Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 170 de Julho/Setembro 2008

DESTAQUE 1

Religião (re)liga, mas em torno do Deus-Ídolo

O facto/factor Religioso (re)liga (do latim religare) os indivíduos e as populações - devido a ele, jamais passam de indivíduos a pessoas e de populações a povos - sempre em torno de um Deus que é um Ídolo que já vem desde o princípio da Humanidade, nunca em torno de Causas, as mesmas de Jesus, que têm todas elas a ver com a edificação na História duma nova Ordem Mundial ao gosto de DeusVivo. De modo que a persistência do Religioso na Sociedade é a persistência da Idolatria, o que faz de todas as Religiões a maior fonte de alienação e de doença, bem como o seu reiterado alimento. Esta revelação, sem dúvida chocante e escandalosa, é do próprio Jesus, o de Nazaré. Por isso o mataram. As palavras que escutámos na abertura do 12.º Encontro de Espiritualidade, realizado, dia 25 de Maio último, em S. Pedro da Cova, são suficientemente claras e teologicamente fundamentadas. Leiam-nas de coração aberto e com Inteligência afectiva e crítica. Debatam-nas, depois, em sucessivas conversas-com-Espírito, o de Jesus, sempre presente lá onde dois ou três, ateus que se digam, reúnem em seu Nome. É também para isso a Missão em seu Nome.

Ao chegarmos ao 12.º Encontro de Espiritualidade, a de Jesus, não uma outra qual­quer, das muitas que hoje por aí se apresentam no grande Mercado das Religiões e das Filosofi­as/Teodiceias mais ou menos preten­samente ilustradas, estamos, temos obrigação de estar, já bem conscien­tes de que não é o Ateísmo hoje ge­neralizado que nos deve afligir. Deve afligir-nos mais a persistência do facto/factor Religioso, hoje de novo aí emer­gente em múltiplas manifestações, as mais exóticas e esotéricas. Porque o facto/factor Religioso religa (Religião vem do verbo latino Religare que dá o nosso religar) os indivíduos e as po­pu­lações - mais indivíduos e po­pu­la­ções do que pessoas e povos, que ainda não chegamos a ser de verdade - em torno de Deus, só que este Deus, o do Religioso, é sempre um Deus-Ído­lo, inventado/projectado pelos nos­sos medos, pelas nossas crises indi­vi­duais e colectivas, pelas nossas frus­tra­ções, pelas nossas debilidades, pe­las nossas inseguranças, numa pala­vra, pelo que ainda há de Demente em nós, de Demoníaco em nós, de Per­verso em nós. É deste Deus-Ídolo que o facto/factor Religioso reconhece e ido­latra, que hoje vivem todas as Igre­jas convertidas em outras tantas religi­ões, todas as Religiões e todas as Filo­so­fias com as suas Teodiceias mais ou menos pretensamente ilustradas, todas e cada qual com os seus exér­citos de milhões e milhões de funcioná­rios organizados em hierarquias e em pirâmide, todos mais ou menos chulos religiosos das multidões, as quais, en­qu­anto o facto/factor Religioso se man­tiver, sempre foram/ são/serão, no sen­tir/ver/dizer de Jesus, multidões cansa­das e abatidas como ovelhas sem pas­tor. Porque, apesar de sempre serem tantos esses funcionários/pastores/sa­cerdotes/filósofos do Religioso (no tem­po de Jesus e só no Templo de Je­ru­sa­lém, eram 18 mil os sacerdo­tes!), todos são mais ou menos chulos que vivem à custa das multidões, mer­ce­nários que, para cúmulo, trabalham, alguns com invulgar generosidade e dedicação, mas para alimentarem mais e mais nas populações os medos que as faz demencialmente correr para os seus cultos e para os seus inúmeros san­tuários, quase sempre em condi­ções de total indignidade e de humi­lha­ção públicas. Destes pastores-mercenários-sacerdotes-executivos-mes­tres, diz Jesus, o do Evangelho de Jo­ão, esta coisa espantosa, escandalosa e tremendamente chocante: todos, sem excepção, existem aí para roubar, matar e destruir as populações. E não pen­sem que Jesus está louco, quando faz esta denúncia-revelação acerca de todos os chefes/sacerdotes/funcionári­os/mestres do Religioso e de todos os outros Executivos que em todas as é­po­cas e lugares, dominam as nações. Quando faz esta denúncia-revelação, Je­sus está no uso pleno da sua máxi­ma lucidez humana. O Espírito de De­us­Vivo que o habita e conduz ( = a Es­piritualidade que ele ininterrupta­mente vive) é que o faz falar assim co­mo fala, porque também o faz ver a Realidade histórica, social e humana, para lá de todas as aparências, de to­das as ideologias, de todos os discur­sos, tudo de tal modo urdido de Menti­ra, desde o princípio da Humanidade, que enganam até os próprios que, su­cessivamente têm dado, dão e conti­nua­rão infelizmente a dar corpo a es­sas funções e levam, muitos deles, por­ventura a maior parte deles, a actuar na convicção de que estão a servir/agradar a Deus. E efectivamente es­tão. Só que esse Deus ao qual servem e ao qual agradam é Deus-Ídolo Reli­gi­o­so, porventura, o mais perigoso, o mais mentiroso, o mais assassino, porque se veste de sagrado e actua em espaços que são tidos por sagrados. Além disso, são tantos e tão poderosos esses exércitos de pastores-mercená­rios-sacerdotes-mestres do Religioso e todos eles apresentam-se sempre em cenários de tanta opulência e de tanto requinte, que acabam por ter em redor deles e a seus pés as multidões cansadas e abatidas que, nessas con­di­ções de debilidade, sem dúvida a mais politicamente criminosa e cruel, não dispensam nunca, ou raramente dis­pensam, o Religioso e o Sagrado e, por isso, recorrem demencialmente ao Deus-Ídolo Religioso, com regulari­da­de, mas de onde sempre regressam ainda mais cansadas e mais abatidas, mais deprimidas, como galinhas e pa­tos depenados, despojados até do últi­mo cêntimo que porventura levavam con­sigo, como, paradigmaticamente, adverte Jesus, no Templo de Jerusa­lém, ao apontar aos seus discípulos o que sucedeu àquela viúva pobre que, com grande escândalo para ele, foi entregar ao tesouro do Templo a úl­tima moedinha que tinha reservada para com ela adquirir um pouco de co­mida que lhe matasse a fome! Pe­ran­te tal poder opressor, alienador e assassino do Deus-Ídolo Religioso, es­tu­pidamente temido/respeitado até por ateus e por todos os Executivos das na­ções, agnósticos e laicos que se digam, a denúncia-revelação de Je­sus, em seu tempo e país, como a que eu próprio, na peugada dele, hoje também faço aqui neste Encontro, não tem, eu sei, qualquer impacto nem, por­ventura, qualquer credibilidade, ape­sar de ser - digo-o sem que a voz me trema - a palavra do Espírito de DeusVivo, o pleno da Lucidez humana na História. Saibam que todos esses exércitos de funcionários do Religioso, sacerdotes, pastores, mestres, que vi­vem e enriquecem, como chulos do Re­li­gioso, são efectivamente assassi­nos, dementes, perversos, ainda que ninguém os tome por tais, muito pelo con­trário, todos os tomam até por cren­tes, por benfeitores, por sábios, por santos. Porém, tal como Jesus, também eu digo: Quem tiver ouvidos para ouvir que oiça e olhos para ver que veja!

Volto, por isso, a insistir, hoje tam­bém: não é o Ateísmo generalizado de hoje que nos deve afligir. Mas o facto/factor Religioso e a sua persistência no seio da Sociedade e no Mundo dos humanos. Porque ele é intrinsecamen­te idolátrico. Liga/religa os indivíduos e as multidões em redor do Deus-Ídolo Religioso, por isso, na Alienação, numa ininterrupta gigantesca Operação, feita de muitas e sucessivas operações, que constitui a maior das alienações e humilhações dos seres humanos e que os deixa sempre na situação/con­dição de multidões cansadas e abati­das como ovelhas sem pastor, a vida inteira, a correr para os cultos, para os templos, para os santuários, des­gra­çados e humilhados pagadores de promessas, ludibriados pelo canto de se­reia dos pastores e dos sacerdotes que não passam de profissionais da mentira, da exploração mais descara­da, hipocritamente, disfarçados de vir­tu­osos e de santos, homens de Deus, só que do Deus-Ídolo Religioso. Foi esta Idolatria religiosa, esmagadora­mente dominante em todos estes sé­culos de Cristandade Ocidental, que fez as chamadas descobertas e con­quis­tas e, através delas, levou ao resto do Mundo então conhecido toda esta De­mência/alienação religiosa católica e protestante, mediante a Cruz e a Es­pada. E com a Bíblia como suporte ideológico, justificadora de todos os seus nefandos crimes, porque lida sem­pre por eles, não a partir de Jesus, co­mo sempre deverá ser, mas apenas a partir do facto/factor Religioso, já presente, de outras formas e de outros modos culturais, em todos os povos, todos ainda hoje por Evangelizar, por isso, todos caídos na Idolatria do Deus-Ídolo Religioso. Com estes três instru­mentos - a cruz, a espada e a bíblia obs­cenamente interpretada - foram de­pois enviados e ainda hoje continu­am a ser, sucessivas levas de missio­nários, sacerdotes, técnicos, mestres, executivos do Religioso, do Deus-Ídolo Religioso, todos eles devida e previa­mente instruídos/formatados por verda­deiras lavagens ao cérebro, tal como sempre se faz aos soldados de um qual­quer exército imperialista, nesta Mentira e todos, uns mais, outros me­nos, fervorosos praticantes desta Ido­latria, prontos até a dar a própria vida por ela e pelo seu Deus-Ídolo Religio­so, nunca pelos povos oprimidos, es­cra­vizados, explorados, assassinados por Ele, e para junto dos quais foram, são, enviados. Foi esta a primeira Glo­ba­lização da História, não menos per­ver­sa que a que hoje está aí cada vez mais emergente, também ela assas­si­na, genocida, ecocida, a do Deus-Di­nhei­ro, mais ainda que a do Deus-Ído­lo Religioso. Inclusivamente, foi essa primeira Globalizção do Deus-Ídolo Religioso que serviu de alfobre à ger­minação da nova Globalização emer­gente do Deus-Ídolo Dinheiro e que está, esta última, cada dia que passa, a tornar-se o Monstro, a Besta que nos descriará a todas, todos, a menos que consigamos sustê-la e decapitá-la a tempo, coisa deveras difícil de se con­se­guir, tão enfeitiçados que andamos hoje (quase) todos com ela. Porém, nun­ca esta outra Globalização teria acontecido sem aquela. Somos con­tem­porâneos da emergência em força deste novo Ídolo, o Deus-Ídolo Dinhei­ro e sua Globalização, que tem nos Exe­cutivos das nações, da direita e da esquerda, nas universidades, mesmo católicas, nos grandes media, nos e­xér­­citos do Império e dos seus múlti­plos países satélites (Portugal deveria ter vergonha, mas ainda se orgulha de ser um deles, e dos mais subservi­en­tes!), os seus mais dedicados servi­dores, hoje, não mais analfabetos co­mo os antigos reis, mas todos eles Executi­vos intelectualmente desenvol­vi­dos/formatados pela Ideologia do Deus-Ídolo Dinheiro, por isso, desen­vol­vidamente dementes, não desen­vol­vi­damente sapientes. A Mentira/Ido­latria está de tal modo bem urdida e é apre­sentada de modo tão ilustrado, que nem sequer os ateus tradicionais, que o são do Religioso e do seu De­us-Ídolo, se apercebem dela. E, embo­ra continuem aí, em número cada vez maior, convictos ateus do Deus-Ídolo do Religioso, são quase todos fanáti­cos adoradores do Deus-Ídolo Dinhei­ro, senão mesmo, os seus principais Executivos à frente das nações, os seus principais intelectuais orgânicos, os seus principais sacerdotes, os seus principais cientistas, economistas, ban­queiros, administradores das gran­des empresas multinacionais, os seus principais jornalistas e até os seus principais bispos residenciais e os seus principais párocos, estes últi­mos - bispos residenciais e párocos - na medida em que insistem em ser per­severantes praticantes do Religioso que (re)liga os indivíduos (não confun­dir com pessoas) e as populações (não confundir com povos nem com co­munidades) à volta do Deus-Ídolo Re­ligioso inventado pelos medos e pelas carências de toda a ordem desses mes­mos indivíduos e dessas mesmas populações, sem nunca se atreverem - esses bispos e párocos - a converter-se ao DeusVivo, o de Jesus, e nem nunca se atreverem a ser seguidores e prosseguidores de Jesus, o da plena Lucidez Humana, muito menos se atre­verem a prosseguir as suas mes­mas Causas, as suas mesmas práticas políticas, económicas e afectivas mai­êuticas, os seus mesmos combates teológicos em forma de duelo, numa palavra, a sua Missão de Evangelizar os pobres e os Povos, tão belamente sintetizada pelo Evangelho de Lucas 4, por ocasião da apresentação do seu programa político do Reino/Rei­nado de Deus, seu Pai/Mãe, o Abbá.

Por isso, digo/advirto e não me can­sa­rei de repetir/advertir: Hoje, o Ateísmo do Deus-Ídolo Religioso só por si não chega. Quando o único De­us-Ídolo glo­bal era o do facto/factor Re­li­gioso, católico, protestante ou ou­tro qual­quer, ser ateu já era ser sufi­ciente­mente subversivo e conspirativo. Daí os ateus de então serem persegui­dos e excluídos, mortos. Mas hoje, com a emergência em força do novo Deus-Ídolo, o Deus-Ídolo Dinheiro, é preciso mais, muito mais do que o Ateísmo do Deus-Ídolo Religioso. É preciso o A­teísmo do Deus-Ídolo Dinheiro. E para isso, nada melhor do que ousarmos abrir-nos à mesma Fé de Jesus e vivê-la à século XXI. Durante estes séculos de Cristandade Ocidental que foram sé­­culos de Idolatria, a do Deus-Ídolo Religioso e que as Missões católicas e protestantes ajudaram a levar ao res­to Mundo - foi a primeira Globalização da História, a do Deus-Ídolo do Reli­gioso - até a Fé de Jesus foi sempre e propositadamente confundida com Religião, a católica, primeiro, e depois também a Religião protestante, nas suas múltiplas Igrejas, mais que mui­tas! E Jesus sempre foi propositada­mente confundido com um mítico Cristo, depressa convertido no Deus-Idolo mai­or dessa Globalização do Religio­so. Tudo Idolatria religiosa! Por isso é que, ao surgir a nova Globalização, a do Deus-Ídolo Dinheiro, chegou-se a escrever que havíamos chegado ao fim da História. Daqui em diante, não haveria mais nada de novo, sempre seria mais do mesmo, apenas muda­ri­am as embalagens onde se envolvia o mesmo produto. Esta afirmação que correu mundo e acabou por ser rapi­da­mente interiorizada pelos indivíduos e pelas populações que, assim, nunca chegam a ser pessoas nem povos, é, porém, a mais rotunda e a mais descara­da Mentira que tem de ser denunciada/desmascarada. E já está a ser. Também aqui, neste nosso pequenino Encontro de Espiritualidade. Porque, em vez de irmos por ela, voltamos - e é imperioso que muitas mais pessoas e os povos o façam também - a olhar Jesus, o de Na­za­ré, a quem os da Religião, do Poder-Império e do Dinheiro trespassaram, de­pois de o terem assassinado na Cruz deles, assim como é imperioso que vol­te­mos a olhar a sua Espiritualidade (pa­ra isso nasceram estes Encontros, lem­bram-se?!). À medida que o fizermos, sempre na escuta do Espírito de De­usVivo, não do Deus-Ídolo do Religi­oso, descobriremos progressivamente que, ao longo destes séculos de Cristan­da­de, até a Fé de Jesus e a sua via ou caminho, feita de práticas políticas, eco­nó­micas e de partilha de afectos foram sequestradas pelo Religioso, pelo Deus-Ídolo Religioso que este sempre inventa /cria/alimenta. E descobriremos igual­mente que até Jesus, sob o apelido de Cristo, que ele nunca aceitou que lhe atribuíssem, pelo menos, em sentido da­­vídico, acabou guindado à categoria de Deus, o maior da Religião católica e das Religiões protestantes, nascidas no século XVI e todas elas filhas bastar­das da Religião católica, não filhas do Espírito de Jesus e de DeusVivo, que não gosta que elas façam dele o funda­dor de uma nova Religião. Tudo isso é Ido­latria religiosa que DeusVivo vomita, porque leva sistematicamente os indiví­duos e as populações a ser-viver per­ma­nentemente cansadas e abatidas co­mo ovelhas sem pastor.

Hoje, neste século XXI e no início do terceiro milénio depois do nascimen­to de Jesus, começamos finalmente a descobrir, mais ainda do que as primei­ras comunidades que, no século primei­ro, reuniam em seu nome, a Fé de Jesus (não confundir com Fé religiosa em Je­sus, como sempre fizeram e continuam a fazer a Religião católica e as Religi­ões protestantes, com maior incidência ainda para as recém-criadas). Descobri­mos também que a Fé de Jesus não é Religiosa, mas política, pois abre-nos ao DeusOutro, o do Reino, não o do Tem­plo ou do Religioso, por isso, o De­usVivo que até nem gosta de Religião, antes a combate ferozmente como Ido­latria, pois em todas as suas manifesta­ções, qual delas a mais demente e ab­surda, (re)liga os indivíduos e as popu­la­ções em torno de um Deus-Ídolo cruel, que até sacrifícios humanos exige. Ora, DeusVivo, o da Fé de Jesus, do que verdadeiramente gosta é de práti­cas políticas, económicas e afectivas maiêuticas que nos fazem crescer em ser e liberdade, em sabedoria (não em demência) e em maioridade huma­na (não em medo e infantilismo), por­que Ele é Espírito, mais íntimo a nós do que nós próprios, e só em espírito e verdade quer ser adorado, por isso, só com práticas das do tipo que aca­bei de enunciar, no prosseguimento das mesmas de Jesus, o seu Filho mui­to amado. Estamos apenas a começar a (re)descobrir e a viver esta via políti­ca (nunca confundir com Poder, sem­pre demoníaco e demente) de Jesus, nos antípodas do facto/factor Religioso. Percebemos, com Jesus e a sua Fé política, não religiosa, que o que nos liga e religa, não é o Deus-Ídolo Reli­gioso, com os seus templos, altares e sa­cerdotes/pastores, mas são os afe­ctos partilhados, as mesas partilhadas, os combates teológicos em forma de duelo contra o Deus-Ídolo Religioso e contra o Deus-Ídolo Dinheiro, duran­te os quais se pode perder até a vida, mas só depois de se ter perdido primei­ro o bom nome, a honra, o respeito e até um lugar ao sol. Porque o Deus-Ído­lo Religioso e o Deus-Ídolo Dinhei­ro, ambos hoje fortemente globalizados e unidos como um só, e servidos por exércitos de Executivos, do Papa de Roma a Bush (não esquecer a recente viagem de Bento XVI aos EUA, com os seus encontros altamente secretos!), do Oriente ao Ocidente, e por exércitos de militares sofisticadamente armados, não perdoam que os desmascarem co­mo o Perverso Organizado, a Demên­cia Organizada, o Assassínio Organiza­do, a Mentira Organizada que efectiva­mente são. Como, de resto, em seu tem­po e país, já não perdoaram a Je­sus, o de Nazaré.

Como chegarmos à mesma Fé de Jesus e às mesmas práticas políticas maiêuticas de Jesus? Escolher/decidir li­vre­mente ser pobre, isto é, não-rico, e por toda a vida, é a primeira condi­ção essencial. Sem esta opção/escolha essencial, nada feito. O relato que os três Evangelhos Sinópticos fazem do Homem Rico é eloquentemente exem­plar! Sem esta opção/escolha essen­cial, não passaremos de palradores, pa­pagaios, com discursos porventura muito ilustrados, mas estéreis ou mes­mo perversos, uma vez que, apesar deles, as nossas vidas continuam car­re­gadas de privilégios, de lugares de honra e de prestígio, de cátedras pres­ti­giadas e bem remuneradas, que o De­us-Ídolo Religioso e o Deus-Ídolo Dinheiro sempre garantem a quem os serve sem condições, à direita ou à esquerda do Poder. A outra condição essencial, mas que já decorre desta primeira e só é possível depois de vi­ver­mos a primeira, é estarmos dispos­tos a protagonizar como Jesus, os mes­mos combates teológicos que ele pro­ta­gonizou, em forma de duelo, o que pressupõe enfrentamento e conflito, mas, pelo menos, do nosso lado, sem­pre desarmado, à maneira de cordei­ros no meio de lobos, para, com eles, desmascararmos o Deus-ìdolo Religio­so e o Deus-Ídolo Dinheiro e todos os seus truques, todas as suas mentiras, todas as suas perversões, todas as suas seduções. Se formos por aqui, aca­baremos, como Jesus, por ter quase todo o Mundo contra nós. Até os ateus tradicionais do Deus-Ídolo Reli­gioso, adoradores devotados do Deus-Ídolo Dinheiro. Senão de forma activa e cruenta, a outra ainda mais martirial que esta, e que se traduz no mais com­ple­to desprezo de quase todo o Mun­do. Mas é assim que contribuiremos, na nossa fragilidade e na nossa (in)si­gni­ficância, para que o Mundo avance para o Humano integral que é a Maiori­dade Humana, a ser vivida na Sorori­dade/Fraternidade Universal, sem a exclusão de ninguém, inclusive, dos que assim nos (mal)tratam. Só quando aí chegarmos como Humanidade glo­bal, é que os indivíduos passam a pes­soas e as populações passam a Povos, Filhas/Filhos muito amados de De­usVivo, o Abbá, como Jesus, o de Naza­ré, que nos precedeu nesta Maiorida­de Humana e se constituiu no Caminho ou Via política para lá chegarmos!

A Missão de que fala Jesus e para a qual nos envia, às, aos que partilha­mos da sua mesma Fé política, não religiosa, é por aqui que vai. E só po­de­rá ser protagonizada por Mulheres/Homens que pratiquem estas duas con­dições essenciais que acabei de enunciar, e por toda a vida. Sempre como cordeiros no meio de lobos. De cidade em cidade. De casa em casa. Até ao extremo do Mundo. Está aberto o diálogo entre nós. A palavra é, a par­tir de agora, de todas e cada uma, todos e cada um, cada qual na sua vez. Quem avança?


Missões sem Missão

Jornal Fraternizar não resiste a partilhar aqui a intervenção sobre A MISSÃO HOJE, que calou fundo na consciência e no coração de quantas, quantos participámos no 12.º Encontro de Espiritualidade. Vai tal e qual ela ficou, depois de posteriormente enriquecida com o que de melhor foi dito por outras intervenções que a precederam. Eis.

1. Nestes 20 séculos de Igreja e de Cristianismo não jesuânico, Cristia­nis­mo religioso não jesuânico, o que, infelizmente, mais temos feito em termos de Missão é tudo ao contrário do que Jesus fez, como enviado (= apóstolo, missionário) do Pai/Abbá! Espalhamos por toda a parte o culto do Deus-Ídolo Re­ligioso e o Império. Submetemos tiranicamente os povos. Roubamo-los. Ex­ploramo-los. Reduzimo-los cinicamente à servidão e à escravidão. Foi tudo Crime, horrendo Crime e, para mais, sem qualquer castigo. Pelo contrário, um Cri­me até aplaudido e tido como Civilização! É ainda isto que continua a fazer a generalidade dos missionários, cató­licos ou protestantes, nas chamadas Mis­sões. Todas elas Missões sem Mis­são, a de Jesus. Todas elas Missões con­tra a Missão, a de Jesus. É também o que continuam aí a fazer as chamadas novas Igrejas evangélicas, com desta­que, entre nós, para as de fala brasilei­ra, a do Reino de Deus, por exemplo, ou portuguesa, como a autodenomina­da Igreja Maná, do autodenominado Bispo Tadeu. Todas estão aí, vão/vieram para roubar, matar e destruir o que há, e que não diga com os interesses delas. Todas vieram/vão para impor o Ociden­te, o Deus do Ocidente, que é o Deus-Ídolo Religioso, a Idolatria do Ocidente, com todo o seu cortejo de crimes, de pre­potência, de guerras, de ódios, de im­perialismo, de moralismo, o mais cras­so e o mais humilhante. Chegam, ins­talam-se e instalam os alicerces da nova sucursal da empresa multinacional religiosa que os enviou/envia e, pouco depois, já estão a baptizar e a fazer no­vos prosélitos, a troco de nada, de ilu­sões, de mentiras. E também de amea­ças, algumas eternas, qual delas a mais terrorista. Com isso, aumentam as esta­tísticas da sua Empresa multinacional religiosa. E com o aumento das estatís­ticas, vem também o aumento do poder, da influência da instituição/empresa mul­tinacional religiosa que os envia. Podem chegar sem nada junto dos po­vos para onde vão, mas, passados anos, já têm lá um pequeno império em ca­sas, quintas, templos ou igrejas, semi­ná­rios, escolas, paços episcopais, ca­te­drais, rádios, canais de televisão, até aviões privativos. E até se permitem dividir o território onde se instala(ra)m em dioceses e paróquias, à frente das quais colocam hábeis gestores/admi­nis­tradores, com voto de pobreza e de obediência que mais e mais enrique­cem a instituição. Quantos mais prosé­litos fizerem, mais visibilidade / notoriedade terá a instituição/empresa multinacional religiosa que os enviou. E mais poder, mais influência, mais prestígio, mais contribuintes, mais dízi­mos, mais oferendas dos fiéis, mais dinheiro sujo para ser lavado, mais be­nefícios fiscais por parte dos Executivos das nações onde actuam e com os quais sempre se entendem às mil ma­ra­vilhas (as excepções a esta regra só a confirmam!). À chegada, metem-se, para mais facilmente entrar e ser acei­tes, a fazer caridadezinha de todo o ti­po e, com isso, mais ofertas e mais do­nativos recebem dos países do Oci­dente, arrancados aos clientes que frequentam os cultos idolátricos das Igre­jas-mãe que os enviaram como mis­sionários “ad gentes” (entenda-se, aos que ainda não pertencem à nossa Em­presa/Instituição multinacional religio­sa). Não tenham dúvidas: É um negócio altamente rentável. E quase sempre isen­to de impostos! Ninguém, obvia­men­te, lhes chama assim, mas a verdade é que as tradicionais Missões pouco mais são do que outro nome para dizer em­presas multinacionais do Deus-Ídolo Re­ligioso, que crescem à custa da Idolatria que promovem e praticam, em múltiplas frentes, de geração em geração.

2. Jesus, o de Nazaré, fez exacta­mente o contrário: fez-se itinerante (é o que quer dizer a expressão evangélica “não tinha onde reclinar a cabeça”), andava de terra em terra, de povoação em povoação, mas sempre sem bolsa nem alforge e nem sequer tinha duas túnicas! Dava de graça o que havia re­ce­bido de graça. E, quando, pouco tem­po depois de ter iniciado publicamente a Missão, passou a ser um Enviado/Mis­sionário/Apóstolo marcado para morrer, até à clandestinidade teve de recorrer, para poder aguentar-se mais tempo a subverter e a conspirar, isto é, a libertar consciências, brutalmente oprimidas e a despertar autonomias, brutalmente re­pri­midas, o grande objectivo da Missão que lhe competia como Enviado do Pai/Abbá. Tanto assim, que aquela que é cha­mada a última ceia ou a sua Páscoa, teve de ser realizada na sala empresta­da duma casa, e tudo na mais rigorosa das clandestinidades - nem o grupo dos Doze sabia onde seria! - porque os ini­mi­gos dele e da sua Missão eram mais do que muitos e todos muito influentes e poderosos e dispunham de riqueza bas­tan­te para pagar a traição até de algum dos Doze. Na vivência da Missão de Enviado do Pai/Abbá, Jesus começou pobre e pobre acabou, aliás, até mais pobre do que quando começou. Na cruz, até das suas roupas foi despojado e viu-as ser repartidas entre os seus pró­prios algozes. Morre, melhor, é as­sas­sinado na maior das ignomínias, não na maior das glórias, como, por exem­plo, o papa João Paulo II, a Madre Tere­sa de Calcutá, ou Chiara Lubich, a fun­dadora dos Focolares.

3. Com as populações ou multidões, Je­sus não trabalhou nunca para as levar a frequentar mais assiduamente o Templo e a Sinagoga, os cultos, a prática da Religião dos antepassados. Trabalhou afincada e incansavelmente para as tirar do Templo e da Sinagoga, locais que ele viu como de Humilhação das pessoas, onde a toda a hora e de todos os modos era difundida a ideolo­gia dominante do Deus-Ídolo Religioso que mantinha as populações subjuga­das e humilhadas, paralíticas, cegas, surdas, mudas, mais mortas que vivas, como abundantemente relata/revela qual­quer dos quatro Evangelhos canó­ni­cos, mas que as catequeses das Igre­jas nos têm levado interesseiramente a interpretar sistematicamente como doentes físicos, quando do que se trata é de indivíduos e de multidões total­men­te subjugadas pela Ideologia do Deus-Ídolo Religioso. Como hoje dize­mos em bom português, indivíduos e populações totalmente apanhadas por dentro e desde dentro! E com as quais Jesus se relacionou em proximidade e afecto, e tudo fez para as tirar de vez do Templo e da Sinagoga, porque o Deus que lá se invoca(va) e ao qual se presta(va) culto era (é) Deus-Ídolo, nada mais. A religião unia (une), ligava (liga) o povo, mas na alienação, na hu­mi­lhação. Sair dela e do Templo onde ela tinha lugar com toda a pompa e cir­cunstância, era como, séculos antes, ter saído/fugido do Egipto dos faraós, classificado pelo livro do Êxodo como “casa de opressão”. Era, por isso, o pri­meiro passo a dar por parte dos indi­víduos e das populações, para cada um deles e delas, finalmente começar a ser pessoa, a ser gente, a ser povo de povos. Jesus nunca quis ter prosé­li­tos, nem nunca fez prosélitos. Quis mulheres e homens livres. Autónomos. Inclusive, dele próprio. Ele era como a parteira junto das populações. Para que elas fossem pessoas e se assumis­sem na História. Como se ele não exis­tis­se. Fossem pessoas ocupadas, não com ele, nem com os cultos religiosos do Templo, mas com os outros que ainda iam na via da Mentira/Idolatria do Templo e da Sinagoga e, por isso, viviam oprimidos, infantilizados, repri­mi­dos, tolhidos, mais mortos do que vi­vos. Os debates teológicos e as práticas políticas maiêuticas eram o seu forte. Quase sempre duélicas, de tão radicais e de tão libertadoras. Poucos, muito pou­cos se abriam a esta sua via. A es­ma­gadora maioria preferia a seguran­ça e o bom nome que o Religioso e o seu Deus-Ídolo, sobretudo, o Religioso dominante sempre garante numa terra, nomeadamente, numa aldeia, numa rua, num pequeno país. Seguir pela via política maiêutica que Jesus vivia e pro­punha era igual a desligar-se/libertar-se - o contrário do que faz o Religioso - da família, dos vizinhos, do povo, sem­pre que a família, os vizinhos, o po­vo não iam/vão por aí e prefere man­ter-se na tradição dos seus antepassa­dos. Ir pela via Jesus era passar a viver em Deserto no meio dos demais. Era assumir o mesmo estatuto dos margina­li­za­dos, dos leprosos. Era ligar-se a eles e ser um deles. Era ligar-se aos pe­cadores e ser considerado um deles. Era ligar-se aos sem-honra e ser um deles. Era ligar-se aos Ninguém e ser um deles. Era ligar-se aos de má fama e ser um deles. Ganhava-se em liberda­de/maioridade humanas, exactamente o que se perdia em alienação/religião/idolatria, segurança, bom nome, apoio fa­miliar, apoio da vizinhança. Quase sempre quem aderia a Jesus e à sua via acabava expulso da Sinagoga e do Templo, da família, como os leprosos, e conhecia na pele o desprezo dos vi­zinhos. Tornava-se um maldito. O relato teológico que o Evangelho de João (ca­pítulo 9) inspiradamente concebeu e escreveu sobre o homem que nasceu cego - todas, todos somos este homem - e que, no contacto com Jesus, ficou a ver - já poucos de nós aceitamos che­gar a este patamar de desenvolvimento humano, de maioridade mental e exis­ten­cial, preferimos ficar sempre iguais à maioria dos outros, dizer amen com todos, manter-nos integrados no Sistema e tirar proveito disso, arranjar bons empregos para os filhos ou filhas, man­ter boas relações com o senhor abade, reproduzir os discursos do papa e do bispo diocesano, mesmo que eles di­gam o contrário do Evangelho, agradar aos de cima, em todas as áreas, aos que mandam no burgo, enfim, sermos po­li­tica­mente correctos - é paradigmá­tico do que sucede ao Enviado/Missio­nário do Pai/Abbá e ao que acolheu a Boa Notícia dEle que o Enviado teste­mu­nha e vive, sempre que a Missão é feita ao mesmo jeito de Jesus. Acabam ambos expulsos. Mas o Enviado que está na origem de todo aquele levan­ta­mento que transforma os indivíduos em pessoas humanas livres e as guin­da ao estado de maioridade, sem mais necessidade de tutores, de sacerdotes, de intermediários, de ritos, de Ídolos, de Lei manipulada por minorias esper­ta­lho­nas, fica, desde logo marcado pa­ra morrer!

4. Já a Igreja do princípio, em Jeru­salém, fez tudo, ou quase, ao contrário do que Jesus pretendia que fosse feito pelos que se tinham na conta de seus dis­cípulos e seguidores, e que ele pró­prio havia paradigmaticamente feito no país, até à hora de ser executado/as­sas­sinado. Tiago, irmão de Je­sus, que nem sequer andou com ele, pelo con­trá­rio, sempre foi contra ele (cf. Marcos 3, 20-21; 31-35), veio logo a correr, de­pois que começou a ver que nem tu­do tinha acabado com a morte do ir­mão, reivindicar os seus direitos de her­deiro e de líder do Movimento que nas­cia e prosseguia em nome de Jesus. E não é que conseguiu ficar mesmo como o chefe incontestado da primeira Igreja de Jerusalém? Nesse papel, foi logo meter-se no Templo, esse mesmo que Jesus destruíra simbolicamente e que havia classificado para sempre como “covil de ladrões”. E, com Tiago, tam­bém estavam Pedro e João, o mesmo é dizer, todos os do grupo dos Doze! Valeu-nos, nesta ocasião, e para o fu­tu­ro da preservação da Fé/via política maiêutica de Jesus e da Boa Notícia de DeusVivo que ele é e nos deu a co­nhecer, a pequenina Comunidade je­suânica que reunia também em Jeru­salém, mas clandestinamente, na casa de uma tal Maria, não a de Jesus, então ainda associada à Igreja liderada por Tiago - só mais tarde é que ela dará a sua integral adesão a Jesus e integrará as comunidades jesuânicas que estão na origem do Evangelho de João - mas a de João Marcos. Foi nesta comu­nidade que nasceu o Evangelho que leva o nome de Marcos, o mais antigo dos quatro Evangelhos canónicos e o que melhor nos diz quem é Jesus e que tipo de práticas maiêuticas re­alizou, todas marcadamente políticas, não religiosas. E foi também esta pe­que­nina Comunidade, não reconhecida e até perseguida pela Igreja liderada por Tiago, que acabou por Evangelizar ple­namente Pedro, libertá-lo definitiva­mente da prisão que era a Ideologia/Re­ligião do Judaísmo, o Deus-Ídolo Re­ligioso e a Igreja não jesuânica, lide­rada por Tiago (cf. Actos, primeiros capítulos).

5. O próprio Paulo, que é habitual­mente olhado como o grande apóstolo da Missão junto dos não-Judeus, ou Gen­tios, levou anos e anos a difundir o Judaísmo na sua versão farisaica, de que era um dos líderes mais carismáti­cos e zelosos/fanáticos. As três viagens apostólicas que realizou e que Lucas re­lata com bastantes pormenores no Livro do Actos, ainda são todas feitas por este Paulo mais fariseu do que se­guidor de Jesus e da via política maiêu­tica de Jesus, o de Nazaré, que ele nun­ca terá conhecido, apesar de con­temporâneo dele. Era ainda o Paulo mais do Templo de Jerusalém e da Si­na­goga do que da via política maiêutica de Jesus, a quem o Templo e a Sinago­ga expulsaram e mataram, em conluio com o Império de Roma. Lucas, nos A­ctos, não esconde esta dolorosa reali­dade. Nós é que ainda a não soubemos ler, detectar, condicionados que esta­mos, quando lemos esse Livro, por sé­cu­los e séculos de Cristandade e de ca­tequeses manipuladas sempre a di­zer-nos o contrário. Só mesmo no final da terceira viagem apostólica, é que Paulo finalmente se fez todo de Jesus e da sua via política maiêutica, não re­ligiosa. Nessa altura, tornou-se tão pe­rigoso, subversivo e conspirativo quan­to Jesus e por isso o Império romano não lhe perdoou tão radical conversão, com tudo de Novo Começo, de Novo Nascimento, não de Lei, de Religioso, mas de Espírito de DeusVivo. E logo o matou à espada. De nada lhe valeu, nes­sa altura, ser cidadão romano! Po­rém, já então nem o próprio Paulo se importou com isso. Quando experimen­tou toda a originalidade, toda a Boa Notícia do DeusVivo, o de Jesus, toda a força libertadora da via política de Jesus, deixou de vez o Deus-Ídolo Religioso, do Templo e da Lei e passou até a considerar tudo isso como ester­co. Até o Templo de Jerusalém. Até a Lei de Moisés. Pois bem, é já muito des­te Paulo jesuânico que escreveu a Car­ta aos Gálatas, o mais espantoso mo­nu­mento à Liberdade e à Maioridade humanas, objectivo último da Missão, tal como Jesus a protagonizou e quer que a prossigamos até aos confins do Mundo. Não para fazer prosélitos. Mas para, como parteiras, ajudarmos a dar à luz seres humanos livres e em estado de maioridade, autónomos, sujeitos, se­nhores dos próprios destinos.

6. Valeu-nos, entre os homens, Mar­cos, e, entre as mulheres, Maria Ma­dalena. Sem ele e sem ela, provavel­mente, ainda hoje seríamos seguido­res da Lei de Moisés, da Religião Judai­ca reciclada e cristianizada. Que é o que ainda hoje é a nossa Igreja católica romana: um misto de Judaísmo reci­clado/cristianizado (o Antigo Testamen­to, no seu pior) e de Paganismo religio­so do Império romano, com os seus múl­tiplos cultos politeístas idolátricos, com destaque para o culto da Deusa Virgem e Mãe, chamada sempre de Nossa Se­nho­ra (= Nossa Deusa), na multiplicida­de das suas imagens, qual delas a mais inestética e dos seus múltiplos títulos, tantos quantos as habituais situações de aflição e de debilidade das popula­ções cansadas e abatidas como ove­lhas sem pastor, aos quais, no século XIX e no início do século XX, foram acres­centados, na Europa, mais dois, com as respectivas imagens, o de Nos­sa Senhora da Imaculada Conceição e o de Nossa Senhora de Fátima, o pri­meiro, registado em França contra a Ilus­tração e a Modernidade, o segun­do, registado em Portugal contra a Re­pública e o novo regime saído dela em 1910, e que se atrevera a separar a Igre­ja católica romana do Estado e a despojá-la das suas riquezas acumula­das e concentradas! Saibam que a Igre­ja católica romana, na pessoa dos seus Bispos e dos seus Párocos católicos, mente com quantos dentes tem na boca - direi isto nem que seja ao próprio Papa - quando diz que todas as ima­gens de Nossa Senhora e todos estes títulos que as populações não evangeli­za­das lhe atribuem são de Maria, a de Jesus. São exclusivamente da Deusa Virgem e Mãe dos cultos do Politeísmo religioso do Paganismo, muitos deles, anteriores vários séculos ao próprio nas­cimento de Maria. De resto, uma tal catequese, para lá de descarada menti­ra, constitui também um insulto a Maria, a de Jesus, essa mesma que o Evange­lho de Lucas nos apresenta a cantar o DeusVivo que derruba os Ídolos (= poderosos) dos seus tronos/altares e levanta até à liberdade e à maioridade os Humilhados por eles.

7. A Missão, hoje. Só vale, se pros­seguir a Missão de Jesus, o dos Evan­ge­lhos canónicos, com destaque para o de Marcos e o de João. O de Marcos, porque o mais antigo e o mais próximo do vivido e dito por Jesus, onde trope­çamos a cada parágrafo com as mai­êu­ticas práticas políticas, económicas e de afectos partilhados de Jesus, que também havemos de fazer nossas, ani­mados pelo mesmo Espírito de De­usVivo que o animou a ele. O de João, com os seus debates teológicos, quase sempre duélicos, feitos a partir de prá­ticas maiêuticas, radicalmente liberta­do­ras e até provocados por elas, que sempre levam os indivíduos e as popu­la­ções a deixarem de vez o Deus-Ídolo Religioso, a Idolatria, e a tornarem-se pes­soas humanas e povos livres em estado de maioridade, com DeusVivo, que é Espírito, dentro delas e deles e mais íntimo a elas e a eles do que elas próprias, eles próprios, inteiramente responsáveis pela História, como se Deus não existisse. E, pelo menos, no tocante ao Deus-Ídolo Reli­gioso, efecti­va­mente não existe, é apenas fruto dos nossos medos e das nossas inseguran­ças, aflições e fragilidades! Os outros dois Evangelhos, o de Mateus e o de Lucas, embora reproduzam muito do de Marcos, também já “corrigem” ou adocicam o que ele tem de mais radical e de humanamente mais chocante. Re­presentam, por isso, o início da traição feita a Jesus, o de Nazaré e à sua via política maiêutica, não religiosa, e que a Igreja católica, com Constantino, con­cre­tizou e, depois da queda do Império romano, levou ao extremo. O desvio, no início, pareceu insignificante, mas depois de todos estes séculos de Cris­tandade, vemos quanto ele tem de mons­truoso. Acabou por transformar Jesus num mítico Cristo e num deus mais, entre os muitos míticos deuses dos cultos do Paganismo religioso e, de­pois, no único Deus-Ídolo Religioso, quando todos os outros foram oficial­men­te proibidos e banidos. E fez mais: Ao ver que não conseguia acabar/banir da vida das populações os ancestrais cultos em honra da mítica Deusa Virgem e Mãe, nos seus múltiplos títulos e nas suas múltiplas imagens, proclamou que todas essas imagens e todos esses tí­tulos se referiam exclusivamente a Ma­ria, mãe de Jesus, e com isso, fez dela não mais a Mulher que acabou por dar a sua plena adesão a Jesus e à sua via política maiêutica, nas comunidades que escreveram o Evangelho de João, mas a mítica “Mãe de Deus” do Paga­nismo, na qual estão contidas todas as míticas deusas, e que até manda em Deus, não obviamente, o DeusVivo, o de Jesus, mas o Deus-Ídolo Religioso, como mãe dele que é! Puro Paganismo. Pura Idolatria.

8. A terminar, digo: uma Revolução Teológica é preciso. Jesus, o de Naza­ré, fê-la, iniciou-a, viveu-a. Por isso mes­mo foi assassinado e com um géne­ro de morte, a mais ignominiosa. Hoje, não há Missão a valer, se não for para prosseguir a Revolução Teológica que Jesus fez, iniciou e protagonizou. O ter­ceiro milénio espera por ela como de pão para a boca. E será ela que fará a Humanidade sair da Idolatria, hoje, também e sobretudo, do Deus-Ídolo Dinheiro, para chegar à liberdade e à maio­ridade, coisa que nunca aconte­ce­rá, enquanto a Idolatria se mantiver, porque a Idolatria sempre oprime, humi­lha, infantiliza os seres humanos. Com ela, só o Deus-Ídolo cresce e os seres humanos diminuem, até se tornarem les­mas, coisas, capacho dos Ídolos, dos Poderosos, dos sacerdotes, dos pasto­res e dos outros Executivos das nações e das grandes empresas. Ou, até de um simples caciquezito qualquer, lá da aldeia onde as populações vivem con­de­nadas a ter de diminuir, proibidas que estão pela Idolatria de crescer em sabedoria e em graça, em liberdade e em maioridade! É hora!


DESTAQUE 2

Jantar Partilhado casou Cristina e Isidro

E tudo aconteceu na maior das simplicidades. Como sempre deveria ser entre os seres humanos. No decurso de um jantar, na sala da Casa da Comunidade, depois de um dia normal de trabalho profissional, tanto dos próprios nubentes, como dos seus familiares mais próximos que tudo aceitaram com naturalidade e alegria. Também fui convidado pelos nubentes, na minha dupla qualidade de amigo e de presbítero da Igreja do Porto sem ofício pastoral oficial. A minha presença fez a diferença e deu realce ao Sinal. Leiam. E, em lugar de se escandalizarem, cantem com Andreia Cristina e Isidro este Dia que o Amor fez!

Desde a noite de sexta-feira, 28 de Março 2008, que Andreia Cristina, de Macieira da Lixa e Isidro, de Pedrei­ra, duas freguesias do Concelho de Fel­gueiras, estão a viver os primeiros dias e as primeiras semanas do seu casa­mento ou matrimónio, realizado por eles no decurso de um modesto Jantar em Família, na Casa da Comunidade que é simultaneamente a casa de Maria Laura e dos seus três filhos, dos quais Andreia Cristina é a filha mais nova, ain­da que já com 25 anos de idade. O acto, realizado com a simplicidade e a verdade que os grandes momentos da vida humana, para o serem verdadei­ra­mente, sempre devem ter, não contou com a presença de nenhum represen­tan­te do Poder, nem o Eclesiástico, nem o Estado, cada qual o mais intrometido e o mais opressor, gerador de súbditos/senhores e de oprimidos/opressores, aves­sos ambos, cada qual ao seu jeito, à existência de mulheres e de homens em estado de liberdade, senhores dos próprios destinos, cidadãos políticos de corpo inteiro, a viver na História e a cui­­dar dela, como só pessoas livres o poderão fazer, nunca pessoas súbditas e mantidas em estado de infantilismo, ora agressivo e violento, ora subalterno e capacho, mas sempre encobridor e até descriador do que há de melhor nos seres humanos. Também estive pre­sente, a convite de ambos, como amigo dela e dele e na minha condi­ção de presbítero da igreja do Porto, despojado, como todos os presbíteros e bispos da igreja deveríamos ser, de todo o Poder, por isso, simplesmente companheiro e irmão de todas, todos. Um convite que os dois me fizeram, 48 horas antes, no decurso de uma singela visita à casinha onde resido, nas proxi­midades da casa da Comunidade. Qu­an­do os vi entrar pela minha cozinha, onde tinha acabado de jantar e estava a dar por terminada a lavagem da lou­ça, calculei logo que, com ela e com ele, vinham aí boas notícias, concreta­mente, o feliz anúncio de um Novo Co­meço de vida a dois, uma espécie de Nova Criação. Semanas atrás, Andreia Cristina já me havia dado sinais de que, um qualquer dia, não muito distan­te, seria o Dia de ambos iniciarem a sua vida a dois, no primeiro andar da casa da Mãe dela, já preparada por eles e com o dinheiro do seu trabalho, para esse fim. E já nessa altura ela me tinha dado a entender que tudo haveria de ser assim como agora acaba de a­contecer, na máxima simplicidade e na máxima verdade, realizado apenas na presença dos Pais dele e das suas duas irmãs solteiras que vivem ainda lá em casa com os pais, e na presença da Mãe dela e dos seus dois irmãos, um ainda solteiro e a viver na mesma casa, e o outro, o mais velho dos três, neste momento, a viver numa casinha aluga­da nas redondezas, mas quase sempre lá em casa, como se dela nunca tivesse chegado sair, e que, dada a diferença de idades que os separa - mais de dez anos - foi na vida de Andreia Cristina o irmão mais velho que fez quase de se­­gundo pai, sobretudo, depois que à­que­le, ino­pinada­men­te, aconteceu a sua definiti­va ressurreição, era ela ain­da menina. As respectivas companhei­ras de cada um dos dois irmãos também vieram e igualmente a avó Isaurinha, que sempre esteve presente, desde o nas­cimento, no processo de crescimen­to de Andreia Cristina. Surpresa das sur­presas, inclusive para Andreia Cris­tina, mas que muito a alegrou, foi a pre­sença, de todo inesperada, inclusi­ve para mim, de um casal de reforma­dos, Ambrósio e Lurdes, muito amigos da casa e meus, bem como do Barrac­ão de Cultura, a erguer-se ali mesmo ao lado, os quais souberam, mesmo sobre a hora, do Acontecimento que iria ter lugar naquela noite e deixaram tudo, apesar dos 76 anos dele e da doença dela que já a dificulta de andar, para estarem também presentes e, as­sim, registarem em DVD, coisa em que Ambrósio é perito, este Momento único e irrepetível na História, que não ape­nas na vida de Andreia Cristina e de Isidro. Para Andreia Cristina e Isidro, o dia 28 de Março 2008 em que tudo aconteceu, foi uma sexta-feira de traba­lho, em tudo igual aos outros dias da semana, ela, como insubstituível ani­ma­dora num ATL, com crianças, na mai­oria problemáticas, ele, como ope­rário de construção civil, numa empresa (quase) familiar. Vieram, cada qual à sua hora, e pelos próprios meios, dire­cta­mente do trabalho para aquele que seria e foi o último Jantar das suas vidas de namorados de há oito anos e o primeiro Jantar de casal que, durante ele, ambos iriam começar a ser, no en­tranhado amor que os faz ser um-para-o-outro, um-com-o-outro, e ambos-pa­ra-os-demais. Quando chegaram, a fe­licidade vinha estampada nos seus ros­tos. Traziam com eles, cada qual ao seu jeito, mais efusiva, ela, mais reser­va­do, ele, a alegria e a festa, junta­men­te com o espanto geral das compa­nheiras e dos amigos a quem haviam comunicado a notícia do passo que iri­am dar nesse Jantar e nessa Noite. Nun­ca tal se vira e ouvira dizer por es­tas redondezas. A sociedade em que nas­cemos e vivemos está tão formatada pela Hipocrisia e pelo Faz-de-conta, que nem consegue entender a Simpli­ci­dade e a Verdade, quando alguém, para mais ainda jovem, decide recusar ir por aquelas postiças atitudes e prefere avançar por estas, tão sauda­vel­mente carregadas de Humano, de Autenticidade e de Fecundidade. Eu próprio me surpreendi com tamanha Sim­plicidade e tamanha Verdade. Não que eu as não procure viver também todos os dias e as não proponha como modo de viver a toda a gente que o quei­ra ser, mas por ver que Andreia Cris­ti­na e Isidro se me/nos revelaram capazes de irem também por aí, numa decisão que é inteiramente de ambos, ainda que também fruto de uma liberta­dora e maiêutica educação que, nome­a­da­mente, no caso de Andreia Cristina, já vem desde o ventre materno e que, desde os seus quatro anitos, foi sucessi­vamente reforçada pelo ambiente da Co­munidade que ela passou naturalmente a respirar e que fez dela a Mu­lher livre e acolhedora que hoje já é e que virá a ser cada vez mais, depois desta Decisão já consumada. No caso de Isidro, o tempo foi menor, durou tan­to quanto os anos de namoro, vivido muito ali pela Casa da Comunidade e muito próximo daqueles dois ou três de que fala o Evangelho de Mateus que se reúnem em nome de Jesus e por is­so a constituem. Assim como no inte­rior da Associação AS FORMIGAS DE MACIEIRA, da qual ambos são associa­dos e, neste momento, inclusive mem­bros dos corpos gerentes. Efectivamen­te, são as Práticas que nos fazem. E quando estas são Práticas libertadora­men­te alternativas às práticas dominan­tes, fazem-nos progressivamente mu­lhe­res e homens alternativos, sinais vivos numa Sociedade geralmente feita de Cizentismo e de Mais-do-mesmo, sem lugar para o Novo, para o Impre­visível, para a Originalidade, numa pa­la­vra, para a Liberdade Criadora de ca­da vez mais Liberdade. Quando am­bos me convidaram a estar presente e a participar activamente no Jantar, Andreia Cristina e Isidro sublinharam que esperavam de mim que ajudasse a explicitar todo o sentido profundamente humano contido nesta sua De­cisão de darem início, de modo com tanto de invulgar quanto de simples, à sua vida a dois, distante dos represen­tantes do Poder, e exclusivamente na intimidade da Verdade e do Amor que, quando praticados, nos fazem verda­dei­ramente humanos. O jantar seria, por isso, só por si, o Grande Sacramen­to ou Sinal que os tornaria uma só Car­ne para a vida do Mundo, Mulher e Ho­mem indissoluvelmente unidos, sempre no total respeito pela Originalidade que é cada qual e há-de continuar a ser. Obviamente, que aceitei logo ali - tive de desmarcar outro compromisso para esse dia e para essa hora - e dis­se-lhes que a minha presença seria sim­ples­mente como a da parteira na re­lação que mantém com a mulher em trabalho de parto. Para que tanto ela, An­dreia Cristina, quanto ele, Isidro, fos­sem, nesse Jantar, plenamente su­jei­tos, porque assim haveriam de pro­gres­sivamente ser pelo resto das suas vidas. Alegrei-me com esta Decisão de ambos, porque só uma Decisão assim proporciona àquelas, àqueles que a protagonizarem a possibilidade de se afir­marem em todo o seu esplendor, sem jamais ficarem reféns de nada nem de ninguém. Porque só esta Liberdade Pra­ticada faz mulheres, homens livres e, por isso, progressivamente huma­nos, responsáveis, criadores, solidários, numa palavra, militantes políticos, bem nos antípodas do Poder. A Sociedade, de tão oprimida e subjugada que tem es­tado ao longo dos séculos que sem­pre foram de perversa Cristandade, con­tinua ainda hoje a sentir grande di­ficuldade em entender uma Decisão co­mo esta e apressa-se, até, a sair a ter­rei­ro para condenar quem a vive e quem se atreve a protagonizá-la, ape­sar da fragilidade dos seus corpos e das suas vidas. Inclusive, chegam a ser ainda muitos - para não dizer, a maio­ria - os que, na sobranceria da sua igno­rância e da sua condição de súbditos e de integrados no Sistema dominante, apressam-se a dizer que uma Decisão como esta de Andreia Cristina e de Isi­dro não tem valor, não é reconhecida pela Sociedade, é como se não existis­se. Na sua cegueira, esses muitos não conseguem ver a Luz que PASSA numa Decisão como esta e que os libertaria e faria deles finalmente humanos, se a aceitassem e passassem a ser capa­zes de outro tanto. Mas como, infeliz­mente, ainda hoje são a maioria da So­ci­edade, julgam-se, para sua vergonha, na posse da verdade. Nem sequer vê­em quão súbditos são do Sistema e da Ideologia dominantes. Muito menos vê­em que essa sua verdade, porque é fru­to do Sistema dominante, mais não é do que Mentira, a Mentira Estrutural que os impede de chegarem a SER mu­lheres, homens em plenitude. Por sua vez, os que mandam no Mundo tão pou­co reconhecem o valor duma Deci­são como esta e riem-se dela e de quem a protagoniza, ao mesmo tempo que tu­do fazem para a descredibilizar. Pre­ci­sam inclusive de a diabolizar, para que, assim, a Mentira deles e do seu Sis­te­ma dominante continue a passar por verdade e o Poder deles não seja nun­ca atacado na raiz. Agem assim, porque são cegos, guias cegos, e cau­sadores de cegueira. Só que o Futuro que vence o Tempo, o Efémero, jamais está ou estará com eles. Está, sim, é com mulheres e com homens como An­dreia Cristina e Isidro que, na sua fragi­li­dade, ousam ser elas próprias, eles próprios, e avançam nas suas vidas co­mo sujeitos que são, não como súbdi­tos que, antes de avançarem, pedem li­cença aos seus senhores, os do Po­der. Fôssemos todas, todos assim, como Andreia Cristina e Isidro, e o Mundo se­ria outro no espaço de uma geração. O Poder cairia de podre, porque nem sequer teria quem se dispusesse a dar-lhe corpo. E, se houvesse quem lhe des­se corpo, não haveria, entre os huma­nos, quem lhe desse ouvidos e acatas­se as suas ordens. É manifesto, nos dias que correm, que os ventos continu­am a soprar fortes, mas da banda do Poder, não da banda da Liberdade, co­mo seria desejável e saudável. E por isso a Decisão de Andreia Cristina e de Isidro ainda mais impressiona e mais fascina. Que Força, que Sopro, que Energia os atravessa, para ela e ele serem/agirem assim? E com uma alegria e uma paz e uma naturalidade que me espantam, mesmo a mim, e me dei­xam profundamente comovido e edi­ficado. Nem ela nem ele estarão ainda plenamente conscientes do Sinal em que se constituíram, ao avançarem com esta sua Decisão. Mas esta é uma Deci­são que tem dentro a Força de Mudar o Mundo, tem muito de Nova Criação e este nosso Mundo só não se torna ou­tro, já, porque a Luz, que esta Deci­são é, brilha na Treva e a Treva está tão organizada em Sistema que logo faz tudo para a abafar e apagar. Mas nin­guém pode apagar o Relâmpago que brilhou na noite de breu e de tem­pestade. A sua duração foi brevíssima, no Tempo, mas mostrou para todo o sempre que a Treva não é tudo, muito menos é o Essencial. Somos filhas, fi­lhos da Luz e é para a Luz que avançamos, apesar da Treva. O duelo entre a Luz e a Treva é martirial e, nele, a Luz sempre acaba por perder, mas pa­ra mais depressa chegar a ganhar o Futuro. Andreia Cristina e Isidro vão, a partir de agora, conhecer a Oposição, a Crítica, a Murmuração, a Difamação, a Excomunhão de muitos. Conhecerão também - já estão a conhecer - a Sim­pa­tia, a Ternura, o Afecto, a Alegria, a So­roridade de alguns. Mas é, graças sobretudo, a estes poucos que abrire­mos as portas do Futuro que se quer de mulheres e de homens livres, sujei­tos, criadores, sororais/fraternos, ami­gos, companheiros. Súbditos, não. Nun­ca! O Jantar correu num clima de des­con­tracção e de festa, sem ruídos e sem excessos. Em ambiente de amena conversa. A Mesa foi Partilhada. A pró­pria Andreia Cristina e o Isidro fizeram questão de suportar a despesa maior. Para não ficarem pesados nem à Mãe dela, nem aos Pais dele. Foi um Jantar, suportado pelo fruto do seu próprio tra­ba­lho. A Dignidade não podia ser mais bem explicitada. Digam lá, se não have­mos de pôr aqui os olhos e aprender­mos com este novo Casal que nasceu Ca­sal num verdadeiro Sacramento, fei­to mais de Atitudes do que de palavras, e de nenhum Rito, apenas os gestos com que a vida se diz e se faz todos os dias. As palavras, foram sobretudo mi­nhas. E as mais decisivas, logo a abrir o Jantar. Depois, também durante a sobremesa. Aqui, e já depois de tudo o que havíamos vivido em conjunto, disse-lhes, em jeito de improviso, que, na­quela Noite, eles iriam ficar com a Casa toda só para eles. A Mãe de An­dreia Cristina e o irmão que, a partir des­te Jantar e desta Noite, têm o novo Ca­sal a partilhar da mesma casa, nessa Noite iriam dormir em casa de Amigos. Maria Laura, por exemplo, foi com o casal Ambrósio e Lurdes, para a sua casa numa freguesia de Matosi­nhos e passou com eles todo o fim-de-semana. Quando isto, ouviram, Andreia Cristina, especialmente, mostrou-se sur­pre­endida com semelhante decisão anunciada. Aproveitei, então, para lhes lembrar e sublinhar que, com esta deci­são, todas, todos nós o que queríamos é que eles, na sua Primeira Noite como Casal e de estreia do seu Quarto Nup­cial, pudessem estar inteiros um com o outro, sem o mínimo constrangimen­to. Porque - e sublinhei esta minha afir­ma­ção ainda com maior ênfase - o A­mor Ma­trimonial tem duas dimensões, am­bas essenciais: a dimensão Erótica e a dimensão Política, as quais ela e ele sempre haverão de viver intensa­men­­te. Acrescentei que, quanto mais vi­verem intensamente a dimensão Eró­tica do Amor, mais viverão intensa­men­te também a sua dimensão Política. Pu­de ver, nos olhos de ambos, que en­ten­­deram a Boa Notícia e que a acolhe­ram como sua. E, por isso, será assim que serão Mulher e Homem, uma só Carne para bem da Humanidade. Já as palavras que lhes disse, antes de ini­ciarmos o Jantar, levei-as escritas. Havia-as escutado durante a tarde des­se mesmo Dia, para as partilhar com ela e com ele e com quantas, quan­tos estávamos ali com eles. É com estas pa­lavras que termino esta Cró­nica teológica, escrita em forma de E­vangelho ou Boa Notícia de Deus, o de Jesus. Eis:

Este não é um Jantar qualquer, nem esta é uma Noite como as outras noites. Este não é um Jantar como os que fazemos todas as outras noites, aqueles, aquelas de nós que ainda te­mos o que comer, porque, como sa­beis, hoje há aí muitos milhões de pe­ssoas - homens, mulheres e crianças (também crianças, ouviram bem?!) - que não che­gam sequer a fazer uma re­feição por dia. E são deste nosso Mundo glo­balizado, este nosso Mundo de poucos muito, muito ricos e de mui­tos muito, mui­to pobres, pior, empobre­cidos pelos poucos muito, muito ricos. E esta Reali­da­de humana e mundial - a Realidade! - nem mesmo nesta Noite havemos de a esquecer, apesar deste Jantar não ser um jantar como outro qualquer e desta não ser uma Noite como as de­mais noites. E até por isso. É também por este não ser um Jantar como outros quais­quer, nem esta ser uma Noite co­mo as outras noites, que até eu estou aqui convosco, a pedido de Andreia Cristina e de Isidro, para fazer bem a diferença. Uma diferença que há-de fa­zer deste Jantar um Sinal, mais um, nesta aldeia/freguesia de Ma­cieira da Lixa, uma aldeia que é mais do que um simples espaço geográfico, desde que na década de setenta do sé­culo XX, passou por aqui e permane­ceu por uns tempos, cerca de três anos, um So­pro ou Espírito que não tinha nem tem nada a ver com o sopro ou espírito re­li­gioso que ainda continua a dominar a Humanidade, mesmo aquela grande parcela que se diz secular e até ateia. Esse Sopro ou Espírito é o mesmo que, um dia, pudemos ver em Jesus, o de Na­zaré, o Homem mais Homem que al­gu­ma vez a Humanidade conheceu e que a marcou, para o bem e para o mal, para sempre. Porque ele era, é e será sempre o Grande Sinal de Contra­di­ção, aquele que fez, faz e fará a Di­ferença e que partiu a espinha à O­pres­são e ao seu Sistema Homicida e Men­tiroso. E também a fez, quando, na referida década de setenta, passou e morou aqui. De modo que esta aldei­a, sem dei­xar de ser o que era, espaço geográfico do Concelho de Felgueiras, pas­sou a ser também um “Lugar Teo­ló­gi­co” de um Deus, o de Jesus, que - vejam lá! - não gosta de Religião, mas de Política, de Práticas Políticas maiêu­ticas, gosta de Cultura, de Afectos Partilhados, de Práticas Políticas que a­bram os olhos da Mente aos Pobres, levantem os Caí­dos, façam andar os Pa­ralíticos, numa palavra, levem as Pes­soas e os Povos a organizar as suas vidas com total e tal autonomia, que nem elas nem eles precisem de benfeitores, de intermediá­rios, nem se­quer de Deus, muito menos de santas, de santos, de templos e de santuários. E é ainda esse mesmo Sopro ou Espí­rito, o de Jesus, que sempre faz a Dife­rença, que esta Noite também nos con­gre­ga e anima neste Jantar Matri­mo­­nial, Nupcial. Deixemo-lO andar aqui à solta e veremos com os nossos próprios olhos, os da Mente, e ouviremos com os nossos próprios ouvidos, os do coração, como Ele faz a Diferença, para alegria de todos nós que aqui estamos, e de muitas, muitos mais que vão saber deste Acontecimento. Andreia Cristina e Isidro são os protagonistas deste Jan­tar e desta Noite. Um Jantar e uma Noite Sinal de Contradição, na conti­nua­ção do que Jesus é. Nunca mais Ma­cieira da Lixa será como antes, de­pois desta Noite e deste Jantar. Nem o Viver de An­dreia Cristina e de Isidro, nem o nosso próprio viver que testemu­nha este A­contecimento serão mais como antes. O Casamento que ambos como um só estão a fazer Acontecer aqui esta Noite, durante este Jantar e com este Jantar - é apenas o começo, porque o Casa­men­to é para ser feito por eles durante todos os outros dias das suas vidas - é o Grande Sinal que faz a Diferença nes­ta Terra e que a con­firmará como o “Lugar Teológico” que ela já é, desse Deus Vivo e Outro que nunca ninguém viu nem verá, mas cujo Rosto sempre podemos ver em Je­sus, o Crucificado/Ressuscitado e nos Pobres. Sabeis bem, Andreia Cristina e Isidro, que não sou eu quem vos ca­sa. Sois vós próprios que vos casais. Eu sou aqui como a par­teira, vós como a mulher grávida em tra­balhos de parto. Sois vós o Sujeito desta Acção, deste Acontecimento único e irrepetível na História. É por isso que o Pároco não faz aqui falta nenhuma. Nem o Tem­plo paroquial. Nem os Ritos, nem os Rituais que lá se fazem para manter as populações subjugadas e opri­midas. Vós sois os Sujeitos desta Acção. Este é por isso o primeiro Dia do resto das vossas vidas! Hoje, 28 de Março 2008, é o Primeiro Dia do Ano Um das vossas vidas. Deixais definitiva­mente o Pai/a Mãe, a Família de cada qual. Não, no afe­cto, evidentemente, mas na Depen­dên­cia. Cortais definitiva­mente o cor­dão umbilical. Constituís-vos neste Jan­tar e nesta Noite, Nova Família, não para continuardes a fa­mília que dei­xais, mas para começar­des tudo de no­vo. Sois uma Nova Cria­ção. Uma Nova Família, com o Sopro/Espírito de Jesus, por isso, não religio­sa, mas política, No­va Família aberta ao Mundo, particular­mente ao das Ví­timas, hoje mais do que muitas, e não na linha da Caridadezi­nha, mas na da Libertação para a Li­ber­dade, na linha da Cultura, das práti­cas políticas mai­êuticas, como quem ajuda a fazer sair de dentro das pesso­as as capacidades que lá estão ador­me­cidas, ou até já mortas. Alegremo-nos todas, todos, por Andreia Cristina e por Isidro. Os dois, como um só, aqui estão, depois de um dia de trabalho nor­mal, sem vaidades de nenhuma es­pé­cie, vestidos com a Sim­plicidade e a Ternura, com a Ale­gria e a Transpa­rên­cia de uma menina, de um menino ainda sem manhas, en­feit­ados com o Sorriso que lhes salta do mais fundo das suas vidas e dos seus corpos. Lon­ge das Hipocrisias dos Templos e dos Santuários. Ambos, co­mo um só, estão a dizer-nos, com esta sua lúcida e co­ra­josa Decisão, que já alcançaram a­que­la maioridade que mui­tos doutores, engenheiros e ho­mens de ciência e mui­tos eclesiásticos nunca chegaram a alcançar em toda a sua vida, porque efectivamente nunca chegaram a cortar com o Religioso, pa­ra serem Mulheres, Homens como se Deus não existisse. E a prova de que alcançaram já essa Mai­oridade é este Passo assumido por inteiro, tanto por ela como por ele, co­mo se fossem um só. Só mesmo pesso­as desta estatura, desta sabedoria, des­ta lucidez, desta au­dácia é que são capazes de dispen­sar o Pároco, a Pa­ró­quia, o Templo pa­ro­quial, o Rito, o Ri­tual, o Poder eclesi­ástico e o Poder do Estado que o cha­mado “casamento ca­nó­nico” ou “pela Igreja” torna pre­sente, precisamente, no Acto Matrimo­nial que sempre deve­rá ser a expressão maior da Liberdade e da Ma­turidade de quem o faz e que, assim, para quem ainda vai por ele, aca­ba por ser a expressão maior da Me­noridade, da Submissão! Todas es­sas coisas po­dem ter tido o seu lugar, na vida das pes­soas e dos povos, mas apenas no tempo da Menoridade, do Infantil, do Me­do de Deus e dos Se­nho­res seus pre­tensos representantes na terra. Não, quando se chega à Maioridade. Olhai que já S. Paulo o viu e no-lo disse, na sua Carta aos Gála­tas! Vós, Andreia Cristina e Isidro, com este vosso Passo, reali­zado deste modo tão simples e tão humano - por isso, tão cheio de Verdade e de Graça - dais prova de que já alcan­çastes definitiva­mente a Maioridade e por isso estais aqui a dá-lo como se só vós existísseis, de resto a única ma­neira de alguém po­der ser todos os dias para os demais. Bem-vindos, pois, a bordo, nesta Via­gem da Maioridade por onde já navego também, há muitos a­nos. Sabei que a na­vegação pode ter momentos encape­la­dos, tempestades, oposições, tsuna­mis, ataques, incompre­en­sões, injúrias, desprezos. Tudo su­por­tareis, alegres e desarmados, como pessoas que vêem o Invisível, o Essen­cial, como pessoas em estado de maiori­dade que agora sois. Para sempre! É por isso imensa a minha alegria por vós! E convosco. Valeu a pena ter nascido e vindo ao Mundo e ser ordenado pres­bítero da Igreja do Porto, dissidente q. b. na Igre­ja e não fora dela, só para agora viver este Momento convosco, para ver este Dia. Este é o Dia que o Amor fez! Um Dia que vai durar, enqu­an­to durar a vossa vida na História, um Dia feito de muitos dias e de muitas noites, mas sem Ocaso, porque até o Ocaso, quando vos acontecer por impe­rativo dos anos já vividos, será ainda um Novo Começo, a Explosão maior e definitiva por que passareis para serdes o que hoje já sois, mas ainda como em semente, só depois em plenitude, como o Rio no Oceano! Este é o Dia que o A­mor fez e que nos reuniu aqui. É o Amor que nos faz estar aqui com o que somos e temos de melhor. Parabém, Andreia Cristina! Pa­rabém, Isidro! Pa­ra­bém, Maria Laura, a Mãe de Andreia Cristina e, desde ago­ra, mais irmã e com­panheira de vida, do que mãe. Pa­rabém, Francisco, Pai de Andreia Cris­tina, agora já definitiva­mente ressusci­ta­do e por isso ainda mais presente aqui entre nós. Parabém, Maria Amélia, a Mãe do Isidro. Para­bém, Manuel Ale­xan­dre, o Pai de Isidro. Parabém, irmãos de Andreia Cristina! Parabém, irmãs de Isidro! Parabém, Isau­rinha, avó materna de Andreia Cris­tina! Este é o Dia que o Amor fez. Nesta convicção, nesta Alegria, nesta Comu­nhão, demos então início ao Jantar, o Jantar que o Amor fez. E que será o Jantar que nos faz também e que a Vós, Andreia Cristi­na e Isidro, Vos faz uma só carne, um só Projecto para a vida do Mundo, um Viver a dois como um só Viver; um Jantar que Vos faz Mulher e Homem em estado de Maioridade pa­ra Alegria e Libertação da Humanidade que aco­lher este Vosso Sinal. Coma­mos e bebamos ale­gre­mente com An­dreia Cristina e com Isidro, dois como um só, em indissolúvel unidade e na Ori­ginalidade de cada qual. E, pela vida fora, sempre que nos apetecer, cantemos, em memória desta Noite, es­ta quadra que hoje escrevi e aqui vos deixo: “Casar pela Igreja” é sinal / de submissão ao Poder / Fazei do Casar Rebeldia / Chegareis ambos a SER.


EDITORIAL

Só práticas políticas maiêuticas, não o Poder, salvarão o Mundo

Isto só lá vai com Política, com prá­ticas políticas e económicas maiêuticas. Nunca lá vai com Poder, o Poder, seja de Esquerda, seja de Direita. Mas Polí­tica e práticas políticas e económicas maiêuticas exigem Pessoas e Povos, não apenas indivíduos e populações. Ora, o que hoje temos são indivíduos e populações. Pessoas e Povos nem por isso, são muito raros. A Política é tam­­bém coisa rara, como são raras as Pessoas e são raros os Povos. Mais raro ainda, são as Práticas Políticas e Económicas maiêuticas. Estas têm tudo a ver com Jesus, o de Nazaré, e com o Espírito de DeusVivo, o de Jesus. O Poder não as suporta e tudo faz para as neutralizar, matar, crucificar.

A for­ma mais sibilina que o Poder en­controu para o conseguir sem que ninguém lhe vá à mão é confundir-se com a Política. É o Poder, mas faz-se passar por Política, como se os dois substantivos fossem sinónimos e não antónimos. De modo que a única distin­ção possível, ainda que totalmente arti­ficial e virtual, é falar-se em Poder de Esquerda e em Poder de Direita. Já a Política nem é de Direita nem de Es­quer­da. É simplesmente Humana e cós­mica. Ocupa-se e preocupa-se com os seres humanos, ainda em fase de criação, com os seres vivos em geral, ainda e sempre em transformação, com a Terra e com o Cosmos. Também com o Universo, no seu todo, ainda em expansão. O Poder, pelo contrário, ocu­pa-se e preocupa-se apenas consigo mesmo. É intrinsecamente perverso. O Demoníaco. O que há de mais Demen­te na Inteligência humana. Ao passo que a Política é o que há de mais Sapi­ente na Inteligência Humana.

Desde que o Poder conseguiu con­­vencer toda a gente, até os intele­ctu­ais mais ilustrados, que entre Poder e Política não há diferença, que ambos são dois substantivos para dizerem a mesma realidade, nunca mais os indi­ví­duos alcançam a sua plena dimen­são de Pesso­as Humanas, nem as po­pu­lações al­can­çam a sua plena dimen­são de Povos. São Objectos. Coisas. Números. Estatística. Nunca Sujeitos. Nunca um Eu perante e em relação com outros Eu, até ao ponto de todos juntos fazermos um Nós. São apenas Coisas. Números. Objectos. Estatística.

Temos de regressar à raiz das palavras. À fonte de onde todas elas brotam. Ao Sopro que as faz ser. Poder, na raiz que lhe dá o ser, é Men­tira e pai de Mentira. Poder é As­sassínio. Onde estiver activo e opera­cional, sempre infantiliza. Diminui. Hu­milha. Aliena. Imbeciliza. E, finalmente, mata. Tanto faz ser de Direita como de Esquerda. O Poder, todo o Poder é De­moníaco, na sua raiz, é o que há de mais Demente na nossa Inteligência. É a Demência-em-acção. Política, ao contrário, é, na sua raiz, a mais nobre de todas as actividades dos seres hu­manos. É o que há de mais Sapiente na Inteligência humana. É a Excelência do Humano. A Política é o outro Nome de DeusVivo, o de Jesus. Dizer Deus Criador é o mesmo que dizer Política-em-Acção, Sapiência-em-Acção. Foi a Política-em-Acção que é o Amor, que é o DeusVivo, que é o Deus Criador, que, um dia, nos fez Acontecer, no de­curso da Evolução. A nossa Mãe / o nos­so Pai é a Política, o Amor Criador, a Fecundidade. Já o Poder é o Demo­níaco, o Ídolo, o Anti-Deus, a Descria­ção-em-Acção.

Bem sei que estou praticamente sozinho nesta Batalha, neste Combate. Porque as minorias ilustradas com o que sempre sonham, e hoje ainda mais do que ontem, é com o Poder, é com serem Poder. Nem que percam a vida nessa refrega. E, se forem um pouco me­nos egoístas, um pouco mais altruís­tas, sonham ser Poder bom, Poder ami­go dos Oprimidos e dos Empobrecidos. E do Ambiente. São os mais perigosos dos ingénuos. Porque ainda pensam que pode haver Poder bom, Poder ami­go dos Oprimidos e dos Empobrecidos. E do Ambiente. Desconhecem que todo o Poder, da Direita e da Esquerda, é homicida, é assassino e, se for preciso, é também genocida e ecocida. Não só mata alguns indivíduos, mas também populações inteiras, cidades inteiras, continentes inteiros. Bem como a pró­pria Natureza. É o que quer dizer geno­cida e ecocida.

Todo o Poder, da Direita e da Es­quer­da, é perverso. Porque todo ele tem por pai a Mentira. Na origem do Po­der, de todo o Poder, está sempre a Idolatria descria­do­ra dos seres hu­manos e do Mundo. Socieda­des geri­das pelo Poder - todas hoje o são, até as Igrejas que deveriam ser outras tan­tas frátrias/sororidades vivas, Mesas Partilhadas, Comunhão de Iguais na máxima afirmação das diferenças que nos unem a todas, todos - são socie­dades mortas, humilhadas, subjuga­das, violentas, revoltadas, endemoni­nha­das, inumanas, regidas por meca­nis­mos que progressivamente nos descriam, até nos reduzirem a Coisas, Objectos, Números, Estatística.

Temos de morrer para este Para­digma do Poder, para mais, hoje global e sem qualquer Oposição à sua altura. Neste Paradigma, ninguém se salva, isto é, ninguém chega a ser plena­men­te Humano. Tornamo-nos todos progressivamente Coisas, Objectos, Números, Estatística. Temos de emi­grar, rapidamente e em massa, do Po­der para a Política. Ao Poder, havemos de decapitar, sem piedade. Só a Polí­tica (nos) salva, isto é, humaniza os seres humanos e o Mundo. Mudar de Paradigma é imperioso e urgente. Pas­sar do Poder para a Política. É, sem dú­vida, o Êxodo mais difícil. A Páscoa ou Passagem mais difícil. Mas a única Páscoa que vale a pena ser realizada até ao fim.

Nesta altura, o País está de novo a movimentar-se. Há novos figurantes candidatos ao Poder em crescente agitação. Já deu para perceber que o pri­meiro-ministro Sócrates está mo­ribundo, ferido de morte. Ainda se me­xe, mas como um boneco articulado artificialmente ma­nipulado por um fre­nético robot. Já anda no ar um nause­a­bundo cheiro a carne em putrefacção. Reparem como os novos abutres se movimentam. À Direita e à Esquerda. O Poder precisa e procura novos pro­ta­gonistas, novos servidores, novos executivos. Sócrates deixou de lhe in­teressar. O "não" da Irlanda ao "seu" Tratado de Lisboa, acabou com ele de vez. Foi a estocada final. A morte anunciada do Tratado de Lisboa é a mor­te anunciada de Sócrates, enquan­to Executivo do país e de um dos Exe­cu­tivos-lacaios da Europa dos Milhões. O próprio sabe disso. E, se não quiser saber, os da Europa dos Milhões não deixarão de lho dizer. Sócrates tem de sair de cena. Outros já se perfilam no horizonte. À Direita e à Esquerda. Até Louçã e o seu Bloco de Esquerda já anunciaram 20 comícios no país, para este Verão. O Poder não dorme. Não descansa. Não vai de férias. Sempre trabalha. Para os dos Mi­lhões que o financiam. Ou ele não fosse o Exe­cu­tivo do Deus Milhões. Por isso é tão Demente, tão Sádico, tão Mentiroso, tão Assassino, quando de Direita. E tão Ben­feitor, tão Paternalista, e nessa medida, tão perverso, quando de Esquerda.

Resis­tamos-lhe! E ousemos prota­go­nizar Práticas Políticas e Económicas Maiêuticas, à mistura com Afectos Partilhados, as únicas, os únicos que hu­manizarão/salvarão o Mundo.


ESPAÇO ABERTO

A propósito do livro QUANDO A FÉ MOVE MONTANHAS

1. Já li e gostei mesmo

L.

Muito obrigada pelo livro, QU­AN­­DO A FÉ MOVE MONTA­NHAS! Já o li e gostei mesmo! Vou ten­­tar transmitir-te aqui o que ele fez em mim...

Nada como a in­trospecção, para explorarmos os con­teúdos do nosso “eu”... E o teu “Eu” é mui­to rico! Enriquece quem o recebe, sem empobrecer quem o dá...

Desde o primeiro momento que houve uma empatia, um ingrediente de inteli­gência interpessoal, construtora de uma verdadeira relação dialógica que nos faz acre­ditar que é possível uma relação humana, baseando-nos numa comunicação efectiva, porque afectiva!!!

Esta flor de amizade, enviada por Deus, veio embelezar o jardim do meu Eu, com a terapia da ternura, na partilha da intimidade, que, olhados com o co­ra­ção, aumenta a alegria e o prazer de VIVER!

Bem Ha­jas, por existires e contri­buíres para o enriquecimento in­te­le­ctual, interior do meu EU, da Huma­ni­dade, crente e não crente, esclareci­da, ou com sede de esclarecimento, nesta incondicional partilha de intimida­de e unicidade que te caracteriza, ao olhar-nos e falar-nos com o coração, dan­do-nos uma imensa alegria e prazer de viver e conviver contigo, neste mes­mo AMOR: O AMOR DE JESUS!!!

Bjs..


2. Um livro certo, na altura certa

Prof. Manuel Sérgio

Mais um magnífico livro do teólogo Padre Mário de Oliveira. Este intitula-se Quando a fé move montanhas. O seu autor é um homem de fé, mas de uma fé que se confunde com um rea­lismo insubornável diante do “mundo da vida”, diante das injustiças em que o nosso mundo é fértil, designadamen­te aquelas que são “programadas” pe­lo Ter e pelo Poder. Mário de Oliveira é uma consciência vigilante, vivendo não só à maneira de Espinoza, do “amor intellectualis Dei”, mas também de uma fé que santifica porque nos faz mais solidários e fraternos (a difi­culdade da mensagem de Jesus está aqui e não em rezar terços, ou venerar santinhos). Para ele, a fé não nos leva a acreditar em dogmas (autênticos dis­pa­rates) da Imaculada Conceição, da infalibilidade pontifícia, do pecado ori­ginal e nos quase-dogmas (disformes e grotescos) do milagre de Fátima e do celibato sacerdotal.

A fé, para o Padre Mário de Olivei­ra, é uma versão do cristianismo pri­meiro, quando o cristianismo era a “re­li­gião dos escravos, protesto, mesmo se impotente, contra a ordem estabele­cida, esperança no advento do Reino”. A fé, no Padre Mário de Oliveira, é trans­cendência, mas que não seja alienação, isto é, liberta de qualquer conotação com a ideologia do fundamentalismo neo-liberal ou de qualquer outro pen­sa­mento único. A transcendência, em Mário de Oliveira, é a negação de toda e qualquer espécie de determinismo. Em sintonia, aliás, com a interrogação de Jesus: “Homens de pouca fé, por que duvidais?”.

Ao lê-lo (e nem sei bem porquê), mui­tas vezes sou tentado a compará-lo com o Roger Garaudy que, na déca­da de 70, na companhia de Teilhard de Chardin, me surgia com uma extra­ordinária energia de irradiação espiri­tual. A quente luminosidade das suas imagens, o ardor da sua emoção e a helénica serenidade da sua filosofia fi­ze­ram de Garaudy um autor que não mais esquecerei – como não esqueço o entendimento atilado e cáustico, bem ao jeito daquele filósofo francês, do Padre Mário de Oliveira. Por isso, o livro Quando a fé move montanhas deverá transformar-se num vade mecum para os que pretendem repensar o cristianis­mo, visando apresentá-lo de acordo com as mais sérias aspirações das mu­lhe­res e dos homens do nosso tempo.

Como pode defender-se, hoje, o pe­cado original? O Padre Mário de Olivei­ra põe a nu, neste livro, o absurdo de um Deus, infinitamente justo, nos acusar de um mal que nunca praticámos: “A­con­te­ce, porém, que hoje sabemos que o pecado original nunca existiu, nem se­quer houve um casal inicial do qual todos os seres humanos provêm (...). É verdade que tudo isso vem na Bíblia, no livro do Génesis, mas sabemos hoje que é um mito das origens, uma forma poética, simbólica de relatar o começo da Humanidade (...). Por isso, tudo o que a catequese oficial da Igreja conti­nua a ensinar a este propósito é aldra­bi­ce. E o chamado dogma da Imaculada Conceição de Maria faz parte dessa al­dra­bice. A verdade à luz da Teologia cris­tã e do Evangelho de Jesus é que to­dos fomos concebidos em graça, em amor, em relação com Deus e estamos cha­mados a abrir-nos progressivamen­te uns aos outros, umas às outras, num amor cada vez maior e mais desinteres­sado” (p.17).

De facto, o pecado original; a virgin­dade de Maria, antes, durante e depois do parto – são dogmas em que o achin­calhe à inteligência sobe aos tons mais homéricos. Demais, propagados por pa­dres que são mais do mesmo, ou seja, incapazes de criticar, com honestidade e coragem, as determinações que che­gam de Roma e que reduzem o cristia­nis­mo ao nível infantil de uma filosofia pré-crítica. Roger Garaudy, no seu Mar­xisme du XXème Siècle, refere que o cristianismo criou uma dimensão nova do ser humano: a de pessoa humana, a de um ser que tem como atributo es­sen­cial a transcendência. Ora, “o en­con­tro com a transcendência, ou antes, a irrupção da transcendência, não é uma experiência privilegiada e nada tem de teológico ou religioso, não é uma interrupção da ordem natural, por uma intervenção sobrenatural, mas é a experiência mais quotidiana, a expe­ri­ência especificamente humana: a da criação” (pp. 113-114). A transcendên­cia é a dimensão profética da vida e tem como radical fundante a liberdade. Mas como é possível a profecia, na Igre­ja Romana, se os profetas, como o Pa­dre Mário de Oliveira, se vêem rodea­dos pela intolerância e a incompreen­são da classe dominante da Igreja, dita Católica? E se nesta mesma Igreja, dita católica, há uma obediência cega à autoridade?

O Papa Joseph Ratzinger afirma que “o essencial da fé é que nela não me deparo com algo inventado; na fé, o que vem ao meu encontro supera em muito tudo quanto nós, os homens, so­mos capazes de pensar” (Joseph Rat­zinger, Deus e o Mundo, Tenacitas, Coimbra, 2005,  p. 31). Só que na fé o­fi­cial da Igreja Católica são em dema­sia as invenções, como aquelas que acima já citámos e outras, como a Res­surreição que se confunde com a rea­ni­mação do cadáver de Jesus cruci­ficado, quando “o relato evangélico (as­sim no-lo ensina o Padre Mário, no livro Quando a fé move montanhas) de S. João que fala disso é teológico e tem outra leitura/interpretação. Quando falo de Mistério, não me refiro a uma rea­lidade incompreensível, mas a uma Realidade-escondida-que-se-nos-revela-e-nos-transforma, à medida que se nos revela”(p. 148). Daí que o Padre Mário se considere ateu: “ Também eu sou ateu, mas (...) sou ateu apenas de todos os deuses que se alimentam de gente. Por isso, posso dizer que sou ateu porque creio em Deus, no Deus de Jesus de Nazaré, o Crucificado/Res­suscitado” (p. 49). Se não laboro em er­ro grave, julgo que o Padre Mário po­deria fazer suas, estas palavras de Roger Garaudy, em Parole d’Homme: “De que fé se trata? Fé em Deus? Fé no homem? É um falso problema: uma fé em Deus que não implicasse a fé no homem seria uma evasão e um ópio; uma fé no homem que não se abrisse ao que no homem supere o homem, mu­ti­laria o homem da sua dimensão es­pe­cificamente humana: a transcen­dên­cia” (p. 225). A crença no Deus que Jesus nos en­sinou é também uma cren­ça no Ho­mem, porque (volto ao Padre Mário), “enquanto ressuscitado, Jesus é o ser humano com o Espírito Santo den­tro” (p. 61). Não surpreende, por isso, que o autor deste livro (para mim, o maior teólogo português dos nossos dias) vi­va “em estado quase contínuo de escuta do Deus vivo, o qual se nos revela e nos fala, nos acontecimentos de que são feitas todas as nossas vidas e todas as vidas de todas as pessoas e de todos os povos do mundo” (p. 69).

Não é fácil reduzir a meia dúzia de linhas uma crítica a qualquer um dos livros do Padre Mário de Oliveira, mas considero uma decisão ética ler cada um deles, com atenção e respeito. Por­que se trata de um teólogo informado e de um homem culto e de alguém que é capaz de dar a própria vida pelos valores em que acredita (como já o pro­vou à saciedade). Se aqui é possível uma nótula de carácter pessoal, dei­xem-me que confesse que aprendi com o Padre Mário a perceber que não há se­pa­ração entre o sagrado e o profano, porque (sem qualquer assomo de pan­teís­mo) Deus está em tudo! E acabo de aprender, após a leitura deste oportu­níssimo livro, que a ressurreição de Cristo é ruptura e superação de um ego­ís­mo acanhado, insignificante e anúncio de que, na nossa vida, tudo é possível, ou seja, o possível faz parte do real.


O parricídio dos homens e de Deus

Frei Betto, Teólogo

 

Com certeza, você, como eu, está indignado frente à hipótese – já trans­for­mada em denúncia pela autoridade policial e aceite pelo juiz – de um pai ter assassinado a filha ao permitir que fosse asfixiada; em seguida, tê-la-ia jogado pela janela, de uma altura de 18 metros.

Filho não é camisa, é pele. Não sou pai, mas como filho sei quão visceral é a relação entre um e outro. Por isso, o parricídio destaca-se como um crime mons­­truoso, assim como a pedofilia en­tre pai e filha, como é o caso de Josef Fritzl, o austríaco que, por 24 anos, man­­teve a filha em cárcere privado e com ela teve sete filhos.

Diante de casos como esses a nossa condição humana é profundamente in­terpelada. De quanta maldade somos ca­pazes? Não foi um homem transtor­nado por drogas que atirou a filha pela janela, nem era um ignorante da perife­ria do mundo que escravizou e abusou da própria filha. Um é bacharel em Di­reito na mais moderna metrópole bra­sileira; outro, engenheiro eléctrico na Áustria.

As pessoas manifestam incontida in­dignação diante de casos como esses. Defronte as residências dos acusados, centenas permanecem em vigília e co­bram vingança. Os media mantêm o noticiário aquecido, pois raras vezes seus veículos deram tanto ibope. Como um pai é capaz de matar a filha ou maltratar a ponto de encarcerá-la, tor­turá-la e estuprá-la?

“Pano”- assinalam os roteiros de te­a­tro para indicar a passagem de um acto ao outro. Você é cristão? Acredita que Deus Pai, ofendido com os nossos pecados, assassinou o Filho na cruz? Que diabo de deus é este que exige co­mo reparação, para aplacar a sua ira, a morte do próprio Filho? Por que esse deus não é execrado como os pais cita­dos acima? Por que aceitar que, no Gól­gota, ocorreu o mais horrendo de todos os parricídios? Como conciliar a ideia de Deus Amor com a crença no deus parricida que nos envia Jesus para que ele seja preso, torturado, humilhado e cravado numa cruz?

Há, em hermenêutica literária, o que se chama migração de sentido, que os gregos antigos denominavam dipticon. Exemplo:os vitrais de igrejas: de um la­do, Moisés; de outro, Jesus. Para o o­b­­servador, o significado de um trans­fe­re-se a outro – Jesus é o novo Moi­sés. Essa migração ocorre ao cotejar-se Antigo e Novo Testamen­tos.

O Génesis (22, 1-18) relata que Javé exigiu de Abraão, como prova de fé, o sacrifício de seu único filho, Isaac. O patriarca subiu a montanha disposto a derramar o sangue do menino. Ao ter certeza de que Abraão não vacilaria no acto parricida, Javé ter-se-ia dado por satisfeito; segurou-lhe a mão e evitou a morte de Isaac.

No calvário, o próprio Deus teria en­tregue o Filho à morte pela redenção de nossos pecados. Se Deus pratica o parricídio, por que tanta indignação qu­an­do um de nós o faz? Essa óptica teo­ló­gica nos incute a convicção de que so­mos pecadores. A culpa. Ora, devería­mos experimentar, sobretudo, a graça de sermos filhos de Deus. O amor.

Os autores bíblicos projectaram em seus textos categorias próprias da cul­tura que respiravam. Abraão, criado no politeísmo e acostumado a prestar culto através da oferenda de primícias – das colheitas ao primogénito – descobre, no alto da montanha que, ao contrário de outros deuses, Javé não quer a morte, quer a vida. “Multiplicarei a tua poste­ri­dade como as estrelas do céu e os grãos de areia na praia do mar” (22, 17). Ao descobrir Javé como Deus da Vida, Abraão não sacrifica o filho.

Do mesmo modo, Jesus não foi mor­to pela vontade de Deus, e sim pela maldade dos homens. A cruz não é a culminância de uma tragédia cujo roteiro saiu da pena – ou da vontade – de um perverso e parricida autor di­vino. Jesus morre como prisioneiro político, assassinado por decisão de dois poderes que dominavam a Pales­ti­na do século I. Ousou anunciar, no rei­no de César, um outro reino, o de Deus. Atreveu-se a “profanar” o Tem­plo de Jerusalém, qualificando-o de “covil de ladrões” (Mateus 21, 13), e agrediu cambistas que ali faziam ne­gó­cios autorizados pelos responsá­veis do culto.

O Deus de Jesus não era um dés­po­ta. Era um Pai amoroso a quem o Filho tratava por “Abba” (Marcos 14, 16), palavra aramaica que significa “querido papá”. Jesus não veio para apontar o dedo e acusar-nos de in­cor­ri­gíveis pecadores. Veio para nos revelar que, “como o Pai me amou, as­sim também eu vos amei; permane­cei no meu amor” (João 15, 9).

Apesar de nossos pecados, há salvação, porque Deus é Pai/Mãe a­mo­roso e misericordioso. Fomos cria­dos à sua imagem e semelhança e dele recebemos, em nosso espírito, o seu Espírito. Portanto, devemos a­mar uns aos outros, assim como so­mos por Ele amados.


Vitória sobre o Anjo

Frei Betto

Sei o que experimentou Jacó ao duelar com o anjo. Enfrentei-o quan­do aos meus pés faltou chão e, no horizonte, o sol se apagou aos meus olhos. A escuridão invadiu-me: pri­meiro engoliu as pernas; em seguida, os braços; depois, todo o meu ser. Por fim, dragão insaciável, tragou-me a identidade.

Mergulhado na noite, partido, per­dido, exilei-me em dúvidas. No início, senti-me sugado pelo abismo. Tudo em volta se me evaporou. Fiquei às ton­tas, em queda livre num poço sem fundo. Todas as minhas certezas se volatilizaram, meu mapa converteu a geografia num hermético labirinto, minhas crenças professaram a nega­ção de toda fé. Cego, viajei numa espi­ral alucinada, acorrentado à desrazão da insensatez. Sufocava-me o afluxo da vida em despropósito. Náufrago num oceano vazio de águas e limites, ocupei o lugar de Jonas no ventre da baleia.

Não há sofrimento maior do que perder-se de si torturado pelo es­plen­dor da lucidez. Quem me dera, naquela noite escura, fosse eu toma­do pela sadia loucura dos atropelos irre­versíveis da mente. Quisera, qual demente, estar fora de mim sem a cons­ci­ência do banimento ontológico. E apoi­ar-me em qualquer uma das refe­rên­cias que, até então, haviam servido de marco em minha estrada de vida: um sonho, um encantamento, uma idei­a compulsiva, um desejo irrefreável, uma crença em forma de sacrário. Ao menos um ruído, como o apito do trem que cortava a minha cidade e, agora, ainda atravessa-me a nostalgia do coração. Ou o cheiro morno do pão de queijo trazido do forno à mesa, a suave elasticidade do polvilho, o aroma ado­ci­cado e quente do café.

Nada disso me consolava. Havia apenas o vazio, o vazio, o vazio. O caos primordial, antes que Javé despertasse de seu sono eterno e, distraído, trope­ças­se na ideia de criar o mundo.

Deu-se então o início do meu apren­dizado. Primeiro, a consciência de que era preciso fazer a travessia. Às cegas. Jogar-me no rio sem a menor noção de quão distante se encontrava a mar­gem oposta. Caminhar rumo ao plexo solar. Desatar os nós. Mergulhar na­que­le abismo infindável, atirar-me do trapézio com os olhos vendados, em­preender a ousada viagem no rumo da morte, apoiado apenas por um fio de es­perança: do lado de lá me aguardava, não a morte, e sim a plenitude da vida. 

Caminhei na senda escura entre escorpiões e escaravelhos, aranhas e lagartos, a mente assaltada por fantas­mas que, nela, suscitavam desde as mais pavorosas fantasias ao hedonis­mo desenfreado. Desprendida da al­ma, a imaginação se ensoberbece e cavalga, alada, o carrossel da luxúria. A razão desalinha, as ideias esvoaçam, os propósitos atolam-se na lassidão do espírito fenecido.

É preciso pôr-se de joelhos e, reve­rente, escutar o silêncio. Como Elias, não aguardar o trovão, o rugir dos ven­tos, a voracidade flamejante do fo­go. Apenas a brisa suave, assim como o na­vegador, finda a borrasca, recebe contente a chegada da calmaria. Mas isso custa. Isso é inesperado, indescri­tível, mistério dos mistérios. Para che­gar lá, urge amansar leões, enfrentar dra­gões, conviver, destemido, no ninho das serpentes. E saber perder. Vão-se as ilusões, as máscaras; vai-se aquele outro que insiste em se disfarçar de eu. No fogo tímido da lenha húmida, todas as falsas verdades são lentamen­te queimadas. Então, instaura-se a nudez. É a hora da vertigem.

No duelo com o anjo, apenas na hora da vertigem me dei conta de que não brotava de minhas forças o ímpeto que me fazia atingir a terceira margem do rio. Alguém soprava o vento que in­flava as velas de meu barco. Alguém mo­via as águas. Essa consciência de que uma estranha energia me impelia sem que eu pudesse identificá-la, tor­nou-se progressivamente aguda. Sim, minha vontade havia dado o primeiro passo; minha razão denunciara, insis­ten­te, a insensatez da travessia; meus atavismos resistiram a abandonar a margem de origem.

Havia, porém, um outro factor que só percebi ao perder de vista a margem que deixara sem, no entanto, vislumbrar a oposta. A queda transmutou-se em ascensão; o abismo, em montanha; a vertigem, em enstase. (Atenção: o termo teológico é este mesmo, enstase, e não êxtase)

O anjo depôs armas, afastou-se da porta do Éden e deixou que Ele se me apossasse. Fiquei visceralmente apai­xo­nado. Tudo em mim e à minha volta transluzia amor. E nada me atraía mais fortemente do que perder tempo na alcova. Outra coisa eu não pensava nem queria ou desejava do que sentir-me abrasado de amor. As entranhas quei­mavam; o peito ardia em febre; a mente, calada, observava a razão tra­gada pela inteligência. Eu me encontra­va em alguém fora de mim que, no en­tanto, se escondia no recanto mais ín­timo do meu ser e, de lá, projectava a sua luz sem se deixar ver ou tocar.


Lília Azevedo, a Santa

Catarina dos nossos dias

Jelson Oliveira, Comisão Dominicana

                           de Justiça e Paz do Brasil

Entre os grandes personagens que a Família Dominicana ofereceu à Igreja e à cultura do Ocidente, sem dúvida se destaca o nome de Santa Catarina de Sena. Leiga, filha de família de pos­ses, dizia-se sempre com e em Cristo. Cuidou dos enfermos e abandonados até quando Cristo lhe revelou que ela deveria trabalhar pela paz. A partir de en­tão empenhou-se pela unidade da Igreja através do retorno do papa Gre­gó­rio XI a Roma, o que ocorreu em 1378. Analfabeta, ditou centenas de cartas para as mais diferentes persona­lida­des da época, entre papas, reis e líderes do povo, indistintamente. Algu­mas dessas cartas estão reunidas na obra Diálogo sobre a Divina Providên­cia, um grande testemunho de sabedo­ria, teologia e mística, que se tornou o seu legado. Entre os grandes perso­na­gens que a Família Dominicana ofe­re­ceu à Igreja de base do Brasil, sem dúvida destaca-se o nome de Lília Aze­vedo. Leiga, fi­lha de família de posses, mostrava-se sempre com e em Deus, a quem nos seus últimos tempos se re­feria simples­mente com o sereno epí­teto de “Deusa”. Acompanhou os movi­mentos sociais e as pastorais, as greves e as mobiliza­ções do povo, porque Cris­to lhe havia revelado a missão de tra­ba­lhar pela solidariedade. Empenhou-se pela uni­da­de dos povos, através do apoio soli­dário e do intercâmbio de in­for­ma­ções, do estudo e da luta pelos di­reitos hu­manos. Poliglota, traduziu e es­creveu cen­tenas de cartas para as mais dife­rentes personalidades de sua época, entre autoridades, políticos e lí­deres do povo, indistintamente. Algu­mas des­sas cartas estão reunidas na o­bra Car­tas da África do Sul, uma ex­periência do apartheid e o recente Car­­tas Soli­dárias, dois testemunhos de sabedoria, teologia e mística que se tor­naram o seu legado.

Nascida em 1929, Lília Azevedo dividiu com Catarina, mais do que uma biografia. As duas mulheres leigas tive­ram em comum os desafios e a cora­gem, a mística e o empenho, o jeito pró­prio de entender a fé, a Igreja, as pessoas e o seu tempo. Ambas tiveram grande destreza no uso da palavra, a escrita e a falada: ainda que uma, anal­­fabeta, e a outra, poliglota, dividi­ram com outros, solidariamente, os re­sultados dos seus temores, das suas es­peranças e utopias. Escreveram a­qui­lo que viveram. Escreveram porque viveram. Por isso, o escrito de ambas não poderia ter outra forma literária que as cartas. Porque nelas não soam teorias fechadas e áridas, teologias de­sencarnadas ou crenças estéreis. O que se comunica é o que se vive e o que se acredita. As duas mulheres tra­duziram em palavras as suas paixões. E para quê? Ora, cada carta é uma convocação e uma dádiva. Por elas somos alertados e convidados ao com­pro­misso com a paz e a solidariedade, a justiça e os direitos de gentes com as quais nunca falamos e que por elas falam connosco. Por elas somos presen­teados com o encontro dessas causas que nos tornam melhores e mais huma­nos, porque nos dão a chance de rea­lizar a nossa vocação para o encontro.

Mas não pense que há nessas car­tas algum culto pessoal ou a expressão subjectiva da banalidade daqueles que buscam honras. Lília, como Catarina, falou pouco de si mesma. Tinha notí­cias mais importantes que isso. E tam­bém se encontrava nessas notícias, con­fundia-se com elas de tal forma que ao falar do outro, falava mesmo de si mesma. No seu amplo apartamento da rua Haddock Lobo estão suas relíquias em forma de livros, bibelôs, preciosida­des de penas e de barros. Muito além de títulos, diplomas ou jóias, essas lem­branças resumem o mundo em peque­nas formas e são a prova candente do compromisso de uma mulher que, ao bus­car-se a si mesma, se encontrou com o mundo e teve a rara e grandiosa compreensão do que é ser cidadã, cristã, humana. O doutorado de Lília, co­mo o de Catarina, foi conquistado nessa descoberta. Isso não a faz dou­tora da “Igreja dos poderes”, mas dou­tora da solidariedade dessa nossa “Igreja dos amores”, que ultrapassa fron­­teiras, todas as fronteiras, tal como unicamente o amor é capaz. Não enve­lhece aquele que acumu­la esse tipo de tesouro. Talvez isso expli­que porque Lí­lia permaneceu per­turbadoramente jovem, contra as corrosões da doença. No corpo e, principal­mente na alma, a exultação e a ternura, a calma e a se­re­nidade de suas palavras não se alte­raram. E é dessa fonte que nós todos e todas pudemos beber. É essa água que animou nossas pesso­as e nossas lutas. As ideias e o amor de Lília estão por detrás de muitos dos projectos que hoje dão sentido ao nos­so trabalho e à nossa vida, entre os quais está a nos­sa Comissão Domini­ca­na de Justiça e Paz do Brasil. 

Lília foi visitada pelo Senhor que a convocou para traduzir e escrever as suas próprias cartas a toda gente com quem anda com dificuldades de comu­ni­ca­ção. Há gente que não ouve a sua voz e há gente que não se deixa convo­car por ela, nessa nova Babel do nosso mundo das dívidas e das divisões. O Senhor sabe mesmo o que faz. Caberá a Lília continuar escrevendo cartas e traduzindo em língua alada as mensa­gens que nos indiquem os caminhos da solidariedade com os pobres e ex­cluí­dos da sociedade. Seus informes de vida falarão das lutas dos negros da África, dos indígenas de Chiapas e dos sem-terra brasileiros, das mulheres das periferias e das vítimas de tantos regi­mes ditatoriais mundo afora. Do alto, sua voz torna-se mais pujante, embora mais subtil. A nós o que restará senão conti­nuar atentos às suas notícias, a­brin­do os ouvidos para ouvi-la, convo­cá-la em orações e em lembranças mil, deixar que seus informes solidários nos desa­co­modem. Lília, essa mulher sem divi­sas, agora ultrapassou a última das fron­teiras. Invisível, parece ainda mais próxima. Para o resto das nossas vidas, ao abrir a caixa de entrada dos nossos e-mails, fiquemos atentos: haverá sem­pre por lá uma carta solidária enviada por essa nossa querida e inesquecível amiga.


OUTRAS CARTAS

 

Desculpe-me, Paulo

 

Caro sr padre Mário, já o vi algu­mas vezes na tv, a última foi há dias [9Junho2008] na Praça da Alegria na RTP. Eu concordo consigo em muitas coisas, mas quem está em desacordo com a igreja católica como o Sr. e mui­tas outras pessoas e eu próprio, não se­ria melhor fazer como nós? Ou seja mudar de religião? Eu chamo-me Paulo, tenho 28 anos e fui em pequeno educa­do na religião católica, mas conforme fui crescendo, até à idade adulta, nunca me identifiquei com a religião católica. Achava e hoje tenho a certeza de que algo não esta certo. Actualmente consi­de­ro-me Cristão adventista do 7º dia, pois considero esta a verdadeira igreja de Deus, que guarda a fé em Jesus e guarda todos os mandamentos, ou seja os 10, pois como Jesus diz em Mateus 5:17, não vim abolir a lei mas cumpri-la. E uma igreja que quer seguir a Deus e honrá-lo tem que cumprir o que diz a Bíblia, pois foi para isso que Deus nos deu esse livro.

Como o Sr deve saber, a igreja católica deu-se ao luxo de mudar a lei de Deus. E a mais flagrante heresia foi mudar mandamentos, como ser permiti­do adorar estátuas (coisa que Deus detesta) e substituir o Sábado (que é o verdadeiro dia do Senhor e único dia santo), para o domingo, no império ro­ma­no, pois se o Sábado é o sinal entre Deus e o Homem, o dia que Deus aben­çoou e santificou como diz em Génesis. E se Jesus e os apóstolos guardavam o Sábado, como pode alguém dizer que o domingo é que é o dia do Se­nhor? É que para além dos católicos, os protestantes, infelizmente, também guardam o domingo. Dizem que guar­dam o domingo porque Jesus ressusci­tou nesse dia, mas assim dão-nos ra­zão, porque se Jesus reviveu nesse dia quer dizer que descansou no Sábado. A maioria das pessoas católicas e as que se dizem católicas, são-no superfi­ci­almente, pois pensam que basta ir à igreja. E na igreja católica, os católicos não levam a Bíblia, muitos nem a lêem em casa. E já cheguei a ouvir de algu­mas pessoas que não se interessam da Bíblia para nada. Se assim é como po­dem saber o que Deus quer para nós, como devemos viver a vida e como Lhe agradar. Além do mais, os padres católicos não explicam as escrituras de­pois de as lerem, assim o povo fica a sa­ber o mesmo, ou seja, nada. Nunca oi­ço católicos a falar em arrependi­men­to dos pecados e em conversão. Dizem que vivem á sua maneira, conforme lhes parece melhor, afastando-se assim de Deus. Hoje em dia, parece para a maio­ria das pessoas que isso do pecado não existe, e na minha opinião a igreja católica tem uma certa condescendên­cia e desculpabilização do pecado, algo que agrada as pessoas, como é óbvio. São católicos ou dizem-se católicos não por uma questão de fé, mas sim por uma questão cultural. Veja-se o caso dos casamentos e dos funerais, porque seja que pessoas forem, parece pelo sermão do padre que vão todos para o céu, basta pagar umas missas pela alma do morto. Mas, como você deve sa­ber, Deus não se vende nem se deixa comprar. Já para não falar nos baptis­mos. Baptizar bebés? Como pode um bebé saber o que é Jesus, e converter-se? O baptismo como é óbvio deve ser feito em adulto, assim como o próprio Jesus o fez. E como Deus quer o nosso bem isso aplica-se em tudo, como por exemplo: a comida, como está escrito em Levítico 11. E Jesus também não abo­liu isso, como dizem. Espero que o sr padre concorde comigo, pois o que digo é verdade e baseado na Bíblia. A­conselho-lhe a leitura de livros de El­len G. White e ir ao site www.adventis­tas.org

Aguardarei um comentário seu. Com os melhores cumprimentos.

 

N.D.

Paulo: Agradeço o seu contacto e as suas palavras. Obviamente, não sigo o seu exemplo e o de outros como o Pau­lo. Nunca trocarei de Igreja. Foi nes­ta Igreja que descobri Jesus e a Boa Notícia de DeusVivo que ele é. Ela é carne da minha carne, sangue do meu sangue. Não se muda de Igreja como se muda de camisa. Sei dos defeitos dela, mais do que muitos. Mas também sei dos meus próprios defeitos. Amo de­mais a Igreja, para alguma vez a dei­xar. E, se a critico é ainda porque a a­mo. Se ela me deu o Evangelho, ago­ra sou eu que lho dou também a ela. Gran­de número de irmãos católicos per­segue-me e ostraciza-me por isso? Tu­do estou disposto a suportar por amor dela, a Igreja, e por amor do Evange­lho. Também conheço as outras Igrejas. E não vejo que sejam melhores. Todas são como as sete Igrejas da Ásia, às quais o autor do Apocalipse se dirige, logo a abrir o livro. Todas têm o que se lhes diga… Aquela Igreja que es­tiver sem pecado, atire a primeira pedra à Igreja católica.

Acho a sua mensagem bastante in­feliz. Parece que me quer conquistar pa­ra a sua Igreja. Proselitismo, para quê? Veja o tom de fariseu convencido com que me escreve. São Vocês a Igreja e o resto é paisagem?! Um pouco mais de humildade, só lhe ficava bem. A hu­mildade é caminho para chegar à Ver­da­de, melhor, para que a Verdade che­gue a nós. Assim, será difícil ser outro Jesus. E se não é para se ser outro Jesus, para quê fazer parte duma Igreja? O seu discurso já me é familiar. Pa­rece quase uma cassete. Já o ouvi e li em muitas outras pessoas da sua Igre­ja. Inclusive, no meu livro – gostava tanto que o lesse, melhor, que já o esti­vesse a ler – há várias mensagens de membros da sua Igreja. Falam tal e qual o Paulo. Mas não convencem. Por­que, como sabe, não é esta ou aquela Igreja que é importante para a Humani­dade. Importante, só mesmo Jesus. As Igrejas quase sempre só estorvam e impedem que Jesus chegue até nós. Mas todas, não apenas a Igreja católica.

Sim, DeusVivo detesta os ídolos, mas olhe que os mais inofensivos ainda são as imagens de caco ou de madeira ou de bronze. Estes ídolos são como os mosquitos. Ora, há quem filtre estes mosquitos, mas entretanto engula ca­me­los. E por esses, que filtram mosqui­tos e engolem camelos, é que eu choro, porque pensam que estão no caminho e estão a ir a pique para a desumani­za­ção. Sabe que sinto muita desumani­zação nas suas palavras?! Tenha cui­da­do, Paulo. Porque, no tempo de Je­sus, os fariseus tinham-se na conta de puros e de cumpridores da Lei, da Bí­blia de Moisés, e Jesus diz-lhes, olhos nos olhos, que o Deus deles é o Diabo, mentiroso e pai de mentira e assassino! A propósito: Já alguma vez leu o capí­tulo 23 de Mateus todo de um fôlego? Tente lê-lo, mas a pensar nas Igrejas todas que conhece, a começar pela sua. Eu sempre que o leio/escuto, penso na Igreja que integro. E estremeço. Por­que, quanto mais me tiver na conta de puro, mais estarei entre aquela raça de víboras, sepulcros caiados, guias ce­gos que se sentam na cátedra de Moi­sés, mas fazem tudo ao contrário de DeusVivo. Sim, porque há por aí um tipo de santidade eclesiástica que tem tudo de víbora, nada de misericórdia, tudo de fariseu, nada de Jesus.

Veja, Paulo, o que me escreve, lo­go nesta sua primeira mensagem. Re­lei­a o seu texto e ponha-se no meu lu­gar. Não se arrepia com o que me diz? Não se interroga: Como é que fui capaz de dizer todas estas coisas ao padre Mário, depois que o vi a falar e a testemunhar a Fé que move monta­nhas no programa Praça da Alegria, da RTP? Parece que para si nada do meu testemunho mexeu consigo. Só lhe interessou fazer propaganda da sua Igreja e atacar a Igreja católica que eu integro. Chega a convidar-me a fa­zer o que o Paulo fez. Acha-me assim tão sem convicções? Tão sem razões para estar onde estou e para ser Igreja na Igreja católica?

Não vou meter-me a responder às suas questões. Parte delas já estão res­pondidas por mim no livro que fui apre­sen­tar à RTP, QUANDO A FÉ MOVE MONTANHAS, Edições Magnólia. Ape­nas lhe digo que uma das razões fun­da­mentais por que Jesus foi assassi­na­do, foi as suas sucessivas acções de flagrante desrespeito da sagrada Lei do Sábado, então, o preceito mais sa­gra­do e resumo de toda a Lei. Por su­cessivas vezes, Jesus o desrespeitou. E de propósito. Até ao ponto de formu­lar, em sua própria defesa, este princí­pio subversivo e conspirativo: O Sábado foi feito para o Homem, não o Homem para o Sábado!

Desculpe-me, Paulo, mas veja se es­cuta mais os seus irmãos da mesma Igreja e os das outras Igrejas irmãs. Não excomungue ninguém. Inclua todos os excluídos, sem nunca pretender fa­zer deles prosélitos da sua Igreja. Basta que sejamos humanos e sororais/frater­nos. O resto vem por acréscimo. Sabe que Deus, o de Jesus, não fundou ne­nhu­ma Igreja, nem gosta propriamente de nenhuma? O próprio Jesus não fun­dou nenhuma Igreja. Com o que se pre­o­cu­pou foi com anunciar e tornar pre­sente, mediante práticas políticas e eco­nómicas maiêuticas a favor dos mais excluídos e marginalizados pela Lei de Moisés, o Reino/Reinado de Deus na História. Por aí havemos de ir, quantos nos reclamamos do seu nome. Vamos, Paulo. Como companheiros de jornada. Dou-lhe a minha mão. O meu afecto. E a minha paz. Seu, Mário


DOCUMENTO

Imperdível, este testemunho duma ex-Opus Dei

que revelamos, com autorização da Editora Campo das Letras

O Deus da Opus tem tudo de demoníaco!

A Opus Dei (= Obra de Deus), fundada pelo Pe. Josemaria Escrivá de Balaguer, já beatificado e canonizado pelo Papa João Paulo II - uma das maiores vergonhas, senão mesmo a maior que a Cúria Romana fabricou nos últimos anos - tem tudo de Obra Demoníaca. A conclusão decorre muito legitimamente da leitura do livro "Opus Dei Secreta", de Ferruccio Pinotti, um dos mais importantes jornalistas europeus  na área da investigação, traduzido para portugês por Carlos Aboim de Brito e acabado de editar pela Campo das Letras, Porto. São 438 páginas, cheias de cerca duas dezenas de depoimentos de pessoas que foram vítimas de semelhante inferno religioso e que, muito a custo, conseguiram sair dele, não sem terem de pagar um alto preço por isso, cada uma o seu. Do livro, reproduzimos aqui, com vénia, o segundo desses depoimentos, Mariagrazia Zecchinelli, Verona (Itália). Leiam-no e, depois, corram pelo livro, antes que esgote. Depois de o lerem só poderão concluir que a Opus Dei é de facto Demência Organizada.

Mariagrazia Zecchinelli, psicóloga, vinte e nove anos, natural de Verona, Itá­lia, ex-cooperante da Opus Dei, é uma jovem profissional inteligente e crí­tica. Está a acabar uma pós-graduação. Paralelamente à actividade laboral, fre­quenta um curso de cinco anos no Insti­tuto de Terapia Familiar de Florença. Por essa razão, a sua análise como ex-pertencente à Opus Dei é particular­mente interessante: analisou o período em que frequentou a Opus Dei, quer nu­ma perspectiva estritamente pessoal, quer utilizando as categorias próprias da análise psicoterapêutica. Entre ou­tras coisas, a Opus Dei é frequentemen­te comparada pelos seus membros a uma “família”, como um núcleo onde vi­go­ram ligações particularmente for­tes. Assim, é justo partir, no relato deste testemunho humano, precisamente da dimensão da família. A de origem de Mariagrazia.

«A minha família é uma família co­mum, como tantas outras que existem na província de Verona. O meu pai era comerciante, começou como emprega­do aos catorze anos e depois iniciou uma actividade com o pai e o irmão, que acabou quando decidiu trabalhar sozinho. A minha mãe era cabeleireira e vinha de uma família paupérrima, co­mo muitas outras no final da guerra. Ela, última de oito filhos, tinha um so­nho: aprender bem aquele ofício e com ele contribuir para resolver a sorte dos seus. Casaram-se e nascemos nós, du­as filhas com dez anos de diferença u­ma da outra. Eu sou a pequenina da ca­sa. Os meus pais estão agora reforma­dos. O meu avô paterno ainda é vivo. Os meus pais são tradicionalistas, cató­licos portanto, mas por tradição, no caso do meu pai. A minha mãe é devota.

Alguém era ou é simpatizante da Opus Dei?

«Nem eu, nem os membros da mi­nha família tínhamos ouvido falar da Opus Dei. Nenhum de nós sabia da sua existência, nem do que era. Uma boa dose de sã ignorância envolvia as nos­sas mentes. Acontece que aos dezas­sete anos uma amiga minha de infância, beata e bondosa, me convidou para par­ticipar num curso para estudantes do ensino secundário, organizado por uma residência universitária, para a pre­paração do exame de maturidade. Naquela idade, quando enfrentamos pela primeira vez na nossa vida uma pro­va e nos parece o momento mais im­portante, determinante, assustador e difícil da vida, estamos ansiosos que alguém nos proponha algo para aliviar as nossas ânsias e sentirmo-nos menos sozinhos! E assim foi. Mas nunca ouvi falar da Opus Dei, nem por ela nem por outros; ou se ouvi falar não prestei atenção a isso. Não era importante, ou talvez, sabendo agora as consequên­cias, era importante que não fosse! Con­sidero que faz parte da “técnica” da Obra agir de maneira que se asso­cie um determinado mundo ao título O­pus Dei, quando o encontro já ocor­reu, quando as reacções foram suscita­das e a “conquista” está realizada. Co­mo quem diz: Pois bem, tudo isto – a­qui­lo que vês, aquilo que sentes e a­qui­lo que experimentas – chama-se O­pus Dei. Só queríamos dizer isso, mas o nome não é importante, chama-lhe como quiseres.

Que aspectos da educação podem ter influído na aproximação de Mariagrazia da Opus Dei?

«Creio que fui desde o início uma pes­soa atípica para aquele mundo, mas com boas potencialidades. Atípica pela falta daqueles aspectos de poder que tornam interessante uma pessoa e a sua família aos olhos da Opus Dei. Co­notações que se encontram matemati­ca­mente em cada pessoa que encon­trei e que conheci naquele ambiente. No entanto, era uma figura potencial­mente útil pelas minhas características psíquicas, que foram depois o motor do meu grande envolvimento: tinha fo­me de arrebatamentos e de grandes ide­ais, como sempre naquela idade; fome de amor, que podia facilmente ser transformada em fome de Amor, mais gerível, mais controlável e mais aceitá­vel, em suma, o ideal. Depois tinha necessidade de reconhecimento, de per­ten­cer a algo ou a alguém, de motiva­ção, de confronto – verdadeiro ou ilu­sório que fosse – de autonomia da famí­lia, mas sem correr riscos e sem me tor­nar verdadeiramente autónoma (de­ma­siado medo). Digamos que havia a vontade de mudar de casa, de mudar de dependência, mantendo o equilíbrio da infância, com a ilusão do crescimen­to. O que pode haver de mais belo do que crescer sem riscos e sem perdas, co­mo se isso fosse possível? Na Opus Dei, subitamente, tudo parecia possí­vel; bastava apenas uma coisa: acredi­tar, acreditar. Tinha necessidade de fa­lar, de comunicar comigo mesma. Em suma, era uma adolescente.»

Quanto às modalidades de abordagem da Obra

Mariagrazia explica: «Creio que a mo­da­lidade foi a tradicional: o apostolado da amizade, ou seja: fazerem-nos a­cre­di­tar que encontrámos compreen­são, aceitação, afecto, acolhimento; mesmo que na realidade não seja as­sim e a única coisa que conta é compre­ender e se necessário modificar, ori­en­tar o que pensamos! Na minha opi­nião, isto é, em síntese, o apostolado da amizade na Opus Dei. Não só a mi­nha escolha não foi livre, como nunca foi uma escolha».

Ao frequentar aquele curso de preparação para a maturidade era claro para si que se tratava da Opus Dei?

«Nada. Inicialmente, só lá ia por aquilo. A amiga que me levou também não tinha uma visão clara do que acontecia. Frequentava a Opus Dei, de­pois iniciou o caminho neocatecume­nal. Na Opus Dei colocaram-na diante de uma opção seca: ou uma coisa ou outra, não podia fazer as duas. Esta opção é-lhe colocada de uma maneira muito pesada e ela escolheu a outra via, a neocatecumenal. Depois também abandonou aquela. No quarto ou quin­to encontro disseram-me: “Vem, vamos mostrar-te a casa”. Levaram-me a um oratório. Naquele momento não tinha ideia que pudesse haver um espaço assim, dentro de uma normal residência universitária. Para mim era uma coisa completamente nova. A partir daquele mo­mento, houve uma série de peque­nas mudanças. Cada vez que me dirigia à residência da Opus Dei procuravam fazer-me frequentar novas actividades, que se aproximavam cada vez mais das actividades principais do Centro, a­quelas mais secretas, que dizem res­peito às numerárias. Quando fui fazer o curso, pensava que se tratava de uma normal residência onde as estudantes estavam alojadas. Não tinha percebido todo o resto, nem tinha uma compreensão clara disso. A primeira impressão foi de uma dimensão extremamente aco­lhedora, onde se podia estar muito bem. Um ambiente humano muito tran­quilo, muito protegido. Naquela idade, encontrar um ambiente assim pode ser perigoso, porque induz a criar uma de­pen­dência. Há sempre uma infinidade de sorrisos à nossa volta, um sentido de aceitação completa. Nunca mais dei­xei de ir ao Centro. Comecei a fre­quentar outras actividades, novos en­con­tros para estudantes universitárias. Era um local acolhedor, um espaço on­de se podia estar todo o tempo que se queria. Havia a máxima disponibili­dade e amplos horários de abertura: podia-se estar ali das 8 da manhã às 10 da noite. Comecei então a estudar ali para os exames de ingresso na uni­versidade, estudei ali todos os dias. Comecei a fazer parte daquele ambi­en­te e nunca mais consegui afastar-me. Nos três anos em que frequentei a Opus Dei, penso que passei trezentos e sessenta e cinco dias por ano lá den­tro. Não faltei um único dia, fui sempre à sede da Opus Dei, mesmo que ape­nas para uma saudação. Devo dizer que, oficialmente, as pessoas da Obra nunca me encorajaram a frequentar a “casa” tão assiduamente; tratava-se de uma exigência que nascia em mim em consequência dos mecanismos desen­ca­deados nas minhas relações junta­mente com a fragilidade típica de uma rapariga daquela idade. Assim, existia uma forte contradição entre o que era dito e aquilo que se queria realmente fazer captar.»

Mariagrazia inscreveu-se na faculdade de Psicologia.

«Sim. Em Pádua. Mas só fiquei lá os primeiros três meses. Não conse­guia estar ali, não me encontrava: tal­vez influísse também esta coisa da Opus Dei, no sentido em que agora sentia necessidade daquele ambiente, das pes­soas que lá estavam. Dava-me uma grande segurança. Frequentar aquelas actividades e aquelas pessoas dava-me uma sensação de omnipotência, no sentido em que poderia fazer qualquer coisa. Era como ter alguém forte a apoiar-me.» - Alguém que te quer bem? - «Isso um pouco menos. Diga­mos que é dizer demasiado. Era eu que queria que gostassem de mim, havia essa necessidade. E depressa se de­sen­cadeou um estranho mecanismo psi­co­lógico: a coisa principal, na Opus Dei, é fazer aquilo que esperam de nós. Antes de frequentar a Obra tinha sido uma adolescente problemática, ainda que oficialmente não o fosse. Ninguém via nada, mas como todos os adoles­cen­tes vivia a minha dose de proble­mas. Creio que o processo mais difícil na minha adolescência tenha sido, co­mo muitas vezes acontece, o da sepa­ração e de independência em relação à figura da minha mãe. Estava muito, muito ligada a ela. Demasiado. Foi difí­cil separar-me dessa relação de manei­ra saudável e encontrar a minha identi­dade. Vivia este conflito. E creio que o ambiente da Opus Dei contribuiu para manter este tipo de relação, transfe­rindo-o para fora de casa. Havia a ilu­são de conseguir vencer, de separar-me da figura materna, de uma relação simbiótica. Procurei mesmo aproximá-la da Obra, mas da sua parte, ou da parte da minha família, nunca houve um grande interesse por aquele am­biente. Lembro-me de uma conversa en­tre a minha mãe e uma numerária antiga, desejada por esta última, em que lhe perguntou tudo sobre a sua família de origem, sobre a sua história. A minha mãe lembra-se que, a partir daquele momento, a atitude das pesso­as “internas” em relação a ela mudou. Deixaram de mostrar o mesmo interes­se de antes. Evidentemente, deixara de ser uma pessoa potencialmente útil ou válida!»

Mariagrazia começa a criar, no mundo da Opus Dei, relações afectivas profundas.

«Havia algumas pessoas na Opus Dei que para mim contavam muito mais do que outras. Até porque sempre fui uma pessoa com tendência para aprofundar as coisas, para criar rela­ções que tenham uma certa densidade. E esta característica não encontra gran­de consenso num ambiente como o da Obra. Com a reflexão posterior, compre­endi, entre outras coisas, que o afecto que me dedicavam era uma técnica pa­ra me conquistar. Quando me afastei, muitas coisas se esboroaram. Isto signi­fica que muitas manifestações de afecto eram falsas. Naquele ambiente tão es­tranho havia duas ou três pessoas im­por­tantes para mim. Uma, em parti­cu­lar, foi o fulcro da minha experiência na Opus Dei, tanto pelo positivo como pelo negativo. Inicialmente foi a minha re­la­ção mais forte, em termos de ami­zade. Depois foi a pessoa através da qual se iniciou o meu afastamento. Co­me­cei a fazer demasiadas perguntas àquela numerária. Queria compreen­der. Tinha reparado que havia algo de estranho na sua maneira de ser minha amiga e de ser amiga de tantas outras pessoas da mesma maneira. Fazia de­masiadas perguntas. Aos seus olhos co­me­cei a transformar-me: de pessoa que podia ser boa por certas características, para pessoa já não desejável ou mes­mo potencialmente perigosa. Inicial­men­te começaram a considerar-me me­nos interessante; depois prejudicial, no momento em que comecei a falar das mi­nhas dúvidas e das minhas perplexi­dades com diversas pessoas da Obra. Encontrava pessoas e procurava comu­nicar com elas em termos honestos e ver­dadeiros. Não tinha o sentido do se­cretismo, da obediência, da pertença, da falta de sentido crítico, coisas domi­nantes na Opus Dei. Queria ter um pa­pel ali, na Obra. Era eu que queria en­trar. Subitamente, tornou-se claro que não era uma pessoa que se comporta­va 100% bem. A família donde provi­nha não era a família ideal. Porque não tinha contactos, não tinha poder. Imagi­no que, dado o meu background, se me tivesse tornado numerária, estaria des­tinada a ser auxiliar, isto é, uma es­pé­cie de dona de casa. Mas eu que­ria estudar, licenciar-me, passava regu­larmente nos exames. Propuseram-me então que fosse uma cooperante. Ofi­cialmente ainda o sou, dado que me dis­seram que uma pessoa permanece como cooperante para sempre, até pedir à Obra para deixar de o ser. Hou­ve um momento, a partir do qual a minha presença na residência começou a constituir mais um problema do que qualquer outra coisa. Havia algo que não tinha funcionado comigo, por isso tornara-me, pelas minhas perguntas, pela profundidade e complexidade das questões que levantava, uma pessoa não desejável. Além disso, não tinha grandes possibilidades económicas, logo era “uma pessoa de quem não se po­dia esperar nada! Assim, o interesse nas minhas relações devia cessar, mas sempre com estilo. A minha directora espiritual comportava-se aparentemen­te de maneira normal, mas na realidade eu dava-me conta de que não era ver­da­de. Compreendia que havia algo de estranho. O clima era artificial. Isto fez galopar a minha compreensão e multi­pli­cou o número de interrogações que nasciam na minha cabeça. Pouco a pou­co, via cada vez mais claramente as muitas coisas estranhas que havia naquele mundo afastado e escondido dentro de quatro paredes. Esta nume­rária comportava-se como uma pessoa normal, mas na realidade eu dava-me conta de que não era assim. Fui eu que compreendi que havia coisas estra­nhas. O clima era artificial. As numerá­rias que viviam ali eram todas sorriden­tes, disponíveis, alegres, extremamente gentis, distantes das suas famílias. Ti­nham um estilo de vida rígido, marcado por regras férreas.»

Também é pedido a Mariagrazia que se afaste da família?

«Decididamente. Quando começá­mos a falar da relação com a minha mãe, do facto de ela não achar bem que eu estivesse todo o tempo ali, co­me­ça­ram a pressionar-me. De uma maneira muito subtil, pediam-me que tivesse sentido crítico quanto à relação com a minha mãe. Em relação ao que via de estranho na Opus Dei não devia ter sentido crítico, mas em relação à mi­nha mãe sim. O sentido do seu com­por­tamento era o seguinte: A tua mãe tem alguns problemas, gosta muito de ti, logo, é justo que te afastes... Em de­terminado momento, dizem-me mesmo para não falar muito do que fazia ali e de qual era o ambiente. Eram muitos os detalhes dissonantes que me pertur­bavam, ao observar a vida das numerá­rias. Não tinham uma vida privada pró­pria. A sua existência era inteiramente absorvida pelo seu papel. Não podiam estar fora de casa para lá de uma certa hora, eram oprimidas por uma enorme quantidade de regras. Exteriormente, apresentavam-se todas da mesma ma­neira: com o mesmo olhar, com a mes­ma expressão. Nem a instituição univer­si­tária escolhida por mim estava bem. Havia o perigo que eu adquirisse ins­tru­mentos de compreensão, que apren­des­se a raciocinar pela minha cabeça, que penetrasse as lógicas da manipula­ção. O facto de estudar Psicologia cri­ou-me muitos problemas, não queriam que continuasse aquele curso. Tinham-me “aconselhado” a mudar de faculda­de. Foi-me pedido várias vezes, explici­ta­mente, que não estudasse certos li­vros que me eram propostos na univer­sidade. Quando, por exemplo, tinha que ler livros de Freud, diziam-me para não ler os originais, mas uma recensão fo­to­copiada pela Obra. Tinham uma lista com todos os livros autorizados ou não autorizados pela Obra; e uma recensão já feita e pronta para cada um deles. Para todos os temas, de todos os tipos. Face a esta atitude tinha compreendido muitas coisas. A minha reacção foi de enorme curiosidade, de querer inda­gar, de querer revirar todo este siste­ma da Opus Dei. Sobretudo, queria com­preender. Foi essa a minha reac­ção. Fiquei lá dentro para sublinhar até ao fim certas contradições. O seu pedi­do para não ler certos livros revelava-me todo um mundo. Esta reacção foi a parte saudável, aquela que consegui manter fora da participação emotiva. A reacção lúcida. O resto, a outra parte de mim, estava extremamente envolvi­da, infelizmente; e foi o que depois mais me fez sofrer. Magoa-me fortemente o facto de trabalharem tanto sobre a emo­tividade, sobre a afectividade, sobre as partes mais frágeis de uma pessoa. O seu apelo à fé, à espiritualidade, às emo­ções. Tudo isso é utilizado para ge­rir o resto, ou seja, a nossa existência. As experiências pessoais e íntimas dos indivíduos deveriam ser respeitadas em sentido absoluto. Por trás das suas ên­fa­ses sobre a espiritualidade existe uma tendência para se apoderarem das pes­soas. Quando nos damos conta de que assim é gera-se uma forte sensação de recusa. Captar o mal-estar em cada uma era difícil, dei-me conta disso no seu conjunto. Tinha realmente vontade de perceber como tudo podia aconte­cer, mas não era simples. Aparente­men­te, eram todas raparigas muito bo­ni­tas, muito dinâmicas, muito vivas. Per­gun­tamo-nos: por que razão raparigas assim, optam por uma vida deste tipo, uma vida tão sacrificada, uma existên­cia que tentam mostrar como uma vida esplêndida? Por que as vemos sofrer, estar mal e as ouvimos falar de felici­dade, temperada de sorrisos imprová­veis, mas indefectíveis? Conheci uma numerária que teve a coragem de falar comigo de determinadas coisas, de se abrir. E com ela houve uma amizade ver­dadeira. As barreiras caíram comple­tamente. Foi muito mais bonito e muito mais simples para mim, porque o con­fron­to com ela tornava-se imediato. Juntas discutimos muito do carácter crí­tico desta dimensão, falámos horas e horas de todo aquele mundo. Isto ainda antes de termos deixado a Opus Dei, ela primeiro e depois eu. Por isso tive nela um observatório privilegiado: sa­ben­do a verdade por uma fonte interna, podia verificar uma série de coisas. Já me interrogava antes, mas naquele pe­ríodo fiquei aliviada e consegui com­pre­ender. Pude verificar que tudo o que sentia não era fruto da minha imagina­ção, mas sim que a realidade podia es­tar para além das minhas sensações e revelar aspectos ainda mais escondi­dos. A esta numerária, que tinha posi­ções de responsabilidade, podia per­guntar tudo. Ela dava-me os conteúdos profundos, o sentido daquilo que vivia e via. Foi muito belo o percurso que fi­zemos em conjunto. Embora com obje­ctivos completamente diferentes. O meu objectivo era compreender. A maior parte das raparigas que estavam no Centro da Opus Dei eram filhas de supranumerários, de casais pertencen­tes à Obra. Lembro-me de um episódio relativo a uma numerária, que depois entrou numa forte crise e que saiu com grandes problemas pessoais. Lembro-me bem de um episódio com ela. Um dia encontrei-a na residência em que vivia e perguntei-lhe: “Como vais?”. A sua resposta foi emblemática. Disse-me: “Bem! Decidi ser feliz”. Percebi nela algo extremamente forçado.Trata-se de uma ex-numerária cujo irmão, um jovem profissional numerário, é director de uma residência da Opus Dei numa gran­de cidade italiana. O pai da ex-nu­merária pertence também à Opus Dei, como supranumerário. A jovem saiu da Obra depois de doze anos de pertença. Sofreu de anorexia e proble­mas psicológicos muito graves. Está agora em tratamento, acompanhada a­ctualmente por um psiquiatra e um psi­ca­nalista. Não consegue cortar a liga­ção com a sua passada experiência na Opus Dei, continua a frequentar os am­bi­entes “opusianos” e a manter vivas relações de afecto e de cumplicidade com numerárias pertencentes à Obra. Não está integrada em nenhuma rede de solidariedade de ex-numerários e recusa decididamente a ideia de ser aju­dada. Afirma que nunca poderia falar mal da Opus Dei, “porque seria como fa­lar mal do meu pai e da minha mãe”.

Quanto ao sistema de rígidas normas que causa mal-estar em numerários e numerárias, Mariagrazia conta:

«Quem entra na Opus Dei como nu­merário passa de uma situação de nor­malidade para uma espécie de psicose, na qual deixa de se ter contacto com a realidade. Ali dentro não há nada de real. Nem o modo como se vive e se aper­cebe as coisas normais fica agarra­do à realidade. É tudo condimentado e recheado por um milhão de coisas que não fazem sentido. Isto é estudado para criar uma série de pensamentos ne­cessários para desviar-nos de outras coisas. Depois há esta ausência de con­tacto consigo mesmo. O conceito da crise interior, do questionamento inter­no, o crescimento pessoal, são coisas que não são consideradas, ou aceites, pelo contrário, são temidas e recusa­das. Quer dizer que há qualquer coisa que não está bem connosco, não com o sistema em que nos encontramos. Quer dizer que precisamos de curar-nos. Quer dizer que temos algum pro­blema relacionado com a nossa fé. Mas tudo isto não tem sentido nenhum. É a visão do ser humano, típica da Opus Dei, que é simplificadora, esquemati­zan­te, rígida. É seguramente uma fa­mí­lia disfuncional e isso vê-se pelas consequências que provoca nas pes­soas que lá vivem. Aqui não há apenas um pai e uma mãe que não se amam, como muitas vezes acontece nas famí­lias problemáticas. Na Opus Dei – admi­tindo que pode ser comparada a uma família – nem sequer há a necessidade de amar: não é esse o objectivo para que foi criada e continua a existir. O ob­jectivo é outro, na Opus Dei não esta­mos juntos porque nos amamos. O ob­je­ctivo da família Opus Dei é puramente funcional: chegar a um resultado. A um produto. É difícil interpretar a Opus Dei em termos de uma família, porque a sua estrutura é muito mais simplificada. No máximo, assemelha-se a uma socie­dade por acções, coberta por valores fingidamente familiares.»

Mas na Obra fala-se continuamente da figura do Pai, Escrivá de Balaguer? É idolatrado, amado?

«Sim, mas é um pai-poster, um pai-imagem, que existe apenas para dar uma série de regras. As rígidas normas da Opus Dei poderiam ser as de um outro tipo de estrutura ou de contexto, poderiam ter como finalidade alcançar outros objectivos. Teoricamente, não é ne­cessária nem uma família a fingir, nem uma fé religiosa. Mas isto não se po­de dizer, porque senão as pessoas dei­xariam de se aproximar e, segura­mente, de dar a sua vida. Ou então a­pro­ximar-se-iam, mas não teriam a fé que é requerida, aquela necessidade de aderir ao modelo e de agradar ao Pai, que é típico da Opus Dei. Por sua vez, sobretudo nas numerárias, há a necessidade psicológica de correspon­der a ele. A nível mental, vigora um axi­o­ma: se sou uma boa filha, ele amar-me-á. Para a Opus Dei, o importante é obter uma fidelidade absoluta, para a vida. Esta destina-se, do meu ponto de vista, a obter um resultado que muitas vezes nem sequer é conhecido por parte dos aderentes.»

Quando se iniciou o seu processo crítico em relação à Obra?

«Aos vinte e dois anos comecei a nu­trir as primeiras dúvidas fortes sobre a Opus Dei. Depois da fase inicial do ena­moramento, em que queria encon­trar o meu papel no mundo através da Opus Dei, eles próprios intuíram que eu não era a pessoa certa, que iria in­comodar. Como viria a confirmar-se depois. Mas tive a verdadeira crise qu­an­do eles me afastaram. Não estava bem, não respondia ao modelo ideal. Criava relações demasiado profundas e verdadeiras. Estabeleci duas rela­ções de amizade fortíssimas com duas numerárias. Disseram a estas numerá­rias para se afastarem de mim, para não passarem mais tempo comigo. Na Opus Dei, as amizades são puramente funcionais, formais. Não criar ligações é uma regra. Criar ligações verdadei­ras é interdito, tal como eu o percebi. A amizade que tinha criado com uma numerária, quando foi percebida, ge­rou reacções fortíssimas. Disseram-lhe muitas vezes que não devia estar co­mi­go, que não devia ver-me, que não devia passar o tempo comigo. Foi uma sorte o facto de termos tido tempo de manter um diálogo, de tornar o nosso espírito crítico bastante forte. No fim, também ela reagiu como eu: dizendo a si própria que tudo aquilo não era pos­sível. Se na Opus Dei se tivessem apercebido mais cedo que tínhamos es­ta­belecido este nível de comunica­ção talvez não tivéssemos conseguido, tê-lo-iam impedido. De súbito, eu tor­na­ra-me uma pessoa perigosa e senti-me assim durante muito tempo. Esta recusa criou em mim uma péssima re­ac­ção, fiquei muito mal. O mecanismo psicológico que eles põem em prática leva-nos – sobretudo quando somos jo­vens – a identificarmo-nos muito com aquele mundo, com eles, com a sua resi­dência, com a sua espiritualidade, com aquele sistema. Quando deixam de nos reconhecer, é como se fôsse­mos uma pessoa completamente falha­da. Desencadeia-se o sentido de culpa, uma ausência de auto-estima total. Per­demos o sentido. Naquela realida­de, identificamo-nos demasiado, defi­nimo-nos totalmente. O que nos en­si­nam – numa modalidade que conside­ro muito semelhante a uma lavagem cerebral – é que aquilo que fazemos pela Obra, além de nos santificar, cor­responde à vontade de Deus. Por isso cria-se uma ligação extremamente for­te: quando nos dizem que para eles fa­lhá­mos, falhámos em sentido absolu­to. É uma ameaça fortíssima pa­ra nós mesmos, um verdadeiro crime. Eles formam na nossa mente um júri que nos avaliou e condenou. Deste modo, ou retomamos os seus cânones ou te­mos que partir. Para as pessoas que ali viveram muitos anos, que se identi­fi­caram completamente, é muito difícil fazê-lo. É um autêntico drama. Como va­mos conseguir encontrar dentro de nós aspectos que não dependam do seu juízo? Encontrar algo em nós que ainda seja autêntico, depois de anos e anos em que tudo é pesquisado, filtra­do, roubado. Inevitavelmente, é muito problemático. Acabamos por depender deles, quase totalmente. Nestes casos, a tentação de reprimir a própria inde­pen­dência de juízo e vergar-se ao estilo da Obra pode ser forte. Penso que se não tivesse tido relações verdadeiras com algumas pessoas que me explica­ram o seu tipo de vida na Opus Dei, pro­va­velmente isso teria sucedido. Era demasiado forte a sensação de vazio que causava o facto de não ser aceite. No início, eles fazem-nos crer que se­remos totalmente aceites, é como se nos dissessem que todas as pessoas “justas” – o conceito do que é “justo” na Opus Dei está muito presente – en­tram ali sem nenhum problema.»

O que deu a uma jovem de vinte e dois anos como Mariagrazia a força de não ceder, de não se formatar pelo modelo perspectivado?

«O facto de ter descoberto tudo, de ter descoberto o sistema da Obra, tudo o que está por trás das aparências. A vontade de verdade e de autenticidade foi mais forte em mim. O risco de mani­pulação é forte, para quem se aproxima da Opus Dei. Sim. Existem riscos enor­mes. De acordo com a minha experiên­cia, na Opus Dei tudo se baseia na manipulação. Na maior parte das situações direi que é consciente. Mas quem pra­tica este estilo é, por sua vez, vítima de manipulações. Há uma relação víti­ma-carrasco que se repete. E para quem faz parte da Obra por razões de poder, mais do que de verdadeiro envolvimen­to emotivo, a consciência do uso de mé­todos de manipulação é seguramente mais elevada. Considero que cada mem­bro tem uma consciência diferente, consoante o papel que tem e a sua his­tória.»

Que relação existe entre numerários e supranumerários? Quem tem mais poder?

«Depende. Há todo um mundo de poder sobre o qual eu gostaria de saber mais. Os numerários são a máscara, a imagem, o perfil exibido pela Opus Dei, por­que são pessoas devotas, dispo­níveis. Que sorriem. Na realidade, na minha opinião contam muito mais os supranumerários e os seus prováveis jogos de poder económico que estão por trás. Os numerários servem para atrair as pessoas. Para usar uma ima­gem, são como o porto onde atracam os barcos que chegam do mar. Depois há uma cidade, por trás daquele porto: e é uma coisa completamente dife­rente.»

Em que condições vive

a mulher na Opus Dei?

«De repressão total. Em todos os planos. De sexualidade, por exemplo, nem sequer se pode falar: a repressão é absoluta. É um aspecto da vida que deixa de existir, quando estão na Obra, as pessoas cancelam-no. Também co­migo foi assim. Fiz um milhão de círcu­los sobre a “santa pureza”. Na Opus Dei também é um problema sentarmo-nos numa cadeira e cruzarmos as per­nas: é uma provocação. O mesmo a­con­te­ce com o vestuário, as posições as­sumidas, o modo como se fala, até as intenções. Atingem-se elevados níveis de clausura mental, de manipu­lação, de verdadeira lavagem cere­bral.»

Que percurso intelectual e profissional é perspectivado a uma rapariga que se aproxima da Opus Dei?

Os supranumerários talvez tenham maior liberdade de movimento em rela­ção a iniciativas profissionais a desen­volver. Mas a Prelatura, até hoje, nunca quis comunicar ao mundo quantas e quais são as actividades já desen­volvidas. Na entrevista dada ao sema­nário Specchio, o Prelado Echevarría declara: «Quais são as associações ge­ridas pelos fiéis da Prelatura? É evi­dente que eu não sei nem os meus co­la­bo­radores. Na minha opinião, nem se­quer existe esse conceito, é uma qui­mera. Admitindo que é possível fazer o tipo de inventário de que fala, extrair-se-ia dele um inventário compósito; uma maçã mais duas cadeiras, quantos violinos ou quantas bolas de futebol fazem? No pensamento de Josemaría Escrivá, cada iniciativa deve ser equi­librada no plano financeiro, recorren­do, se necessário, à ajuda de patro­cínios e doações regulares. Mas a Opus Dei não intervém nem quer intervir, so­bre­tudo tendo em consideração um prin­cípio de autonomia e respeito pelas competências: “a cada um o seu ofício e cada coisa no seu lugar”». Prometem-nos muitas coisas. Nunca de maneira directa, mas fazem-no. Sim, fizeram-me crer que teria possibilidades profissio­nais e de crescimento intelectual. Há um grande impulso para o sucesso e para a afirmação do ponto de vista pro­fissional. Enorme. Mesmo ao nível dos estudos. Eu própria fazia muito mais exa­mes do que a média das outras estu­dantes. Estuda-se muito, trabalha-se muito. É necessário render! Há uma promessa de sucesso, porquanto o sen­tido da vida reside em dar o máxi­mo, todos os dias, por um objectivo. Porque assim somos santificados. É pre­ciso sermos bons, estudar da melhor maneira possível. Obviamente, isto faz desencadear em nós ideias, expecta­tivas. Dizia para comigo: Se agora faço mais quatro exames por ano do que as minhas amigas, veremos o que farei no futuro. Seria interessante interrogar­mo-nos sobre a razão desta ênfase na produtividade, no resultado, na afirma­ção profissional.»

E como é com as numerárias?

«As numerárias dedicam-se priori­ta­riamente à Obra. Para não falar das auxiliares: são mulheres submetidas a uma exploração total. Da pessoa huma­na, na auxiliar-tipo, resta muito pouco: é uma doméstica que, com toda a mani­pu­lação que sofreu, já não existe como pessoa. Trabalham muito sem ter na­da. Acho que as auxiliares são as per­so­nagens mais frágeis.»

O que poderia pôr em crise a Opus Dei, como sistema?

«Este sistema assusta-me porque me é difícil encontrar possibilidades de crise. Cada vez vejo mais poder. Isto é terrível. Desejo que haja uma crise, mas ainda não sei donde partirá, qual será o ponto fraco. Se tivesse que referir a minha experiência, diria que o ponto fraco está na informação, na cons­ciência, no espírito crítico de quem entra em contacto com determinadas realidades.»

Que conselho é possível dar a um pai que tem uma filha de catorze anos a frequentar a Opus Dei?

«Precisamente o de mandar ler aos seus filhos os livros críticos sobre a O­pus Dei, fazer tudo para que a sua men­te permaneça aberta aos estímulos. Procurar cultivar neles o espírito crítico, mesmo face a fenómenos complexos como a Opus Dei.»

De um ponto de vista ético e profissional, não é ilícito o facto de, através dos clubes juvenis da Opus Dei, rapazes ainda adolescentes serem induzidos a realizar escolhas com graves consequências?

«Na minha perspectiva é um delito que deveria ser punido. Um verdadeiro crime. Sem um adequado conhecimento por parte do adolescente e da sua família não devem ser consentidas op­ções tão decisivas. O que me aborrece é que tudo o que existe por trás da Opus Dei tenha que permanecer desco­nhecido: o fim de tantas acções discutí­veis permanece rigorosamente escon­di­do. Para eles, deste modo torna-se mais fácil agir. Porque assim conse­guem, mantendo um estado de misté­rio, obter novas adesões por parte de pessoas que, mais tarde, muitas vezes correm o risco de arruinar a sua vida. Conheci várias. Isto provoca-me uma grande raiva.»

 

Pode-se sair indemne de uma experiência semelhante?

«É difícil, mas quando se afasta com­pletamente dos pais supranumerá­rios por um período suficientemente longo, talvez possa. É a única condição. Caso contrário, cai-se numa espécie de condenação que nos deixa forçosamen­te mal. Muitas vezes, essas pessoas atravessam um período terrível de não retorno: estão mal dentro e estão mal fora da Opus Dei. É a pior situação: pre­tende-se permanecer na Obra, mas o corpo já não o consente, recusa-se. Ao mesmo tempo, a sensação de culpa que lhes foi instilada é fortíssima. Con­segue atingir todas as partes do seu ser, já não consegue agarrar-se a na­da: só existe a sensação de culpa. É totalizante.»

Em Itália também se discute uma lei contra a manipulação psicológica, que limite os danos que seitas e cultos possam produzir nas pessoas. A Opus Dei é semelhante a uma seita ou a um culto?

«Na minha opinião sim. Trata-se de uma realidade totalmente anormal no seio do mundo católico, com práti­cas e situações psicológicas extremas. Existem os mecanismos psicológicos de que falámos: o afastamento da família e das ligações precedentes, a manipu­lação da consciência e do pensamento, o culto do fundador, a mortificação corporal: na minha opinião, a Opus Dei é como uma seita.»

Espontaneamente, perguntamos a Mariagrazia se alguma vez falou da sua experiência com um sacerdote “normal”, com alguns representantes da Igreja católica.

«Não, nunca. A minha reacção foi de afastamento: ainda que só da Igreja, não da fé. Estou numa fase de análise crí­tica, em geral. Realizo uma investiga­ção pessoal, mas muito crítica em rela­ção à Igreja católica (precisamente por­que consente tudo isto) e a estes aspe­ctos de poder. Infelizmente dei-me con­ta de que Igreja e poder são uma equa­ção difícil de resolver. Aproximei-me tam­bém de outros tipos de igrejas cris­tãs, tenho uma certa curiosidade em re­la­ção a outros tipos de igreja onde o poder conta um pouco menos. Co­nhe­ci amigos protestantes, que frequ­en­tam a Igreja evangélica. É muito inte­res­sante a posição que existe nas rela­ções com a Igreja católica. Há maior ética, mais sentido de responsabilida­de. No entanto, considero que a Igreja católica deve saber o que acontece na Opus Dei. O facto de a Opus Dei ser ple­namente aceite pelo Vaticano faz per­der a vontade de ir falar com um sa­cerdote desta minha experiência. Há qualquer coisa que me travou, já que o facto de a Igreja ter aceite a existên­cia de uma realidade como esta no seu seio me faz reflectir. É como se perce­bes­se a ideia de que a Igreja sabe mui­to bem o que sucede no seio da Opus Dei, mas para ela está bem assim. Eu creio que sabem perfeitamente o que sucede. Esta sensação cria-me uma necessidade de afastamento total.»

O que significou para Mariagrazia o encontro com a Opus Dei?

«Encontrar a Opus Dei significou para mim perder-me e perder muitas coi­sas. A liberdade de pensamento: não houve um momento durante aque­les três anos, em que não me tenha questionado se estava a fazer o que devia, independentemente do que esti­vesse a fazer: vestir-me, conversar com uma amiga, ler uma revista, ver um filme, comer, dormir, sair, estudar. Lem­bro-me de, todas as manhãs, ao des­pertar, da necessidade de praticar o “minuto heróico”, isto é, levantar-me da cama imediatamente para poder oferecer aquele esforço a Deus; ou o “plano de vida”, a submeter à minha di­rectora espiritual, necessário para pôr ordem e santificação em todas as actividades quotidianas, sem qualquer exclusão. Ou as jaculatórias a oferecer para “reparar” as faltas de quem esta­va ao meu lado, quer fossem amigos ou perfeitos desconhecidos. Significa vaguear pelo mundo como um autóma­to programado, porque todos os pen­sa­mentos produzidos pela minha mente eram sugeridos, instilados do exterior; não me pertenciam, mas não era capaz de o perceber.»

Mariagrazia sentiu a falta de muitas coisas depois de ter conhecido a Opus Dei.

«A autenticidade dos encontros: encontrar uma pessoa e perguntar-me automaticamente, sem sequer pensar, se podia ser convertida, o que poderia dar ou fazer por aquele mundo. Logo, na realidade, nunca a encontrar verda­deiramente, nunca questionar-se sobre quem é? O que sente? O que pensa? Por que razão é especial? Faltou-me a sinceridade dos afectos: estar cons­tan­temente a dividir quem está ao nos­so lado, talvez desde sempre, em duas categorias bem distintas: os “justos” que conhecem a Obra ou fazem parte dela, a aprovam, nos apoiam; e os “fa­lhados” que nos criam obstáculos, que não aprovam, que nos aconselham a perceber e a reflectir, a ter capacidade crítica e dos quais começamos, por isso mesmo, a afastar-nos cada vez mais. Na Opus Dei é subtraído o património das emoções de cada um: vivem-se emo­ções muito fortes, momentos de grande força espiritual, grandes arre­ba­tamentos de fé que invadem o cora­ção e o enchem de amor; depois, da­mo-nos conta que é precisamente atra­vés deste precioso e único património que se activa a conquista e, em certo sentido, já não nos podemos pertencer verdadeiramente; é-nos confiscado pelo uso criminal que fazem dele. São coisas importantes, no meu caso recu­peradas depois num tempo muito curto, porque tive a sorte de não pertencer à “justa” classe social, de não ser muito apetecível. E porque fui capaz de cul­ti­var uma parte de mim que, apesar de tudo, nunca desapareceu e à qual pude agarrar-me para sair da realidade que fora construída à minha volta. Mas nem todos conseguem recuperar o que perdem e, em qualquer caso, a recu­pe­ra­ção é difícil. Tempo, cansaço, sofri­mento e raiva. E em certos casos, infe­liz­mente, nem sempre é completa.


 

 

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