto (que até poderia parecer positivo...), estava a questão de que Portugal, ainda nos anos quarenta (e mais tarde, pois o livro era o mesmo quando estudei nos anos sessenta) não era um país industrial, mas agrícola (porquê?). E não podia faltar também logo uma gravura da Mocidade Portuguesa! Estavam dados assim os eixos sociais em que se apoiava ideologicamente a Dita-dura. Inclusive, na página 30, aparecia um rotundo “Viva Carmona” e, pouco depois, na página 34, um “Viva Salazar”. Eram os rostos, as fisionomias, as “pedras fundamentais” do sistema político que se tratava de legitimar, desde a mais tenra infância.
4. Também era interessante observar o papel ideológico que a Religião representava aqui. Por exemplo, no mês de Maio aparecem uma série de meninas (não há meninos!), a rezar, de joelhos. Será que a religião era só para meninas? Aqui vemos a religião combinada com o sexismo, tema este último bastante presente ao longo de todos os textos da Primária. É “curiosa” também a imagem de Nossa Senhora e de um menino, ambos loiros (o “branco” como a imagem perfeita para apresentar a Divindade). Isto poderia fazer-nos entrar numa interessante análise de modelos comunicativos que se pretendem mostrar, que aqui só sublinhamos. Mais à frente (p.59), volta outra vez esta associação de “pele branca” com as imagens religiosas apresentadas (“O Carlinhos era uma linda criança de cabelos louros e olhos azuis”. Por isso a avozinha podia rezar: “Meu Jesus! Protegei e abençoai o meu menino. Fazei-o como o pai, obediente à Vossa lei, bom para si e útil à Pátria”). Insiste-se numa religião (o catolicismo) muito sentimental, sem perguntas de fundo. Por exemplo, há que auxiliar os companheiros, há que visitar os doentes, há que ajudar os pobres (aparecem várias vezes, mas nunca há uma pergunta do tipo: “Porque é que existem pobres?”. Supõe-se que isso é resultado do Destino ou da Vontade de Deus, que no fundo aparecem aqui como sendo a mesma coisa: fatalismo). Também vem a justificação religiosa do Poder: “É Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer às autoridades”, diz-se na página 75. Excelente! A Religião ao serviço do Poder! O racismo unido à religião aparece nesta bela definição do que seremos quando formos mais grandes: “- E eu, disse a Clarinha, gostava de ser missionária, ir para muito longe ensinar a doutrina aos pretinhos” (p. 85). Ou seja, a visão da religião apoiando o poder colonial: “pacificação” (“doutrina”) das mentes dos “pretinhos”, para que sejam obedientes às autoridades, sobretudo às coloniais... Unida à ideia da Religião aparece a do respeito absoluto à Ordem Estabelecida: “Os trabalhos hão de correr bem durante a semana, porque toda a gente respeitou o dia do Senhor” (p.88). Respeitar a instituição religiosa é cumprir a Vontade de Deus e ter êxito no resto da vida. Uma vez mais, ser obedientes às Autoridades estabelecidas (e Deus é a primeira delas!), à Lei, às Normas, aos Deveres, ao Estado, à Igreja... Assim tudo irá bem... para o Sistema! Até aparece o que poderíamos definir “A Oração do Fascismo”: “Abençoai, Senhor, a Vossa Igreja, a nossa Pátria, os nossos Governantes, as nossas famílias e todas as escolas de Portugal”(p. 93). Será isto tão diferente do que acontece hoje, na época dita “democrática”?
5. Há algumas “pérolas políticas” que não podem deixar de ser citadas: “Perguntei à senhora professora quem tinha feito tanto bem à nossa escola e ela respondeu-me: -Foi o Estado Novo, que gosta muito das crianças e para elas tem mandado fazer escolas e cantinas, creches e parques. Mas as famílias que possam também devem ajudar. Não te esqueças de o dizer à tua mãe” (p. 69). Sem comentários!
6. E também “pérolas económicas” importantes: “O seu a seu dono. Nunca devemos ficar com o que não nos pertence” (p. 73). Isso mesmo! É preciso começar logo, desde pequen@s, a respeitar a sagrada propriedade privada!
7. O sexismo está claramente presente em todos os textos. Por exemplo, nas imagens: as meninas só aparecem com bonecas. Como quem diz, as bonecas são para as meninas, que devem aprender já de pequenas quais serão as suas actividades futuras... Como esta, da perfeita “dona de casa”: “Emilita é muito esperta e desembaraçada e gosta de ajudar a mãe. -Minha mãe. Já sei varrer a cozinha, arrumar as cadeiras e limpar o pó. Deixe-me pôr hoje a mesa para o jantar. - Está bem, minha filha. Quando fores grande, hás de ser boa dona de casa” (p.55). Por aqui já se vê qual é o ideal de uma boa mulher e esposa, além de “esperta”, para o futuro! Mostra-se também que uma boa menina é uma menina de “bom coração”, que ajuda as companheiras pobrezinhas. (Como sempre, aparecem muitos pobres ao longo do texto, e sempre há que ajudá-los, mas nunca há uma simples pergunta: porque é que existem os pobres?). Há também uma permanente mitificação sentimental das “mãezinhas”, e do papel que significam a nível educativo familiar. No texto seguinte, vemos o modelo de família da época fascista: “- Mãezinha, já pode tirar a sopa. O Paizinho vem aí. - Vem muito cansado, Paizinho? - Sim, trabalhei muito e venho cansado. Mas pensava em vós e dizia comigo: - É para os meus filhos que eu trabalho. Deus me ajude a criá-los” (p.61). O contexto deste texto é precisamente o mundo rural (Portugal como um país feudal). O trabalho da “mãezinha” é na casa e na cozinha. Pergunta: “Para quem trabalha realmente o Paizinho”? Os filhos só têm que obedecer aos pais (e às Autoridades). Assim, tudo funciona perfeitamente no mundo corporativo do salazarismo. Até aqui O Livro da Primeira Classe.
8. O Livro da Segunda Classe continua nesta mesma linha. Há referências explícitas ao Estado Novo, que mandou construir escolas (p.25). Afirma-se que a Colectividade “é organizada e dirigida pelo Estado, que coordena e assegura o livre exercício de todas as actividades necessárias à vida da Nação”(p. 39). (Claro que aqui se levantam algumas perguntas: O que é que se entende por “livre” exercício? De onde lhe vem ao Estado a legitimidade para organizar e dirigir a “Colectividade”? Quem lhe deu esta missão?) Neste Livro da Segunda Classe há mais textos literários e uma selecção fortemente nacionalista dos textos, para fazer entrar nas cabeças e corações, já desde pequenin@s, a assim chamada “Cultura Portuguesa”, a visão nacionalista-corporativista da Dita-dura salazarista. Conclusão: Acho que estes textos citados não necessitam de muito mais comentário político. São suficientemente claros para ser entendidos por si mesmos. Deixo à inteligência do leitor/a o trabalho de identificar interiormente todas estas questões na sua própria educação, tanto escolar como familiar, e de perguntar-se a si própri@ como é que conseguiu superar esta visão educativa (se é que realmente a superamos, claro...).
Nagpur (Índia), 17.08.07.
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Necrocombustíveis
Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas?
Frei Betto op (teólogo)
O prefixo grego bio significa vida; necro, morte. O combustível extraído de plantas traz vida? No meu tempo de escola primária, a história do Brasil dividia-se em ciclos: pau-brasil, ouro, cana, café etc. A classificação não é de todo insensata. Agora estamos em pleno ciclo dos agrocombustíveis, incorrectamente chamados de biocombustíveis.
Este novo ciclo provoca o aumento dos preços dos alimentos, já denunciado por Fidel Castro [ver Fraternizar n.º 166]. Estudo da OCDE e da FAO, divulgado a 4 de Julho, indica que “os biocombustíveis terão forte impacto na agricultura entre 2007 e 2016.” Os preços agrícolas ficarão acima da média dos últimos dez anos. Os grãos deverão custar de 20% a 50% mais. No Brasil, a população pagou três vezes mais pelos alimentos no primeiro semestre deste ano, se comparado ao mesmo período de 2006.
Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas. Há 800 milhões de veículos automotores no mundo. O mesmo número de pessoas sobrevive em desnutrição crónica. O que inquieta é que nenhum dos governos entusiasmados com os agrocombustíveis questiona o modelo de transporte individual, como se os lucros da indústria automobilística fossem intocáveis.
Os preços dos alimentos já sobem em ritmo acelerado na Europa, na China, na Índia e nos EUA. A agflação a inflação dos produtos agrícolas deve chegar, este ano, a 4% nos EUA, comparada ao aumento de 2,5% em 2006. Lá, como o milho está quase todo destinado à produção de etanol, o preço do frango subiu 30% nos últimos doze meses. E o leite deve subir 14% este ano. Na Europa, a manteiga já está 40% mais cara. No México, houve mobilização popular contra o aumento de 60% no preço das tortillas, feitas de milho.
O etanol made in USA, produzido a partir do milho, fez dobrar o preço deste grão em um ano. Não que os ianques gostem tanto de milho (excepto pipoca). Porém, o milho é componente essencial na ração de suínos, bovinos e aves, o que eleva o custo de criação desses animais, encarecendo derivados como carne, leite, manteiga e ovos.
Como hoje quem manda é o mercado, acontece nos EUA o que se reproduz no Brasil com a cana: os produtores de soja, algodão e outros bens agrícolas abandonam seus cultivos tradicionais pelo novo “ouro” agrícola: o milho lá, a cana aqui. Isso repercute-se nos preços da soja, do algodão e de toda a cadeia alimentar, considerando que os EUA são responsáveis por metade da exportação mundial de grãos.
Nos EUA, já há lobbies de produtores de bovinos, suínos, caprinos e aves pressionando o Congresso para que se reduza o subsídio aos produtores de etanol. Preferem que se importe etanol do Brasil, à base de cana, de modo a evitar-se ainda mais a alta do preço da ração.
A desnutrição ameaça, hoje, 52,4 milhões de latino-americanos e caribenhos, 10% da população do Continente. Com a expansão das áreas de cultivo votadas à produção de etanol, corre-se o risco dele se transformar, de facto, em necrocombustível predador de vidas humanas.
No Brasil, o governo já puniu, este ano, fazendas cujos canaviais dependiam de trabalho escravo. E tudo indica que a expansão dessa lavoura no Sudeste empurrará a produção de soja Amazónia adentro, provocando o desmatamento de uma região que já perdeu, em área florestal, o equivalente ao território de 14 estados de Alagoas.
A produção de cana no Brasil é historicamente conhecida pela superexploração do trabalho, destruição do meio ambiente e apropriação indevida de recursos públicos. As usinas se caracterizam pela concentração de terras para o monocultivo voltado à exportação. Utilizam em geral mão-de-obra migrante, os bóias-frias, sem direitos trabalhistas regulamentados. Os trabalhadores são (mal) remunerados pela quantidade de cana cortada, e não pelo número de horas trabalhadas. E ainda assim não têm controle sobre a pesagem do que produzem.
Alguns chegam a cortar, obrigados, 15 toneladas por dia. Tamanho esforço causa sérios problemas de saúde, como caibras e tendinites, afectando a coluna e os pés. A maioria das contratações dá-se por intermediários (trabalho terceirizado) ou “gatos”, arregimentadores de trabalho escravo ou semi-escravo. Após 1850, um escravo costumava trabalhar no corte de cana por 15 a 20 anos. Hoje, o trabalho excessivo reduziu este tempo médio para 12 anos.
O entusiasmo de Bush e Lula pelo etanol faz com que usineiros alagoanos e paulistas disputem, palmo a palmo, cada pedaço de terra do Triângulo Mineiro. Segundo o repórter Amaury Ribeiro Jr, em menos de quatro anos, 300 mil hectares de cana foram plantados em antigas áreas de pastagens e de agricultura. A instalação de uma dezena de usinas novas, próximas a Uberaba, gerou a criação de 10 mil empregos e fez a produção de álcool em Minas saltar de 630 milhões de litros em 2003 para 1,7 bilhão este ano.
A migração de mão-de-obra desqualificada rumo aos canaviais 20 mil bóias-frias por ano - produz, além do aumento de favelas, o de assassinatos, tráfico de drogas, comércio de crianças e de adolescentes destinados à prostituição.
O governo brasileiro precisa livrar-se da sua síndrome de Colosso (a famosa tela de Goya). Antes de transformar o país num imenso canavial e sonhar com a energia atómica, deveria priorizar fontes de energia alternativa abundantes no Brasil, como hidráulica, solar e eólica. E cuidar de alimentar os sofridos famintos, antes de enriquecer os “heróicos” usineiros.
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Violência e agressão
Frei Betto op (Teólogo)
Friedrick Hacker (1914-1989), psiquiatra norte-americano, analisou com propriedade as raízes da violência que impera neste mundo globocolonizado que se ajoelha reverente ao deus Mercado. A agressividade é própria da natureza animal, incluída a espécie humana. Denota o nosso espírito de sobrevivência. Frente a determinadas circunstâncias, cada um é agressivo ao seu modo: ironia, humor, astúcia, desprezo, presunção etc. Violência é quando se rompe a barreira da alteridade e a força física se impõe sobre o mais frágil ou indefeso e como reação ao agressor.
Quase nunca entendemos como violenta a acção que atinge o outro, excepto quando nós somos as vítimas. Se a polícia cerca, na saída de um cinema, o nosso grupo de amigos e exige que fiquemos todos de mãos na parede e pernas abertas, enquanto nos revista, consideraremos uma violência. Se do alto da janela do apartamento vemos a mesma cena, com a diferença de que os detidos são jovens da periferia, admitimos que a polícia cumpre o seu dever. Sentimos mesmo certo alívio por saber-nos protegidos pelo Estado que, sustentado por nossos impostos, nos oferece segurança.
Se um dos amigos protesta pelo modo como está sendo apalpado e recebe em resposta um empurrão, fica patente a violência. Para a polícia, em nenhum momento houve violência. Julga apenas que cumpre o seu dever. É o caso do pai que, ao retornar do trabalho, descobre que o filho mais velho bateu no mais novo. Para dar-lhe uma lição de que nunca deve bater em alguém mais fraco do que ele, o pai dá uma surra no mais velho. Sem nenhuma consciência de que pratica exactamente o que recriminou. É essa contradição entre o discurso sobre a educação e os métodos aplicados que dissemina o comportamento violento.
Por que o mesmo acto cometido por um é repreensível e, por outro é, legítimo? Esse pai jamais se considerará violento. Se questionado, dirá apenas que é seu dever educar.
Esta a estrutura em que a violência se apoia: é sempre praticada, como se fosse acto de justiça, legitimada por uma razão superior, seja o Deus dos cruzados ou dos fundamentalistas; a defesa da propriedade privada; o liberalismo do Mercado; os deveres de uma boa educação etc.
A violência é a mais primária forma de manifestação da agressão. Toda a estrutura da sociedade, com suas leis e instituições, contém boa dose de agressividade, assim como a disciplina que os pais impõem à boa educação dos filhos. Ela favorece a nossa convivência social e reprime nossas tendências auto-destrutivas. O melhor exemplo de agressividade sem violência é o desporto.
Já a violência é rasteira, cruel, repetitiva, o que permite à polícia identificar o modus operandi [o modo de agir] de criminosos, pois ela se propaga sem a menor criatividade, excepto os equipamentos bélicos concebidos para torná-la mais e mais brutal e massiva. Para saber lidar com a agressividade é preciso certo refinamento de espírito. Já a violência é burra, não exige educação, está ao alcance de qualquer um.
O mais grave é que nos acostumamos à prática da violência. Covardes, não ousamos usar as próprias mãos, mas aplaudimos quando a polícia espanca o bandido; a lei retroage a idade penal; o plebiscito liberaliza o comércio de armas; o Estado decreta a pena de morte etc. Sem nos darmos conta de que nos deixamos dominar pela parte mais primária de nosso cérebro, lá onde se aloja o réptil que nos precede na escala evolutiva e do qual somos tributários.
Se uma sociedade perde a sensibilidade à violência e ignora o limite que deve perdurar entre ela e a agressividade, isso aquece o caldo de cultura do autoritarismo. O sentimento de humilhação que a Primeira Guerra impôs ao povo alemão favoreceu a ascensão do “vingativo” Hitler. A derrota de Bush pai no Iraque, em 1991, impeliu boa parte da opinião pública dos EUA a apoiar, em 2003, o filho disposto a “lavar a honra”.
Ninguém é capaz de atacar o seu semelhante, a menos que produza, entre si e ele, a dessemelhança. Assim, o homem bate na mulher por considerá-la imbecil; o branco agride o negro por encará-lo como inferior; a grande nação decreta guerra à pequena que se nega a abrir mão de sua soberania; o líder popular passa a ser demonizado pelos media, de modo a deslegitimar a causa que defende. Essa postura distancia, desculpabiliza, abre caminho à violência como legítima e até legal.
Não convém erradicar a agressividade própria do humano e que nos impele a alcançar metas e conquistas. O desafio é fazer a distinção ensinada por Hacker e criar uma cultura baseada no mais primordial paradigma da alteridade, que tem a sua origem nAquele que, radicalmente diferente de nós, nos criou à sua imagem e semelhança.
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“Rejeitei a Fé!”
Outras Cartas
Pombal. António Marques: Problemas de doença (acabei por ter de me prender irremediavelmente à máquina dialítica, provavelmente porque me tramaram os deuses em que não acredito…) têm-me impedido de resolver o atraso no pagamento da minha assinatura do Fraternizar. Por isso só agora lhe envio o cheque, no valor de…, que tanto pode servir para a assinatura de “apoio” como para dirigir o excedente ao Barracão de Cultura.
Apesar de me considerar “cristão que não crê em Deus”, como há dias ouvi dizer Eduardo Sá, num programa da Antena 1, muito gosto teria em poder frequentar esse Barracão, e estou em crer que, se viesse a reacreditar, seria no Deus em que Vocês aí, no Fraternizar, acreditam. Seja como for, dá-me bem para estar convosco, mesmo com o V/ Cristo (ou o V/ Jesus?), prescindindo, é claro, da sua divindade…
Neste número 166 do Fraternizar, encontrei dois tópicos que chamaram especialmente a minha atenção. Um, é o texto de Eduardo Galeano, p.12. E porquê? Precisamente porque estou a traduzir (e com que prazer) um dos seus livros: Memoria del Fuego 1 Los Nacimientos, para a pequena editora do meu filho Pedro Marques: Livros de Areia. Espero tê-lo pronto a ser publicado por todo este ano. Assim a máquina (a carroça dia-sim-dia-não) mo permita… O outro, são as perguntas (as questões) de Manuel Sérgio, p. 15. Questões que ele por sua vez adopta de Hans Jonas: “Que Deus é este que pôde deixar fazer isto? Será que Deus é mesmo Pai? Ou, sendo Pai, será que Deus é mesmo omnipotente? Como acreditar que um Pai permita tão cruentos sacrifícios aos seus filhos? A fé em Jesus Cristo resolve este problema?” E porquê estas questões me tocam assim tanto? Precisamente porque foram elas que me atiraram fora da fé. Assim: tendo-as eu feito a mim próprio quando ainda tinha fé, ouvi dos meus botões uma profunda convicção que nunca mais esmoreceu, pelo contrário, só se tem tornado mais forte, mais… convicta. É uma reflexão silogística elaborada muito pouco depois de ter abandonado o sacerdócio, de me ter despadrado (sim, porque fui eu que me despadrei…).
Com efeito, perante a trágica situação em que se me apresentava o mundo (cada vez mais se apresenta!) a esmagadora maioria dos seres humanos, incluindo os milhões de crianças inocentes e os outros milhões de inocentes que não são crianças, morrem de fome, de miséria, de injustiça, de violência, etc, etc perante esta trágica situação generalizada, globalizada, não é possível haver Deus, haver um deus omnipotente, omnisciente, omnibondoso, omnimisericordioso, assistindo, a partir de uma qualquer galáxia, a todo este deprimente espectáculo e deixá-lo continuar e mesmo agravar-se!... E a conclusão do silogismo é dilemática: ou deus não existe, ou deus é um brincalhão inqualificável. Rejeitei a fé! E nunca mais tive medo de morrer! De sofrer, sim, tenho um medo pânico, apenas mitigado pela certeza de que é assim a natureza que nos pariu, como a natureza que pariu os gorilas e todos os outros seres animados ou inanimados… mais ou menos inteligentes…
Por isso, de Hans Jonas, através de Manuel Sérgio, adopto as perguntas (questões), mas não as respostas/reflexões da coluna lateral, poéticas, talvez muito místicas ao contrário… A não ser que transforme a frase inicial de todas, dando-lhe forma negativa: “Não creio no Deus que…”, ou “Não posso acreditar no Deus que…”.
Com um grande abraço e alguma esperança na sua/vossa “missão profética” que, para mim tem apenas o sentido de “previsão analítica de que é capaz a inteligência humana pela sua clarividência sincera e corajosa”.
N.D.
Meu caro A. Marques: É muito corajosa a sua carta. Fico contente com semelhante confissão. Só mesmo uma publicação como o Fraternizar poderia tê-la suscitado e aqui congratular-se publicamente com ela. Entretanto, não deixa de ser curioso que a outras pessoas que leram este mesmo n.º 166, tocou-as sobretudo o texto de Frei Betto, “Um novo Credo”, que o A. Marques, obviamente, só aceitaria, se formulado na negativa. Acompanho-o nas perguntas que formula, não nas conclusões a que tão convictamente chega. Poderei até dizer-te que se Deus não fosse, como felizmente é o Grande Mistério que se nos revela na medida em que se nos esconde, eu teria muita dificuldade em crer nEle. É por Deus se nos revelar como o Grande Presente ausente e o Grande Ausente presente, que eu creio nEle. Um Deus demasiado visível e interveniente na História, que nos substituísse; que impedisse a nossa liberdade; que desencadeasse um dilúvio ou um tsunami, sempre que a Maldade Humana sobe de tom e leva milhões e milhões de inocentes a sofrer estupidamente; que dificultasse/obstaculizasse o nosso crescimento individual e colectivo; que nos tratasse como menores e saísse a terreiro para nos castigar, sempre que temos comportamentos cainíticos para com os nossos semelhantes e a Natureza; que continuasse a conduzir sozinho o processo evolutivo da Criação, em lugar de progressivamente o confiar, depois que finalmente aparecemos na História, à nossa liberdade e à nossa responsabilidade é um risco, mas só assim é que é possível criar criadores como Ele e com Ele, filhas e filhos adultos, em lugar de súbditos assustados e escravos seria um ídolo com tudo de pai tirano, ao jeito dos antigos faraós do Egipto. Só um Deus, como o que se nos revela no viver do próprio Jesus, totalmente ausência e totalmente silêncio (“meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”) e, ao mesmo tempo, totalmente presença e totalmente Acolhimento (“Pai, nas tuas mãos entrego o meu Futuro”); só um Deus que aceita diminuir e como que desaparecer na História, para que os seres humanos cresçamos em liberdade/responsabilidade e em protagonismo é que é credível. E tanto mais, quanto, em lugar de nos esmagar a toda a hora e momento, como os antigos faraós, consegue misteriosamente viver mais íntimo a nós do que nós próprios, ao ponto de parecer que nem existe, para que existamos nós. Fosse Deus como o A. Marques e tantos outros ateus hoje parecem reclamar e só Ele existiria, não nós. Ou nós, também, mas como seus escravos aterrorizados, como súbditos, como menores.
Não deixo de reconhecer, consigo, que está a ser difícil fazer de nós todos, filhas, filhos adultos de Deus. Mas não é a Deus que havemos de pedir contas! Porque essa é precisamente a grande aposta de Deus. É aos seres humanos. Deus, não só não é o culpado, como é até o primeiro a sair-nos continuamente ao caminho (“eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo”, Ap 3, 20), com a iniludível pergunta/interpelação, capaz, só por si, se for escutada/acolhida, de suscitar liberdades humanas historicamente responsáveis, sororais e solidárias: “Onde está o teu irmão? Que fizeste do teu irmão?” (Génesis 4). E não só. Também com o Chamamento (“Moisés, Moisés! Eu vi a opressão do meu povo, ouvi o seu clamor, conheço os seus sofrimentos”), o Envio (“Vai… Envio-te ao faraó”) e a Missão de cada qual (“Faz sair do Egipto o meu povo!”, Êxodo 3).
Porque havemos de culpar Deus, quando, afinal, somos nós, muitos de nós e com a cumplicidade de (quase) todos, que recusamos crescer em sororidade/fraternidade e em comunhão solidária e não damos ocasião a Deus de ser Deus em nós e connosco, como Jesus, o ser humano por antonomásia, felizmente deu, e de modo ininterrupto?!
Em lugar de continuarmos a culpar Deus, porque não nos damos ao trabalho de buscar/encontrar dentro da História os responsáveis concretos e as causas concretas de tanto Mal e de tanto sofrimento de inocentes?
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