Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 168 de Janeiro/Março 2008

DESTAQUE 1

A quem interessa o Medo/Angústia perante a Morte?!

Pode parecer estranho, mas é salutarmente fecundo abrir este novo ano de 2008 com um Destaque sobre a Morte. Os começos sempre se entendem/vivem melhor à luz do Novíssimo, que é o acto de morrer, o cume historicamente mais alto do acto de nascer. Ninguém nasce para morrer, já tem sido dito e repetido no nosso FRATERNIZAR. Nascemos para nascer. O acto de morrer é, neste ciclo da vida sempre em expansão, que tem de ser inserido/compreendido/assumido. O que não for assim é Irracionalidade, que os Executivos do Dinheiro, do Poder e da Religião/Templo gostam de alimentar até ao limite e, por isso, investem tanto nessa inumana acção de ópio e de alienação das populações e dos povos, assim como na sua contínua estupidificação. Não suportam a Luz, a Poesia, a Cultura-que-abre-os-olhos-das-mentes-humanas. Porque são más, perversas as suas acções, nomeadamente, as suas Economias, as suas Políticas, os seus Cultos. Havemos, por isso, de estar em guarda, viver à defesa e no coração do conflito,  a resistir e a conspirar oportuna e inoportunamente, para que a Irracionalidade perca terreno e, em seu lugar, progrida a Luz, a Ciência, a Cultura, a Poesia, a Utopia que é, não o Impossível, o Inalcansável, mas O-que-está-aí-ao-alcance-da-Mão das mulheres, dos homens que vivam possuídos e animados da mesma Fé de Jesus. Atrevam-se a ler.

Continuo sem entender porque é que o acto de morrer, como fruto ma­du­ro na árvore – deixar morrer alguém antes de tempo, ou fazer morrer al­guém de "morte matada" já é outra coi­sa to­talmente diferente, até pecado grave por omissão ou por acção e tam­bém cri­me que, na maior parte dos casos, continua aí impune! - há-de pro­duzir tanta angústia nas pessoas, in­clusive nas que se dizem possuí­das/ha­bitadas/animadas pela mesma Fé de Jesus, o de Nazaré.

Pelo que me é da­do ler nos jornais e ouvir/ver nas rádios/televisões, nos pri­meiros dias de Novembro de cada ano, em que os cemitérios se enchem de desmedidas vaidades, de hipocrisi­as sem conta, de lágrimas vazias de en­tranhas de humanidade e de afe­ctos, de roupas negras a contrastar com a serena alegria das flores, de ve­las de cera a arder e a espalhar no ar nauseabundos cheiros, de luzi­nhas e mais luzinhas alimentadas a pilhas, de conversas as mais estapafúr­dias e despropositadas, de apartes quase sempre picantes acerca desta e daquela que se apresenta naqueles propósitos, a visitar os seus “entes que­­ridos” que o são só nesses dias dos mortos, sou levado a concluir que a morte, um acontecimento tão natural como o parto que nos deu à luz e nos proporcionou desenvolver-nos em di­mensões que nem sequer pudemos ima­ginar enquanto permanecemos no útero materno, continua a ser sentida/tra­tada/olhada/apresentada como uma desgraça, a maior desgraça, um casti­go, o maior castigo, um enigma, o maior eni­gma, uma angústia, a maior angús­tia. Francamente, não consigo enten­der.

Os filósofos que me perdoem, mas não sou capaz de os acompanhar nes­tes seus delírios filosóficos, nestes seus devaneios e discursos. Morrer é tão natural como respirar. Pode ser e deve ser um Mistério, mas tal e qual como respirar é um Mistério. E ninguém anda angustiado por ter de respirar. Porque havemos de andar angustia­dos, angustiadas por termos de mor­rer, um dia?!

Revela-nos o Mistério da morte co­mo o Mistério de respirar que somos se­res que não temos em nós próprios a explicação última, seres permanen­te­mente abertos, seres que aconte­ce­mos um dia na História sem sequer ter­mos podido dar o nosso consenti­mento, seres que tudo o que somos e nos constitui nos foi dado, não foi com­prado por nós nem por ninguém no Mer­cado, seres que tudo o que é es­sen­cial e definitivo em nós é graça/gra­tuito/dom/dádiva/recebido.

Ora, semelhante revelação à me­dida que se torna consciente em nós - é isto o Mistério - há-de ser fonte de medo/angústia/desespero/aflição/horror, ou, pelo contrário, fonte de Ale­gria/Eucaristia/Festa/Entusiasmo/Confraternização/Animação/Abraços/Beijos/Afectos/Militâncias políticas/Generosidades/Entregas-da-própria-vida/Comunhão-de-comunhões-sem-fim?

Insistir no medo e na angústia e cul­tivá-los, a quem interessa? Mu­lhe­res/homens habitados pelo medo e pela angústia não são potenciais/reais perigos públicos? Potenciais/reais Caim’s para os seus irmãos/irmãs? Po­tenciais/reais inumanos? Potenciais/reais violadores dos demais? Poten­ciais/reais exploradores? O Medo e, com ele, a Angústia, não é que está/estão na génese de todos os desvios, de todas as demências, de todas as alienações, de todas as violências, de todos os atentados, de todos os arma­mentos, de todo o tipo de tráfico de ar­mas, de mulheres, de crianças, de to­dos os negócios sujos? Não é o Me­do/a Angústia que cria os deuses e as deusas que depois estupidamente projectamos fora de nós, materializa­mos em símbolos e ritos feitos pelas nos­sas próprias mãos e pelos nossos perturbados cérebros e, demencial­men­te, adoramos como nossos donos/senhores/amos? Não é o Medo/a An­gústia, que está na génese de todo o tipo de demências, as do passado e as do presente, as nossas e as dos nos­sos antepassados? Não é o Medo/a Angústia que produz o Império/Poder, a Riqueza acumulada e concentrada que depois se torna Dinheiro, o deus Di­nheiro, nosso amo, dono e senhor, o mais absoluto e o mais cruel que se alimenta de vítimas humanas, em li­tur­gias cruentas e incruentas ininter­ruptas, todas sob a bênção de sacer­dotes que pontificam no Templo, feito de múltiplos templos e santuários, ver­dadeiras casas de horror/terror, fábri­cas de moralismos e de ritos que, por sua vez, alimentam e fomentam o Medo/a Angústia que os produziu e, des­se modo, continuará a produzir e a alimentar, de geração em geração?

A quem interessa que os seres hu­manos tenham medo da morte e sin­tam angústia só de pensar nela? Culti­var a Morte como medo, como angús­tia, não é pôr as bases duma cultura de morte que só convém aos grandes e pequenos Executivos do Mundo que, entretanto, se constituíram e organiza­ram e que estão aí, de geração em geração, a dominar/roubar/matar/des­truir o Mundo e a manter as popula­ções e os povos sob o terror e o infan­ti­lismo, o medo e a angústia, como num círculo vicioso sem fim?

Quem ainda pode ter dúvidas de que assim é? Quem não tem olhos para ver que assim é?

De Jesus, o de Nazaré, diz o Evan­gelho de João que é a Luz. E que a Luz veio ao mundo. Deveria ser acolhi­da em festa. Mas o Mundo não a/o aco­­lheu. E só descansou quando a/o matou da forma mais ignominiosa. O mesmo Evangelho adianta a irrefutável explicação para o facto que constitui também o crime dos crimes. Escreve: “Porque eram más as suas obras. E to­do/tudo o que concebe/pratica o Mal odeia a Luz, não pode com ela e ma­ta-a”.

Tenho para mim que os filósofos da nossa praça que insistem tanto no Medo/na Angústia da morte e de mor­rer integram, inconscientemente com toda a certeza, esse Mundo dos Exe­cutivos e, com uma ingenuidade ilus­trada, fazem-lhe o jogo. Por isso são bem vistos e as suas opiniões vendem e são ensinadas nas Escolas e nas Uni­ver­sidades.

Mas eu não vou por aí. Porque também não é por aí que vai Jesus, o Evangelho Vivo de Deus, que é Deus Vivo e de vivos, não morto e de mortos.

Por isso, e no que diz respeito à morte que inevitavelmente aconte­ce(rá) na vida das pessoas que ama­mos - um dia, também acontecerá na minha vida e na vida de vós que por­ventura me estais agora a ler - sepul­temos com simplicidade/serenidade/dignidade os seus cadáveres, sem fa­zer­mos disso um pranto, um drama, uma angústia. Porque as pessoas que amamos e nos amam, e cujos cadáve­res resultantes da morte que lhes acon­te­ceu estamos a sepultar, estão vivas na Vida e no Deus da Vida que um dia as fez acontecer por pura graça. E ainda mais vivas do que quando as tivemos visivelmente no meio de nós.

O útero vivo que é o planeta Terra torna-se demasiado estreito e pesado para conter as pessoas que nele um dia nascemos e nele estamos em con­tí­nua expansão, já que viver é expan­dir-se. Sepultemos por isso os cadá­veres que elas deixaram, mas ao mes­mo tempo festejemos com elas as no­vas dimensões em que se tornaram.

Porque ninguém nasce para mor­rer/acabar. Todas, todos nascemos pa­ra nascer/expandir-nos no Sopro que está na origem de todo o ser-que-res­pira, o Abbá/Mãe-Pai que nunca nin­guém viu nem verá, mas que se nos revelou definitivamente em Jesus, o Filho por antonomásia, e que, um dia, também nos fez acontecer na História por pura graça e nos sustém no Tempo e para lá do Tempo, ainda e sempre por pura graça, sejamos crentes ou ateus, a Ele pouco lhe importa. O que verdadeiramente lhe importa é que no Mistério que somos, cheguemos, hu­mil­de e alegremente, a dar pela Pre­sença/Ausência do Mistério Maior que Ele é. Não, obviamente, para nos tor­narmos seus servos, cheios de medo/angústia, mas para nos descobrirmos filhas/filhos seus em estado de maiori­dade/responsabilidade, por isso, bem à altura de conduzirmos a História para diante, para a Plenitude da vida e vi­da em abundância para todos os ir­mãos/irmãs, de ontem, de hoje e de amanhã, como se Ele não existisse.

Deixemo-nos, pois, de Medo/An­gús­tia perante a morte. Em vez disso, arregacemos as mangas e mobilizemos todas as nossas capacidades e todos os nossos saberes para levarmos por diante a História que o Abbá/Mãe-Pai de Amor Criador, que nos fez aconte­cer por pura graça, surpreenden­te­mente confiou ao nosso cuidado.

Para tanto, em vez de sermos e de nos comportarmos como mulheres/homens possessos de Medo e de An­gús­tia, sejamos e comportemo-nos co­mo mulheres/homens possessos do Sopro de vida que nos fez um dia a­con­tecer por pura graça, não para mor­rermos/acabarmos no Nada, mas para nos expandirmos até ao infinito.

A morte será por isso o momento maior dessa Expansão, iniciada no útero materno, porque não é o fim da vida, é a Explosão maior da vida. E quando sepultarmos os restos dessa Ex­plosão - o cadáver - façamo-lo com a alegria de quem saboreia já a Pre­sen­ça da pessoa amada que passou a viver, por pura graça, em dimensões outras que nem os olhos viram, nem os ouvidos ou­viram. E que nós só co­nhe­ceremos, quando também para nós chegar esse momento que é de graça e de verdade, não de Medo nem de Angústia!

Frequentemos com alegria a Es­co­la de Jesus, a sua prática, e sere­mos curados de todos os medos e an­gústias. Tornar-nos-emos mulheres/ho­mens jesuânicos, outros Jesus, mili­tantes das suas mesmas Causas den­tro da História ainda em curso e em expansão.

Mas atenção. Os Executivos do Mundo que não aceitarem ir por aí, as­sim como todos os seus privilegiados lacaios, não suportarão que fique a descoberto o Mal/o Perverso das suas economias e das suas políticas. E por­que odeiam a Luz, também nos odia­rão a nós, as/os que não disserem com eles, pelo contrário, puserem bem a nu o Mal/o Perverso das suas obras, nomeadamente, das suas economias e das suas políticas.

Quando isso suceder, alegremo-nos, apesar das dores que semelhan­tes perseguições sempre nos causam/causarão!


Do culto da morte e dos mortos ao culto da vida e dos vivos

Porque não puderam edificar-lhe um túmulo, depois de o matarem na Cruz (o cadáver dele foi desprezivelmente lançado à vala comum!), como sempre foi costume fazer aos profetas que antes dele foram sendo sucessivamente assassinados, os sucessores dos Executivos que mataram Jesus, o de Nazaré, na cruz como o maldito dos malditos, quando chegaram ao Poder do Império romano feito cristão-católico pelo imperador Constantino, fizeram uma coisa ainda mais hedionda e obscena que os antigos: transformaram-no no mítico Cristo-deus desse Império tornado cristão católico romano e reduziram-no para sempre à imagem de um crucificado cravado na Cruz. Colocaram depois uma e outra à adoração das populações. O culto pagão católico romano pegou de moda, ou não fosse imposto pela força e o Ressuscitado Jesus ficou assim para sempre reduzido a essa imagem de crucificado cravado na cruz. Desde então, a cruz com a imagem de um crucificado cravado nela, está em todo o lado - casas, templos, caminhos, e até anda dependurada ao pescoço das pessoas, como amuleto de ouro ou prata. E, sempre que foi necessário e conveniente, apareceu junto com a Espada, para submeter povos acabados de conquistar, ou junto com aviões de combate e mísseis teleguiados de longo alcance. É a globalização do Dinheiro, do Poder e do Templo/Re­­li­­gião no seu pior.

O culto dos mortos acompanha-nos desde os primórdios da Humanida­de. Os antropólogos até gostam de dizer que é o primeiro e o mais seguro ind­­ício da existência de seres huma­nos no planeta, já não só de animais e de todos os outros seres vivos que nos precederam na Evolução.

Não venho aqui dizer que esta te­se esteja errada ou que é falsa. Mas, iluminado/animado/confortado pela mesma Fé de Jesus que nunca nos é a­presentado a praticar o culto dos mor­tos, muito pelo contrário, muitos dos si­nais (atenção, escrevi “sinais”, não “milagres”, como erradamente e inte­res­sei­ramente fazem certos tradutores eclesiásticos ao serviço do Sistema que lhes paga e distribui lugares de prestígio para melhor os ter na mão) que ele protagoniza na sua prática/mi­litância política quotidiana ao serviço do Reinado de Deus, precisamente, os maiores e os que mais carregados an­dam de força subversiva e conspira­tiva, são sinais que pulverizam por com­pleto o sagrado culto dos mortos, atrevo-me então aqui a dizer/revelar que esse é um culto com que eu de mo­do algum me identifico ou me ocu­po, desde há muitos anos e que até te­nho como a expressão maior, ou, pelo menos, a expressão historica­men­te mais persistente do Paganismo re­ligioso que ainda hoje - com tristeza e indignação o digo - nos cerca, condi­ci­ona e desumaniza por todos os la­dos.

E digo mais: ou resistimos, como num duelo e como Jesus sempre fez, ao sagrado culto dos mortos e sub­ver­temo-lo sem descanso e subverte­mos tudo o que hoje está aí, directa ou indirectamente, relacionado com ele (pensem por momentos, se forem capazes, até onde já vai a extensão e a profundidade do Negócio e do Lu­cro que este culto dos mortos actual­mente representa, proporciona e fo­menta, pelo menos nos países do Oci­dente, também no nosso, desde os can­galheiros mais vulgares ou mais refinados e para bolsas bem rechea­das aos párocos que sacrilegamente rezam/vendem missas pelos mortos) e, ao mesmo tempo, ousamos inventar/criar/introduzir na sociedade práticas alternativas de culto/respeito/amor pe­los vivos, nossos concidadãos e nossos contemporâneos, e pela Vida de qua­li­dade e de abundância para todas as pes­soas e para todos os povos, onde quer que estejam e qualquer que seja a cor da sua pele, língua ou cultura, tal e qual como Jesus paradigmatica­mente sempre fez também, no seu pe­que­no país, ou então nunca mais che­ga­remos a alcançar a dimensão plena­mente humana a que estamos chama­dos, desde antes da nossa concepção no útero materno.

O culto/medo da Morte é o que há de mais irracional e humanamente pe­ri­goso à face da terra. É um culto/medo que torna irracionais aquelas, aqueles que se deixam possuir/atravessar/con­duzir por ele. Basta pensar no caso dos homens/mulheres-bomba, hoje des­gra­çadamente tão em moda, e na­queles que os educam/mentalizam para esse protagonismo suicida/geno­cida.

Pensemos também nos “civiliza­dos” quartéis e academias militares que todos os grandes Executivos na­cionais do mundo fazem questão de ter ao seu incondicional serviço e que, bem vistas as coisas, existem, em última instância, para transformarem seres humanos em soldados armados e dis­poníveis/prontos a matar aquelas po­pu­lações, aqueles povos que esses mes­mos Executivos do Dinheiro, do Poder e do Templo (estes, sobretudo para abençoar tudo em nome de Deus!) definem e apontam como “o Inimigo” a neutralizar e a abater (vejam que nun­ca dizem, como Jesus, que essas populações, esses povos são o nosso próximo, o outro distinto de nós, a quem devemos amar até dar a vida por elas, por eles).

Basta percorrer em diagonal os qua­tro Evangelhos canónicos e logo ve­mos que não é pelo culto dos mortos que vai a prática política quotidiana de Jesus. Muito pelo contrário. Basta atentar no modo como Jesus procede com a filha de Jairo, com o filho da viú­va de Naím, e, sobretudo, com o seu amigo Lázaro, irmão de Maria e de Marta. Em nenhum dos casos, Jesus in­ter­vém para prestar culto aos que aí são teologicamente descritos/apresen­tados como mortos (atenção, disse “teo­lo­gicamente”, não jornalisticamente). A sua presença/intervenção é sempre po­liticamente subversiva/conspirativa/provocadora e, só por isso, é que é Notícia, nos casos em questão, Boa Notícia ou Evangelho.

E, se dos actos de Jesus, ou das suas práticas políticas, passarmos às suas palavras e ao Sopro conspirador/libertador/insurreccional que as atra­ves­sa a todas, as coisas tornam-se ain­da mais fecundamente escandalosas e saudavelmente chocantes, sobretudo, se atendermos ao modo tradicional e ainda hoje generalizado de encarar a morte e o culto dos mortos.

Por exemplo, a um dos homens que Jesus convida a fazer-se seu discípulo e, consequentemente, fazer suas as Cau­sas do Reinado de Deus (entenda-se, em linguagem de hoje, trabalhar afincadamente com toda a inteligência e com todo o afecto para que ganhe cor­po na História uma Ordem Econó­mi­ca e Política Mundial que garanta vi­da e vida em abundância a todos os seres humanos e a todos os seres vivos, em todos os tempos e lugares, a qual progressivamente derrube e substitua esta nossa presente Ordem Mundial do Dinheiro, intrinsecamente perversa e obscena), que para ele era, é “a única coisa necessária” que todos os seres humanos conscientes e responsáveis sempre havemos de fazer (como se vê, “a única coisa necessária” para Je­sus não é, como erradamente ainda hoje revela a prática das Igrejas e dos igreijeiros, dizer/papaguear orações, an­dar de missa em missa, de igreja em igreja, de santuário em santuário, de natal em natal, de quaresma em qua­resma, de páscoa em páscoa, de cemi­tério em cemitério), e quando aquele con­vidado por ele a fazer-se seu discí­pu­lo lhe pede que primeiro o deixe ir sepultar o seu pai (era a manifestação maior de respeito, por parte de um judeu de então), logo ali Jesus lhe respon­de com palavras que mais parecem uma espada de dois gumes e que con­têm algo que ainda hoje soa a blasfé­mia: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos! Tu segue-me!”

Por outro lado, a todos os dis­cí­pulos, todas as discípulas que, hoje como ontem e amanhã, efectivamente o seguem e prosseguem as suas mes­mas Causas do Reinado de Deus, mas que por vezes ainda revelam medo perante as perseguições com que são frequentemente ameaçados e confron­tados por parte dos Executivos do Di­nheiro, do Templo e do Império (é o que estes Executivos melhor sabem fazer, senão por suas próprias mãos, sempre muito limpas, por meio de um incontável exército de carrascos/ver­dugos ao seu serviço, desde o intele­ctual que se vende por um mais ou m­e­nos avantajado e suculento prato de lentilhas, ao graduado com o má­ximo de estrelas, e ao porteiro ou ao mo­torista ou à secretária ou mulher a dias, todos sem espinha dorsal e sem dignidade), Jesus adianta este provo­ca­dor/alentador aviso/alerta, que exige de nós muita inteligência e muita sabe­doria para lhe saborearmos todo o al­cance e toda a profundidade: “Não te­mais os que matam o corpo e não po­dem matar a alma [traduza-se “alma” por “Eu sou” ou por “a identidade úni­ca” que cada uma, cada um de nós é, quando não desiste de ser Mulher, Ho­mem]. Temei - acrescenta Jesus - so­mente Aquilo [não “Aquele” como tradu­zem os tais profissionais eclesiásticos de turno ao serviço do Sistema que lhes garante lúgubres lugares de prestígio], que depois de matar o corpo, ainda po­de matar-vos a alma! [= pode reduzir-vos a coisa, a objecto, a lacaio, a minho­ca, a monstro, a carrasco/verdugo, a eunuco ao seu incondicional serviço]. A Isso - sublinha Jesus - haveis de te­mer!”

É por Jesus ser assim, tão nos antí­podas do que nos têm dito/mentido to­das as Igrejas (e as que apareceram mais recentemente são ainda mil vezes pior que as históricas), que ele acabou como a História regista: Crucificado pelo conjunto dos três Executivos da altura e do país, os quais, rivais entre si, puse­ram-se de acordo nesta decisão: os Executivos do Templo (com os sumos sacerdotes à cabeça), do Dinheiro (com os grandes ricos Saduceus do Sinédrio à cabeça) e do Poder/Império (com o troca-tintas e oportunista Pilatos à ca­be­ça).

Os três como um só decretaram que um Homem com uma prática política quotidiana assim, com uma Espiri­tualidade ilustrada assim e com uma Força Sororal/fraterna universal assim, e ainda por cima, completamente de­sarmado e à intempérie, não podia con­tinuar vivo, pois era o maior perigo público e, por isso, tinha que morrer, ser morto. E do pior género de morte, a cruz, a única que, além do horrível sofrimento que causava ao condenado, ainda o tornava e ao seu nome maldi­tos para sempre. E assim se fez.

Mais tarde, quando esses mesmos Executivos se deram conta de que Ele estranhamente prosseguia entre eles e a desmascará-los como perversos, sob a forma de Corpo-Sopro/Espírito, e que assim já nada podiam fazer para o aniquilar, nem sequer podiam pro­mover-lhe um perpétuo culto num lu­xuoso monumento funerário (sempre ti­nha sido assim que os Executivos dos antepassados deles haviam feito aos Profetas que os seus pais haviam man­dado assassinar, para que, desse mo­do, a sua memória deixasse de incomo­dar, não se tornasse subversiva e peri­gosa!), lá acabaram, na sua perversi­dade, por inventar uma obscenidade ainda maior que a dos antepassados: transformaram Jesus em Cristo/Deus – o deus deles! - pregado na cruz, que todos os povos, seus súbditos, have­riam/haverão de adorar/temer/idolatrar.

É ainda e sempre o culto dos mor­tos, mas agora muito mais refinado, por­que já não há túmulo/mausoléu, nem cadáver. Há uma cruz, a mesma que o Império inventou para castigar/matar exemplarmente os seus oposi­tores e, nela, colocaram a imagem de um crucificado que nem pode ser a ima­gem de Jesus, uma vez que ele, des­de o momento da Morte violenta que sofreu, é o definitivamente Vivo/Res­suscitado Jesus, subversivo e cons­pi­rativo q. b.

Ora, perante este mais que hedi­on­do crime, o que fazem as populações e os povos? Em lugar de ousarem ser populações-e-povos-Jesus-Século-XXI e, consequentemente, correrem riscos idênticos aos que ele historicamente correu, metem-se nos templos a adorar e a beijar essa cruz do Império romano, na qual os Executivos que o mataram mandaram cravar a imagem de um cru­ci­ficado que, obviamente, não é Jesus, o de Nazaré, mas que os Executivos e a(s) Igreja(s) em conluio com eles di­zem que é e adoram e fazem adorar co­mo tal. E de Jesus, o agora definiti­va­mente vivo, subversivo e conspirativo q. b., a(s) Igreja(s), as populações e os povos não querem nem ouvir falar. Muito menos se atrevem a serem Je­sus, aqui e agora, em feminino e em mas­culino, com práticas políticas quoti­dianas como as dele, que contribuam decisivamente para derrubar esta Or­dem Mundial perversa que temos e aju­dem a dar à luz uma Ordem Mundial al­ter­nativa, que garanta vida e vida em abundância e de qualidade para todos os povos sem excepção, em todos os tempos e lugares.

Acordemos/Ressuscitemos! E mu­de­mos radicalmente de Deus. Mudemos do Deus de mortos que são os ídolos, sobretudo, o Dinheiro, para o Deus de Vivos, o de Jesus. E, consequentemente, mudemos também de vida e de práti­cas políticas quotidianas. Ousemos ser homens/mulheres/povos-Jesus. É preci­so, imperioso, urgente. É inadiável!



DESTAQUE 2

Vêm aí novos Catecismos

Mas sem a Igreja mudar de Deus, ainda pode ser Sinal de Salvação?

Vem aí mais uma fornada de novos catecismos para as crianças e adoles­cen­tes portugueses. Ao todo, nove volu­mes. Os quatro primeiros já editados estão neste momento a ser experimen­ta­dos em algumas paróquias do país.

A notícia foi confirmada no decurso das Jornadas Nacionais de catequese, realizadas no início do últi­mo mês de 2007, subordinadas ao te­ma “Novos Catecismos - Nova Cate­quese - Novos Catequistas - Para que acreditem e tenham vida”.

O facto revela que há, da parte da nossa Igreja católica, nomeadamente da sua hierarquia, preocupação de mu­dar. E que até há alguma mudança con­creta já à vista.

Falta saber se tamanho esforço por parte da Igreja é o mais adequado para o nosso Hoje, ou se, no que res­pei­ta a resultados práticos, a iniciativa redundará num enorme fiasco.

É que tudo pode não passar de uma enorme operação de cosmética. Mu­dar alguma coisa, para que tudo fi­que na mesma. Pode ser mais do mes­mo, agora embrulhado em nova lingua­gem e em novas gravuras, mais imagem e menos palavras. E também menos Palavra-com-Espírito.

A iniciativa - devo confessar que ainda não vi nenhum exemplar dos no­vos catecismos já editados, mas tam­bém não é necessário, para o que vou aqui dizer, a seguir - sofre, a meu ver, de um pecado original que pode feri-la de morte à nascença e fazer dela um aborto de desastrosas consequên­cias, não só para a própria Igreja, mas sobretudo para a Humanidade que a Igreja deve servir maieuticamente e não assistencialmente. E o pecado original reside nisto:

Ser uma iniciativa concebida e le­vada a cabo para crianças e adoles­cen­tes, quando, como sabemos, nem elas nem eles são os protagonistas da História, muito menos, estão à altura de resistir activamente e de fazer frente aos Executivos do Dinheiro, do Poder e da Religião que continuam aí a do­minar e a formatar o nosso mundo, tam­bém e sobretudo, o cérebro e a consci­ên­cia de todas as crianças/adolescen­tes, com catequese eclesial ou sem ela.

Aliás, é sintomático que no enunci­ado das referidas Jornadas Nacionais, se fale de Novos Catecismos, de Nova Catequese, de Novos Catequistas, e não se fale de novas mães, novos pais, de novos adultos. É sintomático e gra­ve. A omissão, só por si, diz que as mães e os pais e os adultos em geral continuam a ser os grandes ausentes da acção pastoral da Igreja e também os grandes descatequizados, quando, no dia a dia das crianças/adolescentes, são as principais presenças que inter­ferem nas suas vidas, em casa e fora dela.

Por isso, uma catequese concebida para crianças/adolescentes arrisca-se a ser, à parti­da, um enorme empreen­di­mento ecle­sial votado ao fracasso. É, de resto, a própria realidade das paró­quias que o diz/confirma. As comunhões solenes, de antigamente, e os Crismas, da actualidade, mais não foram, mais não são do que solenes despedidas, solenes abandonos da Igreja e, quase sempre, até da Fé.

Os bispos que andam, anos e anos a fio, de domingo em domingo e de pa­róquia em paróquia, a administrar o sacramento do Crisma - bem sei que de­veria escrever “celebrar” e não “ad­mi­nistrar”, mas a verdade é que de me­ra administração ritual e burocrática se trata, tantas vezes imposta sob a amea­ça eclesiástica de que, se não se cris­marem, também não poderão casar ca­no­nicamente, nem ser madrinhas/pa­drinhos de baptismo, etc, etc - têm obri­gação de saber que estão simplesmen­te a perder o melhor do seu tempo.

Aquilo que eles ingenuamente - ou preguiçosamente? - realizam, no meio de ambientes totalmente artificiais, por isso, sem verdade, como se fossem aves raras que passam pela paróquia, a quem é preciso impressionar bem, des­de que a visita pastoral se inicia até que se acaba, é tudo perdido.

Experimentem os mesmos bispos aparecer de surpresa e como um fiel mais que vai à missa ao domingo, um mês ou dois meses depois, nalguma daquelas paróquias onde administra­ram o crisma, e verão que ninguém os reconhecerá, como bispos, nem eles reconhecerão ninguém dos que os ha­viam aplaudido, ou proferiram aqueles discursos de circunstância e assumiram aqueles compromissos que o ritual do crisma sugere/impõe que se diga que se assumem.

E - coisa mais surpreendente ainda - verão que já não encontrarão por a­quele ambiente paroquial nenhum ou quase nenhum dos adolescentes que eles crismaram. Todos, ou quase todos debandaram da paróquia e das missas de domingo. A maior parte deles, para sempre.

Serão os novos ateus de amanhã, já não apenas, como os de hoje, bapti­zados poucos dias depois de terem nas­cido e comungados solenemente, mas também crismados solenemente, com a presença do bispo e tudo.

A nossa Igreja, a começar pelos bispos, tem de se convencer duma coi­sa essencial: Isto já não vai lá nem com novos catecismos, nem com novas catequeses, nem com novos catequis­tas. Provavelmente, nem com novas mães, novos pais e novos adultos, elas e eles.

As paróquias católicas que temos, e que vêm do politeísta e idolátrico Im­pério romano, não são, não podem nun­ca ser modelo de Igreja, a do Con­cílio Vaticano II, muito menos a de Je­sus. São modelo de Igreja-Poder ecle­siástico e clerical. São, por isso, anti-Igreja de Jesus. Infantilizam e promo­vem/alimentam menoridades. Ferem de morte tudo o que tocam. São estruturas por onde o Espírito de Deus Vivo, o de Jesus, não consegue passar. E, quan­do, num caso ou noutro, inesperada­mente consegue passar e fazer-se no­tar (pelos frutos se conhece e estes são a rebeldia, a subversão, a maioridade, a palavra à solta, a liberdade, o inespe­rado, o reboliço, a polémica, o conflito, a tensão, a abertura ao de fora e ao No­vo, a prevalência da vida e da cri­ati­vidade sobre o rito e a norma, o dom das línguas, não no sentido das estú­pidas práticas dos chamados carismáti­cos, mas no sentido de que cada pes­soa é palavra-e-gesto e faz uso dela-e-dele, tem voz e tem vez e é reconhe­cida na sua diferença), depressa é aba­fado e expulso pelo único gestor da em­presa paroquial que é o pároco, um estranho vindo de fora e de longe, im­posto pelo bispo que é o gestor-mor da diocese-empresa, quando não é ab­afado até por um qualquer membro da Fábrica da Igreja que, lá por ser dos maiorais em dinheiro da freguesia/paróquia, tam­bém se acha no direito de ser dos maiorais na paróquia e de­pressa faz correr dela quem mais por­tador era do Espírito, por vezes - sur­pre­sa das surpresas - o próprio pároco que, intempestivamente e com rara au­dácia, desistiu do seu papel de mero funcionário eclesiástico da paróquia, deixou-se possuir/animar pelo Espírito e passou a fazer novas todas as coisas que sempre haviam sido inalteráveis, desde há múltiplas e sucessivas gera­ções.

Convençam-se, meus irmãos cató­licos, mulheres e homens, a começar pelos bispos, pelos presbíteros e pelos diáconos, duma coisa que em verdade, em verdade lhes digo: Com este mo­delo de Igreja paroquial/territorial e ainda por cima clerical, não vamos lá. Nunca. Por mais que mudem os cate­cismos.

Atrevamo-nos por isso a quebrar as rotinas institucionalizadas e deixe­mos de pôr remendos de pano novo em tecido velho, ou vinho novo em o­dres velhos. Parem, se for caso disso, com as missas rotineiras do domingo, durante um ano ou mais. Esqueçam o calendário litúrgico e olhem com olhos de ver a realidade que os cerca e cla­ma. Coloquem-se em Assembleia Ple­nária permanente. Esqueçam, por uns tempos, as crianças e deixem definiti­vamente de ser uma Igreja de crianças.

Ousem ser Igreja, o mesmo é di­zer, assembleia de pessoas adultas convocadas pelo Espírito Santo e reu­nidas em nome e em memória de Jesus. E pessoas adultas não só em idade, mas também na Fé, não em qualquer Fé, mas na mesma Fé de Jesus.

As crianças também terão o seu lugar, mas como acompanhantes das suas mães e dos seus pais, os primei­ros a ser evangelizados e, depois, cate­quizados.

Enquanto não tivermos mães e pais maduros na mesma Fé de Jesus, que se­jam os principais evangelizadores e os principais catequistas das suas fi­lhas, dos seus filhos, a Igreja nunca o chegará a ser, sempre será uma em­presa de menores e para menores, por isso, estéril, fora do tempo, sem dimen­são política, sem profecia, sal sem força, obscurantista, fábrica de rotinas e de missas em série, mais prejudicial ao mundo do que presença transforma­dora do mundo.

Mas, para que toda esta revolução aconteça e vá por diante, primeiro que tudo - e este é o busílis da questão - é preciso converter-se, mudar de Deus. Deixar duma vez por todas o Deus da Religião (das orações-sem-oração, dos-ritos-sem-espiritualidade, das promes­sas-como-forma-de-negócio-com-deus-ou-com-os-santos, das missas-pelos-mortos-coisa-mais-mentirosa-e-sa­crílega-ainda-que-rentável-para-os-párocos, dos santos-de-pau carun­chen­to-ou-de-caco, dos santuários-da-alienação-e-da-humilhação-popular), e acolher com alegria e audácia o Deus de Jesus.

De contrário, nem sequer seremos capazes de acolher o Evangelho, a Boa Notícia de Deus que é Jesus Crucifi­cado/Ressuscitado e o seu projecto po­lítico do Reinado de Deus, e não, de forma alguma, esta Igreja católica ro­mana que temos, com mais variante ou menos, desde o imperador Cons­tan­tino.

Sei que estou a pedir-lhes o impos­sível. Mas, ou assim, por esta porta estreita, a de Jesus, ou continuareis to­dos a frequentar a porta larga das ro­tinas e da idolatria católica que leva ao infantilismo, à alienação, ao rito, ao tradicional-sem-Tradição, à Religião-sem-Igreja-e-sem-Fé-de-Jesus, ao Ecle­siástico-que-sempre-humilha-e-mata-quem-dele-se-aproximar.

Já sabem que, embora continue a ser Igreja convosco, não vou por aí. A toda esta alienação e a toda esta este­rilidade/iniquidade, prefiro os dois ou três de que nos fala Jesus. Não impres­sionamos a sociedade pelo exótico e pelo folclórico, nem pelo número, mas constituímos um discreto e pequenino Sinal, quase sempre de contradição, mesmo no interior da Igreja que somos convosco, e que serve de referência a muitas, muitos dos nossos contemporâ­neos, inclusive ateus, que, graças a esse Sinal, sentem-se estimulados a ser cada vez mais humanos e sororais/fra­ternos, livres e sem religião, mas com muito Afecto/Combate político solidário e libertário.


EDITORIAL

E o deus-Dinheiro?

Ao contrário do que escreve o Cardeal Patriarca de Lisboa numa Carta às leitoras e aos leitores do matutino Correio da Manhã, numa edição especial de natal 2007, o drama maior da Humanidade actual e dos Povos do Mundo não é, como ele garante, "negar ou desconhecer Deus". Porque a verdade é que a Deus nunca ninguém O viu. E se dissermos que cremos/conhecemos/amamos a Deus a quem não vemos e não cremos/conhecemos/amamos os irmãos, particularmente os milhares de milhões de pobres, melhor, empobrecidos do mundo que vemos - eles hoje até estão aí a cercar-nos por todos os lados e começam já a invadir as nossas casas, os nossos condomínios fechados, os nossos palácios, as nossas construções de luxo, os nossos templos, as nossas basílicas de muitas dezenas de milhões de euros, numa palavra, a nossa civilizada e ilustrada Europa-fortaleza e, por isso, não podemos de modo nenhum ignorá-los, por mais que os deixemos sacrilegamente morrer no mar, já com o chão das nossas praias ao alcance dos seus olhos, ou nos apressemos a algemá-los como bandidos, quando eles, em significativa percentagem, ainda conseguem chegar vivos, mais mortos do que vivos, diga-se, e desidratados ao chão das nossas praias - somos simplesmente mentirosos e idólatras (cf 1.ª João, 4). Porque então o Deus que cremos/conhecemos/amamos sem nunca O termos visto, é uma Mentira e um Ídolo - a Mentira e o Ídolo por antonomásia - com que cobrimos e justificamos a vergonha e o crime maior da nossa actualidade que é não só a existência de pobreza/miséria e de pobres/miseráveis em massa, mas a sua contínua e compulsiva fabricação em massa no Mundo. Que outra coisa não é a presente Ordem Económica Mundial do Dinheiro, senão a mais medonha e a mais obscena fábrica de fazer pobres e pobreza em massa. E tudo a coberto, é claro, de Deus, do Nome de Deus, da Civilização, da Democracia, da Economia, da Macro-economia, numa palavra, da Lei e da Ordem. E sempre com a cumplicidade passiva e até activa/legislativa dos Executivos das nações, também dos Excutivos das Igrejas cristãs, as históricas e as mais recentes, particularmente, as mais recentes, que parece terem sido criadas só para essa obscenidade maior e para esse pecado maior que é fazerem/lavarem dinheiro sujo, ao mesmo tempo que proclamam como Evangelho de Deus o que não passa do mais descarado anti-Evangelho de Jesus e do Deus de Jesus, cujo perverso kerigma se resume a esta blasfémia: Felizes todos aqueles que mais enriquecem na vida, sem olharem a meios e sem nenhuns escrúpulos, porque são eles os mais abençoados por Deus!

O Cardeal Patriarca de Lisboa não pode ignorar - ele é um conhecido membro de cúpula da Igreja católica, homem culto e bem informado e muito por dentro dos meandros dos Executivos dos Privilégios, aos quais também pertence e esse talvez seja o seu mais perigoso calcanhar de Aquiles que o não deixa ver a Luz, a Verdade, apenas parte dela, ou, pior ainda, apenas o brilho da Mentira que ele toma por Luz e por Verdade, quando não passa de densa Treva - que o Ateísmo, só por si, nunca foi nem nunca será o Inimigo maior e mais mortal da Humanidade e dos Povos, embora hoje, esteja aí a desenvolver-se um novo tipo de Ateísmo altamente perigoso e mortal. Não propriamente por ser Ateísmo, mas por servir de capa à Idolatria mais refinada e aparentemente ilustrada, a do deus-Dinheiro.

Obviamente, que não é neste novo tipo de Ateísmo que o Cardeal Patriarca de Lisboa está a pensar, quando escreve que "negar ou desconhecer Deus" é o maior drama da Humanidade actual e dos Povos do Mundo. Porque este novo tipo de Ateísmo não nega nem desconhece Deus. O que ele nega e desconhece é apenas o Deus das Religiões e das Igrejas eclesiásticas, como a nosssa católica romana, instaladas nas suas rotinas e nas suas estupidificantes práticas dos ritos religiosos, nas paróquias imperiais, sem um pingo de Profecia e de Verdade, daquela Profecia e daquela Verdade que fazem livres quem as praticar todos os dias, não apenas as recitar como papagaios, a partir dos textos canónicos, os da Bíblia, ou de outras proveniências. Porque na verdade o que esse novo tipo de Ateísmo pretensamente ilustrado mais conhece e reconhece é Deus, mas o do Dinheiro, o deus-Dinheiro. E tem-no como o seu único Deus todo-poderoso. Por ele é capaz de tudo, até de perder a própria vida.

Só que este Ateísmo pretensamente ilustrado não passa da mais densa Treva, é a anti-Ilustração, é a anti-Luz, a anti-Verdade, na sua dupla dimensão, a da prática  e a do discurso. A da prática, porque em vez ser um viver de Amor desinteressado aos demais é um viver de Ódio-e-Cinismo aos demais; e a do discurso, porque em vez de pensar um viver libertador com os demais, tanto das pessoas como dos povos, sempre pensa um viver opressor, e do que há de mais refinado e mais crasso, sobre os demais, tanto das pessoas como dos povos. O que, tudo somado, dá Mentira e Assassínio cientificamente organizados à escala global. E outra coisa não é e não faz, está a fazer a presente Ordem Mundial do Dinheiro, hoje totalmente à rédea solta, sem que os Povos do Mundo e os seus intelectuais orgânicos - ainda os há? Onde estão eles? Não se venderam todos ao deus-Dinheiro?! - saibam, para já, como havemos de lhe resistir. O que já sabemos - só mesmo os cegos que não queiram ver é que não sabem - é que a nossa Resistência e o nosso Enfrentamento terão de ser uma resistência e um enfrentamento duélicos e martiriais, onde muitas, muitos de nós, daremos/perderemos a própria vida, se tivermos a audácia de os protagonizarmos desarmados, como sempre terá de ser, se quisermos que sejam fecundos e geradores de um Futuro outro, alternativo ao que hoje o deus-Dinheiro está aí a edificar.

Por isso, ter-me-ia alegrado muito, e comigo, certamente, muitas outras pessoas, católicas ou não, inclusive ateus de boa vontade e anti-idólatras convictos, se tivesse visto o Cardeal Patriarca de Lisboa alertar as leitoras, os leitores do CM, não contra o Ateísmo que nega Deus nem contra o Agnosticismo que O não (re)conhece - e quem pode dizer que conhece Deus, fora de Jesus, o de Nazaré, isto é, fora da mesma Fé de Jesus e praticada por Jesus, o que o levou a ser o Crucificado/Ressuscitado? - mas contra a Idolatria, hoje globalizada e absoluta, do deus-Dinheiro e contra a sua religião global que ele, na sua obscenidade, nem sequer precisou de inventar, bastou-lhe reproduzir, agora na linguagem secularista e laicista do Século XXI - não confundir com Secularidade nem com Laicidade, ambas filhas da Fé de Jesus e do seu Evangelho libertador - o discurso e o culto religiosos do Paganismo católico que, desde o imperador Constantino, no século IV, tem imperado no Ocidente sob a forma de Cristandade Ocidental, e que ainda foi exportado pelos missionários e pelos conquistadores católicos romanos para os Povos de África, América e  de outras partes do Mundo. Deste deus-Dinheiro e da sua religião idolátrica, filhos um e outra da Cristandade, gostaria eu que o Cardeal Patriarca de Lisboa falasse. E, lúcida e corajosamente, os denunciasse. Porque não são a mera negação e o mero desconhecimento de Deus o drama maior da Humanidade e dos Povos. O drama maior da Humanidade e dos Povos, hoje, como nos séculos passados e futuros, é a Idolatria, o crer/conhecer/amar a Deus que não vemos, sem crer/conhecer/amar os irmãos/os Povos e os Pobres que vemos. Porque semelhante Deus é um ídolo, é um Monstro, é o Perverso institucionalizado. Hoje, o deus-Dinheiro e a sua Ordem Mundial globalizada.


ESPAÇO ABERTO

Morrer para viver mais e melhor

L. Boff (teólogo)

O sentido da vida depende do sen­tido que damos à morte. Se a morte é vista como simples negação da vida e como tragédia biológica, então vale o que São Paulo já dizia: “comamos e be­bamos, pois amanhã morreremos”.

Mas há culturas que lhe deram um sentido mais alto. Ela é oportunidade de construir o próprio destino e de plas­mar o mundo à nossa volta con­so­an­te um projecto civilizatório.

O cristianismo, por sua vez, propõe a sua representação da morte. Não contrária à vida, mas como uma inven­ção inteligente da vida para poder dar um mergulho radical na Fonte de toda a vida. A morte não seria um fim-termo mas um fim-meta alcançada, um pere­grinar rumo ao Grande Útero paternal e maternal que enfim nos acolherá defi­nitavamente.

Dentro do cristianismo desenvol­veu-se, com referência à morte, uma tradição de grande significação e de sentido de festa. Trata-se da tradição fran­ciscana. Francisco de Assis conse­guira uma reconciliação bem sucedida com todas as coisas, com as profunde­zas mais obscuras de nossa vida e com as suas dimensões mais luminosas. Can­tava a morte como irmã. Não como bruxa que nos vem arrebatar a vida, mas como irmã que nos introduz no reino da plena liberdade. Morreu can­tando salmos e cantigas de amor da Provence.

Os franciscanos todos guardam esta herança sagrada na forma como celebram a morte de algum confrade, membro da comunidade. A mim, como frade (que ainda sou em espírito) me to­cou vivenciá-lo inúmeras vezes. É sim­­plesmente comovedor - uma pe­que­na antecipação do novo céu e da nova Terra - dentro deste já cansado pla­neta. Ao aproximar-se a morte do confrade, toda a comunidade reúne-se ao redor de seu leito. Recitam-se sal­mos e orações, infundindo confiança ao moribundo para o Grande Encon­tro. No dia em que morre, à noite, faz-se festa. É a chamada “recreação”. Aí há confraternização, comida, bebida, comentários sobre a saga pessoal do confrade falecido e jogos de vários ti­pos.

No dia seguinte, faz-se o enterro. E à noite, nova “recreação” festiva. O que se esconde atrás desse rito de pas­sagem? Esconde-se a crença de que a morte é o vere dies natalis, o verda­dei­ro Natal da pessoa, o momento em que acaba de nascer definitivamente.

Como não estamos ainda prontos, embora inteiros, cada dia vamos nas­cendo, progressivamente, até acabar de nascer. Isso dá-se na morte. Esta não é a campa da vida. É seu berço.

Quem pode entristecer-se com o nascimento da vida? É Natal e Páscoa, magnificação da vida mortal que a par­tir da morte se eterniza. Portanto, há bons motivos para festejar e celebrar.

O efeito desta compreensão é a des­dramatização da morte e a joviali­da­de da vida. A vida não foi criada para terminar na morte, mas para se trans­formar através da morte. Esta repre­senta aquele momento alquímico de pas­sagem para uma outra ordem de rea­lidade, onde a vida pode continuar sua trajectória de expressão das in­finitas possibilidades que contém, até aquela de poder fundir-se com a Supre­ma Realidade.

Então podemos dizer: não vivemos para morrer. Morremos para viver mais. Melhor ainda: para permitir a ressurrei­ção da carne que é a revolução dentro da evolução.


Retirada sustentável

L. Boff (teólogo)

Aos grandes meios de comunica­ção passou despercebido o impressio­nante discurso que o Presidente da Bolívia, Evo Morales fez em Outubro 2007, nas Nações Unidas. Falou me­nos como chefe de Estado e mais como um líder indígena, cuja visão da Terra e dos problemas ambientais está em claro confronto com o sistema mundial imperante.

Denuncia sem rodeios: “a doença da Terra chama-se modelo de de­sen­vol­­vimento capitalista” que permite a perversidade de “três famílias pos­suírem ingressos superiores ao PIB dos 48 países mais pobres” e que faz com que “os Estados Unidos e a Europa consumam em média 8,4 vezes mais do que a média mundial”. E fez uma pon­deração sábia e de graves conse­quên­cias: “perante esta situação, nós, os povos indígenas e os habitantes hu­mildes e honestos deste Planeta, acre­di­ta­mos que chegou a hora de fazer uma paragem para reencontrarmos as nossas raízes com respeito à Mãe Ter­ra, a Pachamama como nós a chama­mos nos Andes”.

O alarme ecológico provocado pelo aquecimento global já iniciado deve pro­duzir este primeiro efeito: fazermos uma paragem para repensarmos o ca­minho até agora andado e criarmos no­vos padrões que nos permitam con­ti­nuar juntos e vivos neste pequeno pla­neta.

Temos, sim, que reencontrar nos­sas raízes terrenais. Urge que recon­quistemos a consciência de que homem vem de humus (terra fecunda) e que Adão vem de Adamah (terra fértil). So­mos Terra que sente, pensa, ama e ve­nera. E agora, devido a um percurso ci­vilizatório de alto risco, montado sobre a ilimitada exploração de todos os re­cursos da Terra e da vontade desenfre­ada de dominação sobre a natureza e sobre os outros, chegamos a um ponto crítico em que a sobrevivência humana corre perigo.

Assim como está, não podemos con­tinuar, caso contrário, iremos ao encontro de nossa própria destruição.

Ain­da recentemente observava Gor­bachev: “Precisamos de um novo pa­radigma civilizatório, porque o actual chegou ao seu fim e exauriu suas pos­si­bilidades; temos que chegar a um con­senso sobre novos valores, ou em 30/40 anos, a Terra poderá existir sem nós”. Conseguiremos um consenso mí­nimo, quando sabemos que o capitalis­mo e a ecologia obedecem a duas ló­gicas contrárias? O primeiro preocupa-se em como ganhar mais, dominando a natureza e buscando o benefício eco­nómico; e a ecologia, como produzir e viver em harmonia com a natureza e com todos os seres. Há aqui uma in­com­patibilidade de base. Ou o capita­lismo se nega a si mesmo e assim cria es­paço para o modo sustentável de viver, ou então levar-nos-á fatalmente ao mesmo destino dos dinossauros.

Mas somos confiantes, como Evo Morales que, em seu discurso, enfati­zou: “Tenho absoluta confiança no ser humano, na sua capacidade de racio­cinar, de aprender com seus erros, de recuperar as suas raízes e de mudar para a reconstrução de um mundo justo, diverso, inclusivo, equilibrado e harmó­nico com a natureza”.

Consola-nos a sentença do poeta alemão Hölderin: “Quando grande é o perigo, grande é também a chance de salvação”. Quando, dentro de anos, atin­girmos o coração da crise e tudo estiver em jogo, então valerá a máxima da sa­be­doria ancestral e do cristianismo dos primórdios: “Em caso de extrema neces­sidade, tudo se torna comum”. Capitais, saberes e haveres serão participados por todos para poder salvar a todos. E salvar-nos-emos, com a Terra.


I

Jornal Fraternizar

Manuel Sérgio (Reitor do Instituto Piaget)

“Por toda a parte instalam-se já as irresistíveis forças da mudança, as po­tências do futuro, e têm nome. Informa­ção. Comunicação. Ecce os imperativos da nova realidade, ou as palavras de ordem da nova ideologia dominante. Anunciam-nos a emergência da socie­dade da informação, da civilização tecno-científica global, da comunidade universal em que tudo comunica com tudo, continuamente, instantaneamen­te” (Sousa Dias, Estética do Conceito, p.5).

O capitalismo actual necessitava da globalização da informação. “Tal como as máquinas energéticas eram a técnica adequada ao capitalismo industrial tra­di­cional, as logomáquinas são a tecno­logia apropriada ao capitalismo pós-industrial, a que os economistas cha­mam já, significativamente, capitalismo informacional”(idem, ibidem, p. 6).

Digamos, por palavras nossas, que o neocapitalismo precisa de uma infor­mação ultra-rápida, para venda ultra-rápida das mercadorias. E, assim, os pa­radigmas dominantes são o lucro, a mercadoria e a cultura como merca­doria, ou bem de consumo como qual­quer outro.

Ao capitalismo não interessa tanto democratizar a cultura, mas vender o que quer que seja. E o que for mais ven­dável, ou seja, o que apelar menos ao pensamento, à reflexão mais publi­citado é. Vender é tudo o que o capita­lismo sabe de cultura.

Vêm depois os intelectuais, bem pagos pelo capitalismo, dizer-nos que passámos de uma cultura logocêntrica a uma cultura imagocêntrica, ou de uma cultura literária a uma tecnocultura ele­ctrónica e que a filosofia e a teoria são coisas inteiramente sobejantes.

O “jornal fraternizar”, porque tem co­­mo director um jornalista de grande lucidez e de absoluta lealdade e probi­dade a princípios inatacáveis, diz e faz o contrário: faz do espírito crítico uma instância normativa e, por isso, frontal­mente, rejeita o capitalismo, a dissolu­ção da teologia na tal cultura imago­cên­trica e da filosofia em sofística; rejei­ta ainda, porque é presbítero católico, uma igreja que, pouco tendo de actual para oferecer, se desentranha, como acontece com a “Virgem” de Fátima", em acontecimentos susceptíveis de me­dia­tização e... nada mais!

O “jornal fraternizar” não soçobrou perante o capitalismo e, ao pensar con­tra o triunfo absoluto do mercado, a­pon­ta para novos modelos de igreja, para uma nova ordem mundial, para uma nova imagem de Deus Vivo, “o de Jesus”, que “tem a cara e o corpo do Po­bre, do Oprimido, do Excluído, do Imigrante, dos Povos Crucificados”.

     Embora também nele colabore e ninguém é juiz imparcial em causa própria, não escondo que o “jornal fra­ternizar” traz ainda consigo uma novi­da­de que até o leitor desprevenido de­certo vê no primeiro relance: uma gene­rosa ânsia de acção moral gratuita!

Quero eu dizer: este jornal não de­fende qualquer teoria da justiça e da ver­dade, tendo em conta uma recom­pen­sa divina depois da morte, porque acredita que o agir, segundo a mensa­gem jesuânica, só atinge a plenitude em perfeito espírito de gratuidade e de­sin­teresse. A recompensa de quem faz o bem reside precisamente no bem que se faz.

Por isso, o Jesus do “jornal frater­nizar” é laico e abomina as religiões. Os conflitos na Palestina, nos Balcãs, na Irlanda do Norte, na Caxemira, na Ni­géria, na Etiópia, o Sri Lanka, na In­donésia, no Cáucaso, etc., etc. encon­tram na religião a sua causa das cau­sas.

As crenças muçulmanas no martírio e na jihad radicam no Corão, onde os apelos ao assassínio dos infiéis é cons­tante. A metafísica do Islão está bem pou­co vocacionada para a tolerância e a diversidade religiosa. Os homens que cometeram as atrocidades do 11 de Setembro não eram decerto cobar­des, como foram repetidamente descri­tos pelos meios de comunicação oci­den­tais, nem eram dementes. Eram ho­mens de fé – o que é terrível, conve­nhamos.

A História da Igreja Católica regista crimes como os que hoje se condenam no Islão. Só que, no Ocidente, o cristia­nismo foi lido e criticado por Montaigne, Descartes, Locke, Voltaire e muitos mais e, através da racionalidade crítica destes autores, que não eram padres nem bispos, tem um rosto de perdão e tolerância.

O Islão, ao invés, continua na Idade Média e... com as armas atómicas do século XXI! Jesus descerrou os lábios para dizer: Bem-aventurados os pobres de espírito, ou seja, os que sabem que sabem pouco, os insatisfeitos, os dese­josos de novas ideias e novos ritmos, os livres e libertadores.

De facto, ser livre é a condição fun­da­mental para receber a verdade. O mundo de que Jesus nos fala é um mun­do de homens livres, como as crian­ças! E Jesus proclamou também: “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odei­am e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Pois se amardes tão-só os vossos amigos, que mérito te­reis?”.

As religiões supõem poder, margi­na­lização dos crentes que não são pa­dres ou bispos, fundamentação em do­gmas obsoletos. Vale a pena reler, a propósito, o teólogo José Comblin, no último número do nosso jornal:

“O problema entre todos e que está na base de todos eles, é a necessi­da­de de evangelizar sem poder, a partir de uma relação de igualdade: um ser humano com outro ser humano, como modo de relacionamento entre pessoas iguais e não num relacionamento de su­perior e inferior”.

Paulo de Tarso tinha razão: “Não há judeu nem grego; nem escravo nem homem livre; nem homem nem mulher, porque todos vós formais uma pessoa em Cristo”.

O “jornal fraternizar” é ponto de en­contro dos cristãos que, em momentos de grande desilusão, não crêem no Deus das religiões (como o António Marques, de Pombal, a quem envio um abraço fraterno), dos que fazem da cul­tura uma prática solidária e procuram a alternativa ao neoliberalismo que nos comanda e dos que não aceitam uma evangelização onde o poder dos bispos e dos padres desvalorizam a crítica e a criação conceptual dos leigos.

A alternativa ao neoliberalismo é um problema político e moral de urgente s­o­lução. E até o mais importante pro­ble­ma intelectual que se põe às ciênci­as sociais e humanas.

Venho defendendo um neosocialis­mo que não se confunda com um Esta­do benfeitor ou com os vários tipos de cau­dilhismo, que não passam de dita­duras disfarçadas. E, para mim, à luz do que, em Jesus de Nazaré, foi de on­tem, é de hoje, será de sempre.

Lembro o Renan, da Vida de Jesus: “Jesus não pode pertencer unicamente aos que se apelidam seus discípulos. É a honra comum a todos os que têm co­ração de homem. A sua glória não con­siste em estar retirado da história; presta-se-lhe mais verdadeiro culto, mos­trando que toda a história é incom­preensível sem ele”.

Com Jesus de Nazaré surge, na His­tória, uma nova espécie humana. É isto mesmo, afinal, o que o “jornal frater­ni­zar” proclama, número após número. Por isso, por que esconder a honra de ser seu colaborador?


Como endireitar um esquerdista?

Frei Betto (teólogo)

Ser de esquerda é, desde que essa classificação surgiu na Revolução Fran­cesa, optar pelos pobres, indignar-se frente à exclusão social, inconformar-se com toda forma de injustiça ou, co­mo dizia Bobbio, considerar aberração a desigualdade social.

Ser de direita é tolerar injustiças, considerar os imperativos do mercado acima dos direitos humanos, encarar a pobreza como nódoa incurável, julgar que existem pessoas e povos intrinse­camente superiores a outros.

Ser esquerdista – patologia dia­gnos­ticada por Lénin como “doença infantil do comunismo” – é ficar contra o poder burguês até fazer parte dele. O esquerdista é um fundamentalista em causa própria. Encarna todos os es­que­mas religiosos próprios dos funda­mentalistas da fé. Enche a boca de do­gmas e venera um líder. Se o líder es­pirra, ele aplaude; se chora, ele entris­tece; se muda de opinião, ele rapidinho analisa a conjuntura para tentar de­monstrar que na actual correlação de forças...

O esquerdista adora as categorias académicas da esquerda, mas iguala-se ao general Figueiredo num ponto: não suporta cheiro de povo. Para ele, povo é aquele substantivo abstracto que só lhe parece concreto na hora de cabalar votos. Então o esquerdista acerca-se dos pobres, não preocupado com a situação deles, e sim com um único intuito: angariar votos para si e/ou sua corriola. Passadas as elei­ções, adeus trouxas, e até ao próximo pleito!

Como o esquerdista não tem prin­cípios, apenas interesses, nada mais fácil do que endireitá-lo. Dê-lhe um bom emprego. Não pode ser trabalho, isso que obriga o comum dos mortais a ganhar o pão com sangue, suor e lá­grimas. Tem que ser um desses em­pregos que pagam bom salário e con­cedem mais direitos que exige deveres. Sobretudo se for no poder público. Po­de ser também na iniciativa privada. O importante é que o esquerdista se sinta aquinhoado com um significativo aumento de sua renda pessoal.

Isso acontece quando ele é eleito ou nomeado para uma função pública, ou assume cargo de chefia numa em­presa particular. Imediatamente abaixa a guarda. Nem faz autocrítica. Simples­mente o cheiro do dinheiro, combina­do com a função de poder, produz a im­batível alquimia capaz de virar a ca­be­ça do mais retórico dos revolucio­nários.

Bom salário, função de chefia, mor­domias, eis os ingredientes para inebriar o esquerdista em seu itine­rário rumo à direita envergonhada – a que age como tal mas não se assu­me. Logo, o esquerdista muda de ami­zades e caprichos. Troca a cachaça pelo vinho importado, a cerveja pelo uísque escocês, o apartamento pelo condomínio fechado, as rodas de bar pelas recepções e festas sumptuosas.

Se um companheiro dos velhos tem­pos o procura, ele despista, des­con­versa, delega o caso à secretária, e à boca pequena queixa-se do “cha­to”. Agora todos os seus passos são mo­vidos, com precisão cirúrgica, rumo à escalada do poder. Adora conviver com gente importante, empresários, ri­caços, latifundiários. Delicia-se com seus agrados e presentes. Sua maior des­graça seria voltar ao que era, des­provido de afagos e salamaleques, ci­da­dão comum em luta pela sobrevi­vência.

Adeus ideais, utopias, sonhos! Viva o pragmatismo, a política de resultados, a cooptação, as maracu­taias operadas com esperteza (embora ocorram aci­den­tes de percurso. Neste caso, o es­querdista conta com o pronto socorro de seus pares: o silêncio obsequioso, o faz de conta de que nada houve, hoje foi você, amanhã pode ser eu...).

Lembrei-me dessa caracterização porque, há dias, encontrei num evento um antigo companheiro de movimentos populares, cúmplice na luta contra a ditadura. Perguntou se eu ainda mexia com essa “gente da periferia”. E ponti­ficou: “Que burrice a sua largar o go­verno. Lá você poderia fazer muito mais por esse povo.”

Tive vontade de rir diante daquele companheiro que, outrora, faria um Che Guevara sentir-se um pequeno-bur­guês, tamanho o seu aguerrido fervor revolucionário. Contive-me, para não ser indelicado com aquela figura ridí­cula, cabelos engomados, trajes finos, sapatos de calçar anjos. Apenas res­pondi: “Tornei-me reaccionário, fiel aos meus antigos princípios. E prefiro correr o risco de errar com os pobres do que ter a pretensão de acertar sem eles.”


Como endireitar um esquerdista?

Frei Betto (teólogo)

Ser de esquerda é, desde que essa classificação surgiu na Revolução Fran­cesa, optar pelos pobres, indignar-se frente à exclusão social, inconformar-se com toda forma de injustiça ou, co­mo dizia Bobbio, considerar aberração a desigualdade social.

Ser de direita é tolerar injustiças, considerar os imperativos do mercado acima dos direitos humanos, encarar a pobreza como nódoa incurável, julgar que existem pessoas e povos intrinse­camente superiores a outros.

Ser esquerdista – patologia dia­gnos­ticada por Lénin como “doença infantil do comunismo” – é ficar contra o poder burguês até fazer parte dele. O esquerdista é um fundamentalista em causa própria. Encarna todos os es­que­mas religiosos próprios dos funda­mentalistas da fé. Enche a boca de do­gmas e venera um líder. Se o líder es­pirra, ele aplaude; se chora, ele entris­tece; se muda de opinião, ele rapidinho analisa a conjuntura para tentar de­monstrar que na actual correlação de forças...

O esquerdista adora as categorias académicas da esquerda, mas iguala-se ao general Figueiredo num ponto: não suporta cheiro de povo. Para ele, povo é aquele substantivo abstracto que só lhe parece concreto na hora de cabalar votos. Então o esquerdista acerca-se dos pobres, não preocupado com a situação deles, e sim com um único intuito: angariar votos para si e/ou sua corriola. Passadas as elei­ções, adeus trouxas, e até ao próximo pleito!

Como o esquerdista não tem prin­cípios, apenas interesses, nada mais fácil do que endireitá-lo. Dê-lhe um bom emprego. Não pode ser trabalho, isso que obriga o comum dos mortais a ganhar o pão com sangue, suor e lá­grimas. Tem que ser um desses em­pregos que pagam bom salário e con­cedem mais direitos que exige deveres. Sobretudo se for no poder público. Po­de ser também na iniciativa privada. O importante é que o esquerdista se sinta aquinhoado com um significativo aumento de sua renda pessoal.

Isso acontece quando ele é eleito ou nomeado para uma função pública, ou assume cargo de chefia numa em­presa particular. Imediatamente abaixa a guarda. Nem faz autocrítica. Simples­mente o cheiro do dinheiro, combina­do com a função de poder, produz a im­batível alquimia capaz de virar a ca­be­ça do mais retórico dos revolucio­nários.

Bom salário, função de chefia, mor­domias, eis os ingredientes para inebriar o esquerdista em seu itine­rário rumo à direita envergonhada – a que age como tal mas não se assu­me. Logo, o esquerdista muda de ami­zades e caprichos. Troca a cachaça pelo vinho importado, a cerveja pelo uísque escocês, o apartamento pelo condomínio fechado, as rodas de bar pelas recepções e festas sumptuosas.

Se um companheiro dos velhos tem­pos o procura, ele despista, des­con­versa, delega o caso à secretária, e à boca pequena queixa-se do “cha­to”. Agora todos os seus passos são mo­vidos, com precisão cirúrgica, rumo à escalada do poder. Adora conviver com gente importante, empresários, ri­caços, latifundiários. Delicia-se com seus agrados e presentes. Sua maior des­graça seria voltar ao que era, des­provido de afagos e salamaleques, ci­da­dão comum em luta pela sobrevi­vência.

Adeus ideais, utopias, sonhos! Viva o pragmatismo, a política de resultados, a cooptação, as maracu­taias operadas com esperteza (embora ocorram aci­den­tes de percurso. Neste caso, o es­querdista conta com o pronto socorro de seus pares: o silêncio obsequioso, o faz de conta de que nada houve, hoje foi você, amanhã pode ser eu...).

Lembrei-me dessa caracterização porque, há dias, encontrei num evento um antigo companheiro de movimentos populares, cúmplice na luta contra a ditadura. Perguntou se eu ainda mexia com essa “gente da periferia”. E ponti­ficou: “Que burrice a sua largar o go­verno. Lá você poderia fazer muito mais por esse povo.”

Tive vontade de rir diante daquele companheiro que, outrora, faria um Che Guevara sentir-se um pequeno-bur­guês, tamanho o seu aguerrido fervor revolucionário. Contive-me, para não ser indelicado com aquela figura ridí­cula, cabelos engomados, trajes finos, sapatos de calçar anjos. Apenas res­pondi: “Tornei-me reaccionário, fiel aos meus antigos princípios. E prefiro correr o risco de errar com os pobres do que ter a pretensão de acertar sem eles.”


Padres casados

Vozes que chegam do Brasil

1. Eduardo Hoornaert

Quero escrever algo sobre o que a­cho ser o mais importante num encon­tro entre padres casados. Penso que o mais importante consiste em realçar en­tre nós a auto-estima.

Pertencemos àquela parte da huma­ni­dade que chega a tomar decisões pes­soais na vida. Muitos passam a vida sem nunca tomar uma decisão realmente pes­soal de grande importância, que muda o rumo da vida.

Afinal, fizemos dois passos impor­tan­tes que nos distinguem da maioria das pessoas: primeiramente decidimo-nos ordenar, por encontrar nisso um es­paço para a realização de nossa mis­são; em segundo lugar, fomos capazes de perceber a falácia da lei do celibato e por isso tivemos a coragem de deixar o clero, sem contudo romper com nossa missão.

Uns tomaram essa decisão, após dez anos de ordenação, outros (como eu) após 28 anos. Afinal, optámos por ser de­sobedientes e isso faz a nossa origi­na­lidade dentro de uma igreja que sem­pre nos ensinou a obedecer. Fomos ca­pazes de distinguir entre obediência no sentido certo e no sentido errado, o que não é fácil.

Nossa opção deliberada de não o­be­de­cer continua a ser o núcleo incom­pre­endido ou pelo menos frequente­men­te mal compreendido, mesmo entre alguns dos nossos amigos. Compreen­de­mos que a obediência ‘sem comen­tário’ é a base do poder autoritário e que o poder assenta sobre a docilidade (o silêncio, a conformidade) das pesso­as. Maquiavelli dizia: "O homem é um ser disponível", uma grande verdade.

Tanto a TV Globo como a revista Veja sabem disso. Os bispos também. Há no ser humano uma certa "disponi­bi­li­dade" em aceitar sem reclamar o que outros pensam. É mais fácil aceitar sem pensar do que assumir as conse­quências do pensar. Pensando, rompe­mos com a formação no seminário que é uma grande escola de obediência "ce­ga" (sicut cadaver). Sei de um supe­rior de seminário que dizia: "quem obe­dece nunca erra" e percebi na geração dos padres antes de mim (ordenei-me em 1955) uma o­be­diência ainda mais ce­ga.

Afinal, o processo de desmantelo da ideia autoritária na igreja começou depois da segunda guerra mundial e foi vivamente activado pelo Vaticano II. Sempre admirei Dom Helder, com quem trabalhei 18 anos, mas sempre estra­nhei sua visão da obediência. Ele ficava doente quando chegava uma crítica de Roma, mas não reagia. Temos de com­preender que Dom Helder se ordenou em 1930, em tempos de entre-guerra (retomada do espírito restaurador cató­lico). Dom Helder praticou uma obe­diência usque ad mortem [até à morte], não podemos criticá-lo por isso mas, de outro la­do, te­mos de compreender que os tempos evoluíram. Temos de compreender que, antigamente, muitos entravam no seminário numa idade mui­to jovem (alguns em idade infantil), antes do despertar da sexualidade e da personalidade propriamente dita.

Hoje percebemos que, em todos os sectores da vida (economia do merca­do, comunicação em massa), a docili­dade é a base do poder e que a huma­nidade vai enfrentar tempos duros se o espírito de desobediência e de crítica não ficar avivado. Daí a importância dos padres casados: eles têm de mostrar como e por que desobedecer. Senão, o povo ficará sempre passivo e deixará Bush enviar suas tropas ao Iraque, desmoralizar Chavez e Morales e qual­quer liderança que surgir na América Latina, capaz de ajudar o povo a pen­sar. Pois o ser humano, além de ser in­teligente (e por vezes brutal), tem também algo de cordeiro. Gosta de ser comandado, sente dificuldade em tomar decisões. É mais fácil assim. Gosta de admirar os ‘grandes’, os que mandam. Falta-lhe respeito por si mesmo.

Nós não fizemos assim. Tomamos uma decisão em idade madura, prefe­rimos a liberdade e assim conhecemos melhor a Jesus. Reavivar essa consci­ência é a tarefa principal de um encon­tro de padres casados, no meu enten­der. Nossa opção pela desobediência foi uma opção madura, fruto de uma profunda mutação interior. Para muitos de nós, o casamento decorreu no es­pa­ço de liberdade que nós nos permi­ti­mos (por vezes muito tempo antes de pensar em casamento). O casamento te­ria sido impossível sem a opção anterior pela liberdade e um sadio amor próprio. Pois abandonamos o masoquismo em­bu­tido na explicação da regra evangé­lica: "amar os outros", que nos foi incu­tida no seminário. Era "amar os outros" sem "amar a si mesmo", enquanto a bí­blia diz: "amar os outros como se ama a si mesmo". Sem amar a si mesmo é impossível de verdade amar a outro(a).

Um padre paraibano, em tempos de concílio, disse-me: "Por tanto tempo amei aos outros, agora vou amar a mim mesmo". Isso me fez reflectir. Trans­gredir a disciplina da igreja, enfrentar um multissecular tabu sexual, descobrir a sexualidade como fonte de felicidade é um passo de grande importância, não só no nível pessoal, mas também no ní­vel da consciência humana em geral. Nesse sentido o movimento dos padres casados constitui um passo para frente na consciência humana como tal (inde­pendentemente da igreja), pois ajuda a perceber que as instituições são fa­líveis e que as doutrinas mais insisten­temente afirmadas resultam ser as mais duvidosas.

Abandonar o clero não significa re­nunciar à missão, mas quebrar quadros institucionais baseados em autoritaris­mo e corporativismo. A missão torna-se mais universal, atinge mais a socie­dade como um todo, deixa para trás o cheiro de sacristia. O padre casado tem a força moral de resistir a insinuações maldosas de que ele estaria ‘errado’.

O bispo de minha terra natal, sa­ben­do que eu ia casar com uma viúva, disse-me: "É provado que casamento de padre com viúva não dá certo". Eu não sofri, senti pena desse homem tão talentoso e ao mesmo tempo tão peque­no. Senti minha liberdade ante a prisão do bispo. Por isso nunca senti mágoa nem pensei em quebrar o elo com a igre­ja. Cada vez que visito minha terra natal, vou visitar o bispo e sinto como isso actua positivamente (por vezes estranhamente) sobre secretários e pa­dres que andam pelos corredores. Eles sentem acanhamento diante de nossa liberdade e demonstram como a vida nas cúrias diocesanas é frágil e enga­no­sa.

Afinal, penso que nossos encon­tros servem para reavivar a convicção de que pertencemos a uma grande tradi­ção cristã, que começou exactamente com a clericalização da igreja e atraves­sou os séculos criando mil iniciativas de resgate de liberdade e dignidade humanas.

2. Francisco Resende

Sou uma pessoa apaixonada por Je­sus Cristo. Agradeço do fundo do co­ração o facto de ter nascido numa família tradicionalmente católica, emigrante da Ilha da Madeira por volta do ano de 1700. Os inconfidentes José de Resen­de Costa (Inconfidência Mineira - mo­vi­mento separatista que teve como che­fe “Tiradentes)" são meus ascendentes. O José Pai era português e o José Filho nasceu no Brasil, em Minas Gerais. Ele tinha dois irmãos que eram padres (e não foram inconfidentes).

Até o início do Concílio Vaticano II eu me orgulhava do meu catolicismo tra­di­cional. Em 1960, fiz o noviciado na Or­dem dos Clérigos Regulares Ministros dos Enfermos (conhecidos como Camili­a­nos). Fiz a Profissão Simples e a sole­ne, o curso de Filosofia e Teologia. Em 1966, fui ordenado padre. Então, a Igre­ja já fizera o Concílio, eu já estudara os documentos conciliares, mormente a Lumen Gentium e Gaudium et Spes.

Foi por meio do Concílio Vaticano II que descobri uma eclesiologia que me con­vocava a ser “povo”. Descobri, tam­bém, que S. Camilo de Lellis estava co­ber­to de razão, quando quis servir aos pobres enfermos, aqueles enfermos que na sua Roma de 1500-1600 eram reco­lhi­dos e deixados ao “Deus nos acuda” nos hospitais de propriedade da Igreja. Camilo não quis ser proprietário de hos­pital, nem mesmo administrador. Ele enxerga em cada doente pobre a pes­soa de Jesus e apenas quer prestar ser­viço à pessoa de Jesus presente no en­fer­mo. Ele sabe o significado da pa­la­vra de Jesus: estive enfermo e me visi­taste.

Nesta época, década de 1960, os camilianos resolvem abolir os votos de não serem proprietários de hospitais e nem administradores. Eles acham que, nos tempos actuais, se você for proprie­tário de hospital, de faculdade de medi­cina, ou de outras ligadas à área de saú­de, você consegue evangelizar mais facilmente. Há uma hipervalorização da tecnologia e do poder económico em relação ao trabalho pastoral.

Aqueles religiosos mais identificados com a evangelização dos pobres e com o serviço aos pobres enfermos tinham outra visão. Fora assim como eles di­zi­am e Cristo teria nascido em um pa­lá­cio.

Um grupo, cerca de um terço dos re­ligiosos, foram votos vencidos nesta guinada de visão da Ordem Camilia­na. Saímos da vida religiosa e também do clero, porque, naquela época, vi­mos a Igreja mais como uma coloni­za­dora unida ao capital multinacional do que aos povos que a formam e com quem deveria evangelizar. Acre­di­tamos na perspectiva de Igreja co­mo Comunidade de Base, que vive a liberdade sem ser poder económico ou estatal. Uma comunhão de pesso­as, unidas pela fé, esperança e ser­viço, que se organiza junto com as outras forças vivas da nação.

Para nós, a Igreja local deve ser comunidade viva, organizada para ser­vir Jesus Cristo, partindo das ne­ces­sidades das pessoas que a fre­quen­tam e das pessoas que a circun­dam. Actos dos Apóstolos e Cartas mos­tram o tipo de organização ecle­sial que existia antes de Constantino (313). A história do Ocidente relata-nos o que ocorreu depois deste impe­rador que convocou o primeiro concí­lio. Tenho certeza de que Jesus Cristo é maior do que o Imperador Romano (poder temporal). Esta presença do­mi­nante do poder político temporal no meio eclesial, a meu ver, opaciza a força do Evangelho e dificulta a vi­si­bi­lidade de Jesus Cristo no nosso modelo de Igreja.

Tenho participado da Fraternida­de Leiga "Carlos de Foucauld". En­con­tro nela ressonância ao modo de sentir a perspectiva de modelo eclesi­al adequado ao nosso tempo.

Eu e minha mulher participamos da Fraternidade. Minhas duas filhas e genros são ariscos. São cristãos, mas distantes do clero. Tenho três ne­tas (6, 4 e 2 anos) que não foram ba­­­p­ti­zadas. Os pais acham que elas esco­lherão o baptismo mais tarde. Duas estudam no Colégio Marista Ar­qui­diocesano. Até o momento nin­guém no colégio tocou em assunto religioso.

ND

Bem-haja, meu caro Francis­co, pelo seu testemunho pesso­al. Muito elucidativo. Fortíssi­mo. Ainda bem que não alinhou na viragem empresarial que fize­ram os novos “donos” da Con­gre­ga­ção a que esteve vincula­do. Optaram pela eficácia do Em­presarial e do Tecnológico contra a fecundidade do fer­men­to na massa e do Grão de Trigo que é lançado à Terra, mor­re e dá muito fruto. Essa é uma opção que não dá vida. Só dá lucro. E até às pessoas que, porventura, ajuda a curar das suas doenças, nem por isso as torna mais huma­nas e sororais/fraternas. Muitas vezes, regres­sam desses locais com a saúde recuperada, mas ain­da mais e­goís­tas.

No que respeita ao celiba­to dos padres, na Igreja católica ro­ma­na, digo: ou ele passa a o­p­­cio­nal, ou, tal como está, sim­plesmente imposto, é pecado ins­titu­cionalizado. E a Igreja católi­ca romana que mantém a situação assim, desde há séculos, é uma Igreja em estado de pecado ins­titucional. A situação hoje, mais ainda do que ontem, é insustentá­vel. Intolerável. Inumana. Intrin­se­camente perversa. Será que o papa e os bispos não têm inte­ligência bastante para verem/en­ten­derem/mudarem? E ainda se atrevem a falar em Jesus Cristo! Co­mo, se actuam tão nos antípo­das dele?! Aceite o meu abraço e a minha paz. Mário


OUTRAS CARTAS

O senhor era uma referência, mas hoje…

E-mail, Dezembro 2007. Carla: Se­nhor Padre Mário: Sou a Carla, tenho 35 anos, licenciada em Química, pe­que­na empresária do ramo têxtil, casa­da, tenho dois filhos e sou militante do B E. O meu pai, que, infelizmente, já mor­­reu (com 65 anos, o ano passado), era militante do PCP, desde a clandes­tinidade, e antes do 25 de Abril ia mui­tas vezes a Macieira da Lixa para ouvir o senhor Padre Mário. De facto, nessa altura, o senhor era uma referência, mas o certo é que hoje, mesmo para muita gente de es­querda, o senhor já é mal ouvido. Em­bo­ra eu não seja católica (fui baptizada apenas por tradição), acho que o senhor exagera na crítica à Igre­ja, pelo menos, na forma como diz. A própria Rosa do Luxemburgo, que era uma marxista convicta, era mais tole­rante com a Igre­ja. Se calhar, na prática o senhor é muito menos radical do que nas pala­vras. Há dias, fiquei triste, quando um amigo do pai me dizia que, no tempo do fascismo, o senhor era uma referên­cia, porque tudo valia para combater o regime. Por outro lado, o seu livro so­bre Fátima - com o qual estou de acordo - foi muito vendido, porque era polémico. Se falasse sobre as causas da fome, o senhor não venderia mais do que 300 exemplares. Desculpe ser-lhe franca; se digo isto é porque apelo à perfeição da sua atitude. É que o se­nhor, que eu me lem­bre, nunca apon­tou nada de positivo na Igreja, da qual diz que é padre. No seu Diário Aberto [na internet], nunca apareceu uma única coisa boa que re­fe­risse. Torno a dizer, não sou católica, mas a Igreja, também, tem coisas boas. Por exemplo, colabora com o BE, na integração dos imigrantes de Leste. E aquela do senhor dizer que a Igreja no tempo do fascismo era uma puta de pernas abertas ao regime, é feio! Quem não respeita acaba por não ser respei­tado. E não me venha dizer que isso é me­táfora ou alegoria! Aí o se­nhor não esteve bem. Para o senhor fazer valer a sua men­sagem, e até teria bastantes se­gui­dores, era o senhor pe­gar na Bíblia e começar a fazer um estu­do teológico e analítico profundo mas acessível, pa­ra se poder ver a sua di­ferença em re­la­ção à linha oficial. E nisso o senhor seria bom! O senhor es­cre­ve bem e sa­be de teologia. É óbvio, sem descurar as actividades do Barra­cão de Cultura! O sr. tem que reconhe­cer que nin­guém conhece o seu pensa­men­to; ape­nas é conhecido pelo show, mas isso é efémero. Até duvido que o Sr. esteja realmente ligado a Teologia da Liberta­ção, com a qual estou de a­cor­do. Desculpe a sinceridade. Se falo assim é porque ainda dou valor ao seu potencial de vida. Com os melhores cumprimentos.

ND

Olá, Carla

Agradeço a sua mensagem. Fiquei surpreendido. Pelos vistos, sou uma decepção para si. Está no seu direito de me ver assim. Certamente, o seu pai não subscreveria esta sua mensagem, nos termos em que a escreveu. Ele conheceu a clandestinidade, viu-me ao vivo aqui nos tempos do Medo e da Subserviência e isso faz toda a diferença. Vivo na trincheira, desde que me conheço com consciência. Não luto pelo Poder. Não como à mesa do Poder. Nem dos privilégios que o Poder dá a quem o serve, nem que seja na Oposição parlamentar. Sou pobre por opção. E sem poder, por opção. Não vou com nenhum Executivo. Nem sequer o da Igreja que integro. Combato-os a todos. Porque todos estão ao serviço do Dinheiro contra os Povos. Uns à direita, outros ao centro, outros à esquerda, outros ainda mais à esquerda da esquerda. Desagrado. Incomodo. Não sou uma referência. E, quando fui, foi por engano. Pensavam que eu era uma coisa, saí-lhes outra. Mas é por aqui que vou. E prosseguirei. Nem sabe a Carla quanto me agradou ouvi-la dizer que deixei de ser uma referência. Aliás, podia ter dito ainda mais. Podia dizer que já não existo. Pelo menos, é o que diz a hierarquia da Igreja católica, a qual, pelos vistos e ao que me escreve, aceita trabalhar com o Bloco de Esquerda na integração dos imigrantes de Leste. Pois. Aconselha-me a pegar na Bíblia e a fazer um estudo teológico com ela e a partir dela. Será que não conhece os meus livros? Concretamente: Nem Adão e Eva, nem pecado original; O outro Evangelho segundo Jesus Cristo; Em nome de Jesus; Na companhia de Jesus e de ateus. Livro dos Actos Século XXI; Salmos. Versão século XXI.

Bem-haja por me ter escrito. E criticado. Saiba que sempre tento transformar as críticas em autocríticas. É o que farei também com as suas. Agradeço-lhas. E, se a escandalizo, peço-lhe perdão.

Dou-lhe a minha paz. E o meu afecto. Mário

E-mail, Novembro 2007. Marce­lo: Querido padre Mário! É com alegria que novamente lhe escrevo. E escrevo para lhe dizer que fizemos uma bela arte com os exemplares que tínhamos do seu livro sobre o Evangelho de Mar­cos [O Outro Evangelho Segundo Jesus Cristo, edição Campo das Letras].

Explico-me. Após termos lido inteiri­nho em nossas celebrações, as pessoas começaram a se indagarem sobre o que faríamos com tão preciosos textos. Sortearíamos para os membros dos grupos? (eram ao todo dez exempla­res) Daríamos para algumas pessoas? Enfim, o dilema prolongou-se... Até que um senhor, já de idade (um dos que mais se empolgaram com seus textos) pro­pôs uma bela saída: Deixaríamos os livros nos trens, nos combóios, nos ban­cos de jardim. Segundo ele, o livro é precioso demais para que ficasse guardado na prateleira de alguém. Ou­tra pessoa propôs ainda que déssemos um sentido político a tal “entrega” e es­cre­vêssemos um bilhete a ser deixa­do dentro dos livros. O bilhete dizia o seguinte:

“Caro amigo/amiga que pegará este livro em suas mãos. Ele é uma pre­ciosidade. Foi escrito por um cristão, comprado por outro e lido e celebrado por muitos outros. Leia com carinho e atenção. Mas, sobretudo, procure discu­tir e praticar suas ideias. Verá que não se trata de mero livro de auto-ajuda. Nem de um Livro que procura ser um novo Código Da Vinci. Pelo contrário, tra­ta de um Jesus político e politizador. Leia-o, devore-o e, depois, deixe nova­mente num lugar público. Para que ou­tro faça o mesmo... Abraços na Paz de Cristo libertador!”

E, assim, fizemos uma celebração de envio dos livros. Assim, o seu livro, Pe. Mário, não podia deixar de ser, ele pró­prio livre, doando-se aos demais. As­sim, imagine agora que dez exempla­res do seu livro estão por aí fazendo a felicidade (ou a saudável inquietação de muitos cristãos). Doámos de cora­ção para os outros aquilo que nos fez - e faz - tão bem. Assim, seu livro se tor­nou como a Eucaristia de Jesus: mais do que materialmente, temo-lo presen­te em nossas acções e em nossos ges­tos libertadores. De entrega, para que outros o pudessem ler!

Ah! E nem preciso falar que agora já temos dez exemplares do seu livro de Salmos [Versão Século XXI]. Durante o início do ano litúrgico, iremos ler um por semana em nossas celebrações e, depois, a partir da leitura, faremos um gesto concreto para actuação política em nossa comunidade. Precisava de lhe falar estas coisas bonitas que faze­mos. Assim, você e sua obra, querido Mário, continuam fazendo parte de nos­sa história! Um abraço na paz de Cris­to Libertador!

ND

Marcelo, meu irmão e companheiro:

Fiquei emocionado até às lágrimas com a boa notícia que me dá, mas ainda mais com o acolhimento que a Comunidade continua a dar aos meus livros, sobretudo, a estes dois mais recentes. Essa decisão de espalhardes pelo Brasil, com aquela mensagem tão oportuna dentro, O outro Evangelho segundoJesus Cristo, só pode ser, é uma decisão de discípulos do Espírito Santo, o de Jesus. A minha alegria é agora mais completa. E é esta minha alegria mais completa que vos dou. Acompanhada da minha paz. Agora sei ainda melhor de onde me vem a força para continuar a caminhar, aos 70 anos, como quem vê o Invisível no visível que é Jesus, o de Nazaré que crucificaram e continuam aí a crucificar nos Povos que não se resignam à sua pobreza cruelmente imposta, por isso se sublevam de múltiplas maneiras contra esta obscena Ordem Mundial do Dinheiro, e por uma outra de Partilha dos bens e de Vida em abundância, sem a exclusão de ninguém. Estou inteiro convosco. Em EUCARISTIA. Não a dos ritos sem profecia e sem Espírito, própria de súbditos cheios de Medo, mas a das mulheres e dos homens livres, e daquela Liberdade para a qual Cristo que vemos e palpamos plenamente em Jesus, o de Nazaré, nos libertou. Amo-vos, minhas irmãs, meus irmãos do Brasil!

Vosso, Mário.

E-mail (1). Vasco: Bom, a mim parece-me que tudo o que nos liga à religião é bizarro, sem sentido... nunca precisei dela, vivo perfeitamente sem ela. E 95% dos intolerantes bacocos que encontrei na minha vida, são religiosos. São sem­pre os primeiros a roer a corda... triste sina a da maioria dos religiosos. Ne­nhu­ma religião merece o meu respeito. O Homem nasceu para viver erecto e não para perder a dignidade de joe­lhos... não para servir um produto da ima­ginação de dementes mercadores de almas. Teologia? O que é isso? Filo­sofia do Nada? Tão difícil é a lógica para tantos... Fé... Fezada, isso sim. Um bom e patético exemplo: Segundo noti­cia o Times Online, o Dalai Lama coloca a hipótese de consultar os seus segui­dores num referendo sobre a sua reen­car­nação. Basicamente, pretende sa­ber se os seus cerca de 14 milhões de seguidores em todo o mundo pre­ten­dem que ele reencarne ou não! Se a maioria achar que não, ele simples­men­te não renascerá; caso contrário, quebrará a tradição centenária e no­mea­rá ele próprio um reencarnado. Pare­ce complicado, mas não é. Afinal, é apenas religião... e tudo é possível!

(...) E também já esteve mais longe o dia em que os “cristões” vão voltar a queimar na cruz os ateus como eu... Como bem o deseja o bombardeiro B16 e a sua clique da Opus Gay, perdão, Gay, perdão, Day (que além de serem inquisidores também têm cara de pedó­filos). E os meus votos para as festas que se aproximam são: que as religiões rebentem de saúde!

ND

Vasco: Concordo consigo. Há poucos anos, fui convidado para falar (fazer uma conferência, dizia o convite) sobre Religião. E sabe como comecei? Assim: Trago-vos uma boa notícia: a religião acabou!... Foi um escândalo. Mas ninguém mais arredou pé até ao final. Sabia que Jesus, o de Nazaré, abordou a religião como uma das três grandes tentações da Humanidade - as outras duas são o Dinheiro e o Poder - às quais havemos de resistir para SERMOS? Por isso, os que viviam/enriqueciam e eram poderosos à custa da religião o mataram daquela maneira ignominiosa que sabemos. Por mim, procuro viver a Fé de Jesus, não a religião. A Fé de Jesus não é uma doutrina, nem uma religião, nem um culto. É uma prática. A prática do amor aos demais, se possível, na sua máxima expressão de gratuidade, de abertura/acolhimento/partilha e também de perdão. É o Futuro do Homem, irmão universal, da Mulher, irmã universal!

O meu abraço, Mário

E-mail (2). Vasco: Bom dia. Quer dizer então que acredita em deus? E que cristo é o seu filho que se sacrificou para nos “mostrar” o caminho? O cristo que aceitou morrer às mãos do seu pai, deus? O deus, pai, que não hesitou em sacrificar o seu filho? Abraço.

ND.

Olá, Vasco. Como é que, a partir do meu curto comentário ao seu mail anti-religião, que eu de certo modo subscrevi e até reforcei, o Vasco foi congeminar este seu novo mail em forma de pergunta? O que é que encontrou no meu comentário que o levou a formular-me essa pergunta e nesses precisos termos? Ora volte a ler-me e verá que a sua questão, nos termos em que ma formula, não tem nenhuma base de apoio nas minhas palavras. De resto, sempre costumo advertir os que se confessam crentes em Deus e os que se declaram ateus: de que Deus é que vós, crentes, sois crentes? E de que Deus ou de que ideia/imagem de Deus é que vós, ateus, sois ateus? Desse Deus que esta sua pergunta fala obviamente que também eu sou ateu! O meu abraço

Mário

E-mail (3). Vasco: Não me inter­pre­te mal. Reconheço que houve um pouco de malícia da minha parte. Eu sei bem qual é a sua posição relativa­mente ao deus que mencionei. Mas on­de eu queria chegar era: haverá outro? Quanto a deuses, como sabe, essa questão é prefeitamente irrelevante pa­ra um ateu. Eles não existem. E a ques­tão de haver algo que o substitua nem sequer se coloca. Não tem lógica. Um ateu não é ateu por fé. Nem sequer sei o que isso é... apenas conheço a de­finição que vem no dicionário. Podía­mos passar dias a usar semântica para tentar embelezar os nossos pontos de vista, mas eu não o vou fazer. Não ia le­var a lado nenhum. Mas reparei que no fim acabou dizendo: “Desse Deus que esta sua pergunta fala obviamente que também eu sou ateu”. O que quer dizer que acredita num deus... e por isso, por definição, não é ateu. Há uma grande diferença entre fé e método. Mesmo que o objectivo final seja o mes­mo. Essa é uma das coisas  que dis­tingue um ateu dum crente. Obje­ctiva­mente, deuses implicam religião: A=>B cuja negação é ~B=>~A (Não B => Não A) Ser anti-religião é ser anti-deu­ses. Todo e qualquer deus. Um abraço.

ND

Bom dia, Vasco. Acho que o específico de Jesus é revelar-nos/avisar-nos de que há sempre outro deus, para lá do deus-que-se-vê, o Dinheiro: É o deus-que-se-não-vê, o Invisível. É conhecida e escandalosa q. b. a sua revelação/boa notícia: “Ninguém pode servir a dois senhores/patrões. Não podeis servir a Deus [o-que-se-não-vê] e ao Dinheiro [o-que-se-vê].” A Religião tem exclusivamente a ver com o deus Dinheiro. Aliás só funciona com Dinheiro e ela própria é uma fábrica de fazer Dinheiro. Que o digam os pastores das novas igrejas-com-sotaque-brasileiro. E os gestores dos santuários católicos, sobretudo, os do santuário de Fátima. Com o outro Deus, o deus-totalmente-outro, que nunca ninguém viu nem verá, a Religião não tem nada a ver. Nem Ele gosta dela. Vomita-a. Do que Ele verdadeiramente gosta é de Política, não a porca Política dos profissionais da dita, vendidos ao deus Dinheiro e aos seus Executivos do Poder e da Religião, mas a Política que, como Sopro libertador e criador de irmãs/irmãos, rebenta ininterruptamente da dor e do clamor do Pobre e do Oprimido, da Vítima e é prática maiêutica e desarmada, sororal/fraterna e solidária, assumida sob a forma duelo, onde se pode perder a própria vida e, antes dela, o emprego, os bens, o bom nome, até acabar pobre-com-os-pobres, oprimido-com-os-oprimidos, vítima-com-as-vítimas, crucificado-com-os-crucificados. E tudo por decisão do deus-Dinheiro e dos seus Executivos do Poder e da Religião. Foi o que sucedeu com Jesus, o de Nazaré!

O ateu tradicional, ilustrado, só anda uma pequena parte do caminho que nos levará a ser humanos e irmãs, irmãos universais. Quando menos espera, já está caído na Idolatria, é um idólatra. O deus-que-se-vê, o Dinheiro, e que é servido pelos Executivos do Poder e da Religião, segue esta estratégia: quem não é contra mim, já por mim. O Vasco conhece muitos ateus ilustrados que sejam contra o deus Dinheiro? Não estão quase todos nos Executivos do Poder, seja no Governo, seja na Oposição, e da Religião? Não comem todos à mesma mesa dos Privilégios? Podem ter um discurso político anti-capitalista, mas a sua prática cai dentro desta Ordem Mundial que ele pariu e vive dela. Não vivem em Deserto, como Jesus sempre viveu. Jesus viveu na Ordem Mundial do deus Dinheiro - não há outra - mas sem nunca ser dela. Nunca cedeu a essa Tentação. Nem integrou nenhum dos seus Executivos. Acabou assassinado pelos Executivos do Dinheiro em uníssono. E banido para sempre da sua Ordem Mundial. Só voltou a entrar nela, quando os seus seguidores se venderam por trinta dinheiros, como se diz de Judas, ao deus Dinheiro, o deus-que-se-vê e fizeram de Jesus um mítico deus chamado Cristo, servido por Executivos religiosos, cheios de privilégios, crucificadores, conquistadores, exploradores, cruzados, inquisidores, etc. Por isso é que eu digo: feliz o ateu, ilustrado ou iletrado, que um dia se abriu à mesma Fé de Jesus, o de Nazaré. Não passa a correr para o Templo, a fazer religião, passa a viver em Deserto, na Ordem Mundial do Dinheiro sem ser dela, sempre contra ela, num duelo onde sabe que pode perder tudo, até a própria vida. Na verdade, não a perde, porque ele é quem livremente a dá. Na mais completa gratuidade! Mas esta Fé de Jesus só acontece, quando deixamos tudo o que o deus Dinheiro nos promete e garante, se o adorarmos/servirmos, e fazemos corpo ininterruptamente com as suas vítimas, contra ele, o deus Dinheiro. Como num duelo. Eis. É por aqui que procuro ir. Como aprendiz. E como um menino. O meu abraço.


DOCUMENTO

Fraçois Houtart, de língua afiada na denúncia da lógica do Capital(ismo)

O capitalismo submete o ser humano

à lei do valor, isto é, da acumulação do capital

Jornal Fraternizar teve acesso ao texto integral da conferência - Migração, Solidariedade e Cristianismo - com que o prestigiado sociólogo/teólogo belga  encerrou o XXVII Congresso de Teologia de Madrid

"Podemos dizer que a contribuição da fé cristã ao pro­blema da migração significa uma refle­xão sobre um sistema que submete o ser humano à lei do valor, isto é, à lei da acumulação do capital e que ins­creve a migração dentro desta lógi­ca. A fé cristã exige pensá-la de outra ma­nei­ra, para construir uma alternativa à lógica do capitalismo, um «socialismo do século XXI». Tudo isto exige também uma ori­en­tação da espiritualidade."

São palavras finais da memorável conferência de François Houtart, no encerramento do XXVII Congresso de Teologia de Madrid, realizado no início de Setembro 2007. Jornal Fraternizar teve acesso ao texto integral, enviado pessoalmente pelo seu autor, via e-mail, o que muito nos sensibiliza. A tradução do espanhol é da nossa inteira responsabilidade. Ninguém deixe de ler/meditar/debater o texto. Só assim descobrirão o que ele tem de original e de boa notícia. Imperdível.

O ângulo de visão desta minha re­flexão será global e estrutural: a migra­ção dentro do sistema económico e polí­tico contemporâneo, a solidariedade co­mo um projecto de sociedade, e a refle­xão cristã como ética da vida e sua di­mensão social.

Como sabemos, a migração não é apenas um facto contemporâneo, mas muito antigo. O povoamento do universo foi o resultado de migrações: da Ásia cen­tral para a China, América, Europa e Índia; da África para Ásia do Sul e, no tempo bíblico, a migração de Abraão para a Palestina, a saída do Egipto, o êxodo.

Assim se entende a importância maior da migração para a história do po­vo hebreu. As razões das migrações são múltiplas: climáticas, demográficas, económicas, políticas. Actualmente, o fenómeno tem a sua especificidade na lógica do sistema económico capitalista que a transforma numa perspectiva mer­cantil. É a razão pela qual começamos por uma reflexão sobre este tema.

1. A migração na lógica capitalista

1.1. A lógica do capitalismo

A lógica do capitalismo está na ori­gem de um verdadeiro modelo de de­sen­vol­vimento, baseado sobre a acu­mu­lação do capital, como motor da eco­nomia, em função de um “bem geral”.

Daí, a centralidade do dinheiro e a ins­tru­mentalização de todas as insti­tuições para assegurar este fim. O Es­tado tem que estabelecer as regras, fa­vo­recendo a acumulação: propriedade privada dos meios de produção, con­cor­rência, fiscalidade, etc. A educação serve para reproduzir as classes sociais estabelecidas pela relação social típica do modelo económico capitalista. Os meios de comunicação social têm que assegurar a hegemonia ideológica do sis­tema e a sociedade civil é identifica­da à dinâmica dos empresários.

Deve-se recordar que a economia ca­pitalista não significa economia de mer­cado. Este último existiu muito antes, em sociedades pré-capitalistas, para as trocas de bens e de serviços e o dinhei­ro era um instrumento facilitador destas transacções.

O que é novo na economia capita­lis­ta é ter estabelecido a economia co­mo um fim em si mesmo, fora da socie­da­de, como bem recordava o econo­mis­ta e historiador norte-americano de origem húngara, Karl Polany. Nesta ló­gica, tudo tem que contribuir para a acumulação.

Trata-se de estabelecer uma re­la­ção social de submissão à lei do va­lor, através da mais-valia sobre o tra­ba­lho ou da renda sobre a propriedade. Se uma relação social não correspon­de a esta perspectiva não tem o direito de existir. O mesmo se diga da migra­ção.

Só quando a lógica do capitalismo es­tá sujeita a uma relação de força é que se transforma, através de revolu­ções, ou vê-se obrigada a fazer conces­sões, por pressão de movimentos soci­ais ou políticos. A fase neoliberal con­tem­porânea (Consenso de Washington) significa uma resposta a uma crise de acumulação, isto é, uma dificuldade em obter o lucro adquirido pelo capital.

Depois da Segunda Guerra Mundi­al, houve no mundo industrializado, graças à força do movimento operário e ao medo do comunismo, uma regu­lação social mais ou menos generali­za­da. Desenvolveram-se também o so­cialismo de Leste da Europa e o proje­cto de desenvolvimento nacional no Terceiro Mundo (Conferência de Ban­dung).

Os três modelos representavam alguns obstáculos contra o livre desen­volvimento da acumulação capitalista. É por isso que os três pilares da eco­nomia mundial, como lhes chama Samir Amin, o economista egípcio, começa­ram a entrar em crise e que se iniciou a fase neoliberal destinada a resolver a crise de acumulação.

Porém, depois de mais de trinta anos de hegemonia progressiva, vive­mos momentos muito difíceis para o mo­delo neoliberal: crises financeiras, crise de sobreprodução, crise ecoló­gica. Sem dúvida, isso não significa o fim do capitalismo, porque as reacções do sistema são fortes e os seus prota­go­nistas não só não hesitam em trans­for­mar os regimes sociais precedentes e acelerar a concentração dos poderes económicos, mas também em recorrer aos antigos meios do imperialismo, en­tre eles, a guerra.

1. 2. Como a lógica do capi­ta­lismo afecta as migrações

Quando estudamos a história do capitalismo, vemos que o vínculo com as migrações é bastante grande. Du­rante o tempo do capitalismo mercantil, que se desenvolveu em particular no século XV e XVI, as potências europeias (Espanha e Portugal) não somente es­ta­beleceram assentamentos comerciais nos continentes do Sul, mas também realizaram efectivas conquistas. Houve, em particular no Sul, a enorme migra­ção que significou a escravatura dos Afri­canos, afectando pelo menos 20 mi­lhões de pessoas.

O desenvolvimento do capitalismo industrial foi também marcado por gran­des migrações. Europa exportou o su­pe­rávit demográfico, devido à indus­tria­lização e à transformação da agri­cul­tura, para América e Austrália. Entre 1815 e 1915, mais de 60 milhões de Eu­ro­peus migraram para fora da Euro­pa.

Devemos recordar que actualmen­te tal tipo de migrações para terras des­po­voadas, como no Canadá ou nos Estados Unidos, ou ainda em certas par­tes da América Latina não é possível por razões políticas, económicas e raci­ais, como o foi então para os Europeus no século XIX.

Actualmente, a lógica do capitalis­mo exige mais do que nunca que a mi­gração sirva à acumulação, precisa­men­te devido ao seu estado de crise.

Assistimos, por ocasião do Con­gres­so de Washington, a uma libera­liza­ção progressiva das trocas de capi­tais, de bens e de serviços, porém ao mesmo tempo a uma regulação muito forte da circulação da mão de obra, em função do interesse do mercado. De facto, a nova fase do capital central po­lariza o trabalho: grandes diferenças entre um trabalho subclassificado e um trabalho sobrequalificado, ambos ne­ces­sários segundo os sectores ou as várias fases da produção.

Com a globalização, estabeleceu-se um verdadeiro mercado internacio­nal do trabalho. Assim, por um lado, há necessidade de trabalho subqualifi­cado, como por exemplo nos países do Golfo ou nos Estados Unidos (a agricul­tura) ou em parte também na Europa (a construção). Trata-se de tarefas a­ban­do­nadas pelos naturais do país e que precisam de mão-de-obra pouco qualificada (construção civil), especial­mente nos sectores económicos não mecanizados.

Por outro lado, há também necessi­dade de um trabalho sobrequalificado em alguns sectores, onde a mão-de-obra está a faltar: medicina, informá­tica, etc. Daí, a política duma migração selectiva, como o presidente Sarkozy propõe em França de modo ostensivo, mas que corresponde também à política europeia em geral. Neste caso, reprime-se a migração das pessoas menos qua­lificadas, enquanto se fomenta a mi­gra­ção de cérebros e de especialistas.

De facto, isso significa para a mi­gração a passagem do domínio do di­reito ao sector do contrato. Há condi­ções para migrar e estas significam o estabelecimento de um contrato social, estabelecendo os deveres dos emi­gran­tes, em função das exigências do mer­cado, e acessoriamente os seus direi­tos. É assim que as funções sócio-eco­nómicas das migrações são de três tipos, segundo o sociólogo francês Clau­­de Valentin Marie.

Primeiro, favore­cer a disponibilida­de social para os empregadores: mobi­lidade, adaptabilidade, ausência de cultura sindical, etc.

Em segundo lugar, os emigrantes ser­vem de amortecedores das crises: “primeiros contratados, primeiros despedidos”.

Finalmente, são também amortece­do­res sociais, via as redes de solida­riedade que estabelecem entre eles.

Podemos acrescentar que a busca de novas fronteiras pelo capital, parti­cu­lar­mente por ocasião duma crise de acumulação, entram também como um factor acelerador das migrações.

Trata-se em particular do desapa­recimento progressivo da agricultura camponesa, para ser substituída por uma agricultura capitalista de tipo pro­du­tivista. Cada ano, 50 milhões de pe­que­nos camponeses devem abandonar a actividade.

Na verdade, a agricultura campo­ne­sa contribui de maneira muito margi­nal para a acumulação do capital e por isso tem que transformar-se rapida­men­te, daí que o Banco Mundial apoie por seus políticos. Isso significa imedia­tamente grandes migrações internas.

As­sim, podemos explicar em gran­de parte a pressão migratória dos Mexi­canos sobre os Estados Unidos. É o mes­mo problema na Colômbia com as migrações internas e os três a quatro milhões de “desenraízados”, em gran­de parte camponeses expulsos das suas terras pelo monocultivo. Prevê-se que na Índia nos próximos 20 anos, 400 milhões de pessoas do campo serão afectadas pelo fenómeno das migrações internas.

O resultado social principal deste tipo de políticas é a informatização da eco­nomia e uma urbanização selvagem que se traduz por uma taxa muito ele­vada de pobreza e de miséria e final­mente por um custo social, de doença, de violência, de criminalidade muito elevado. Porém, dentro da lógica do capital, não se medem estes factores que são puramente “colaterais”, isto é, não intervêm na transacção mercantil.

Finalmente, o modelo de desenvol­vi­mento capitalista está muito bem ex­presso pelo gráfico do PNUD, conhe­cido por "taça de champanhe": os 20% da população mais economicamente favorecida têm um desenvolvimento es­pectacular, também nos continentes do Sul, quando os 80% vivem num estado de grande vulnerabilidade ou na po­bre­za e na miséria.

Isso significa uma pressão migrató­ria, acentuada pelas distâncias sociais e que no Sul aumenta pelo crescimento demográfico. A falta de oportunidades locais incita os elementos mais dinâ­micos a sair para encontrar uma solu­ção de sobrevivência nos lugares de con­centração de riqueza.

Outros factores afectam também os movimentos migratórios, como os efeitos locais das crises internacionais, a im­por­tância para certas economias do Sul das remessas dos emigrantes, etc. As­sim, na lógica do capitalismo, o ser hu­mano é uma mercadoria e a migração deve entrar nesta perspectiva, qual­quer que sejam os remédios parciais a curto prazo ou a médio prazo.

2. A solidariedade

com a migração

Neste contexto, podemos distinguir três níveis de solidariedade.

Em pri­meiro lugar, trata-se do nível interpessoal. O acolhido tem evidente­mente uma grande importância, em fun­ção das atitudes pessoais das pes­soas que têm o contacto com os mi­grantes. Daí, a necessidade também de lutar contra o racismo e de introduzir no sistema educativo, como nos meios de comunicação social, uma dimensão de abertura para o estrangeiro.

O segundo nível é de tipo institu­cional. Trata-se das leis dos Estados e das comunidades locais, a propósito dos direitos cívicos (direito de voto), sociais (seguro social, educação, em­pre­go), políticos (protecção contra a criminalização da migração), culturais (expressão cultural e religiosa, etc), para permitir aos migrantes aproveitar de condições similares às pessoas au­tóctones.

Finalmente, o nível sistémico tem também a sua importância e de facto é menos visível que os dois primeiros níveis.

Trata-se de fazer sair a migração da lógica do capitalismo. Por isso, de­ve­mos pensar em primeiro lugar numa desconexão da economia dos países da periferia do capitalismo central, o que significa a possibilidade de um de­sen­volvimento mais autónomo (não em autarcia) e menos dependente.

Isso per­mitiria criar mais empregos locais e diminuir a pressão migratória. Evi­dentemente, sair da lógica do capi­ta­lismo significa reinserir a economia na sociedade, como um serviço e rede­finir a economia como actividade hu­ma­na destinada a construir a base ne­cessária à vida humana, material, cul­tural e espiritual para todos.

Neste propósito, podemos definir quatro eixos do que podia significar um “socialismo do século XXI”, a fim de con­tribuir para a transformação da ló­gica capitalista.

Trata-se duma utilização sustentá­vel dos recursos naturais e duma outra filosofia das relações entre os seres hu­ma­nos e a natureza: não a explo­ra­ção, mas a simbiose. Primeiro eixo: Dar a prioridade ao valor de uso sobre o valor de troca: o primeiro significa o que necessitamos para viver e o segun­do o que podemos vender.

O capitalis­mo privilegia o valor de troca, única maneira de poder acu­mular e distancia-se cada vez mais das verda­deiras necessidades da humani­dade.

Um terceiro aspecto é a demo­cra­cia generalizada a todas as relações hu­manas, não apenas políticas, mas também económicas e de género; e, finalmente, a interculturalidade, permi­tin­do a todas as culturas, as filosofias, as religiões, contribuir para esta nova organização sócio-económica do uni­verso.

3. O cristianismo

e a migração

A última pergunta deste trabalho é saber em que é que a fé cristã po­de ajudar a orientar o pensamento e a ac­ção, a propósito das migrações?

Podemos aludir aos três níveis já citados a propósito da solidariedade.

Primeiro, o nível interpessoal. A atitude frente ao outro, ao estrangeiro, é evidentemente central e o texto de Juan José Tamayo, "A imigração e o horizonte das religiões" explicou-o de maneira admirável. Trata-se, como ele diz, de encontrar o outro, o que é cen­tral tanto no cristianismo como no islão. A hospitalidade é “a regra fundamental de humanização e princípio ético das re­ligiões”. “A imigração é o âmbito privi­legiado para o diálogo” (Manuscrito, 2007).

No nível institucional, a atitude con­siste em reconhecer o direito do estran­geiro, como se indica em muitos luga­res da Bíblia, onde se recorda que o po­vo hebreu foi, ele próprio, um povo mi­grante que conheceu o exílio no Egipto e na Babilónia, eventos que têm que permanecer na memória, mas tam­bém no reconhecimento do estrangeiro e dos seus direitos, por parte da própria sociedade hebreia. Do Êxodo até muitos textos do Novo Testamento, as referências são inumeráveis.

No nosso tempo, as instituições so­ciais e culturais das Igrejas cristãs ou de outros grupos de crentes têm evi­den­temente um papel importante neste domínio. Sem dúvida, é no plano po­lítico que a acção dos crentes tem que se exercer da maneira mais sistémica, para evitar que as instituições nacionais ou regionais marginalizem os migran­tes.

Finalmente, o nível sistémico tem também uma importância central mais difícil de entender e com frequência mui­to pouco desenvolvido.

Este nível não é só abstracto, e não se limita ao domínio da ética social.

Assim, quando recordamos a acção de Jesus na sua sociedade, podemos constatar que as suas referências são muito concretas.

Jesus vivia numa sociedade de clas­ses, pre-capitalista e teocrática. Os proprietários de terras, os grandes comerciantes e as famílias dos sumos sa­cer­dotes constituíam o que se chamava os saduceus.

O próprio sumo sacerdote era che­fe de Estado, encarregado de receber o imposto local e na diáspora; de orga­nizar o trabalho da empresa mais im­por­tante do país, a reconstrução do Tem­plo de Salomão; encarregado do res­peito da lei.

O templo era a instituição econó­mica, política e cultural mais importante da sociedade.

Os fariseus, grupo social interme­diá­rio, dominavam o Sinédrio (Parla­mento).

Ao mesmo tempo, Palestina era uma colónia do império romano. O seu representante nomeava o chefe do Es­ta­do (um sumo sacerdote); impunha a moeda imperial e cobrava impostos; exer­cia uma parte da justiça e estava encarregado das tropas militares que ocupavam o país.

É neste contexto que Jesus actuou. Quando critivava os saduceus, não se tra­tava apenas de um grupo com ori­enta­ções religiosas definidas, mas de um grupo social opressor.

Quando o acusavam de ter dito que ele destruiria o Templo e o reconsti­tu­i­ria em três dias, não signficava apenas uma alusão a um edifício religioso, mas ao símbolo do poder.

Quando falava dos Samaritanos, tra­tava-se de “estrangeiros” despreza­dos que ele punha como exemplo da prática do amor ao próximo.

A subversão da lei do Sábado era mais que um simples ataque a um tabú de ordem religiosa, era um ataque à ordem social geral da sociedade.

Ironizar a propósito da moeda ro­mana, significava também uma crítica do colonialismo.

Finalmente, a dificuldade para os ricos de entrarem no reino de Deus, segundo as palavras de Jesus, tinha também um significado social bem de­ter­minado.

Podemos dizer que é o sistema que Jesus criticou, enquanto opressor dos mais pobres e que estava em con­tra­dição com os valores do Reino.

Evidentemente, no seu tempo, as relações sociais e as estruturas da so­cie­dade eram mais visíveis e mais fá­ceis de entender. Para as pessoas que viviam na Palestina, as palavras utiliza­das por Jesus para qualificar a socieda­de eram percebidas directamente.

Hoje, vivemos em sociedades muito mais difíceis de perceber e onde o ní­vel de abstracção é muito elevado: o dinheiro, o capital, a bolsa, as acções, os “subprimes”, Wall Street, Nasdaq, etc.

São abstracções que escondem de facto relações sociais entre grupos e pes­soas humanas. A crise dos "subpri­mes" significou que um milhão de pes­soas perderam as suas casas nos Es­tados Unidos e que o emprego bancá­rio diminuiu mais de 35 mil pessoas num mês.

As subvenções massivas de mi­lhões de euros dos bancos centrais ao sector financeiro significam também uma falta de disponibilidade de di­nheiro para outros objectivos.

A crise financeira acentua a pobre­za do Terceiro Mundo e a pressão mi­gra­tória. Isso é o sentido do sistema eco­nómico-social contemporâneo, da lógica do capitalismo e da complexida­de das relações sociais.

É por isso que existe também um nível elaborado e no­vo de ética social inspirada pela fé cristã.

Não basta condenar os abusos e os excessos do sistema contempo­râ­neo. Não basta falar do “capitalismo sel­vagem”, como se existisse um “capita­lis­mo civilizado”. Não basta tão pouco falar de economia social de mercado, es­quecendo que se trata de um merca­do capitalista, ou aceitar a ideia de “migrações selectivas” sem falar da ló­gica que a selecção impõe.

Assim, uma ética social tem que se cons­truir sobre uma análise das rela­ções sociais, como fruto da hegemonia do capital, isto é, influenciado pela ne­cessidade da acumulação.

Na doutrina social clássica da Igre­ja existe uma análise social implícita que concebe as sociedades como um con­junto de camadas sociais sobrepos­tas e que têm que aliar-se para cons­truir o bem comum.

Esta perspectiva não permite cri­ticar a estrutura de classes, fruto da lógica do capital e em consequência analisar o problema da migração nesta mesma perspectiva.

Tende-se a limitar a ética frente aos migrantes aos dois primeiros níveis, isto é, individualizar a problemática ou limi­tá-la ao aspecto institucional.

Ora, uma verdadeira ética social deve ser a ética da vida, no seu contex­to global, como é desenvolvida por au­tores, tais como Franz Hinkelammert (A Lei e o Sujeito, Caracas 2007) ou En­rique Dussel (Ética da libertação, Mé­xico 1998).

Esta perspectiva põe a vida como base de toda a ética, num tempo onde o capitalismo leva à morte, construindo de maneira estrutural as desigualdades e impondo as migrações para sobrevi­ver, o que significa de facto para muitos deles, morrer.

Em conclusão, podemos dizer que a contribuição da fé cristã ao pro­blema da migração significa uma refle­xão sobre um sistema que submete o ser humano à lei do valor, isto é, à lei da acumulação do capital e que ins­creve a migração dentro desta lógi­ca.

A fé exige pensá-la de outra ma­nei­ra, para construir uma alternativa à lógica do capitalismo, um “socialismo do século XXI”.

Tudo isto exige também uma ori­en­tação da espiritualidade. Podemos introduzir a preocupação da migração nas orações: uma referência a um Deus que alimenta os nossos com­porta­mentos para com os outros, po­rém também nas celebrações.

Estas permitem transformar a ba­na­lidade da vida quotidiana, não ne­gan­do a sua realidade, mas recordan­do o seu sentido.

A força do símbolo é fundamental, porque permite transformar a realida­de. Assim a Eucaristia, símbolo da vida, base de comunhão e expressão de amor, tem um valor fundamental. A me­mória da palavra de Jesus e suas refe­rências permanentes ao valor de to­dos os seres humanos que têm um Pai[/Mãe] comum, pode alimentar tanto os comportamentos como o pensa­men­to.

É assim que levantar o problema da migração no seu quadro concreto da lógica capitalista permite-nos sair da abstracção, ou reduzir o fenómeno apenas a um encontro individual. Isso pode ajudar-nos a definir o papel dos cristãos diante de um problema maior que nos interpela a todos.



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