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DESTAQUE 1
Confissão auricular: Sacramento ou pesadelo?
Este ano, a Páscoa de calendário chegou muito cedo. Caiu quase em cima do natal. Ainda o puto Jesus do natal não tinha largado as fraldas e já estava aí, homem feito, a ser preso, julgado, flagelado, condenado e assassinado. Tudo faz-de-conta, já se vê, que isso é o rito, a liturgia eclesiástica. Por isso é já depois da Páscoa de calendário, que Jornal Fraternizar propõe às suas leitoras, aos seus leitores este Destaque 1 sobre o Sacramento da Confissão, provocado por duas crónicas dominicais do nosso querido Amigo, Frei Bento Domingues, no PÚBLICO. Não percam. E se quiserem escandalizar-se, que não seja com o que vão ler, mas com o que a nossa Igreja católica fez durante séculos e séculos e, pelos vistos, ainda continua a fazer aqui e ali, mesmo em Lisboa e no Porto.
Inopinadamente, a Confissão de joelhos aos pés de um clérigo católico, sentado algures num confessionário inesteticamente plantado nas igrejas paroquiais e capelas abertas ao culto, voltou ao debate em Portugal por meio de duas crónicas do nosso querido amigo Frei Bento Domingues, nas páginas do PÚBLICO.
Pelos vistos, entre as duas crónicas, publicadas em dois domingos seguidos, ainda houve um encontro-debate ao vivo com o próprio Frei a coordenar, no Convento de São Domingos, e que terá sido muito participado e muito acalorado, ao ponto de o Frei dominicano chegar a ser alertado por alguns dos presentes do perigo que correria de, juntamente com a água suja do banho, deitar fora também o bebé acabado de ser lavado nela.
Na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar, fico espantado / escandalizado com tudo isto, pois pensava que a Idade Média alta que, no Ocidente, se estendeu até ao Concílio Vaticano II, realizado tardiamente já na segunda metade do século XX, tinha falecido e sido definitivamente sepultada. Pelos vistos, não foi. Pelo menos, para um certo sector da nossa Igreja católica, necessariamente reduzido, porque, se reduzido já é hoje o número de católicos que ainda se assumem como praticantes de missa ao domingo, muito mais reduzido terá de ser o número dos que se assumem praticantes da Confissão semanal, mensal, ou mesmo anual.
Não sei, em tudo isto, o que mais me causa espanto / escândalo: se a paciência e a bonomia do nosso amigo Frei Bento, se o catolicismo medievo ainda activo no século XXI, e em Lisboa, onde o referido debate aconteceu e onde as duas crónicas do PÚBLICO foram dadas à luz.
O facto em si da Confissão auricular, histórica e objectivamente tão inquisitorial e pidesco, inumano e anti-jesuânico, já não deveria merecer, obviamente, qualquer referência neste Jornal. Ignorá-lo, seria certamente o mais avisado. Mas não quero que restem dúvidas a este respeito, não vá o silêncio do Jornal poder ser interpretado como concordância com o que foi dito e, pelos vistos, ainda está a ser praticado por aí em certas paróquias que se podem ter por muito católicas, mas jesuânicas é que elas não serão.
Desde que o IV Concílio de Latrão (1215) a tornou obrigatória para todos os fiéis católicos - então, praticamente, toda a população que habitava os territórios da Cristandade Ocidental - a Confissão auricular nunca mais foi sacramento da Igreja, muito menos de Jesus. Tornou-se, isso sim, numa arma espiritual e também social - e que arma! - do Poder eclesiástico e clerical. Uma arma de horror. E de terror. Terrorismo sob a capa de virtude, sem dúvida o pior terrorismo.
Nesse dia, as populações, se o fossem em estado de maioridade - e pode haver Cristianismo de Jesus sem pessoas / populações em estado de maioridade?! - ter-se-iam rebelado contra o IV Concílio de Latrão e suas decisões; e, se os eclesiásticos-mor que estavam à frente das respectivas dioceses ainda persistissem na deles, deveriam pura e simplesmente deixar de continuar a frequentar os espaços eclesiásticos onde eles eram senhores e amos - Jesus, o de Nazaré, também não deixou de frequentar o Templo de Jerusalém?! - pelo menos, até que semelhante decisão / norma fosse abolida.
O carácter obrigatório da Confissão retirou-lhe automaticamente tudo o que aquela acção sacramental pudesse ainda ter de humano e de salutar para certas pessoas. O que até então poderia ser Graça, passou automaticamente a ser tortura. E que tortura! Nenhum de nós é, felizmente, desses funestos e medonhos tempos de domínio clerical e eclesiástico absoluto. Mas dá para perceber, até por esta decisão / norma da Confissão obrigatória, que eram sinistros e medonhos tempos, bem piores do que os sinistros e medonhos tempos da Pide, nos anos do ditador Salazar, de má memória.
Sou presbítero da Igreja do Porto, nascido como tal por ocasião do Concílio Vaticano II (Agosto de 1962) e conheci a Confissão, primeiro, no papel de “réu”, como “obrigação” semanal, durante os anos do Seminário e nos primeiros anos de exercício do ministério presbiteral, e, já depois de ordenado, também no papel de “juiz”. Recordo-me, como se fosse hoje, o horror que era aquele momento semanal, a humilhação que era aquela prática da confissão semanal no Seminário.
Na capela do dito, os que desejavam confessar-se com a regularidade semanal (quem não desejasse passaria a ser olhado de viés pelos demais e pelos próprios “superiores” que controlavam todos os nossos passos, um dia após outro), teria de deslocar-se, durante a celebração da missa diária, do seu lugar habitual no banco e dirigir-se, perante toda a assembleia, para o fundo da capela, onde aguardava, juntamente com outros, a vez de se confessar.
O acto decorria numa salinha ao fundo da referida capela, onde o “juiz” nos esperava todos os dias, àquela mesma hora, durante a celebração da missa, oficiada e presidida por um outro padre. Os “penitentes” daquele dia e daquela semana juntavam-se todos ali ao fundo. E entravam na salinha, cada qual na sua vez.
O padre “juiz”, de preto vestido, esperava-nos sentado numa cadeira, com um genuflexório ao seu lado, onde o “réu” que entrava deveria ajoelhar-se e passar a confessar todos os seus pecados, cometidos desde a última confissão que havia sido há precisamente uma semana. O mais complicado era arranjar pecadilhos novos, para não estar sempre a repetir os mesmos, semana a semana. Uma verdadeira tortura, para adolescentes e quase-jovens que já então todos éramos, no Seminário de Vilar. E tudo se manteve igual, depois, no Seminário da Sé, já em pleno curso de Teologia.
Para lá desta tortura semanal, havia ainda, de tempos a tempos, a passagem obrigatória pelo director espiritual. Era por ordem alfabética, para que ninguém escapasse. O encontro realizava-se a sós, no gabinete do padre director espiritual do Seminário. Nem vos digo os calafrios que sentíamos, quando chegava o dia e a hora de termos de ir ao “picadeiro”. Íamos manifestamente como “réus”. A humilhação era total. Libertação? Quem pode falar aqui de libertação nesta prática regulamentada e imposta? Só respirávamos de alívio, quando o director espiritual nos dava “alta” e podíamos regressar à nossa intimidade, à nossa privacidade, sempre controlada, sempre vigiada, que para tanto havia em cada corredor, em cada salão e nos recreios, pelo menos, um prefeito, padre, mas prefeito, vigilante atento, autoritário e repressivo / agressivo, sempre que fosse achado necessário.
Sinal de Graça e de Perdão esta prática eclesiástica? Sinal de Misericórdia? Horror, isso sim. Tortura, isso sim. Total devassa da nossa privacidade e da nossa intimidade, isso sim.
O que mais me espanta / escandaliza, ainda hoje é como houve padres que se prestaram, como infantis ou adolescentes, a estes inquisitoriais papéis. Como acataram essas normas. Como não lhes desobedeceram. Como não se indignaram perante elas. Como não objectaram contra elas. Como as realizaram “santamente”, “piamente”. Como acharam normal, saudável, santificador este tipo de práticas, manifestamente demoníacas, opressivas, inquisitoriais, pidescas, catastróficas no harmonioso desenvolvimento dos candidatos a padre/presbítero.
Depois de ordenado, vi-me, de um dia para o outro, no duplo papel de ainda “réu” (a obrigação de me confessar uma vez por semana mantinha-se! Pelo menos, eram essas as instruções que trazia para alimentar a minha vida espiritual presbiteral e que eu inicialmente cumpri escrupulosamente) e, agora, também no de “juiz”. E foi no exercício deste papel de “juiz” que tudo veio a desmoronar-se. Até hoje.
Se o papel de “réu” perante o padre “juiz” já me perturbava e humilhava, o de “juiz” tornou-se-me absolutamente intolerável. Eu, um “puto” à beira daqueles homens e daquelas mulheres que tinham idade para serem meus pais, mães, avôs, avós, sentado e eles de joelhos diante de mim, a tremerem por todos os lados de vergonha e de humilhação, e tudo isto, para que Deus lhes perdoasse os pecados, era absolutamente intolerável. Era o intolerável. A vergonha das vergonhas. Um verdadeiro pesadelo, antes de mais para mim. Era a Humilhação no seu pior.
O caso atingia o paroxismo da humilhação, quando, de longe a longe, um colega padre como eu fazia questão de se confessar a mim, de ajoelhar perante mim, de quase me forçar a ouvi-lo de confissão. Até suores frios subiam pelo meu corpo, nessa ocasião. Sacramento de Deus, isto? Sinal de Graça e do Amor de Deus, este rito? Ou o horror dos horrores?!
A princípio, ainda tentei levar as coisas para o campo da des-confissão. Deixava que as pessoas se aproximassem para o “confesso”, mas, depois, tentava rir-me com elas e libertá-las daquele pesadelo, no género: Mas acha que isso que me diz é algum pecado? E foi para confessar essas ninharias que me veio procurar? Não acha que é tempo de nos deixarmos destas coisas sem sentido? Deus pode estar envolvido nestes actos eclesiásticos católicos? E se, em vez de andarmos nisto de ano para ano, crescêssemos todos mais na Fé?
Consegui, em muitas ocasiões, que as pessoas passassem dos nervos miudinhos para a gargalhada, quase escandalosa dentro do templo. E essas, sim, terão sido as únicas vezes em que o sacramento da Confissão aconteceu! Com o “réu” e o “juiz” a rirem a bom rir, a bandeiras despregadas!
Este problema de ter de atender assiduamente de confissão as pessoas pôs-se-me, sobretudo, quando fui pároco. Nas aldeias, a obrigação de se confessar era escrupulosamente cumprida por quase todas as pessoas, nomeadamente, na quaresma / páscoa. Uma verdadeira estopada! Chegavam a formar-se longas filas na igreja paroquial, como de verdadeiros condenados ao patíbulo. E o padre lá estava a tentar dar vazão a tudo aquilo, em condições que tinham tudo, inclusive para ele, de tortura, nada de Graça.
Foi sobretudo nesses poucos anos de pároco, que eu dei uma volta de mais de 180 graus na minha consciência. Praticamente, recusava-me por princípio a ouvir a lista de pecados que as pessoas traziam mais ou menos engatilhada. Aproveitava aquele momento para evangelizar as pessoas, uma a uma - por isso, cada encontro era mais demorado - e assim tentar convencê-las de que aquela fosse a última vez que se viessem confessar, porque Deus, o de Jesus, não queria, não quer, não pode querer nada destas coisas objectivamente abomináveis.
Estas coisas, dizia-lhes com convicção, são uma injúria ao seu Nome. São puro domínio clerical e eclesiástico sobre as vossas consciências. São uma prepotência. Um abuso. Um sacrilégio. Uma devassa intolerável.
Obviamente, os meus colegas párocos das redondezas acabaram por saber destas minhas “confissões”, já que há sempre alguma “ovelha” mais fiel ao amo e senhor do “rebanho” que vai alertá-lo para o que de subversivo e de libertador um outro pároco, concretamente eu, andava por ali a fazer no seu “redil”. E a verdade é que, ainda pároco de Macieira da Lixa, lá deixei de ser convidado pelos párocos vizinhos para as chamadas “confissões de desobriga”, na Quaresma de cada ano. O que, para mim, foi um verdadeiro alívio.
Entretanto, na paróquia, avancei, com audácia criadora, para a celebração comunitária do Perdão, onde a Palavra escutada e o Espírito que nela Sopra actua(va)m misteriosamente na consciência da assembleia e na de cada um dos seus membros, sem que eu tivesse de interferir directamente, caso a caso.
Desde então, eu próprio nunca mais me vi no papel de “réu” - nunca mais me confessei! - nem no papel de “juiz” - nunca mais confessei ninguém. Acolho as pessoas e sou acolhido por elas na Comunidade que reúne em nome e em memória de Jesus, e o Espírito de Deus que nos conhece melhor do que nós próprios é quem nos perdoa e recria, nos faz Novos a cada instante. Confissão, como Tribunal da Inquisição, nunca mais!
Por isso, em verdade, em verdade vos digo: Não temam, vocês também, deitá-la fora juntamente com a água suja do banho. Façam-no sem hesitar. Ela é a água suja do banho! Uma prática eclesiástica católica sem remissão. Mantê-la, século XXI adiante, seria perpetuar a Idade Média que nunca deveria ter existido. Evangelizar os pobres é preciso. Confessar nestes moldes eclesiásticos não é preciso. É até pecado! Populações evangelizadas - para Evangelizar os pobres é que existem o ministério presbiteral e o ministério episcopal na Igreja - são populações convertidas, perdoadas, eucarísticas, sororais, fraternas, militantes, alegres, políticas, metidas não nos templos e nos ritos, mas no mundo e na História, como o fermento na massa, a luz no meio da cidade, o sal da terra, a sentinela que alerta para a aproximação do Inimigo da Humanidade que hoje vem até ela disfarçado de Deus, o Senhor Deus Dinheiro e o Senhor Deus Religião, para que ela permaneça, séculos e séculos, infantil, em lugar de crescer como Jesus em idade, estatura, desenvolvimento, sabedoria e graça.
Vão por mim. Aceitem o desafio e tornem-se mulheres, homens adultos na mesma Fé de Jesus, não nessa fé religiosa e eclesiástica que é sobretudo medo e infantilismo. E hão-de ver que o resto virá por acréscimo.
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DESTAQUE 2
Luta contra a Pobreza: Somos todos uns hipócritas!
Por ocasião da realização do Fórum Social Mundial 2008, a Pobreza esteve em debate, no decurso de uma tertúlia, realizada num Café da cidade de Penafiel. Fui convidado a participar, também na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar, pelos promotores locais da iniciativa. E aceitei, ainda que com alguma relutância. Se lerem, saberão o porquê dessa minha relutância.
A simples existência da Pobreza em massa e de pobres em massa é uma aberração, um crime que nunca deveria ter começado a existir à face da terra. Mas que não só começou a existir, como ainda se mantém. Propositadamente. Um crime que é todos os dias alimentado por grandes Inteligências dementes e cientificamente organizadas. Para que atinja cada vez mais pessoas e povos. Inclusive, alimenta-se, até, com debates como este em que também estou aqui participar. Daí a minha relutância em vir. Na verdade, quando mais parecemos erguer-nos contra a Pobreza, ainda aí estamos a contribuir para que ela se mantenha.
Em matéria de Pobreza e de pretenso combate à Pobreza, somos todos uns hipócritas. Vivemos a fazer de conta. Desde logo, porque não são os pobres, as vítimas da Pobreza, que organizam o Forum Social Mundial, nem sequer, nas suas dimensões locais, como este debate aqui em curso. São minorias não-pobres - não quer dizer que sejam ricas, mas são não-pobres - e mais ou menos escolarizadas que estão na origem de iniciativas deste género.
Os pobres, as vítimas da Pobreza, nem as promovem, nem aparecem a elas. Aliás, tão pouco chegam a ser convidados. Cheiram demasiado mal, são demasiado incómodos e conspirativos, para poderem entrar e estar nestes lugares reservados a eleitos, mais ou menos preocupados com eles e com a pobreza que os exclui e mata lentamente, sadicamente, mas apenas isso.
Os pobres, as vítimas da Pobreza nunca estão aí. No Forum Social Mundial 2007, em Nairóbi, África, os pobres ainda estiveram por alguns momentos, no decurso duma tarde. Não como protagonistas, obviamente - alguma vez os não-pobres acham que os pobres são capazes de alguma coisa?! - apenas como objecto da curiosidade, disfarçada de solidariedade, dos participantes no Forum, idos de todo o mundo, quando os promotores da iniciativa decidiram ir de visita, como quem vai a um jardim zoológico, a um dos bairros-favela mais miseráveis e mais numerosos em habitantes por metro quadrado, nos subúrbios daquela cidade africana.
Alguns dos participantes, os mais sensíveis, até vomitaram, perante tamanha miséria, tamanha degradação, tamanho desprezo, tamanha humilhação, tamanho crime, tamanho genocídio cometido vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. Outros, menos sensíveis, mais intelectuais cerebrais, indignaram-se perante o que lhes foi dado ver e escreveram / dissertaram sobre aquela situação-espelho do nosso mundo global. Sofreram pesadelos, durante algumas noites e até durante alguns dias. Aqueles rostos da Pobreza e da Degradação não lhes saíam de diante dos olhos.
Mas depressa tudo se apagou, tudo voltou à normalidade, depois que escreveram toda a sua indignação em jornais e revistas da especialidade e se insurgiram com veemência verbal contra tamanha Indignidade e tamanha Inumanidade. Os textos que produziram e as conferências em que dissertaram sobre aquela situação e sobre a Pobreza em geral bastaram para lhes trazer o sossego de volta e o sono tranquilo, sem mais pesadelos
Entretanto, o enorme bairro-favela de Nairóbi continua lá, em carne viva. O genocídio ao vivo e continuado que ele é continua lá. Os pobres aos milhões, crianças, jovens, mulheres e homens de meia-idade e outras, outros precocemente velhos (que a fome mata, senhoras, senhores; que a Pobreza mata, senhoras, senhores!), esses continuam lá. Ignorados. Esquecidos. Cada vez em maior número e cada vez mais pobres. Cada vez mais degradados.
Somos assim, duma maneira geral, os não-pobres e mais escolarizados, ou mesmo semi-analfabetos. Uns hipócritas. Vejam que até dos pobres e da Pobreza de que todos eles são vítimas, nós, os não-pobres, os mais escolarizados, tiramos proveito pessoal e corporativo. Fica bem, é de bom-tom, dá prestígio promover iniciativas como o Forum Social Mundial. E participar nelas. E debitar discursos durante elas. Somos por momentos individualidades. Locais ou regionais, porventura, mas individualidades. E fica a impressão, perante a sociedade e os nossos próprios olhos, de que somos militantes de causas, no caso, que estamos empenhados na erradicação da Pobreza.
É tudo mentira. Estamos simplesmente a auto-promover-nos e a dar nas vistas, a ter alguns dos nossos tão cobiçados quinze minutos de fama, de que tanto necessitamos para subirmos no conceito dos que nos rodeiam, na sociedade em que nos situamos, na organização partidária ou eclesiástica em que estamos inscritos e, onde, deste modo podemos fazer carreira com mais facilidade.
Perdoem-me esta rudeza, mas é isto que sucede. Porque somos não-pobres e o que mais queremos, lá no fundo do nosso inconsciente, é que este nosso estatuto de não-pobres se mantenha estável e, se possível, até suba e nós acabemos ainda menos não-pobres, por isso, um pouco mais ricos, com novas possibilidades e novos amigos, não entre os pobres, mas entre os mais ricos do que nós.
Parece que queremos mudar / transformar o mundo, acabar com a Pobreza, mas só parece. O que efectivamente mais conseguimos, e é se formos intelectuais lúcidos e honestos (porque há por aí uma espécie de intelectuais dementes, corruptos, que se vendem como prostitutos ao Grande Dinheiro e ao Grande Poder, ao serviço dos quais põem o melhor dos seus saberes e das suas capacidades, num prolongamento do gesto de Judas, o traidor dos Evangelhos canónicos do Novo Testamento, ou do gesto de Caim que mata o irmão Abel, os dois personagens do conhecido mito bíblico do Génesis) é, não transformar o mundo, como seria necessário, mas apenas explicá-lo, precisamente este nosso mundo, onde nós, os que nos envolvemos nestas iniciativas somos da imensa minoria dos não-pobres.
No máximo, conseguimos explicar teoricamente porque há pobres e Pobreza no mundo. De modo algum, ousamos transformar o mundo que continua a produzir pobres e pobreza em massa, com a mesma eficiência e a mesma frieza com que produz automóveis, mobília mais ou menos bizarra, computadores, telemóveis, perfumes, detergentes e muitos outros artigos de consumo.
Ou acham que podemos alguma vez acabar com a Pobreza e libertar as vítimas dela, os pobres, sem acabarmos com a Riqueza acumulada e concentrada e com o Sistema, democrático que se diga, que torna possível esta Demência, esta Inumanidade organizadas?
Ora, de que adianta erguermo-nos indignados contra a Pobreza e explicar porque é que ela existe, se não nos erguemos contra a Riqueza acumulada e concentrada, nem contra nós próprios que fazemos parte da imensa minoria dos não-pobres, sempre a sonhar ser cada vez menos não-pobres, por isso, cada vez mais ricos? Acham que exagero?
Vamos a um teste. Quem de nós, ao envolver-se nestas pretensas causas, pomposamente chamadas por nós de luta contra a Pobreza e de erradicação da Pobreza no mundo, já se fez mais pobre? Quem já desistiu de querer ser rico? Quem já fez, por exemplo, o que Zaqueu, o do Evangelho de Lucas, fez, quando Jesus, o de Nazaré, não o das Igrejas eclesiásticas, ópio dos pobres e dos ricos, entrou na sua casa / na sua vida, e ficou uns dias com ele? “Vou dar metade dos meus bens aos pobres e dar quatro vezes mais do que roubei a todos aqueles [e muitos eram!] que roubei”. Algum de nós já foi capaz de tal decisão pessoal e corporativa, partidária, associativa, eclesiástica, paroquial, mesmo entre os que nos dizemos cristãos e da Esquerda política, e militamos nela em lugares de destaque? Não?!
E quem de nós já teve a audácia de realizar a Política económica que Jesus propôs ao Homem rico - entenda-se, à imensa minoria dos não-pobres - que o procurou preocupado com questões relacionadas com a salvação eterna, depois da morte, em vez de com as questões e as aflições do quotidiano, onde estão mergulhados todos os pobres que diariamente fabricamos e onde está a Pobreza em massa, estrutural? “Vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e depois vem e segue-me”.
Sabem que esta palavra de ordem económica e política - a única que tem força para mudar / transformar o mundo - continua ainda por realizar e que os que a ouviram pela primeira vez até correram a matar crucificado aquele que teve a lucidez / humildade de a captar e a audácia de a praticar / propor / anunciar?
Registam os três Evangelhos Sinópticos que, ao ouvir semelhantes palavras, o Homem rico retirou-se triste, porque era possuidor de muitos bens. Pois é. Esse é o problema. Essa é a questão nuclear no que respeita à existência da Pobreza e de vítimas da Pobreza.
Os detentores da Grande riqueza acumulada e concentrada e os seus inúmeros admiradores menos ricos mas já não-pobres, podem dizer-se até ateus ou agnósticos, mas o que na verdade todos são, somos, é idólatras, isto é, vivemos de cócoras e de joelhos diante do Senhor Deus Dinheiro, hoje totalmente independente da Política e totalmente à solta, servido por grandes inteligências, todas dementes, sádicas e cruéis, mas cada vez mais eficientes e cada vez mais bem pagas. E, embora tristes - todo o assassino e mentiroso é triste; e assassino e mentiroso é o Grande Dinheiro e quem está incondicionalmente ao seu serviço - todos eles exibem ares de muita satisfação, nadam em privilégios, dominam o Mundo, mandam nos Executivos das nações, seguem exclusivamente as leis que eles próprios concebem e aprovam, sempre em mutação / adaptação, segundo a lógica dos seus interesses. Além disso, sabem-se temidos, adorados, idolatrados. E isso consegue disfarçar toda a tristeza que sentem no mais fundo de si próprios e toda a solidão em que vivem, como ratos encurralados, rodeados de seguranças por todos os lados.
Eu sei - Jesus também o soube melhor do que ninguém e foi já com ele que eu aprendi - que o problema não é apenas, nem sobretudo de pessoas. É estrutural. É sistémico. Ele chamou-lhe “O Pecado do Mundo”. Mas também é de pessoas. Concretamente de nós, de cada uma, cada um de nós. Porque são as pessoas que podem mudar o Sistema Económico e Financeiro que hoje nos asfixia e mata e produz pobres e Pobreza em massa.
Porque a existência de pobres e de Pobreza em massa não é, como nos fazem crer, uma fatalidade da natureza. É uma opção. Económica e Política. Uma opção que, na nossa demência, não temos querido fazer correctamente e preferimos alinhar no Pensamento Único, na Ideologia / Ideolatria do Império do Dinheiro e da sua Ordem Mundial intrinsecamente perversa e assassina.
Na verdade, ou todos escolhemos ser pobres, isto é, não-ricos, ou a Pobreza continuará a desenvolver-se no mundo, não apenas numa progressão aritmética, o que já seria tremendo, mas numa progressão geométrica.
“Felizes vós os pobres”, diz Jesus, não, obviamente, os que o são à força, criminosamente fabricados pelas nossas Economias do Dinheiro cada vez mais acumulado e concentrado. Mas os pobres que o são por opção, que escolheram ser pobres, isto é, não-ricos, por toda a vida. “Ai de vós, os ricos”, acrescenta depois Jesus, aqueles que o são por opção e por escolha, por acumulação.
Não há saída libertadora e salvadora, digna dos seres humanos e dos povos, fora desta via praticada por Jesus e anunciada por ele à Humanidade. E todas as pessoas e todos os povos, temos que escolher.
O Mercado, o Grande Mercado não é solução. É genocídio. A única saída é a opção pessoal e global de sermos pobres por toda a vida. É por aqui que vai o Evangelho de Jesus e o próprio Jesus. Esta via está magistralmente descrita naquela metáfora apresentada pelos quatro Evangelhos canónicos, a metáfora viva da Partilha, não multiplicação, como repetem / mentem as Igrejas, dos pães e dos peixes.
A solução da fome, da Pobreza, não passa por mais e melhor Mercado, nem por mais e melhor assistencialismo / caridadezinha, mas exclusivamente por mais e melhor Partilha da Riqueza produzida.
Lê-se na referida metáfora: “Está aqui um pequeno, isto é, um que escolheu ser pobre, por isso, não-rico, e que tem cinco pães e dois peixes, o que, no total, perfazia o número sete, biblicamente, o da plenitude humana. Quer dizer: Era um Ser Humano cem por cento, sapiente, não um monstro, um inteligente demente, um chico-esperto.
A verdade é que é a partir desta disponibilidade, desta Partilha - há lá gesto mais politicamente fecundo do que este?! - logo assumida por outro e mais outro e mais outro, que todos, na hora - também nesta que é a nossa hora - comeram / comem e ficaram / ficam saciados e ainda sobrará comida, para mais dois ou três mundos como o nosso.
Deixemos, porém, a metáfora e fiquemos com a Luz Política que dela salta. E com ela, façamos / criemos Economias e Políticas nacionais, europeias e mundiais. Veremos que nunca mais haverá Pobreza, nem vítimas da Pobreza. Porque também nunca mais haverá Riqueza acumulada e concentrada, muito menos, o Grande Dinheiro que hoje anda por aí à solta, numa Obscenidade sem nome. Consequentemente, também não haverá mais ricos e pobres. Haverá seres humanos, simplesmente. E povos, todos diferentes, todos iguais. Todos irmãos e irmãs.
Utopia? Sem dúvida, mas que ou nós a tornamos topia, isto é, realidade histórica mundial, ou ficamos sem Futuro. A escolha é nossa. E nem que seja tomada já hoje, saibam que, mesmo assim, peca por demasiado tardia.
Mais um pouco de tempo nesta selvajaria global que é hoje o Império do Grande Dinheiro, e o processo evolutivo em marcha na História para nos tornarmos seres humanos deixará de poder prosseguir. Em vez de seres humanos perfeitos, como Jesus, o Paradigma de todos os seres humanos, acabaremos reduzidos a Coisas.
Está nas nossas mãos escolher. Se formos como o Homem rico dos Evangelhos Sinópticos, escolhemos o Grande Dinheiro e ficaremos coisas. Ousemos, por isso, ser como aquele pequeno não-rico que Partiu os cinco pães e os dois peixes que possuía. Seremos plenamente humanos, alegres, sororais/fraternos, felizes, sem pobres no meio de nós e sem Pobreza.
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Ainda o debate em Penafiel
Nunca mais seremos os mesmos
Foram contundentes as minhas palavras no debate sobre a Pobreza, mas tocaram a consciência de todas, todos nós. Quantas, quantos lá estivemos nunca mais seremos os mesmos!
Foram contundentes, mas dificilmente irrefutáveis, as minhas palavras no debate sobre a Pobreza, na cidade de Penafiel. O Café foi pequeno para conter todas as pessoas. Ninguém arredou pé, apesar da contundência das minhas palavras. Fui o único, entre os elementos convidados para a mesa do debate que agarrei o problema pelos cornos e pus os pontos nos iis.
Nestas coisas, não suporto o politicamente correcto. Nem o moralismo. Acho que tem de ser pão, pão, queijo, queijo. Falar claro é preciso. E mesmo isso é pouco, comparado com o facto massivo da Pobreza que hoje propositadamente produzimos e mantemos no mundo.
O facto da Pobreza em massa tem de ser visto em toda a sua amplitude e não apenas caso a caso, família a família. O crime da pobreza é um crime estrutural. E, ou lhe pomos fim, mediante decisões económicas e políticas drásticas, estruturais, ou somos monstros dos piores.
Ainda pensei que alguns dos presentes me iriam cair em cima, no final da minha intervenção. Ou que saíssem do Café. Mas não. Ninguém arredou pé. E foi impressionante o silêncio, durante a minha comunicação. As reacções orais, no final, foram, senão de rasgado aplauso - tomei isso como um bom sinal - de concordância e de manifesta incomodidade interior.
A consciência das pessoas presentes ficou manifestamente abalada e pesada. Interpelada. Alguém, na hora, usou a expressão “Senti-me julgado pelas suas palavras”. Disse-o, não no sentido de quem se sentiu acusado, mas de quem se sentiu interpelado. Só pude alegrar-me com esse testemunho que espelhava bem o da generalidade das pessoas presentes.
A Palavra, quando sai atravessada e carregada de Espírito, o do Deus de Jesus que é também o Deus dos pobres, é um dos efeitos que produz em quem a ouve/acolhe. Sou sempre o primeiro ouvinte da Palavra que sai da minha boca. Por isso, sou sempre o primeiro a ser julgado / iluminado / tocado / interpelado / transformado por ela.
A Palavra, quando anda carregada e atravessada pelo Espírito de Deus, o de Jesus e dos pobres, não condena ninguém. Liberta-nos, torna-nos mais humanos, menos monstros, mais próximos uns dos outros e sobretudo dos pobres, mais abertos, mais livres e por isso mais responsáveis uns pelos outros e pela História.
Num primeiro momento, a sensação é que a Palavra nos condena. É por isso uma sensação de desconforto. Mas logo percebemos que esse desconforto é como o do bebé recém-nascido. De repente, vê-se fora do útero materno, onde sempre havia vivido até então. E de um momento para o outro, passa a ser um novo ser fisicamente separado, autónomo, da mãe, independente, carregado de futuro que ele próprio há-de abrir e percorrer, num processo sem fim. O desconforto é total. Mas, ou assim, ou nunca chegaremos a ser nós próprias, nós próprios.
Ora, a Palavra com Espírito, o do Deus de Jesus e dos pobres, quando é escutada / acolhida / praticada produz em nós um Novo Nascimento, um Novo Começo. É como um Novo Parto. Não segundo a Carne e o Sangue, ou segundo a Ideologia do Sistema-Ventre que é a Ordem Mundial onde estamos fisicamente situados, mas segundo o Espírito do Deus de Jesus e dos pobres.
O desconforto é por isso inevitável, porque entre a Ideologia da Ordem Mundial e o Espírito do Deus de Jesus e dos pobres não há qualquer compatibilidade, nem reconciliação possível. Os dois são entre si como a Treva e a Luz, a Mentira e a Verdade. Onde estiver um, o outro não pode estar. A Treva odeia de morte a Luz. A Mentira odeia de morte a Verdade. E quando os da Luz e da Verdade tentam reconciliar-se com os da Treva e da Mentira acabam sempre reféns da Treva e da Mentira. Nem frios nem quentes. Por isso, vomitados da boca de Deus, o de Jesus e dos pobres.
As Religiões e as Igrejas, quando se convertem em religiões, é por essas águas turvas que navegam. Os partidos políticos que se formam para tomar o Poder, chegar ao Poder, partilhar do Poder, é também por essas águas turvas que navegam. A Treva e a Mentira agradecem a umas e a outros. E concedem benesses, mordomias, bons salários, muitas regalias.
Ainda que algumas, alguns pareçam muito aguerridos nas suas intervenções, não passam de tigres de papel, figurantes mais ou menos folclóricos. O mais que podem suscitar nos adversários / concorrentes dos outros partidos, das outras religiões são sorrisos de condescendência e de bonomia. Depois da refrega, já estão todos à mesma mesa - a dos privilégios - a disputar mais uns nacos de carne e a dividir o bolo entre todos, sem nunca chegarem a derrubar a mesa - a Ordem Mundial - que os alimenta a todos.
Os pobres do mundo - as maiorias empobrecidas - é que nunca chegam a ter assento nela. E se algum membro dessas maiorias, porque excepcionalmente mais dotado, ronda a mesa dos privilégios, pode ser convidado a integrá-la, contanto que acate as regras do jogo. Porque, se for para a fazer implodir, depressa é assassinado. Porque a Treva e a Mentira não conhecem Moral, nem Ética, fora da sua própria moral e da sua própria ética, as do Assassínio e as do Roubo ou Exploração, ditadas pela Ideologia por que ambas se regem.
Por isso é que Jesus, o de Nazaré, foi banido da Ordem Mundial. Não só foi morto, de morte crucificada, mas foi banido da Ordem Mundial. Em seu lugar, ficou um mítico Cristo que as Igrejas ditas cristãs, mas não jesuânicas, cultuam como o seu Deus, em tudo igual aos demais deuses inventados pelos nossos medos e pelos nossos crimes. Deuses à nossa imagem e semelhança. E à nossa medida. Ídolos que justificam todos os crimes da Ordem Mundial e dos seus chefes de turno, e até os abençoam, a começar pelo crime da Pobreza em massa.
Jesus foi o primeiro Homem, o primeiro Ser Humano que nasceu e veio ao mundo para dar testemunho da Verdade. Ele é a Verdade. Ele é a Luz, escreve o Evangelho de João, logo no Prólogo. A Treva e os da Treva, a Mentira e os da Mentira não o suportaram. E a razão salta à vista: As obras deles, todas as obras deles são más. Sempre foram. E serão.
Por isso é que os que um dia nascemos e viemos a este mundo, temos de escolher. Ou somos Treva e dos da Treva, Mentira e dos da Mentira - da Ordem Mundial em que estamos fisicamente inseridos e não há como lhe escapar - ou somos Luz e dos da Luz, da Verdade e dos da Verdade, mulheres e homens jesuânicos, companheiras / companheiros de Jesus, seguidores dele e prosseguidores do seu Projecto e das suas Causas.
Porém, se para Jesus, a Luz e a Verdade, não houve lugar dentro da Ordem Mundial, tão pouco haverá para nós, à medida que formos como ele, formos ele. Daí, o desconforto que inevitavelmente sentimos, quando escutamos a Palavra carregada e atravessada pelo Espírito do Deus de Jesus e dos pobres. Acolhê-la e, sobretudo, praticá-la faz-nos nascer de novo, de Fora da Ideologia da Ordem Mundial, por isso, do Espírito do Deus de Jesus e dos pobres que Sopra dentro dela, para a derrubar, para a fazer implodir.
Dizem-me algumas pessoas - e neste debate em Penafiel também houve quem o referisse - que, quando constituímos família e há filhos, filhas nossos a crescer, as coisas tornam-se mais complicadas. Compreendo que assim possa suceder. Talvez por isso é que Jesus chega a dizer que quem quiser ir com ele, ser ele em cada tempo e lugar, tem de deixar a família, pai, mãe, filhos, casas, campos. Não se trata, evidentemente, de um simples deixar fisicamente. Também não deixamos, não podemos deixar fisicamente a Ordem Mundial. Do que se trata é dentro da Família, como dentro da Ordem Mundial, ousar viver segundo o Espírito do Deus de Jesus e dos pobres e não segundo a Ideologia da Ordem Mundial e da Família tradicional.
Educar, neste caso, será despertar os filhos, as filhas para que se deixem seduzir e conduzir por este Sopro outro, o do Deus de Jesus e dos pobres, em vez de pela Ideologia da Ordem Mundial que é assassina e mentirosa. Sei bem, até por experiência, que viver assim não é fácil. E é por isso que a maior parte as pessoas desiste, fica pelo caminho, como o tolo no meio da ponte, nem frias nem quentes, como vomitadas da boca de Deus, o de Jesus e dos pobres.
Parece que é por aí que prefere andar a imensa minoria que tem dado corpo à chamada classe média. Nem são dos poucos muito, muito ricos, nem das maiorias pobres, muito pobres, pior, empobrecidas. Se repararem, são estas pessoas que alimentam as Religiões e as Igrejas convertidas em religiões. E a Ordem Mundial e a sua Ideologia de Treva e assassina.
O que fazer? Não vejo outro caminho que não seja a lucidez e a audácia de mudarmos de Deus - mesmo dentro do Ateísmo esta mudança é necessária, mudar de Ateísmo - passarmos, como numa verdadeira Páscoa, da Ideologia da Ordem Mundial para o Sopro ou Espírito do Deus de Jesus e dos pobres. E fazermo-nos progressivamente próximos dos pobres, das maiorias empobrecidas. Como intelectuais ou mais letrados orgânicos, na condição de seus discípulos, seus amigos, a caminhar / lutar com eles, não em vez deles.
Os filhos, as filhas que tivermos, pelo menos, enquanto viverem com os seus pais / as suas mães, não terão outra saída senão acompanhá-los nesta conversão, nesta Mudança radical. Neste fecundo desconforto. E nesta Alegria, que semelhante Mudança sempre traz no bojo.
Não mudamos o mundo da noite para o dia? Mas, pelo menos damos, o que já não é pouco, mais força e mais visibilidade ao Processo Histórico que levará à Implosão da presente Ordem Mundial e da sua Ideologia de Treva e de Assassínio, ao mesmo tempo que antecipamos nos nossos próprios corpos um Futuro outro, a Ordem Mundial outra, edificada segundo o Espírito ou o Sopro do Deus de Jesus e dos pobres, que é o único Espírito Criador de filhas e de filhos da estatura de Jesus, por isso, em estado de maioridade, sororais / fraternos, responsáveis pela História, vidas feitas de Luz e de Verdade sempre em acção, em movimento. Acção Política, Movimento Político, necessariamente.
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EDITORIAL
A escolha
Entretidos e pervertidos por todas estas Páscoas de Calendário e do Grande Mercado, mais a sado-masoquista Páscoa das Religiões, em que hoje todas as Igrejas cristãs, com maior incidência na nossa Igreja católica romana, estão desgraçadamente transformadas, já nem sequer somos capazes de mergulhar com todo nosso ser na Grande Pergunta que a Páscoa de Jesus, o de Nazaré, levantou e que, desde então, tem de atravessar a consciência de todas as gerações, de qualquer cultura ou nação,a saber: PORQUE O MATARAM? Ora, esta é a única Pergunta que pode abrir progressivamente os olhos da mente e da consciência dos povos, de todos os povos da terra, à Verdade e, por ela, com ela e nela, à Liberdade e à Salvação, entenda-se, à Responsabilidade que só a Liberdade é capaz de gerar e que faz de nós seres humanos cada vez mais humanos e cada vez mais realizados na História e até para lá da História, uma vez que a anunciada Morte biológica de cada qual não é limite, muito menos castigo - as Igrejas e as Religiões mentem, quando dizem que ela é castigo de Deus devido ao "pecado original", coisa mais boba, e só por isso já deveriam, todas as que ainda hoje o fazem, deixar de continuar a merecer o nosso respeito - apenas é a Grande Explosão que nos abre Dimensões e Horizontes de Plenitude de vida que nunca os nossos olhos viram, nunca os nossos ouvidos ouviram, nem puderam sequer alguma vez imaginar. Porque é essa Grande Pergunta que sempre colocará a mente e a consciência de cada geração humana que vem a este mundo perante o Mistério que somos e perante o Grande Mistério de onde vimos e para onde vamos. Por outras palavras, revela-nos cada vez mais e melhor quem e como somos, os seres humanos e os povos, e quem é o Sopro ou o Espírito que nos fez SER/ACONTECER e está aí ininterruptamente a PASSAR (Páscoa) por nós, até nos fazer - só precisa da nossa livre cooperação - SER/ACONTECER em plenitude, no nosso aqui e agora e para lá dele.
Sem esta Grande Pergunta, corremos cada vez mais o risco de nunca chegarmos a entender-nos como e quem realmente somos, Homo sapiens e Homo demens, ao mesmo tempo, numa dialética individual e colectiva que se pode tornar compulsivamente assassina e mentirosa, quando em nós, indivíduos e corporações de indivíduos (famílias, instituições, nações) e Povos, se afirma mais o Homo demens do que o Homo sapiens, e este é progressivamente anulado, porventura, até suicidado.
Aquela Grande Pergunta que, desde o dia 7 de Abril do ano 30 da presente era comum, precisamente, o dia, o mês e o ano em que Jesus foi crucificado como o Maldito de Deus e da Humanidade, representados ambos, Deus e Ela, nos chefes do Templo e do Império e do Sinédrio, as três instituições oficiais que deliberaram o seu assassinato (sim, porque Jesus não morreu, como por aí levianamente se repete até à náusea, FOI ASSASSINADO por motivos políticos, religiosos e económico-financeiros; e foram seres humanos muito concretos e bem conhecidos, convertidos em Executivos das nações, das Religiões e do Dinheiro da Ordem Mundial da época, que o mataram) continua aí a interpelar-nos a todas, todos, e cada uma, cada um. Mas continua, sobretudo, a revelar-nos/gritar-nos que, se deixamos à solta o Homo demens que somos e anulamos ou suicidamos em nós o Homo sapiens que somos, tornamo-nos Humanidade - indivíduos, nações e povos - Demente-em-acção, a Demência Humana em acção, e, por isso, tudo o que pensamos, projectamos, criamos - sistemas económicos, financeiros, políticos, estados, nações, religiões, deusas/deuses, ideologias/idolatrias - mais não será do que para matar, roubar e destruir (cf. João 10). Antes de mais, a vida em toda a sua imensa variedade de espécies, as pessoas, os povos, e a Natureza. Numa palavra, tornamo-nos seres humanos nos antípodas de Jesus, o Homo sapiens em plenitude, o primeiro e o último, o Alfa e Ómega, que nos foi dado, o único em quem o Homo demens nunca teve qualquer oportunidade de ser e de agir, porque ele sempre resistiu ao Tentador ou Demente. E por isso que nós experimentamos/confessamos/testemunhamos Jesus, o de Nazaré, e apenas ele, como O Homem em plenitude e, nessa medida, Deus Vivo entre nós e connosco, o Salvador, isto é, aquele em quem todos os demais seres humanos, antes e depois dele, havemos, finalmente, de nos tornar. Como? Anularmos cada vez mais em nós o Homo demens que somos e expandirmos até à plenitude o Homo sapiens que somos. Na medida em que o Homo sapiens que somos é que pensar/projectar/agir/realizar em nós, diminuirá em nós o Homo demens que somos e, nessa mesma medida, existiremos/viveremos para que todos, pessoas e povos, tenham vida e vida em abundância, sejam de olhos/mentes abertos, livres, autênticos, sororais/fraternos, simplesmente humanos, nunca mais Executivos.
O Poder, todo o Poder, as Religiões, todas as Religiões, o Dinheiro, todo o Dinheiro que deixa de ser mero instrumento nas nossas mãos e passa a ser o Senhor Deus Dinheiro que tudo domina e controla, e a todos - pessoas e povos - seduz, submete e reduz a seus incondicionais servidores/adoradores, a troco de Privilégios, são criação, não de Deus Vivo, nem do Homo sapiens que somos, mas exclusivamente do Homo demens que somos. São, por isso, a Demência Humana Organizada, o anti-Jesus, o de Nazaré, o anti-Homo sapiens na plenitude que ele foi/é/será. E fora do qual não há salvação, entenda-se, não há Homo sapiens, apenas Homo demens.
Foi esta Demência Organizada, como uma Trindade, três num só, que matou Jesus. Tanta Demência Humana Concentrada e Objectivada em Sistema não suportou tanta Sapiência Humana Concentrada e Encarnada num Homem - O Homem! - Jesus, o de Nazaré. E matou-o, para poder continuar aí a matar, roubar/explorar e destruir.
Ou regressamos a Jesus, o de Nazaré, o Homo sapiens sem fissuras, ou prosseguiremos na nossa Demência Humana Organizada cada vez mais Concentrada e Objectivada em Sistema a matar, roubar/explorar, destruir. Neste momento, já quase atingimos um ponto de não-retorno, completamente cegos, encandeados pelo Senhor Deus Dinheiro, o novo Império Emergente, Global, Não-Territorial, Mentiroso, Assassino, na sua dimensão mais cruel que o torna Genocida e Ecocida. Ou Jesus, o de Nazaré, ou César, hoje, Deus-Dinheiro. Ou Homo sapiens, ou Homo demens. A escolha é nossa. Em cada dia. E todos os dias. Vosso, Mário
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ESPAÇO ABERTO
A Colonia e os Senhorios
Pe. Mário Tavares (Madeira)
(Colonia: “Contrato entre colono e proprietário, na Ilha da Madeira, pelo qual o colono perde o direito às benfeitorias prediais”. Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, Artur Bivar, Edições Ouro, Lda. Porto, 1948)
Fiz um texto por ocasião do 30.º aniversário da lei para a extinção da colonia cá na Madeira. Os ricos acharam de fazer da humanidade a sua vaca leiteira. E não será fácil escapar-lhes perante tantos serviçais e tantos anjos patetas no incenso. Cristo quis encarnar na Humanidade. Contudo, muito poucas pessoas se mostram disponíveis a dar-lhe espaço… Eis o texto que elaborei e agora aqui partilho também com as leitoras, os leitores do Jornal Fraternizar.
Os povos sempre funcionaram como um manancial de sonhos, lucros e desgraças/sofrimento. Transportam em si: a) as estruturas do poder e do domínio: o governo e as leis; b) os senhorios, no exercício constante de instalar-se e cobrar os seus interesses; c) uma regulamentação de funcionamento disciplinar, a vestimenta que controla as pessoas no seu espaço de vida e de trabalho.
Contudo, ao mesmo tempo os povos estão dotados de uma alma viva com identidade própria, com direitos que, em consciência, reclamam seus, com um sonho de liberdade e uma pressão constante de renascer. Uma nação é uma ebulição de vida e precisa sempre de rumo, mas com duas verdades fronteira: a) a anarquia não serve. É como uma máquina solta nas suas peças. Não funciona. b) A disciplina prejudica sempre os mais pequenos. Quando os direitos são bens, as pessoas têm a liberdade de usufruir deles. Mas quando os direitos são apenas acessos, estes mesmos direitos mostram-se tantas vezes paralíticos no lado de dentro dos guichés.
Um pequeno retrato vivo da Colonia
Quando se deu o 25 de Abril, todo o governo português foi desaparafusado. Os novos governantes ocuparam os seus cargos, mas nenhum ficou de pedra e cal. Estavam todos inseguros. Era o caminho iniciado da democracia.
A folha dos direitos humanos entrou em circulação e os direitos sociais das pessoas foram-se erguendo. As chagas do povo tornaram-se públicas e, entre nós, madeirenses, ganhou evidência o cancro da colonia. A colonia era um sistema de exploração agrária com mais de 300 anos. Já estava em decadência, porque, em 300 anos, uma sociedade circula, evolui e questiona-se. Mas era uma grande fonte de receita: 50% da produção agrícola dos terrenos colonizados a custo zero. Os senhorios faziam tudo por a não perder. Lembremos, de um modo genérico, as histórias amargas e vivas que tantos caseiros transportavam:
Primeiro: os caseiros despejados das suas benfeitorias, onde, durante décadas, tinham vivido uma vida amarga de fome e de trabalho, repartindo a meias com o senhorio todo o fruto do seu suor derramado na terra. Por serem já velhinhos, restos de gente sem produzir, não interessavam ao senhorio. Lembro a história da avó da senhora Inês. Lembro a família “Pancada”, do Jardim da Serra, possuidora de umas benfeitorias (cerca de 33000 m2). Quando o chefe da casa faleceu, todo o terreno foi retirado à família, embora esta continuasse a pagar uma pesada contribuição às Finanças, em razão dessas benfeitorias roubadas. A viúva, uma caixeira de bordados, que funcionava como veio de exploração do patrão entre as bordadeiras do lugar, manteve-se contrária a todo o comunismo de direitos. A família, bastante pobre, tudo perdeu.
Segundo: Os caseiros, amarrados aos seus tugúrios, umas paredes de pedra solta, cobertas de palha velha e podre, estavam impedidos de transformá-los num coberto em cimento armado, ou de acrescentar-lhes uma pequena cozinha, para garantir refeições quentes no Inverno, imposição intransigente do senhorio sob pena de despejo. Assim, o senhorio obstruía qualquer valorização das benfeitorias do caseiro e mantinha-o dependente e inseguro na sua sujeição. O caseiro, sem direito a um lar de aconchego nas próprias benfeitorias onde vivia e trabalhava, engolia a sua frustração atrás de uma cara rude de sofrimento, tornando mais amarga a sua vida em família.
Terceiro: Os senhorios, gestores das águas de rega, na busca de maiores lucros, retiravam a água dos terrenos dos seus caseiros e vendiam-na a outros agricultores. Os caseiros, obrigados a partir a meias, viam mirrar as suas colheitas e ainda conviviam com o ladrão ou seu representante e tratavam-no por senhor.
O caminho que se fez
O 25 de Abril quebrou a barreira disciplinar entre caseiro e senhorio e ergueu-se, de imediato, a exigência dos caseiros exercerem os seus direitos. Os mais corajosos tomaram a gestão completa dos terrenos de que eram colonos: a) recusaram repartir as colheitas; b) iniciaram a recuperação das casas onde viviam, alargando-as às suas necessidades; c) destituíram os senhorios da categoria de senhores e colocaram-nos na lista dos exploradores que os sugavam. Isto não foi tão simples como se escreve. Houve trabalho árduo, corajoso, inteligente, metódico e dinâmico, no meio de um tecido social vivo e perigoso, cheio de confusões, difamações, ameaças e acções de facto, como bombas e alguns conflitos.
Valeram, entre os caseiros, os homens e as mulheres não aventureiros, mas dispostos a dar passos certos, estudados em reuniões, aceitando o acompanhamento de apoio.
Valeram os padres que roeram a corda da obediência oficial e que, nas suas mensagens e actividades, dinamizaram alguns conteúdos da revolução como conteúdos evangélicos, quebrando a atmosfera do pensamento único, fechado e conduzido.
Valeram os políticos de esquerda que debateram estes temas e encorajaram as pessoas. Valeram alguns técnicos doados à causa dos trabalhadores que, como veios condutores, num silêncio organizador, funcionaram na ginástica jurídica e nos acessos aos responsáveis da governação. Valeu o jornal “O Caseiro”, que noticiava os acontecimentos, as reuniões, as tomadas de decisão, as manifestações e incutia coragem e orientação para que os caseiros se mantivessem unidos e participassem nas iniciativas de defesa dos seus direitos. Valeu a organização dos caseiros em comissões por freguesia, pondo à frente de cada uma caseiros corajosos e activos. Valeram as manifestações de caseiros, as reuniões em todas as freguesias e a sua numerosa presença nas salas dos tribunais, quando era preciso acompanhar e fortalecer o caseiro perante a acusação do senhorio. Valeram as reuniões das Comissões com os órgãos governativos, forçando-os a reconhecer os direitos dos caseiros e a actuar em favor dos mesmos: a) na causa das águas de rega desviadas; b) na tolerância da recuperação das casas dos colonos; c) na entrega da cana-de-açúcar em nome do caseiro produtor e não em nome do senhorio. O vinho e a banana ganharam o mesmo estatuto.
A oportunidade para a solução da colonia existiu, embora ainda não para todos. Muitos estão apanhados por várias gerações de herdeiros não legalmente solucionados. Os que têm a posse da terra resistem, mas há muito oportunismo no “usucapião” e o desenvolvimento urbanístico não é favorável aos mais pobres. Há vários casos no tribunal ainda não solucionados. Meu cunhado, por exemplo, tem um há mais de 20 anos. Vai passando de tribunal para tribunal, vítima da espera e do recurso…
Conclusão
É verdade que, após um longo gráfico de gerações subjugadas e oprimidas, coube-nos um tempo de uma certa liberdade de vida, com direitos humanos e sociais, informações, cultura, globalização e acessibilidades, uma cidadania real, embora limitada. Mas tudo isto corre inseguro e de portas abertas. Até todos nós colaboramos. Somos arrastados pela aventura e, voluntariamente, partilhamos nela. O que é o jogo senão baralhar os dados e lançá-los? E vamos atrás disso, a ver se também nos cabe uma fatia do bolo.
A globalização e a mobilidade trouxeram-nos a decadência e a banalização dos valores. Tudo está caindo na tômbola da sorte: o ambiente, o trabalho, os ordenados, a saúde, a educação, a justiça, o estatuto de cada pessoa, os direitos, o futuro. Vivemos um tempo em que se tenta trocar a guerra e o trabalho pelo casino da vida. O oportunismo económico, investindo as riquezas que controla e utilizando a ciência e a técnica, criou a sociedade espectáculo, multiplicando os espaços urbanos, enchendo-o de acessibilidades, mobilidade, abundância e boa imagem. O palco está montado com os seus actores, as verdadeiras figuras do trabalho no conceito de hoje, e com tudo quanto existe de valor atractivo e comercial.
Para os camarins do espectáculo é empurrado todo o resto: a) o trabalho intensivo e apertado, sem limites de tempo e sem horário, inseguro nos resultados e inseguro no direito dos trabalhadores, mas que tem de garantir, na ocasião oportuna, as inaugurações, a boa imagem e as farturas para o consumo; b) os trabalhos e trabalhadores que vão ficando cada vez mais ocasionais; c) os excedentários, armazenados em listas, à espera da oportunidade; d) as famílias e as pessoas economicamente cada vez mais débeis, que vão perdendo a possibilidade de circular e se vão calando, acantonadas à sombra do esquecimento, um novo terceiro mundo de exclusão, sofrimento e miséria, filho da boa imagem e das farturas, nascido na tômbola da sorte, a cara nova da concorrência e do desenvolvimento.
Com esta fuga para a frente, provocada pela imensa riqueza acumulada em poucas mãos, vamos vendo o exercício democrático reduzido: a) às campanhas, onde os mais fortes fortificam a sua posição; b) às eleições, em que as elites da boa imagem ganham sempre; c) aos noticiários de consumo, reduzindo os cidadãos a coniventes passivos, meninos de coro da sociedade.
Escrevi/disse, no início, que os povos transportam em si “um sonho de liberdade e uma pressão constante de renascer”. O património da riqueza mundial, produzida pelo desenvolvimento do último decénio é riqueza social, fruto do labor dos povos e da generosidade da Natureza. Contudo, está nas mãos e ao serviço dos grandes grupos económicos, para enriquecê-los cada vez mais. Isto quase nos diz que qualquer dia para vivermos teremos de lhes pagar bilhete. A comunidade humana vai ficando cada vez mais na dependência dos [novos] senhorios.
Somos cidadãos de pleno direito. Há muito que trabalhamos, situados na responsabilidade activa da cidadania. Somos construtores de gente com dignidade e com direitos. Contudo, há que ter sempre os olhos bem abertos. Estamos todos a ser apanhados por uma maré negra de insegurança que terá de ser superada, e por um não-futuro que terá de ser destruído. A nossa militância é continuarmos como altifalantes do alerta, como porta-estandartes da retoma da esperança. Exigimos a construção de uma cidadania mais estruturada e mais segura, onde a dignidade, a seriedade e a justiça tenham maior presença e o pão de cada dia esteja garantido para cada pessoa.
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A feira das vaidades
L. Boff (1), Teólogo
Com frequência comparece nas colunas sociais dos periódicos a feira das vaidades. Há disputa para entrar no cercadinho onde estão as celebridades, geralmente, modelos da moda ou artistas conhecidos. Travam-se verdadeiras batalhas para conquistar um lugar na primeira fila e ganhar visibilidade. Na época do carnaval, então, isso chega ao seu paroxismo. Nos palácios de governo, os políticos acotovelam-se para estar fisicamente mais perto do chefe. As fotos nas colunas sociais mostram pessoas glamourosas, aparentemente felizes, comendo, bebendo e festejando.
Mas basta vasculhar outras páginas do mesmo jornal para se ver o outro lado da realidade: violência generalizada, enfrentamento entre polícias e gangues da droga, assaltos, assassinatos, escândalos políticos que nunca param, crescente favelização das cidades e, por fim, as ameaças de devastação que pesam sobre o inteiro Planeta. Como combinar esses dois cenários?
Espontaneamente vem-me à mente o relato do dilúvio. Indiferentes à maldade que grassava no mundo, as pessoas, dizem os textos, “comiam e bebiam, sem se darem conta de nada, até que veio o dilúvio e arrebatou a todos”.
Não precisamos do dilúvio. Basta-nos a certeza de que todos, também os glamourosos, são mortais. Com o tempo, a beleza se esfuma, os achaques aparecem, o envelhecimento é irrefreável e por fim todos morrem. Carregamos apenas o bem que tivermos feito e nada do glamour e da fama. É a condição humana que importa nunca esquecer para não parecermos frívolos ou ridículos.
Outra cena. Em função do trabalho de assessoria a grupos populares, encontro outra paisagem social: pessoas das periferias, habitantes de comunidades carentes que chamam de “favelas”, grande parte trabalhadora e honesta, enfrentando, dia a dia, a dura luta pela sobrevivência. Os rostos vincados, as mãos calosas, o olhar determinado mostram os sinais da luta renhida pela vida. Os glamourosos vêem-nos com certo desdém, com receio, no máximo, com pena. Nem se lembram de que são seus semelhantes e imortais.
Olhando-os atentamente, vem-me à mente uma cena do Apocalipse. Um dos anciãos pergunta: “Estes, milhares, quem são e de onde vieram? E o Senhor respondeu: estes são os que vêm da grande tribulação… O Cordeiro os apascentará e guiará às fontes de água viva e Deus lhes enxugará toda lágrima dos olhos”. Estes, da grande tribulação, mesmo sendo mortais, vejo-os eu na sua dimensão de imortais. Pois, em cada pessoa, mas particularmente nestes, Deus está nascendo dentro deles, fazendo-os seus filhos e filhas e urdindo-lhes um destino de imortalidade.
Se nós os olhássemos nesta óptica, outra seria a nossa atitude. Daríamos uma pequena oportunidade à verdade de poder triunfar sobre os preconceitos. Descobriríamos que somos todos imortais, também os mortais glamourosos, pois assim fomos feitos e este é o desígnio do Criador. Jesus não quis outra coisa senão que nos tratássemos como irmãos e irmãs e que revelássemos uns aos outros a Deus como Pai e Mãe.
Cada manhã ao levantarmos, temos que decidir: queremos comportar-nos como mortais ou imortais? Viver da aparência enganadora ou da realidade pura e simples?
Quão monótona e semelhante é a vida das celebridades mortais! Quão diversificada e épica é a vida dos simples imortais!
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Limites da Tolerância
L. Boff (2), teólogo
Tudo tem limites, também a tolerância, pois nem tudo vale neste mundo. Os profetas de ontem e de hoje sacrificaram suas vidas, porque ergueram a sua voz e tiveram a coragem de dizer: “não te é permitido fazer isto ou aquilo”. Há situações em que a tolerância significa cumplicidade com o crime, omissão culposa, insensibilidade ética ou comodismo.
Não devemos ter tolerância com aqueles que têm o poder de erradicar a vida humana do Planeta e de destruir grande parte da biosfera. Há que submetê-los a controlos severos.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que assassinam inocentes, abusam sexualmente de crianças, traficam órgãos humanos. Cabe aplicar-lhes duramente as leis.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que escravizam crianças para produzir mais barato e lucrar no mercado mundial. Aplicar contra eles a legislação mundial.
Não devemos ser tolerantes com terroristas, pessoais ou de estado, que em nome da sua religião ou projecto político cometem matanças. Prendê-los e condená-los duramente às barras dos tribunais.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que, no afã de lucro, falsificam remédios que levam pessoas à morte ou instauram políticas de corrupção que dilapidam os bens públicos. Cada país imponha duras penas a esses criminosos.
Não devemos ser tolerantes com as máfias das armas, das drogas e da prostituição que incluem sequestros, torturas e eliminação física de pessoas. Há punições claras para elas.
Não devemos ser tolerantes com práticas que, em nome da cultura cortam as mãos dos ladrões e submetem mulheres a mutilações genitais. Contra isso valem os direitos humanos.
Nestes níveis não há que ser tolerantes, mas positivamente intolerantes, que implica sermos firmes, rigorosos e severos. Isso é virtude e não vício. Se não formos assim, não teremos princípios e seremos cúmplices com o mal.
A ilimitada liberdade conduz à tirania do mais forte. Da mesma forma também a ilimitada tolerância acaba com a tolerância. Tanto a liberdade como a tolerância precisam da protecção da lei. Senão assistiremos à ditadura de uma visão de mundo que nega todas as outras. O resultado é raiva, amargura e vontade de vingança, fermento do terrorismo.
Onde estão então os limites da tolerância? No sofrimento, nos direitos humanos e nos direitos da natureza. Lá onde pessoas são desumanizadas, aí termina a tolerância. Ninguém tem o direito de impor sofrimento injusto ao outro.
Os direitos ganharam sua expressão na Carta dos Direitos Humanos da ONU, assinada por todos os países. Todas as tradições devem confrontar-se com aqueles preceitos. Se certas práticas implicarem violação da dignidade humana, não podem justificar-se. A Carta da Terra zela pelos direitos da natureza. Quem os violar perde legitimidade.
Por fim, dá para sermos tolerantes com os intolerantes? A história comprovou que combater a intolerância com outra intolerância leva à espiral da intolerância. A atitude pragmática busca estabelecer limites. Se a intolerância implicar crime e prejuízo manifesto a outros, vale o rigor da lei e a intolerância deve ser enquadrada. Fora deste constrangimento legal, vale a liberdade. Deve-se confrontar o intolerante com a realidade que todos compartem como espaço vital. Deve-se levá-lo ao diálogo incansável e fazê-lo pensar sobre as contradições de sua posição. O melhor caminho é a democracia sem fim que se propõe incluir a todos e a respeitar um pacto social comum.
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Tropeços do cavalo
Frei Betto (1), Teólogo
Fala-se muito em neoliberalismo para definir o novo carácter do capitalismo. O que significa isso? A essência do capitalismo é a progressiva acumulação do capital em mãos privadas. Os bens já não têm valor de uso; têm valor de troca. Não são para se viver; são para se vender. No capitalismo, o dinheiro essa abstracção que representa valor está acima dos direitos e das necessidades das pessoas.
Como observa Houtart, após a Segunda Guerra Mundial três factores puxaram as rédeas do cavalo de corrida chamado capitalismo: o fortalecimento do movimento operário e o medo da expansão do comunismo, que fizeram com que os Estados burgueses regulassem os direitos trabalhistas; a implantação do socialismo no Leste europeu; e o projecto de desenvolvimento nacional em países pobres como o Brasil (conferência de Bandung, Indonésia, 1955).
Esses três factores eram a pedra no casco do sistema capitalista que, por força deles, se viu obrigado a reduzir seu nível de acumulação e sua liberdade de apropriar-se de tudo que possa gerar riqueza.
O cavalo reagiu. Deu um coice na regulação do trabalho, lesando os direitos dos operários sob os eufemismos de flexibilização, terceirização etc., desmobilizando o movimento sindical e aumentando consideravelmente o índice de trabalhadores informais e o desemprego, agravados pela crescente informatização da economia.
O segundo coice foi no socialismo, com a derrubada do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética, acrescido da cooptação da China.
O terceiro, a globocolonização, a internacionalização da economia e a imposição ao planeta de um único modelo de sociedade, o anglo-saxónico, que predomina na zona rica do planeta.
Eis o neoliberalismo: livre de rédeas e de freios, o cavalo corria desabalado na pista da acumulação.
Ocorre que a vida é feita de imprevistos. O sistema carrega em si suas próprias contradições. Como apontou Marx, ele é o seu próprio coveiro. E, agora, o cavalo vê-se obrigado a desacelerar sua corrida por força da crise ecológica (o aquecimento global), da crise de superprodução (há mais oferta que demanda de produtos) e da actual crise financeira que exaure os bancos dos EUA, faz mais de 1 milhão de pessoas verem evaporar seu sonho de casa própria, e provoca, em apenas um mês, o desemprego de mais de 35 mil bancários estadunidenses.
Os governos dos países capitalistas vivem a queixar-se de que o déficit público é alto e eles não têm dinheiro para o essencial: alimentação, saúde e educação etc. Porém, na hora em que o cavalo tropeça, o dinheiro imediatamente aparece para socorrê-lo.
Bush libertou 145 mil milhões de dólares para tentar evitar a recessão norte-americana, e os Bancos Centrais do mundo rico tratam de disponibilizar seus balões de oxigénio financeiro aos bancos asfixiados pela crise ou em agonia diante de um mercado inadimplente.
Ora, não viviam a conclamar que o mercado é o melhor regulador da economia? Não viviam apregoando “menos Estado e mais mercado”? Por que agora todos correm aos braços acolhedores do Estado de bem-estar financeiro? E de onde veio toda essa fortuna antes negada aos direitos sociais, ao socorro da África, ao cumprimento das Metas do Milénio?
A recente reunião de Davos, clube que aglutina os donos do dinheiro, foi como um conclave de cardeais que, de súbito, descobrem que Deus não existe. Eis abalada a fé no mercado. Se ele trouxe tantas bênçãos aos eleitos da fortuna, agora ameaça com maldições.
O curioso é que a origem do problema não é mundial. É local, nos EUA. Como toda a economia mundial se atrelou à hegemonia unipolar de Wall Street, se este espirra, o mundo gripa-se. Resta esperar para conferir se a gripe é passageira, curável com um analgésico, ou levará o doente à cama, acometido por febres e infecções.
O que ninguém duvida, entretanto, é que, mais uma vez, a conta de tantos tropeços do cavalo será paga pelos pobres. Assim funciona o sistema que promete liberdade, prosperidade e paz para todos - e não cumpre. Há que buscar um outro mundo possível.
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À mesa com Fidel
Frei Betto (2), Teólogo
Conheci Fidel em 19 de Julho de 1980, em Manágua, por ocasião das comemorações do primeiro aniversário da Revolução Sandinista, ao qual compareci na companhia de Lula. Frente à oportunidade de conversar com o líder cubano, dei ouvidos ao meu anjo da guarda: “Esta é provavelmente a única vez que você será ouvido por ele. Fale da Igreja”.
Descrevi as Comunidades Eclesiais de Base e salientei como a gente sofrida da América Latina encontra na fé cristã a energia necessária à busca de uma vida melhor. Muitos partidos comunistas falharam, por professarem um ateísmo apologético que os afastou dos pobres imbuídos de religiosidade.
Fidel traçou um longo histórico da Igreja em Cuba, acentuou o carácter franquista do clero anterior à Revolução e os conflitos ocorridos à raiz da vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra, em 1959.
Comandante, qual é a atitude do governo cubano frente à Igreja? perguntei-lhe. E acrescentei: A meu ver, há três possibilidades: a primeira, tentar acabar com a Igreja e a religião. A história demonstra ser impossível, e tal postura ajudaria a reforçar a campanha dos que insistem numa ontológica incompatibilidade entre cristianismo e socialismo. A segunda, manter Igreja e cristãos marginalizados. Isso favoreceria a política de denúncia do que ocorre nos países socialistas, como o desrespeito à liberdade religiosa. A terceira, abertura aos cristãos interessados em participar da construção do socialismo. Qual das três o governo cubano assume?
Nunca havia encarado a questão nesses termos admitiu Fidel -, mas a terceira me parece mais sábia. Você tem razão, devemos buscar melhor entendimento com os cristãos, superando qualquer forma de discriminação.
Indaguei-lhe ainda por que o Estado e o PC cubanos eram confessionais. Ele estranhou: “Como confessionais?” Expliquei que afirmar ou negar a existência de Deus é ignorar uma das conquistas da modernidade: o carácter laico do Estado e dos partidos. Pouco depois, Estado e PC cubanos deixaram de ser oficialmente ateus e passaram a laicos.
O líder cubano propôs-me ajudar o Estado a reaproximar-se da Igreja Católica. Há anos não se encontrava com nenhum bispo católico, malgrado suas boas relações com a embaixada do Vaticano em Havana e as Igrejas protestantes. No ano seguinte, o episcopado de Cuba aceitou-me como intermediário na reaproximação Igreja-Estado, tarefa que desempenhei durante dez anos e teve seu ápice com o lançamento, em 1985, do livro “Fidel e a Religião”, no qual o entrevistado confirmou o direito de liberdade religiosa na Ilha.
Ao visitar Havana em Fevereiro de 1985, fui convidado a jantar em casa de Marina Majoli e Chomy Myiar; ele, secretário particular de Fidel. Em torno da mesa, Armando Hart, ministro da Cultura; Manuel Piñeiro, chefe do Departamento de América; e sua mulher, Marta Harnecker, intelectual chilena.
Chomy preparou a comida: arroz, feijão preto, carne de porco assada, mandioca cozida e banana frita. Típico cardápio cubano - e, por coincidência, típico cardápio mineiro, o que só os africanos vindos como escravos para a América explicam.
Chomy comentou que Fidel também gostava de pilotar um fogão. Ao café, cerca de meia-noite, o Comandante entrou. Tomou assento entre livros e discos, aceitou uma única dose cowboy de uísque e bebericou lentamente.
Descobri uma área na qual somos concorrentes disse-lhe.
Qual?
Cozinha. Sou filho de uma especialista. Minha mãe é autora de um clássico, Fogão de Lenha, 300 anos de cozinha mineira.
Como ela fez a pesquisa? - indagou.
Percorreu o interior de Minas, recolheu velhos cadernos de receitas, colectou textos sobre culinária em romances e ensaios.
Comer é bom mas engorda - observou Piñeiro.
Depende, quem mastiga muito engorda pouco - retruquei.
Minha especialidade são os camarões gabou-se Fidel.
Mas garanto que nunca provou um bobó de camarão - arrisquei.
Pediu-me para descrever a receita devagar, de modo a memorizá-la. Esta uma característica do líder cubano: a memória privilegiada.
Cozinhe os camarões com casca até a primeira fervura da água - expliquei. Retire-os e, ao esfriarem, descasque-os. Tempere com sal e limão. À parte, cozinhe a mandioca, corte em pedaços e bata no liquidificador com a água de cozimento dos camarões. Coloque água suficiente para obter uma pasta de mandioca relativamente espessa, nunca mole como mingau. Misture a pasta com os camarões. Na frigideira, prepare os temperos: azeite-de-dendê bem quente, cebola e alho picados, sal, pimenta a gosto, tomates descascados e espremidos ou molho de tomate espesso. Deixe curtir bem e misture na pasta de mandioca com os camarões. Tire do fogo e acrescente leite de coco. O segredo da receita é bater a mandioca na mesma água em que se cozinham os camarões.
Posso fazê-lo - garantiu Fidel - desde que você me envie o azeite-de-dendê, que não temos aqui. De onde vem este prato?
Creio que dos escravos. Eles tinham na mandioca a base de sua alimentação, como ainda hoje os nossos índios. Feita a pasta, misturavam os restos da casa-grande. Pode-se fazer também bobó de galinha ou mesmo com pequenos pedaços de peixe assado, sem espinhas.
Dias depois, Cuba importou do Brasil uma grande quantidade de azeite-de-dendê.
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Entre o Passado e o Presente
Manuel Sérgio (Reitor do Instituto Piaget
Entre o Passado e o Futuro é o nome de um livro de Hanna Arendt. Posso até começar com uma frase deste livro: “O testamento, que indica ao herdeiro aquilo que legitimamente lhe pertence, transmite ao futuro os bens do passado. Sem testamento ou, para aclarar a metáfora, sem a tradição que escolhe e nomeia, que transmite e preserva, que indica onde se encontram os tesouros e qual o seu valor é como se não existisse continuidade no tempo e como se, por conseguinte, não houvesse nem passado nem futuro, em termos humanos, mas apenas a perpétua mudança do mundo e o ciclo biológico dos seres vivos” (Relógio d´Água Editores, 2006, p.19).
Costuma dizer-se que a civilização ocidental assenta sobre quatro pilares: a filosofia grega, o espírito jurídico latino, a religião judaico-cristã e o espírito crítico que nasce com o Renascimento. Mas... o que distingue o nosso tempo?
A Nova Física diz-nos que a realidade se revela mais como possibilidade do que como causalidade rigorosa e onde, por isso, a fé e a ciência cabem inteiramente. E assim, diante da realidade, há um conhecimento causal e experimental e matematizável e também uma vivência mística da “Unidade fundamental de todas as coisas”.
A compreensão do Todo pede bem mais do que aquilo que os laboratórios dão. A fé é necessária, até como nova forma de conhecimento das coisas materiais, já que a matéria é bem mais do que matéria. No fundo, ela é Forma, Simetria, Relação.
A crise ecológica do nosso tempo resulta do facto de não descobrirmos Espírito na Matéria.
Nesta conformidade, Ciência e Fé completam-se. É que, nem uma, nem outra, descrevem completamente a realidade. Não têm razão, portanto, o positivismo e o neopositivismo, nem todo o tipo de fundamentalismo religioso, porque onde há Espírito há Matéria e onde há Matéria há Espírito.
O neoliberalismo, ou a nova liberdade que nos prende a um modelo económico globalizante e excludente; o “pensamento único”, ao serviço do neoliberalismo dominante, ou da “ditadura do lucro”; a sociedade do espectáculo onde naufragam valores imprescindíveis a uma vida com dignidade resultam do desconhecimento da Nova Ciência que nasce com o anúncio de Koyré que se passou de um “mundo fechado” a um “universo infinito”.
Depois de ouvirmos falar alguns economistas que são políticos e alguns políticos que são economistas, que primam ambos pelo cálculo e pelas estatísticas, somos tentados a concluir que nos encontramos diante de pessoas da mais actualizada ciência.
Só que, assim como uma teoria física é uma imagem construída por nós, segundo o físico alemão Heinrich Hertz, também a economia que os neoliberais nos apresentam é, toda ela, feita de acordo com os interesses da “classe dominante”.
Por isso, num mundo onde proliferam os economistas de renome internacional, nasceu um novo colonialismo onde o que é bom para a General Motors é proclamado como coisa boa, para o mundo todo!
E, num tempo onde se multiplicam as instituições de solidariedade social, a globalização não passa por vezes (demasiadas vezes) de cocacolonizar e recolonizar os países mais pobres, ou que os Estados perderam a sua identidade, pois que é o dinheiro que tudo governa, ou ainda que o desenvolvimento tecnológico, atraente e garrido, não concorre ao termo do desemprego, ou que o Estado de Direito é uma falácia, dado que as leis são “as leis da selva”.
De facto, como se provou, não era o Iraque de Saddam Hussein a causa principal da crise generalizada que nos avassala, mas, acima do mais, a “divinização” de um sistema económico que põe a ciência ao serviço da mais flagrante injustiça social.
Aliás, para os pseudo-cientistas que nos governam, as coisas não são boas por serem verdadeiras ou não, mas por serem, ou não, vendáveis. Por outras palavras: as coisas só são boas, se dão lucro! Qualquer consideração de ordem moral não entra nas contas destes insignes matemáticos!
Não se passou do capitalismo à globalização, porque esta é a forma actual do capitalismo! Mal da humanidade se tudo isto fosse o “fim da História”. Pelo contrário: tudo isto há-de ser Passado.
De acordo com Max Weber, foi o ascetismo protestante que deu ao lucro, como fim em si mesmo, a grande motivação para se transformar no grande ídolo do nosso tempo.
O Futuro está por construir. Uma sociedade desenvolvida deverá entender-se, não em função da alta tecnologia que produz, mas principalmente sobre os benefícios dessa tecnologia para todos os cidadãos.
Sabemos bem como uma tecnologia, sem outros valores, conduz a inúmeros crimes ambientais. Cientificar não pode significar desumanizar.
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Comunhão E Libertação
A minha experiência
Lenira (CEBs Brasil)
Aprendemos com nossos erros e passos em falso, portanto aí vai a minha experiência com este movimento.
Final de 1979: Uma amiga, companheira da Pastoral de Juventude convidou-me a ir a uma reunião da assim chamada “Pastoral Universitária”; ficava numa casa que a Arquidiocese de São Paulo reservou para esse fim.
Pareceu-me interessante a reunião, os cânticos não tão diferentes. Tinham aos domingos uma celebração que coincidentemente era na capela da minha Faculdade (Santa Casa de São Paulo. As missas também não tinham nada de diferente, ou de neoconservador. O padre que liderava vivia em Itália, onde depois vi que os do Brasil, periodicamente, se deslocavam. No lugar dele, estava o P.e Gigio.
Luigino Valentini e o Vando que tinha cursado Ciências Políticas na Itália e fazia teologia na Faculdade N S da Assunção, hoje já ordenado, é vigário da paróquia Universitária da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Era de facto uma das pastorais da arquidiocese.Também me atraiu o trabalho que tinham na Pastoral de Favelas em São Mateus-Zona Leste de São Paulo.
Soube depois que, quando chegaram ao Brasil, foram para essa paróquia onde desenvolveram um trabalho de apoio irrestrito à organização popular, ao movimento de saúde da Zona Leste, e que ficou famoso por sua combatividade. Teve lá o seu ponto de apoio.
As reuniões eram feitas no salão da Igreja. Também participaram no movimento contra a carestia que, na época, organizava as compras comunitárias.Também trabalharam com a Pastoral Operária, concretamente ajudavam nos fundos de greve e nas campanhas da oposição sindical metalúrgica.
Até esta altura, achei que estava no lugar certo. Mas foi então que comecei a detectar sinais de diferença. No início do ano de 1980, houve um encontro de Teologia da Libertação, com os principais teólogos e os bispos da América Latina, adeptos da Teologia da Libertação. No ano anterior, a revolução tinha triunfado na Nicarágua e uma noite foi dedicada a ela. Chamou-se-lhe “Noite da Nicarágua”, onde estava Daniel Ortega e outras lideranças sandinistas. Nessa noite, o bispo Pedro Casaldaliga foi presenteado com um casaco do exercito sandinista. Ele disse que, vestido daquela forma, se sentia do mesmo modo como paramentado para uma missa.
Comentando isso depois, o João Carlos Petrini (hoje, bispo auxiliar de Salvador), já de volta ao Brasil, comentou: “Tão ingénuo quanto ridículo”. Semelhante comentário intrigou-me. Depois, João Carlos voltou para Itália, onde ficou durante mais tempo, por questões pessoais.
Ao Gigio, eu considerava-o muito e até hoje considero. É bastante afectivo e as suas homilias são muito interessantes. Nesse ano, intrigou-me muito o que eles chamavam de “Educação Permanente na fé”. Era baseado num livro do P.e Giusani, ainda não editado no Brasil (portanto, líamos o livro por capítulos). Achei estranho, questionei porque não usavam como texto os livros de Leonardo Boff e porquê o texto de Puebla também não era estudado? E isso ficou sem resposta.
No retiro da Páscoa, D. Paulo esteve presente e fez uma palestra muito importante para minha vida. Cerca de um mês antes, D. Romero havia sido martirizado. D. Paulo falou. Além de dizer que a morte do bispo Romero era a mesma morte de Jesus, disse também que o cristianismo não era simplesmente religião, era um projecto de Nova Sociedade, baseada na Justiça, no Amor, na solidariedade. O Gigio na sexta-feira santa, lembrou especialmente isso. E a coisa foi indo. O clima era agradável e de amizade.
Mas logo depois disso, vi que faziam críticas ao marxismo. Eu, certa vez, perguntei porque faziam isso e acrescentei: “Será que isto aqui é a TFP (Tradição Família e Propriedade, uma instituição de extrema direita) disfarçada?” Riram-se, como única resposta.
Depois do regresso de João Carlos de Itália, comecei a perceber isso melhor. Já estávamos no ano de 1981, eles trouxeram com eles um jornalista, um tal Alver, de um jornal católico italiano (que depois apurei ser de direita), o “IL Sabato”. Tinha ido a Nicaragua e, um dia, em que eu não estava presente, fez uma palestra sobre (contra) as comunidades cristãs da Nicarágua.
Alem dessas críticas ao marxismo, os textos do Giussani eram difíceis de entender. Até que chegou um sobre “autoridade”, que vi ser uma pedra fundamental para eles. O texto dizia qua a autoridade era escolhida por Deus e interpretava a sua vontade, por isso sabia o que era melhor para nós, mais até do que nós própri@s.
Não concordamos com esse texto. Continuavam as investidas contra o marxismo. Nesse mesmo ano, houve dois cursos com italianos, um com o P.e Ricci (hoje já falecido), outro com um professor de uma Universidade, chamado Francesco Botturi.
O curso de Ricci fez cair a máscara perante mim e muit@s mais. Falava sobre (contra) os países do Leste, criticando a “invasão” soviética, criticava o marxismo e dizia que se pretendia acabar com toda a visão de transcendência.
O curso de Botturi foi mais pensado, ia directo à Teologia. Criticava o que eles chamavam de “Teologia da Secularização” e também criticou muito Dietrich Bonhoeffer.
Eu não sabia, na altura, que Bonhoeffer era um mártir, vítima do nazismo, nem conhecia sua obra. Estava presente um estudante beneditino de teologia, de nome Mauro. (Faço aqui um parêntesis: a CL Comunhão e Libertação -sempre teve “namoros” com os beneditinos/as. Foi através deles que conheci o Mosteiro de Itapecirica). Creio que esse Mauro veio ao curso, por querer saber “qual era a deles”, porque tinham um discurso dúbio e também uma prática dúbia. Eu aproveitei e perguntei-lhe quem era o teólogo alemão que Botturi tanto criticava e combatia. Foi por ele que eu soube que ele era um mártir do nazismo e um precursor da Teologia da Libertação e do ecumenismo.
Disse-lhe: “Então você tem que dizer isso no decorrer do curso, ou estará a pecar por omissão”. Ele disse e Botturi ficou atrapalhado, tentou fugir à questão e disse que não questionava a pessoa, mas apenas as suas ideias, pois sabia bem o valor dele como pessoa crente.
Esse ano passou e eu e mais algumas companheiras e companheiros começámos a perguntar-nos se aquilo era a Pastoral Universitária da arquidiocese de São Paulo, ou apenas uma célula disfarçada da CL.
Na passagem do ano, fomos num grupo a Itanhaem, litoral de São Paulo, durante uns dias. Ocorreu então uma discussão que eu iniciei e não previa que iria durar tanto. Foi das 18 ate 23 horas, sem parar, todos concordararam comigo. Com uma ou duas excepções, já não me lembro bem. De volta a São Paulo, começámos um movimento para desmascarar a situação.
Eis alguns dos nossos questionamentos: Porque não se estudava a Teologia da Libertação? Porque é que eles dependiam tanto de Itália? Aquele foi por isso um ano foi de embates entre nós e eles.
Na tradicional recepção aos caloiros, muitos companheir@s ficaram em dúvida se eles estavam a convidar para a Pastoral Universitária, ou se estavam a aliciar um grupo para Comunhão e Libertação. Como eles eram submissos à hierarquia do movimento, a crise fez com que o Pe Giussani viesse ao Brasil. Na conversa com todo o grupo reunido, ele falou com todas as letras que a Comunidade, espelho da igreja, era como uma pirâmide. Para mim e muit@s companheir@s, isso foi o fim.
Passámos então a procurar os dominicanos. Pessoas como o Pe Gigio, com quem eu conversava e confidenciava muitas coisas (era diferente dos demais), disse-me que esse seria o caminho.
Nesse ano, também começámos a chamar João Carlos de “Il Duce”. Ele, aproveitando homilias, falava num tom agressivo. Antes da recepção aos caloiros, disse: “Deus vai pedir-vos contas”. Argumentando que dizíamos inverdades.
Foi então que este grupo dissidente ligou-se aos dominicanos. Pouco tempo depois, D. Paulo não mais encarregou os da CL da Pastoral Universitária, criando a Pastoral Universitária Diocesana, sob coordenação de Frei Gilberto Gorgulho, conhecido exegeta, adepto da Teologia da Libertação.
O que é mais importante e que eu omiti aqui é que eles sempre procuravam contacto com a intelectualidade e tentaram fundar uma revista chamada “O Socialismo”, juntamente com o CEBRAP, um centro de estudo de problemas brasileiros, que tinha em seus quadros Fernando Henrique Cardoso, enquanto foi senador, e Paul Singer (economista e importante quadro do PT até hoje, é também um dos autênticos que quer uma renovação no partido)
Tentaram usar a revista (que não chegou a ser fundada, pela esperteza dos intelectuais do CEBRAP) para colocar o material que recebiam do Leste Europeu, de movimentos como o “Luz e Vida”, do qual fazia parte Lech Walesa, e era apoiado pelo então Cardeal Wojtyla.
Um discurso permanente deles era que os movimentos sociais não deviam entrar na política. E até a participação no Movimento estudantil era desencorajada por eles. Mas hoje caiu a máscara e vê-se que no movimento deles, na Itália, o responsável da revista é Giulio Andreotti (político bem conhecido por escândalos de corrupção) E um importante quadro deles que “se converteu” do marxismo ao catolicismo, é deputado e foi impedido de entrar no parlamento europeu, por ser contra as uniões de homossexuais.
No Brasil, nas eleições de 1989, apoiaram Collor, ainda que sem o consenso do grupo, só da direcção do movimento.
Há ainda outros factos importantes que devem ser contados: Aquando da primeira visita de Wojtyla ao Brasil, como papa, apesar da CNBB ter estabelecido que não haveria audiências para grupos particulares, ele recebeu-os como última actividade dele num dia tumultuado.
Diria, ainda, que a queda do Leste já vinha sendo engendrada há tempos por pessoas como Wojtyla, que deslavadamente apoiou o Solidarnosc, inclusive com dinheiro. Portanto a queda do Leste não foi como muitos (mesmo dentro da esquerda dizem) pelos seus erros internos. Teve uma articulação, inicialmente “microscópica”, que aumentou aos poucos e ganhou o mundo.
Costumo dizer que a queda do Leste e a destruição da URSS se deram pela articulação: Reagan, Gorbachev e Wojtila. Isso está bem documentado no livro de Carl Berstein e Marco Politti, “Sua Santidade: João Paulo II e a historia oculta de nosso tempo”.
Passei, mais tarde, já fora do grupo, a ler esporadicamente a revista “Trenta Giorni”, traduzida em português. Vi então que seu director era Giulio Andreotti. Também li entrevistas destacadas com o então Cardeal Ratzinger, quando ainda imquisidor. Duas matérias para mim ficaram dignas de nota.
Uma intitulada “Teilhard de Chardin e o Papa Bom”, onde se referia a censuras que o papa João XXIII teria feito a livros do padre jesuíta, perseguido pelo seu antecessor. Nessa matéria, cuja chamada era uma grotesca falta de respeito, diziam alguns que a censura foi feita por uma certa comissão e que o papa não tinha conhecimento. Mais adiante citava outra fonte, segundo a qual o papa sabia e aprovava!
A outra matéria foi sobre os pergaminhos do Mar Morto e o fragmento 7 Q 5, que seria do evangelho de Marcos. O comentário: “Isso refuta a teoria modernista, segundo a qual os evangelhos foram escritos pela segunda geração de cristãos. Mas esta descoberta confirma o que a igreja sempre ensinou, que a tradição oral dos apotolos foi compilada”. Incongruências ou desfarce?
Ao lerem esse artigo, certamente verão que nele se referem a factos, como a tese de mestrado do então Pe João Carlos Petrini, sobre Comunidades Eclesiais de Base e orientada por Fr Gorgulho.
Também poderão argumentar que o seu principal quadro em Belo Horizonte, Pe Pigi (Pierluigi), foi preso pela policia, por defender os favelados. Mas essas incongruências entre prática e teoria ocorrem em todas as correntes e movimentos, dentro e fora da igreja.
A minha conclusão é esta: Este movimento CL o que mais pretende é um regresso à Cristandade. Um regresso impossível, porque o comboio da Historia não tem regresso.
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OUTRAS CARTAS
Um farol e um incómodo
E-mail. J. Machado: Caro senhor Padre “maluco”: Queira-o ou não, o senhor é um farol, mas também um incómodo (grande ou pequeno, só Deus o sabe) neste mundo que não é nada de Cristo. Por o seu mundo, o reino que prega, não ser deste mundo, não o verá com certeza nesta vida implantado. Jesus estava consciente de algo semelhante, quando o afirmou alto e bom som. É um reino impossível para a maioria de nós, humanos, incapazes de lutar por ele, embora possamos sentir, bem cá no fundo, que o deveríamos fazer. No entanto, o senhor é um farol que teima em nos inquietar, em nos interpelar, em não nos deixar dormir sossegados. O que diz, são verdades como punhos; mas nós não queremos ouvir essas verdades que põem rudemente, sem contemplações, a nu, sobretudo as nossas cobardias, as nossas fraquezas, as rotinas que nos dão segurança contra os medos que sentimos e contra os quais tanto arremete.
A sua interpretação (teórica e prática) dos Evangelhos, é um verdadeiro retrato do que se passou há dois mil anos na Judeia, como o foram (são) também os exemplos de todos aqueles que, como o senhor, levaram (levam) demasiado à risca a mesma interpretação. São exemplos que, o Sistema/Templo contra o qual tanto se bate, ignora ou trata de minimizar o mais possível pelas formas que puder utilizar.
O senhor propõe-nos uma escolha terrivelmente exigente que é, afinal, a escolha que Jesus propôs a todas/os: a escolha entre o certo e o incerto; entre o ter e o ser; entre o receber e o oferecer; entre o hoje e o amanhã; entre o poder e a renúncia; entre o eu e o próximo. Convenhamos que essa escolha é muito difícil e eu percebo porque a maioria nunca escolheu (nem escolherá) segui-lo (mais valera não ter havido Jesus!). Mas também percebo porque, apesar de tanta religião, não conseguimos fazer um mundo melhor.
Parece que a Humanidade em geral possui em si genes auto-destrutivos que a impedem de arriscar arrepiar caminho. Acredito, no entanto, que são os ainda que pequeninos luzeiros como o senhor, que vão aparecendo aqui e ali no caminho dessa Humanidade, que a têm defendido de uma catástrofe definitiva. Caro senhor Padre salutarmente, sadiamente “maluco”: Se a pequenez do meu apoio lhe servir de alguma coisa, pois ele aqui mora e que o senhor possa dizer com uma gargalhada bem-humorada, à maneira dos Gato Fedorento: E então eu é que sou o maluco?! Receba um abraço de amigo e quem sabe, um até breve.
N.D. Meu caro J. Machado
Uma agradável surpresa a sua mensagem. Uma lufada de ar fresco. Um naco de Pão e de Vinho para eu poder prosseguir viagem nesta “loucura” de viver com Causas e não como um simples cata-vento e uma simples lagartixa em forma humana. E, como reza o título de um dos meus recentes livros, sempre NA COMPANHIA DE JESUS E DE ATEUS. O Evangelho de Jesus, na versão de Mateus, diz que haveremos de ser o sal da terra e a luz do mundo. Mas também previne, noutro relato, o de João, que os homens amaram mais a Treva do que a Luz. E adianta a razão de semelhante opção contra-natura: Porque são más as suas obras.
A Ordem Mundial em que vivemos, mas sem sermos dela - parece uma contradição, mas será, é a única maneira de sermos e permanecermos humanos - não tem futuro, é demasiado perversa, assassina e mentirosa para ter futuro. Acho por isso que não sermos dela é uma boa aposta, ainda que tenhamos de viver nela. Para a fazermos implodir. Com práticas políticas sororais / fraternas e solidárias, também libertárias, e com palavras politicamente incorrectas. Querem-nos quebrar a espinha, ou de espinha já quebrada, mas haveremos de resistir e não fazer o jogo deles. Conheceremos então o desprezo deles? Mas há lá coisa mais bela do que o desprezo deles?! O Essencial é sempre invisível aos olhos. E eles, em todo o seu Poder, não vêem o Essencial. Por isso é que até o seu brilho é Treva e a sua luz cega aquelas, aqueles que a fixarem. Não vou por aí. Prefiro o Essencial. O invisível aos olhos, porque só Ele dá sentido ao meu quotidiano. Veste-me de paz. E de Ternura. A Paz e a Ternura que lhe dou agora a si, juntamente com o meu abraço. Seu, Mário
Marinha Grande. Carlos Vicente: Caro Amigo e Senhor Padre Mário. Permita-me que assim o trate. Conheço o seu Jornal Fraternizar muito vagamente. Aliás, foi na emigração na Alemanha, através do meu querido amigo José Corceiro Mendes que pela primeira vez tive contacto com o seu jornal. Ao padre Mário conheço-o da televisão e de alguns livros seus que já li. Gosto da sua escrita. Fui baptizado pela Igreja católica, mais tarde casei canonicamente e tudo somente para cumprir tradições. Aprecio os temas tratados no Jornal Fraternizar, desejo passar a receber este, daí que envio a quantia para custear a assinatura.
Estou de acordo consigo, no que diz respeito ao papel da Igreja na sua história, foi estar sempre do lado das forças opressoras. Tanto na Alemanha nazi, como na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco ou no Portugal de Salazar. A quem tiver dúvidas, como a ilustre leitora do Jornal Fraternizar, Carla, aconselho a leitura do livro de Gerald Grenn, o Holocausto, ou Fidel e a Religião, de Frei Betto, para melhor ficarmos a saber qual tem sido o verdadeiro papel da Igreja para com os mais desfavorecidos. Como escrevia o poeta António Aleixo: Morre o rico dobram os sinos / morre o pobre não há dobres. / Que Deus é esse dos ricos / que não tem pena dos pobres?
Padre Mário, se achar que vale a pena, publique esta minha opinião, pois sou daqueles que aprendeu a tempo que Deus só ajuda, se nós ajudarmos. Em criança, ouvia os homens com quem trabalhava na arte de moldar o vidro, esta canção: Não entre na igreja, o cavador / é falsa a religião de tanta canalha / os santos são de pau não têm valor / só deves dar valor a quem trabalha.
Porto. António Alte da Veiga: Nunca deixo de ler os artigos de Frei Betto no Jornal Fraternizar. Houve um período em que ele se dedicou à “poesia” e não gostei tanto. Gostei dos outros, mas nem sempre concordo com tudo o que diz, como explico adiante.
No fim da página 11 do Jornal Fraternizar de Janeiro/Março 2008, sob o título «Privatização da Revolta» fala no massacre dos indígenas da América Latina pelos colonizadores ibéricos. Há anos Frei Betto mencionou o mesmo e afirmou que o Brasil foi a última colónia americana (ou latino-americana, não me lembro) a tornar-se independente.
Quanto à primeira afirmação, seria mais justo se Frei Betto mencionasse também os colonizadores não ibéricos (ingleses, franceses e holandeses). Mas Frei Betto e muitos brasileiros ignoram a realidade total. É tão verdade que os invasores e primeiros colonizadores europeus mataram, roubaram e expulsaram os índios dos seus territórios, como é verdade que os herdeiros deles se desvincularam das metrópoles e continuam a matar, roubar e perseguir os legítimos donos dessas terras com a ajuda de novos colonizadores de diversos países.
Será que Frei Betto e todos os não índios desse continente concordavam com a independência dos brancos da África do Sul e com a sua política de apartheid? Ou concordariam com a independência “branca” das ex-colónias portuguesas na África e na Ásia? Mas foi exactamente isso que os não índios fizeram e continuam a fazer no Continente americano.
Quanto às datas de independência, é simplesmente falso. Não verifiquei o que se passou na América Central e Caraíbas, mas não é preciso ir tão longe. O Brasil tornou-se independente em 1822; a antiga Guiana Inglesa em 1966; o Suriname (antiga Guiana Holandesa) em 1975. A Guiana Francesa não é colónia o seu nome oficial é Território sob Administração de França. Salazar dava um nome mais curto às colónias: Províncias Ultramarinas. E esta Guiana Francesa faz fronteira com o Brasil. Será possível que os brasileiros o ignorem?
Para terminar, espero que ninguém veja nestas palavras qualquer sentimento contra o Brasil. Bem pelo contrário, fiz boas amizades com brasileiros que conheci no Brasil nos três anos que lá vivi e nos que vou conhecendo aqui e reconheço a cultura de alguns deles.
Escariz S. Martinho. António Machado: Caro amigo Padre Mário, se é que me permite tratá-lo assim tão familiarmente. Desde há bastante tempo que trago no meu pensamento fazer-lhe uma visita para conversarmos sobre assuntos referentes a Jesus (o de Nazaré). Eu sei que foi um homem extraordinário que só falava de coisas de Deus, mas ao mesmo tempo foi um revolucionário contra a corrupção, contra os usurpadores, contra aqueles que sugavam o sangue dos oprimidos. O seu desejo era que todos se amassem uns aos outros. Mas ninguém o compreendeu, incluindo a própria Mãe, os irmãos, os apóstolos. E todas e todos aqueles que o acompanhavam. Quando foi para a crucificação, todos fugiram e ele foi só, com os companheiros de infortúnio. Isto é um pequeno esboço daquilo que eu compreendi. Por esta razão é que eu gostava de conversar com o meu amigo para me refrescar as ideias, pois ainda há muito a dizer sobre o assunto.
Junto envio cheque para pagamento da assinatura do Jornal.
Lourosa. Arménio dos Santos: Caro Amigo, Padre Mário. Acuso-me muito sinceramente que sou um desleixado, pois o que venho fazer agora, já o deveria ter feito há já algum tempo, mas acredita, não foi nem é por me ter esquecido do nosso querido Jornal, que tanto nos estimula e alimenta a nossa Fé. Mas como há um tempo para tudo, hoje, esquecendo tudo o resto, ponho a minha correspondência em dia, incluindo o pagamento e actualização de algumas assinaturas anuais, às quais neste preciso momento estou devedor, incluindo o Jornal Fraternizar.
Faço votos para que o Espírito Santo continue a dar-te força como até aqui, para poderes continuar a tua missão como verdadeiro Apóstolo, neste País que se diz cristão, mas que o clero tão teimosamente continua a brincar com os fiéis, impondo a sua autoridade sem discriminação. E é talvez por isso que hoje vemos cada vez mais as igrejas vazias. Mas os nossos bispos e padres já se aperceberam disso. Sentem que o chão lhes está a fugir dos pés. Mas antes de abrir mão dos seus poderes, tentam reverter a situação, organizando e assistindo a Simpósios, Congressos e retiros de estudo, etc, sem surgir nada de novo, deixando durante este tempo os seus paroquianos à deriva, entregues a si mesmos.
Recebe um grande abraço dos teus amigos e companheiros que te lembram mais uma vez que, sempre que venhas para estes lados, nos faças uma visita. Temos tanto para conversar… Obrigado, Amigo.
E-mail. Marcos: Há dias veio-me à mão um famigerado Fraternizar e pensei que o sr já tinha acalmado esse ódio contra a IGREJA e sua hierarquia, mas não, continua como sempre e até talvez mais refinado. Fiz umas pesquisas na net e então vê-se bem o tempo que gasta e perde a alimentar esse ódio. Esta última crónica sobre as missas rotineiras é de rir, a Igreja deveria celebrar ao canto da Grândola e afins, não era mesmo? E padres e bispos de pistola à cinta como já se viu em países talvez admirados por si, onde o povo é esmagado e eliminado, se não se vergar ao gosto dos novos senhores. Haveria muito a dizer, mas pelo que me foi dado apreciar seria uma perda de tempo, o meu amigo cristalizou aí e então tudo contra a Igreja e nada pela Igreja, se a Igreja estiver dum lado, o sr estará do outro, pelo que vi, para si ela só tem defeitos, defeitos e mais defeitos e quem a segue e serve é um anormal, aí em Macieira da Lixa é um oásis da verdade, hei-de fazer uma visita se calhar um dia, mas antes aceite um conselho, não peça nada a ninguém para a construção do “barraco”, pois o sr pelo que parece acha que o dinheiro não é preciso, ou é só a Igreja Católica que vive do dinheiro? É mesmo de pasmar, então o sr defende o aborto?!... Olhe, só mais outra coisa, não assine e não se diga presbítero da Igreja do Porto, o sr auto-exclui-se dela, ser Presbítero é muito digno e sério.
N.D. Meu caro Marcos
A sua mensagem respira ódio e desprezo. Porquê? Não me conhece. O Fraternizar incomodou-o assim tanto? Encontrou heresias? Mentiras? Ou, pelo contrário, exigente Boa notícia, na linha da Boa Notícia de Deus, que é Jesus, o Crucificado/Ressuscitado, e na linha do Evangelho de Jesus? Quem lhe ensinou que amar a Igreja é dizer ámen a tudo o que ela faz e achar bem tudo o que ela diz/faz? Não seria isso idolatria? Não sabe que amar a Igreja é quase sempre dissentir dentro dela, sem nunca saltar fora? O que sabemos nós de amar a Igreja? Já leu as sete cartas que a comunidade que escreveu o Apocalipse dirige às Igrejas, no fim do século I? Já leu, de um fôlego, todo o capítulo 23 do Evangelho de Mateus sobre o que Jesus diz dos escribas e fariseus hipócritas? Olhe que eram oficialmente considerados os santos, os modelos para os demais, na época de Jesus e no tempo das comunidades cristãs que escreveram os Evangelhos canónicos… E, apesar disso, não estiveram eles, como grupo, directamente envolvidos na decisão de matar Jesus? O que sabe o meu caro Marcos sobre a prática de Jesus e dos profetas bíblicos? Já alguma vez parou a pensar porque mataram Jesus e quase todos os profetas? Alguma vez leu, por exemplo, o profeta Jeremias e os três livros de Isaías e reparou no que eles dizem sobre os sacerdotes e as suas liturgias no Templo de Jerusalém?
Fico surpreendido consigo. E preocupado. O que o levou a escrever-me uma mensagem assim, com tanto ódio e desprezo, só porque o Fraternizar lhe foi parar às mãos? Famigerado Fraternizar? Porque?! Diga em concreto um só conteúdo que não corresponda à verdade? Põe o dedo na ferida? E pôr o dedo na ferida para a curar não é isso amar? Ou acha que ser Igreja é coisa simples e fácil? Que basta alimentar as rotinas do dia a dia e dos ritos litúrgicos? Porque teve necessidade de me ofender e de me humilhar, se nunca esteve comigo olhos nos olhos? É crime lembrar à Igreja, da qual sou presbítero ordenado, o Evangelho de Jesus? Mas não foi para anunciar o Evangelho de Jesus que a Igreja me ordenou e ordenou os outros presbíteros como eu e os bispos?
Reflicta. Releia o que me escreveu e ponha-se na minha pele. O que lhe parece? Acha normal? O que o moveu a escrever-me semelhante mensagem?
Fico à sua disposição. Se quiser conversar, venha por aí. Sou um homem irmão universal. E nos meus 71 anos de idade, continuo a cantar: Quando for grande vou ser / quero ser como um menino / convidar prá minha mesa / quem p’lo mundo é desprezado / acabar com a pobreza / quero ser como um menino.
Dou-lhe o meu afecto e a minha paz. Mário
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