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DESTAQUE 1
O Livro dos Actos dos Apóstolos como você nunca o leu
E se a leitura / interpretação do segundo volume do Evangelho de S. Lucas, mais conhecido por livro dos Actos dos Apóstolos, que nós, Igrejas, continuamos a fazer desde há séculos, for uma leitura / interpretação eclesiasticamente interesseira e não teológica, bem na linha da Boa Notícia ou Evangelho de Jesus? O simples facto de as nossas Bíblias cristãs, todas elas, apresentarem a narrativa, não como o 2.º volume do Evangelho de Lucas, a ser lido / escutado, logo a seguir ao primeiro volume, mas como um livro independente, depois dos 4 Evangelhos Canónicos, já nos deveria deixar alarmados. De resto, esta decisão não foi de todo inocente. E pode ter trazido - trouxe, de facto - graves consequências ao desenvolvimento da Igreja, através dos tempos. Sem esta decisão / interpretação interesseira, a nossa Igreja católica romana, por exemplo, teria, alguma vez, chegado a ser o que é hoje, tão visceralmente papal, tão agressivamente patriarcal-hierárquica, e tão poderosamente romana, nos antípodas do Movimento libertador, de cariz profético-político, iniciado por Jesus na Galileia e prosseguido por discípulas e discípulos seus, em radical igualdade? Poderiam os bispos alguma vez reclamar-se de "sucessores dos Apóstolos", como se de uma monarquia absoluta se tratasse, quando havemos de ser simplesmente Igreja de Jesus, comunidade-de-comunidades?
Podemos nunca ter dado conta, porque, infelizmente, em Igreja, fazemos quase sempre as coisas, mais por tradição e inércia, do que, como sempre deveria ser, por acção do Espírito Santo, o de Jesus, e por convicção pessoal, mas a verdade é que entre os quatro Evangelhos canónicos e este segundo volume do Evangelho de Lucas, há um violento e chocante salto para trás, para o Judaísmo em torno do Templo de Jerusalém que Jesus, o de Nazaré, havia simbolicamente destruído e abandonado, quando percebeu que o Deus da Lei e de Moisés lá cultuado ininterruptamente, era um ídolo, o maior Ídolo religioso que, qual vampiro, sugava não só o último cêntimo da viúva pobre, mas até o sangue dela e de outros milhões de empobrecidos, oprimidos e deprimidos, só para, assim, fazer crescer o seu Tesouro com que alimentava os 18.000 sacerdotes e suas famílias que dele viviam.
Ao reconhecer publicamente e, de chicote em punho, que o Templo de Jerusalém, em toda a sua imponência, não passava, como dele havia dito seis séculos antes o profeta Jeremias, de um "covil de ladrões"; e ao anunciar desassombradamente que dele não ficaria pedra sobre pedra, Jesus havia rompido duma vez por todas com ele e com o Sistema sacerdotal de Poder que ele representava / materializava. Para Jesus, Povo de Deus, ou povo escolhido, eram, afinal, todos os povos da terra, em radical igualdade, não era apenas, como ali oficialmente se ensinava, o Povo Judeu ou de Israel.
Esta denúncia valeu-lhe a morte violenta, não por parte do Povo Judeu, mas por parte do Sistema judaico e dos seus chefes de turno, na altura, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, mai-lo Sinédrio e o rei Herodes, a que se juntou também, à última hora, Pilatos, o representante do Império romano que ocupava militarmente o território. A este coube a execução da sentença de morte, já que a morte do "blasfemo" e do "subversivo" Jesus teve de ser exemplar para todo o Israel, e só o seria, se o condenado morresse de morte crucificada, pois, desse modo, ficava para sempre como o maldito dos malditos, não só dentro do território de Israel, mas em toda a ecumene então conhecida, sob o domínio de Roma.
Impressiona ver como o Autor do Evangelho de Lucas tem o cuidado de, neste Segundo volume, acentuar bem as abismais diferenças entre o final da vida histórica de Jesus e a Missão que ele confere às discípulas, aos discípulos, para que levem até aos confins do mundo a Boa Notícia de Deus que ele havia posto a descoberto / revelado e por causa da qual havia sido crucificado, e o comportamento duma significativa parte dos discípulos, particularmente dos Onze, desde cedo assediados pelos familiares de sangue de Jesus que, a esse título, se achavam com direitos de herança, na hipótese vir a vingar a tese do "messianismo de Poder" na linha do rei David. Precisamente, os mesmos familiares que, em vida de Jesus, tal como este grupo de discípulos, nunca se chegaram a identificar com o seu ministério, muito menos, com o seu Projecto profético-político libertador e universalista, pelo contrário, no caso dos familiares, mãe incluída, romperam abertamente com ele e chegaram ao extremo de tentar detê-lo como "louco".
A sala de cima onde permanecem reunidos os Onze, cujos nomes são de novo referidos com grande destaque, quando, na verdade, todos eles, depois da prisão de Jesus, haviam-se comportado como os seus opositores e, finalmente, até como os seus negadores e traidores, está toda conotada com o Templo de Jerusalém. Com eles, os Onze - anota e denuncia o relato de Lucas - estão também as mulheres deles, juntamente com Maria, mãe de Jesus e os seus irmãos.
Só lá não estão - vejam bem! - Maria Madalena, nem as outras discípulas nem os outros discípulos de Jesus, precisamente, aquelas e aqueles que já o haviam entendido e aceite o seu Projecto profético-político e o seguiram fielmente desde a Galileia, sem jamais o verem como "messias" na linha do Poder e da Casa de David, apenas na linha do Servo Sofredor de Javé, cantado pelo Segundo Isaías, uma concepção que nunca haviam feito o seu percurso dentro do Judaísmo sacerdotal e davídico, mas com a qual Jesus se identificou, à maneira do Grão de Trigo que, caído na terra, morre e dá muito fruto.
Este núcleo de discípulas e discípulos de Jesus há-de aparecer reunido não aqui, na sala de cima, muito menos, no Templo de Jerusalém que Jesus simbolicamente havia destruído, mas na casa de uma delas, por sinal, também Maria, de seu nome, então muito em voga entre as mulheres, não, obviamente, Maria, mãe de Jesus, mas Maria, mãe de João Marcos, precisamente aquela Comunidade a quem se deve o Evangelho que leva o nome de Marcos e que, embora apareça no Novo Testamento como o segundo dos quatro, é efectivamente o primeiro a ser escrito, muito provavelmente, uns 12-14 anos depois do assassinato de Jesus na cruz! Por isso, o mais antigo dos quatro relatos e o que está na origem dos outros três, sobretudo dos outros dois Sinópticos, Mateus e Lucas. Se esta data vier a ser plenamente confirmada, como se espera, contra tudo o que tem sido repetido e ensinado até agora, será também o escrito mais antigo do Novo Testamento. Compreende-se, assim, porque é que ele foi tão ignorado pela Cristandade Ocidental, nascida na continuação do colapso do Império de Roma e como sua continuadora, com o seu papa, ainda hoje, chefe de estado do Vaticano, um título de que está a ser difícil ver o Bispo de Roma abdicar. E que, enquanto se mantiver, é o maior anti-sacramento de Jesus, o de Nazaré, crucificado pelo Império.
A narrativa de Lucas avança uma mão cheia de pormenores que não temos sabido ver, muito menos, acolher e interpretar, mas que estão lá e dizem bem quanto foi atribulada e desastrosa a retoma, depois da morte violenta de Jesus, da actividade apostólica deste grupo de discípulos, congregado em torno dos "Doze", depois, "Onze" e depois de novo "Doze", mas por muito pouco tempo, após a atribulada eleição de Matias, e liderado, desde a primeira hora, por Pedro (aqui, já nem se diz o seu verdadeiro nome, Simão, apenas o título Pedro / Pedra que Jesus, ironicamente, lhe terá posto, por ele ser casmurro como uma pedra e só pensar num projecto de Poder, bem na linha de David, oposto ao dele, todo na linha do Servo Sofredor de Javé e do Filho do Homem).
Do outro núcleo de discípulas e discípulos, este Segundo volume do Evangelho de Lucas praticamente não fala. Não porque não saiba dele, ou não queira saber dele, mas simplesmente porque esse outro núcleo de discípulas e de discípulos já estava plenamente identificado com Jesus e o seu Projecto profético-político, não sacerdotal nem religioso, de fazer de todos os povos e nações o Povo de Deus, então designado pelo próprio Jesus por Reino / Reinado de Deus.
Infelizmente, sempre nos têm escondido que o Autor do Evangelho de Lucas só se ocupa de alguém, mulher ou homem, que ande com Jesus, enquanto ela, ele não lhe dá a sua incondicional adesão e não faz seu o seu Projecto libertador e universalista do Reino / Reinado de Deus. Porque, quando dá esse libertador e decisivo passo, a narrativa deixa de se ocupar mais com essa pessoa. A partir daí, é definitivamente uma mulher/um homem de missão, a mesma de Jesus, e prossegue-a, lá onde estiver, conforme o Espírito de Jesus lhe inspirar, de acordo com as circunstâncias concretas de espaço e tempo e também culturais. É por isso que a Igreja, quando verdadeiramente reúne em nome e em memória de Jesus, nunca pode tornar-se numa empresa, muito menos, numa multinacional do Religioso e/ou do Poder. Só pode ser uma comunidade-de-comunidades, convocada e congregada pelo mesmo Espírito de Jesus, que é sempre a sua verdadeira "alma". Sem o Espírito Santo, o de Jesus, a Igreja sempre acabará uma empresa mais, hoje multinacional, na continuação do que foram, no tempo de Jesus, a Sinagoga e o Templo de Jerusalém, com tudo de Lei e de Poder / Domínio, nada de Liberdade e de Humanidade / Sororidade.
Desse outro núcleo, vamos ter notícias mais adiante, neste Segundo Volume do Evangelho de Lucas, precisamente, na altura em que Pedro, já definitivamente liberto da "prisão" do império da Lei de Moisés e do projecto de Poder davídico, dirige-se, não ao Templo de Jerusalém e à comunidade que lá se reunia, presidida por Tiago, irmão de Jesus, mas "a casa de Maria, mãe de João, de sobrenome Marcos", e é atendido à porta pela esfusiante alegria de uma "serva" (ali não havia Poder, hierarquia, todas, todos eram servos uns dos outros, na linha do Servo Sofredor de Javé, tal como Jesus sempre fora entre eles e com eles, e havia recomendado que sempre fossem também, vida fora - "O que quiser ser o maior entre vós faça-se o servo de todos"!). E deste novo Pedro, finalmente convertido em discípulo de Jesus, só se voltará a falar de raspão, por ocasião do Concílio de Jerusalém, aonde ele também aparece, mas então já para defender abertamente e sem papas na língua o mesmo Projecto libertador e universalista de Jesus, com o qual está total e definitivamente identificado, ao contrário de Tiago, irmão carnal de Jesus, que se mantinha à frente da Igreja de Jerusalém, a reunir em pleno Templo, numa manifesta traição à maior Revolução Teológica de sempre, operada por Jesus, ao deixar bem claro que DeusVivo, Abbá, não quer ser adorado nem em Jerusalém, nem noutro Monte alto qualquer (só os míticos deuses e deusas que não passam de ídolos é que querem), porque os adoradores, elas e eles, de que Ele gosta são-no apenas em Espírito e Verdade, nada que se pareça com o que fazem as Religiões todas do mundo, com os seus templos e altares e sacerdotes, verdadeiros comerciantes de Deus Religioso, o Ídolo mais universal que, juntamente com o Ídolo Poder e o Ídolo Dinheiro, impede(m) as pessoas e os povos de ser / crescer em sabedoria e em graça, o mesmo é dizer, em liberdade e em protagonismo sócio-político na História.
Deste Segundo Volume do Evangelho de Lucas, há, como se sabe, uma outra figura que se destaca, depois da conversão de Simão Pedro. É Saulo de Tarso, depois chamado Paulo. Pode dizer-se que do capítulo 13 até ao fim, capítulo 28, o Segundo Volume do Evangelho de Lucas anda só ocupado com ele. Temos sido levados a pensar que é pela importância de Paulo na Missão aos pagãos. Nada disso. Também aqui, o Autor do Evangelho de Lucas narra todo o tipo de obstáculos que Saulo / Paulo levantou ao Espírito Santo, até, finalmente, acabar "derrotado" por Ele, para sua e nossa alegria. Também Paulo, fariseu de gema, formado na Escola da Lei de Moisés, que não na Comunidade do Evangelho de Jesus, do qual Marcos é o fiel garante, tinha o seu projecto político muito pessoal. Em nome desse seu projecto, chegou a perseguir a Comunidade-de-comunidades do Evangelho de Jesus que vivia e anunciava em toda a parte o seu Projecto libertador e universalista do Reino / Reinado de Deus, no qual todos os povos do mundo são Povo de Deus, na mais radical igualdade, sem necessidade sequer do baptismo de água, muito menos da circuncisão. Apenas a mesma Fé de Jesus que pressupõe práticas profético-políticas maiêuticas integradoras idênticas às dele, mesas partilhadas e afectos partilhados, assim como duelos teológicos desarmados contra a Idolatria, nos quais se pode até perder a vida. Acabou por deixar-se contagiar por uma dessas Comunidades, em Antioquia. Só que, tal como Simão Pedro, também Saulo / Paulo teve enorme dificuldade em abandonar o projecto messiânico de Poder na linha de David e acolher o do Servo Sofredor de Javé. Queria, a toda a força, que fossem os Judeus, o povo eleito de Deus, no qual os demais povos - os Pagãos - poderiam e deveriam integrar-se, sem discriminação. Por isso, nas suas viagens missionárias, começa sempre por dar prioridade aos Judeus, nas sinagogas onde eles se reuniam ao sábado. O Segundo Volume do Evangelho de Lucas é rico em pormenores e deixa bem a descoberto quanto Paulo resistiu ao Espírito Santo, as alhadas em que se meteu só para tentar levar a dele à frente, contra o próprio Espírito Santo. Inclusive, chegou a desfazer-se da crítica companhia de João Marcos, o garante do Evangelho de Jesus. Paulo não está sozinho nesta resistência. Com ele, está, tem estado praticamente toda a Igreja, a começar no papa de Roma e a acabar no mais desconhecido pároco de aldeia. Mudar é preciso. De Deus. E de Projecto. Só o Abbá, de Jesus, nos faz humanos em plenitude e sororais/fraternos. Um só Povo de muitos Povos. Vamos por Ele? |
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DESTAQUE 2
XXVIII Congresso de Teologia de Madrid
Olho vivo! – pede Nancy Cardoso, teóloga do Brasil
"Olho vivo!", pediu Nancy Cardoso, teóloga e Pastora da Igreja Metodista do Brasil, metida até aos ossos nas dores e nas alegrias, nas aflições e nas esperanças das / dos Sem-Terra daquele imenso país irmão. O XXVIII Congresso de Teologia de Madrid foi nitidamente "apanhado" de surpresa com a irrupção desta teóloga-mulher, a transpirar liberdade e alegria por todos os poros. A temática em debate, "Cristianismo e Laicidade", convidava às grandes tiradas filosóficas e teológicas, mas Nancy rompeu com o protocolo e comunicou com todo o seu corpo e com toda a sua pessoa. Foi o Brasil no seu melhor. Por duas vezes, usou da palavra no Congresso. A primeira, numa mesa redonda sobre "modelos de Família", e a segunda, numa conferência, a quinta num total de apenas seis, escutadas no decurso dos quatro dias. Pois nem aqui, Nancy se deu ares de sisuda conferencista, como gostam de se dar certos intelectuais, mesmo da área da Teologia. Imaginem que iniciou a sua conferência a cantar uma canção de Mercedes Sosa, ao mesmo que se baloiçava toda na cadeira, diante duma assembleia de várias centenas de participantes, boca aberta de espanto. E até se permitiu modificar o título da conferência. Em lugar de falar da "Presença libertadora do Cristianismo na América Latina", como lhe haviam proposto, preferiu falar sobre as contribuições que o Cristianismo dos colonizadores tem recebido de positivo dos povos latino-americanos! (Ver o principal desta conferência na nossa próxima edição, a primeira de 2009. Vale a pena esperar).
O pedido-alerta "Olho vivo!", de Nancy, tem a ver com a dura realidade que o Mundo do nosso Século XXI está a atravessar, com o Grande Capital a tomar conta de tudo, sem querer saber para nada nem de Ética, nem de Laicidade, nem de Religião, nem de Cristianismo. Ele cria as suas próprias regras e impõe-nas aos diversos Estados que, depois, se limitam, mais ou menos subservientemente, a executá-las. Os Povos assistem a tudo, sem darem por nada, entretidos e anestesiados que andam com os futebóis e as novelas, ou com as religiões e os grandes santuários das ditas, as quais, na maior parte dos casos, mais não são do que verdadeiras máfias encapotadas de religiões ou de igrejas com esta ou aquela designação, que para isso serve às mil maravilhas a chamada "liberdade religiosa" que continuamos aí, mais ou menos ingenuamente, a defender como um direito que o até o Estado laico deve salvaguardar, e que este Congresso de Teologia de Madrid tão pouco foi excepção, como se pode ver pela Mensagem final aprovada por aclamação. Nancy quase gritou o seu alerta, quando interveio, ao segundo dia, na mesa redonda sobre "Modelos de Família".
Advertiu, sem papas-na-língua, que uma Família que se limite a reproduzir, no seu âmbito, os interesses do Grande Capital, em vez de lhe resistir com imaginação e liberdade criadora, sem querer saber para nada dos tradicionais e hipócritas "modelos de família", como o da chamada "Sagrada Família" (é algum modelo de família para alguém?, perguntou ela, entre o jocoso e o bem-humorado. E adiantou, a propósito: Ao que se diz, essa "sagrada família" era composta por um pai que o não era, por uma mãe que foi sempre virgem e por um filho que foi sempre Deus). Houve risos, mas amarelos, porque, de uma só penada, Nancy derrubou o que não passa de um relato mítico, elaborado com categorias bíblicas que não são mais as do nosso Século XXI. E não há maneira de cairmos na conta disso, como Igreja, nem como Teologia tradicional, para mudarmos de discurso.
Defendeu então, com vivacidade, não "modelos de família", mas "modos de vida de família" que, na luta de classes, enfrentem a Banca, o Grande Capital, como fazem, desde há anos e anos, as / os Sem Terra do Brasil e de outras partes do Mundo empobrecido. Chegou, inclusive, a falar de "famílias orgásmicas, onde prazeres e dores rimam e ajudam a manter as pessoas na linha da frente dos combates pela Vida, pela Terra, pelo Pão, pelo Tecto, pelo Futuro.
É preciso - disse - desnaturalizar a família e libertar Maria, a de Jesus de tantas ideotices e de tantos moralismos bobos. Em defesa do seu ponto de vista, não hesitou em recordar "as avós de Jesus" que entram na sua genealogia teologicamente elaborada pelo Evangelho de Mateus, e que foram adúlteras e prostitutas. Perante o rosto incrédulo de muitos dos participantes, chegou a dizer com graça e prazer que há muita teologia num orgasmo, nomeadamente naqueles "Ai, meu Deus!", uma e outra vez repetidos em tais momentos pelas mulheres.
Falou também de "matrimónio indissolúvel", pois claro, mas - Olho vivo!, pediu ela também aqui - para acentuar que o único "matrimónio indissolúvel" que verdadeiramente existe sobre a Terra é o do Dinheiro e o do Lucro, que nós, os que andamos tão preocupados com a indissolubilidade do chamado casamento canónico nunca vemos, muito menos, denunciamos e combatemos. No entanto, enquanto ele aí estiver activo e, para mais, sem nenhum freio, não há "modelo de família" tradicional que se aguente, apenas "modos de vida familiar" sempre em constante adaptação, para que a vida chegue a ter oportunidade, apesar de todos os obstáculos e de todos os ataques que o Grande Capital lhe move.
Outro momento alto do Congresso foi o da conferência do grande François Houtart, catedrático emérito da Universidade de Lovaina. Foi com a sua sábia e oportuna conferência sobre "Laicidade, movimentos sociais e Cristianismo", que o Congresso concluiu. Contamos partilhar, nalguma das nossas próximas edições, o texto integral que o professor ficou de enviar por mail para o nosso Jornal que ele já conhece e aprecia.
O teólogo madrileno Benjamín Forcano também esteve à altura do Momento e desmontou de cima abaixo a concepção de Igreja que permanece na cabeça das diversas conferências episcopais do Ocidente, também da do Estado espanhol e que está nos antípodas do Evangelho de Jesus, ainda que muito de acordo com os transviados caminhos dos privilégios clericais e eclesiásticos. A essa concepção contrapôs com peso e medida a concepção de Igreja que já hoje se vive na Igreja de Base, toda ela muito mais conforme ao Espírito de Jesus. Não podia ter sido mais lúcida e mais clarificadora a sua intervenção. E também mais fecundamente subversiva e conspirativa, de resto, bem na linha do Bispo Pedro Casaldáliga, em cuja Prelazia Forcano está incardinado, e que, apesar de hoje já ser bispo emérito, ainda enviou ao Congresso uma oportuna e solidária mensagem. É, de resto, o único Bispo da Igreja católica que o faz, desde há muitos anos. Os bispos das dioceses espalhadas pelo Estado espanhol nunca foram capazes de um gesto e de um sinal de boa vontade e de comunhão eclesial. Pensarão que, desse modo, o Congresso acontece fora da Igreja, mas o contrário é que é verdadeiro: São eles, os bispos, que se põem fora da Igreja, ao revelarem-se totalmente incapazes de tamanha catolicidade.
O filósofo José António Marina e a catedrática de Filosofia Moral na Universidade de Barcelona encantaram com as suas eruditas conferências, ele sobre "O fenómeno do laicismo", logo a abrir o Congresso, e ela sobre "Ética e laicismo", no final do segundo dia.
Importantes achegas
de J.J.Tamayo
Igualmente, encantou o teólogo Juan José Tamayo, secretário-geral da Associação de Teólogas e Teólogos João XXIII, na apresentação-abertura da última mesa redonda do Congresso, destinada a debater os polémicos Acordos Igreja-Estado espanhol. Tamayo não se limitou a apresentar os dois intervenientes, uma e um, mas formulou, ele próprio, duas perguntas e avançou alguns tópicos de respostas, que valem mais do que tudo o resto. São estas as perguntas: 1. "E o governo socialista actual refém da Igreja católica?"; 2. "É a Igreja católica o quarto poder do Estado?".
Estas perguntas são mais do que pertinentes também para o nosso próprio país, onde mais do que simples "Acordos", há uma Concordata assinada em 1940 entre o Estado do Vaticano e o Estado Português e que ainda recentemente foi actualizada, quando deveria ter sido pura e simplesmente abolida pelo Estado constitucionalmente laico, como é o nosso.
Mas o teólogo Tamayo não se ficou por aquelas perguntas. Avançou também diversos dados concretos que nos levam a ter de concluir que o Estado espanhol, neste momento, está cada vez mais refém da hierarquia católica e a hierarquia católica é cada vez mais uma espécie de quarto poder do Estado espanhol. Isto, apesar de o governo espanhol ter aprovado leis como a do matrimónio homossexual e a do chamado divórcio express que levaram os bispos a manifestar-se nas ruas de Madrid, lado a lado com grupos católicos fortemente conservadores e escandalosamente ligados à alta finança naquele país e no mundo ocidental em geral.
O exemplo mais clamoroso contra a laicidade do Estado e a favor da nova aliança entre o trono e o altar - diz Tamayo - foi o acordo de financiamento, que, em 2007, subiu de 0,52 para 0,70. "Com que facilidade conseguiu a Igreja católica o que, anos e anos de luta não conseguiram as ONGs, Organizações Não Governamentais que vêm reclamando, em vão, os 0,7 para projectos de desenvolvimento no Terceiro Mundo!"
Porém, o mais escandaloso é que este financiamento contradiz o próprio Acordo Económico entre a Santa Sé e o Governo espanhol de 1979, no qual "a Igreja católica declara a sua determinação de conseguir por si própria os recursos necessários para atender às suas necessidades" (art. 2.5).
Com este novo acordo, longe de se avançar para o autofinanciamento da Igreja, avança-se a passos largos para o pleno financiamento por parte do Estado à Igreja católica, o que fere grave e escandalosamente o princípio de igualdade entre todas as Igrejas presentes e actuantes no Estado espanhol.
Tamayo lembrou um outro exemplo que revela quanto o actual governo espanhol está refém da Igreja católica. É a manutenção da oferta obrigatória da religião católica em todos os colégios públicos, concertados e privados, e em todos os níveis do ensino escolar, desde o infantil até ao bacharelato. Por outro lado, "numa manifestação mais, de ingerência clerical e de transgressão das normas de acesso do professorado ao ensino, os bispos continuam a deter o privilégio nomear e de despedir os professores de religião, quando, entretanto, é o Estado espanhol que os contrata e lhes paga e ainda se encarrega das indemnizações, quando os tribunais, chamados pelos professores a intervir, vítimas de despedimento sem justa causa, decidem a favor dos professores arbitrariamente despedidos pelos bispos.
Escandalosa é também a cedência do governo espanhol no que respeita aos conteúdos da nova disciplina de Educação para a Cidadania, onde não se poderá falar nem de aborto nem de matrimónio homossexual, por exemplo, e tudo por interferência da hierarquia católica. O mesmo se diga das questões relativas à origem e ao terminus da vida humana, ou eutanásia. "Muitas vezes me perguntei - diz Tamayo com ironia - se alguns dos membros do governo e o próprio presidente Zapatero se teriam convertido ao catolicismo da hierarquia.
Na sua breve intervenção, Tamayo defendeu ainda a necessidade de uma nova Lei de Liberdade de Consciência e Liberdade Religiosa que substitua a actual Lei Orgânica de Liberdade Religiosa. E uma outra, a Lei ou Estatuto de Laicidade em todos os âmbitos da função pública.
Já no que tem a ver com a Igreja católica espanhola como quarto poder do Estado, Tamayo denunciou no Congresso a estratégia seguida pela hierarquia para o conseguir ser cada vez mais. São quatro os pontos desta estratégia episcopal eclesiástica católica: 1. O constante apelo à lei natural; 2. A ocupação das ruas de Madrid, sempre que preciso, pelos próprios bispos; 3. A tentativa de confessionalizar as instituições laicas; 4. A insistência no financiamento da Igreja por parte do Estado.
Em todas estas frentes, a hierarquia católica tem conseguido marcar pontos, perante um governo cada vez mais refém dela. O que não deixa, obviamente, de constituir um retrocesso no processo da laicidade da sociedade e do Estado espanhóis. Porque o pior que nos poderia suceder, a nós europeus, era o regresso à velha Cristandade Ocidental, apenas um pouco mais reciclada. É caso, pois, para, também aqui, recordar o grito "Olho vivo!", da teóloga brasileira Nancy no Congresso. Antes que seja tarde demais. |
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Mensagem final do XXVIII Congresso de Teologia
1. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa são direitos fundamentais dos quais ninguém pode ser privado e que estão garantidos pela Constituição. Os poderes públicos são obrigados a promover as condições para que essas liberdades das pessoas e das organizações sejam reais e efectivas.
2. Ao vivermos numa sociedade plural no que respeita a crenças, o Estado tem a obrigação de velar pelos direitos de todos os cidadãos, sem qualquer tipo de discriminação, e para isso tem de se assumir como um Estado laico e independente. Deve, por isso, manter-se neutro diante das diferentes opções religiosas, garantindo a todas elas o exercício dos seus direitos, independentemente do desenvolvimento que tenham podido alcançar ou da sua dimensão social. Por conseguinte, a liberdade religiosa não pode estar condicionada nem subordinada a nenhum critério de tipo quantitativo nem de conveniência política ou razões históricas.
3. O direito à liberdade de consciência não é um preceito religioso, mas laico que, finalmente, foi aceite pela religião cristã, que está na base da secularização e da laicidade.
4. A laicidade tem uma relação vital com a secularização. À Igreja não compete indicar ou definir a ordem política da sociedade, uma vez que qualquer intervenção directa nesta matéria seria uma ingerência numa área que não é a sua. O Estado tem todo o direito de defender a sua autonomia e liberdade, de modo a não ficar refém da hierarquia religiosa. No entanto, laicidade não significa que o facto religioso deve limitar-se à esfera privada, renunciando a toda a presença na vida pública.
5. Laicidade não é a mesma coisa que irreligiosidade ou ateísmo. Nós, os cristãos, devemos defendê-la como uma garantia da liberdade de consciência e de crenças
6. Não se pode falar de uma ética deduzida directamente da fé. A ética é laica, fruto da razão humana, expressão da consciência individual e social, que diz respeito a todos os seres humanos. A relação da fé cristã com a ética situa-se no campo das motivações e da fundamentação, as quais não têm de ser necessariamente religiosas.
7. A vivência da fé cristã requer a incorporação de saberes autónomos provenientes das diversas áreas do conhecimento e do esforço humano. Só tendo em conta estes saberes, podemos responder eticamente aos desafios de cada momento histórico.
8. A laicidade, finalmente, é o marco jurídico e político no qual cabem todas as crenças e ideologias. Os cristãos e cristãs são chamados a colaborar na construção de um Estado laico que torne possível uma sociedade justa e solidária, sem discriminações por motivos religiosos, culturais ou sociais. Os movimentos sociais constituem a mediação necessária para que o laicismo e o cristianismo sejam motores de transformação social e de propostas alternativas, e não se tornem numa ideologia legitimadora da ordem estabelecida, como muitas vezes aconteceu ao longo da história. Este Congresso de Teologia compromete-se a trabalhar em conjunto com outros colectivos religiosos e laicos, na defesa de uma ética cívica libertadora para todos os cidadãos e cidadãs, com aqueles valores evangélicos que possam contribuir para um clima de convivência pacífica, baseada na justiça. O horizonte do nosso compromisso há-de ser a realidade da exclusão e da marginalização, que ocorrem no Terceiro Mundo. Neste Congresso consideramos especialmente a situação da América Latina e da África, através dos testemunhos e reflexões de duas teólogas dos referidos continentes. |
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Lúcido e corajoso MANIFESTO PELA LAICIDADE do Colectivo Redes Cristãs
Foi no decorrer da última Mesa redonda do Congresso que Raquel, porta-voz do Colectivo Redes Cristãs da Igreja de Base, a outra voz organizada, não hierárquica, da Igreja católica no Estado espanhol, por sinal, uma voz cada vez mais credível do que a conservadora voz hierárquica, lançou o seu "Manifesto pela Laicidade". O documento, em oito pontos, está já nestes dias e até final do ano, a recolher assinaturas em todo o Estado espanhol e irá por certo provocar um pequeno-grande sismo na sociedade e na Igreja católica de Espanha. É esse Manifesto que o Jornal Fraternizar que acompanhou em permanência o Congresso, divulga aqui em primeira-mão no nosso país. Para que ele frutifique também nestas terras lusas, onde, infelizmente, dizer Igreja continua a ser sinónimo de dizer hierarquia católica. Uma heresia que tem de ser depressa ultrapassada, porque, enquanto ela durar, não somos Igreja, povo-de-Deus, apenas "rebanho" sem voz nem vez. E, ainda por cima, pagante de todos os luxos da hierarquia eclesiástica e dos seus braços compridos, os párocos. Eis:
O Colectivo Redes cristãs, a partir da sua dupla pertença à comunidade cristã-católica e à sociedade civil, aposta decididamente na independência, no respeito e na colaboração entre esses dois âmbitos e bate-se por um Estado laico, que supere o actual confessionalismo encoberto, e por uma Igreja inspirada exclusivamente pelo Evangelho, sem qualquer submissão à tutela do Estado.
Consciente de que as actuais relações entre Igreja / Estado em Espanha, baseadas nos Acordos de 1979, foram o principal obstáculo à separação entre ambos e que actualmente estão a gerar um grande mal-estar em amplos sectores católicos ou não, o Colectivo Redes Cristãs manifesta claramente a sua posição e convida a juntar-se a ele as instituições ou pessoas que o queiram fazer.
O desenvolvimento progressivo da laicidade deve ser considerado como um facto positivo. É a lenta maturação da humanidade para uma cultura do pluralismo, do respeito à diferença, e o avanço para a criação daqueles espaços de liberdade que tornam possível o diálogo entre todas as ideologias filosóficas ou religiosas, crentes ou não. E, posto que o único garante deste espaço público é o Estado, laicidade significa a autonomia do Estado em relação a qualquer magistério religioso ou cosmovisão filosófica que pretenda impor-se como a única verdadeira. A partir desta posição:
1. Denunciamos os Acordos de 1979 do Estado espanhol com a Santa Sé, em vigor há quase 30 anos, e não propomos a sua renovação, porque, nascidos numa situação de privilégio confessional católico, estão a afectar actualmente uma sociedade religiosamente plural e amplamente secularizada e são causa de muitos conflitos que afectam a convivência cívica. Em consequência, exigimos que as entidades dependentes da Igreja e outras confissões religiosas se atenham ao direito civil que regulamenta a vida associativa no Estado.
2. Apostamos numa laicidade plena que reconheça a autonomia do político e civil em relação ao religioso e caminhe para a separação definitiva da Igreja e do Estado, reconhecendo a igualdade de direitos e de deveres, sem privilégios nem vantagens eclesiásticas e garantindo o exercício das liberdades fundamentais para todos e todas. A Igreja será livre tão-somente quando estiver, clara a definitivamente, desligada do Estado e ocupada decididamente no serviço dos pobres e excluídos deste mundo.
3. Defendemos um "pacto pela laicidade" entre confissões religiosas e o Estado, que abra caminho a um "estatuto de laicidade" que regulamente a presença e as actuações dos poderes políticos nas cerimónias religiosas e das hierarquias religiosas nos actos políticos, suprimindo os símbolos religiosos no espaço público civil.
4. Exigimos que o funcionamento democrático interno, a participação das bases e a transparência sejam critérios a ter em conta por parte do Estado, no momento de estabelecer marcos de colaboração com as entidades sociais. Consequentemente, denunciamos o clericalismo e a discriminação por razões de género e orientação sexual, ainda presentes na Igreja católica e outras confissões.
5. Defendemos uma "laicidade escolar" que possibilite a formação integral da pessoa, a aprendizagem, a socialização e a inculturação sem proselitismos nem catequeses tendenciosas, e que responda a princípios de igualdade, liberdade e formação crítica para todas as pessoas. Reconhecemos o pluralismo religioso e cultural existente e, em consequência, denunciamos a actual presença da religião confessional católica no sistema educativo e na escola pública e concertada.
6. Apostamos numa sociedade secularizada e pluralista, organizada democraticamente a partir da aconfessionalidade e sem permitir interferências confessionais no espaço público, nem privilégios que, à luz dos princípios de justiça e equidade, causam agravos comparativos com o resto das instituições. Neste ponto, denunciamos o actual sistema de financiamento da Igreja católica por parte do Estado espanhol.
7. Defendemos que se mantenha a autonomia da ética numa sociedade laica em todos os âmbitos próprios duma sociedade secular (no tecido social, político, produtivo, cultural, científico...), sem necessidade de recorrer a motivações religiosas para a legitimar. Em consequência, denunciamos as pressões da hierarquia católica para impor a sua moral sobre a ética pública.
8. Defendemos a presença das confissões religiosas nos meios de comunicação. Mas denunciamos a Conferência Episcopal Espanhola pelo intolerável abuso do direito da Liberdade de Expressão que está a fazer a Cope [rádio católica]. Exigimos à Conferência Episcopal Espanhola a mudança radical na sua linha editorial, e ao Governo maior firmeza na garantia do respeito pelos direitos dos cidadãos.
Finalmente, exigimos ao actual governo do Estado, como detentor e representante da soberania popular, e às hierarquias das confissões religiosas, especialmente à da Igreja católica, que assumam responsavelmente o espírito da Constituição, a qual, no art 16 parágrafo 3, ao afirmar que "nenhuma confissão terá carácter estatal", defende o estabelecimento daquele espaço laico e de diálogo a que fazemos referência. |
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Uma ceia do Senhor SÓ-FAZ-DE-CONTA
O XXVIII Congresso de Teologia de Madrid encerrou, como habitualmente, com uma "Celebração da Ceia do Senhor", previamente preparada pela "Comunidad de Santo Tomás". Desta vez, estive presente, mas apenas na minha qualidade de jornalista, director do Jornal Fraternizar, dado que, por mim, já não alinho neste tipo de missas-faz-de-conta. Tudo saiu conforme o programado. Sem que a assembleia tivesse voz e vez, para lá do que estava escrito nas folhas entregues à entrada na sala das conferências, onde a celebração decorreu. Tudo sem surpresas. Como numa representação teatral, onde os "actores" se limitam a executar o guião.
Custa-me ter de o dizer aqui, mas acreditem que é com muita ternura que o faço. Como espectáculo litúrgico, foi diferente das tradicionais e rotineiras missas paroquiais e episcopais, onde impera simplesmente a fria e mais do que antiquada letra do Missal. Mas acabou por ser uma "Ceia do Senhor" só de nome, porque sem ceia, sem comida a sério, sem mesa partilhada entre todos e com todos, as mulheres e os homens. Tudo muito longe, por isso, daqueles dois ou três que se reúnem em nome e em memória de Jesus, com ele e o seu Espírito presentes e actuantes, em redor de mesas com comida-de-comer partilhada. Para cúmulo, era a hora do almoço ou do jantar como se diz lá por Espanha. As cerca de 700-800 pessoas presentes tinham necessidade de se alimentar, mas cada qual teve de ir satisfazer essa real necessidade, ou em sua casa, ou num restaurante das redondezas. No salão, onde durante os dias de Congresso se serviu a palavra, houve apenas um bocadinho de pão, a simbolizar a comida real de que necessitamos para viver. E ainda por cima a leitura do Evangelho, escolhida para ser proclamada na ocasião, falava de um banquete de bodas em que os primeiros convidados para ele, todos à uma recusaram o convite. Um porque havia comprado um campo e tinha de ir vê-lo; outro porque havia comprado cinco juntas de bois e tinha de ir experimentá-las; e um outro - imagine-se! - porque se havia casado e, naturalmente, não podia ir, apesar de se tratar de um banquete de bodas.
Os cantos foram animados, houve até momentos de dança, houve oferendas, houve mesa, mas não houve comida real, nem comunhão real, nem partilha de vidas, nem partilha de afectos, nem compromissos efectivos com causas e situações concretas. Houve uma colecta solidária de dinheiro, com aquele obsceno sabor a caridadezinha que ajuda a "aliviar" as consciências pesadas de quem as dá, mesmo de quem sem ser rico, desconhece a fome e o desemprego, e a humilhação estrutural do terceiro, do quarto e do quinto mundos, os da fome endémica, porque os seus povos são sistematicamente explorados/assassinados, para que nós, na Europa, possamos desfrutar do necessário e até do supérfluo.
Pelos rostos das pessoas, à saída, pude constatar que iam satisfeitas e contentes com todo aquele teatro litúrgico, onde nem se chegou a fazer memória do Crucificado, já que as palavras com que habitualmente ela é feita foram modificadas para pior. Em lugar do "Tomai e comei isto é o meu corpo entregue por vós", saiu um politicamente inócuo "Tomai e comei este pão sou eu"; e em lugar do "Este é o cálice do meu sangue derramado por vós e por todas/todos", saiu um politicamente inócuo "Tomai e bebei este vinho sou eu"!!!
Sou o primeiro a reconhecer que é muito difícil celebrar com decência neste exigente e hiper-crítico Século XXI. Mais difícil ainda é sermos Jesus no Século XXI. Quando, porém, formos Jesus de verdade, também saberemos fazer de cada Ceia do Senhor a nossa própria Ceia para a vida do Mundo. |
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EDITORIAL
Esta é a hora da Demência, mas só
a Sapiência Humana garante futuro
aos seres humanos e ao Planeta
1. Nestes dias que são ainda os últimos do Século XX e do Segundo Milénio, o Grande Dinheiro mostra às escâncaras todas as suas garras e já não disfarça mais quanto está determinado e disposto a derrubar até grandes bancos nacionais e mundiais, grandes empresas multinacionais e grandes Executivos das nações e as próprias nações, só para, assim, se poder concentrar ainda mais e tornar-se no definitivo e único Senhor do Mundo. O calendário por que nos pautamos diz que estamos já a viver os primeiros anos do Século XXI e do Terceiro Milénio. Está redondamente enganado. E a enganar-nos a todas, todos. Estamos ainda a viver os últimos dias do Século XX e do Segundo Milénio, em que a Demência Humana tinha muito de artesanal e era pouco cientificamente organizada. Chegamos agora, só agora, aos primeiros dias do Século XXI e do Terceiro Milénio. Os próprios Executivos das grandes nações deixam perceber que foram completamente apanhados de surpresa (o nosso, em Portugal, ainda nem sequer deu por nada e continua a cantar loas ao Desastre e ao Abismo para onde está a levar o país!) e tentam resistir a todas estas inesperadas investidas do Grande Dinheiro. Será muito difícil, porque, para o fazerem, é ainda ao Grande Dinheiro que recorrem e, com isso, dão-lhe ainda mais poder de destruição e de descriação dos seres humanos e do Planeta. Deveriam decapitá-lo, sem dó nem piedade, mas, em vez disso, recorrem a ele, numa adoração/idolatria sem precedentes na História. Na sua Ignorância pretensamente ilustrada, desconhecem que o Grande Dinheiro é o filho unigénito da Demência Humana e, desde sempre, fez-se aclamar e adorar por todos eles e respectivas nações como o único Deus Todo-Poderoso que, por isso mesmo, não conhece lealdades, muito menos, conhece fidelidades para com os seus súbditos adoradores idólatras. Tão pouco respeita acordos que alguma vez possa ter assinado e leis aprovadas pelos Executivos das nações e respectivos Parlamentos. Apenas conhece as leis que ele próprio dita aos seus sucessivos Moisés nos poucos e inacessíveis Montes Sinais aos quais apenas esses seus poucos eleitos, em número cada vez mais reduzido, podem ter acesso. E mesmo essas, só enquanto são leis que lhe convêm, porque, a todo o instante, o Grande Dinheiro pode ignorá-las e mudá-las. E o que ontem valia, hoje já não vale. Porque só mesmo Ele, o Grande Dinheiro, único Deus Todo-Poderoso, é que vale. Tudo o mais, até velhos colaboradores mais fiéis, são atirados para a valeta da História como lixo, a partir do momento em que o Grande Dinheiro decidiu prescindir deles, sem apelo nem agravo. É a Demência Humana em toda a sua Treva pretensamente ilustrada, e pomposamente chamada Ordem Económica Mundial, sem dúvida, a Mentira mais bem arquitectada e ensinada nas Universidades e nas catedrais da nossa vergonha, como Ordem natural e sagrada. O que está a suceder estes dias que são os primeiros do Século XXI e do Terceiro Milénio, é um tsunami financeiro à escala global como nunca se viu e que, da noite para o dia, traça uma nova geografia do Planeta, sem que nada nem ninguém lhe resistam. Parece, até, que nem tempo há para se esboçar um qualquer gesto de resistência. E o que se vê, já se começa a ver, é que apenas o Grande Dinheiro sai ainda mais fortalecido, mais concentrado deste tsunami financeiro que a sua Demência Humana cientificamente organizada provocou e continuará a provocar, sempre que chegar a sua hora de agir, e que mais não faz do que roubar, matar e destruir em escala cada vez mais global. Os milhões de vítimas - porque há milhões e milhões de vítimas, senhoras, senhores! - ficarão até insepultos, se tanto for necessário, para que os ares fiquem rapidamente empestados e, assim, desapareçam mais depressa da face da Terra os seres humanos que ainda restam. Em seu lugar, ficará em todo o seu esplendor de Treva, o Grande Dinheiro, juntamente com todos os robots formatados pela Demência que os concebeu e pariu. Não. Não é para aqui que vamos. É já aqui que acabamos de chegar. Numa viagem sem retorno. Qualquer abrandamento e paragem que se verifique são apenas abrandamentos e paragens estratégicos. Para que a Demência cientificamente organizada possa preparar o próximo golpe, o próximo tsunami financeiro. Com a mestria e a crueldade que só ela conhece e é capaz.
2. Ando há anos a proclamar, no âmbito da minha missão presbiteral de Evangelizar os Pobres e os Povos, e não me cansarei de continuar, que o nosso Século XXI e o Terceiro Milénio que só agora começam, serão jesuânicos, ou pura e simplesmente não serão. Acham muitos, muitas, inclusive entre amigas minhas, amigos meus, que deliro e já nem sequer me tomam a sério. Correm, inclusive, a juntar as suas às vozes da Demência cientificamente organizada, e passam a vida a dizer, mais elas, que Jesus, o de Nazaré, de quem eu tanto dou testemunho e cuja mesma Fé tanto procuro viver e prosseguir, está mais do que ultrapassado. Esquecem-se de que são as vozes da Demência, e, por isso, por mais ilustradas que se pintem, nunca têm razão, ainda que, infelizmente, possam continuar a ter, e têm muita audiência. Porque a Demência de que elas são as vozes, nunca olha a meios nem conhece escrúpulos de nenhuma espécie para poder perpetuar o seu domínio e manter intactos e cada vez mais sofisticados todos os seus privilégios. Chega a realizar tantos prodígios, que consegue impressionar e deixar paralisados, até os que se têm por mais lúcidos e ilustrados. E seduz a muitas, muitos para as suas fileiras, sobretudo, os mais hábeis, os mais ambiciosos e os mais corruptíveis. Já as vozes da Sapiência, ao contrário, embora sejam vozes carregadas de razão e de verdade, e também de futuro, só porque são por sua natureza vozes desarmadas, despojadas de Riqueza, de todo o tipo de Poder, e cheias de Espírito Santo, o de Jesus, apenas frequentam e praticam a estratégia da fecundidade, própria do Grão de Trigo que, para dar fruto, muito fruto, aceita ser lançado à terra e aí morre, numa explosão de vida, sem a qual não haveria nem Pão Partilhado, nem Vida Humana Sapiente e Afectiva, apenas a Demência, o Nada, o Vazio, a Esterilidade, o Caos. Que é tudo o que hoje está aí a implantar-se cada vez mais à escala global.
3. "Não podeis servir aos Pobres e aos Povos (= a Deus que é mais íntimo a eles do que eles próprios) e ao Dinheiro". O nosso Século XXI e o Terceiro Milénio que começaram por estes dias estão, finalmente, maduros para entenderem esta Boa Notícia ou Evangelho de Jesus, o de Nazaré. Acolhemo-lo, finalmente, como o Alfa e Ómega dos Humanos, ou matamo-lo como o maldito dos malditos? |
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ESPAÇO ABERTO
A vontade de acreditar
Por MANUEL SÉRGIO
Reitor do Instituto Piaget
Há quem sustente que Malraux afirmava que “o século XXI será religioso, ou não será”. Se não descambo em erro grave, hoje é cada vez maior o número de pessoas que defendem um projecto ateu de vida – um projecto laico e de profunda ética e da mais autêntica espiritualidade, mas... dispensando Deus! As religiões não têm o monopólio da moral. E filósofos há que afirmam que “o século XXI será laico, ou não será”.
O Espírito do Ateismo (L’Esprit de l’atheisme. Introduction à une spiritualité sans Dieu, Albin Michel, 2006) de André Comte-Sponville e o Tratado de Ateologia (Traité d’athéologie, Grasset, 2005) de Michel Onfray, dois sucessos editoriais, defendem, cada qual à sua maneira, que Deus é uma ideia perfeitamente dispensável, no mundo da ética e da moral. André Comte-Sponville, de 56 anos de idade, considera-se um aluno dos “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud), assumindo por isso o desafio de ajudar à construção de uma metafísica materialista, de uma ética humanista, de uma espiritualidade sem Deus, procurando criar assim “uma sabedoria para o nosso tempo”.
Segundo o mesmo filósofo, o ateu nascituro abraçará a mensagem judaico-cristã, sem necessitar de invocar o nome de Deus. Demais, o nosso tempo testemunha os crimes mais hediondos, praticados por fanáticos religiosos que, portanto, se dizem crentes e tementes a Deus. Comte-Sponville proclama-se um “ateu cristão”, ou seja, aceita a moral cristã, sem descobrir em Cristo o Filho de Deus. É o filho do carpinteiro e possivelmente a maior figura da História, mas sem quaisquer atributos divinos.
Mas é a altura de lermos boa parte da tese de André Comte-Sponville: “Os três monoteismos, animados pela mesma pulsão de morte genealógica, partilham um conjunto de taras idênticas: o ódio da razão e da inteligência; o ódio da liberdade; o ódio de todos os livros em nome de um só; o ódio da vida; o ódio da sexualidade, das mulheres e do prazer; o ódio do feminino; o ódio do corpo, dos desejos, das pulsões. O judaismo, o cristrianismo e o islão defendem: a lei como fé, a obediência e a submissão, o gosto da morte e a paixão pela outra vida, anjos assexuados e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a mulher que se realiza unicamente como esposa e mãe, o dualismo corpo-alma. Que o mesmo é dizer: uma vida crucificada e o nada divinizado”.
Michel Onfray, de 49 anos de idade, é radical: é “um ateu não cristão”, recusando mesmo a bondade da mensagem judaico-cristã. A ateologia é uma nova disciplina que supõe a mobilização de várias ciências, tais como a psicologia, a psicanálise, a arqueologia, a linguística, a história, etc. E uma filosofia que se fundamente e seja a cúpula de “uma física da metafísica, uma real teoria da imanência, uma ontologia materialista”.
A conquista da tolerância, o surgimento da democracia, a libertação da mulher acontecem, apesar das religiões monogâmicas. E os mártires da liberdade de pensamento? Como esquecer as Cruzadas e a violência que se oculta por detrás dos Descobrimentos? E Copérnico, asseverando que o Sol não roda à volta da Terra? E Giordano Bruno, queimado em praça pública, porque tentava provar que o universo é infinito? E Galileu, obrigado a retratar-se, por fazer suas muitas das teses de Copérnico?... Enfim, o rol de mártires da liberdade, mortos, ou presos, ou condenados ao silêncio e ao desprezo público, pelas religiões monoteistas (ocorrem-me, neste passo, Espinoza, Teilhard de Chardin, Hans Kung, Leonardo Boff, Mário de Oliveira, Felicidade Alves) e pelo actual terrorismo dos fundamentalistas islâmico é tão grande, que me fico por aqui, não recordando as encíclicas papais onde o próprio regime democrático é considerado contrário à vontade de Deus. É possível encontrar a vontade de um Deus, infinitamente bom, em tantos pecados contra a humanidade?
Há necessidade de uma espiritualidade ateia? Estes dois filósofos dizem que sim e apontam a possibilidade da sua construção, já que a espiritualidade das religiões monoteistas é fixista, retrógrada, fascizante. Permitam-me que acrescente algumas nótulas da minha autoria: todos nós somos viajantes a caminho do Absoluto. O sentido da vida é a trancendência, ou seja, a capacidade de transcender e transcender-me, em pleno contexto de solidariedade e justiça social, já que não me transcendo senão em grupo (e quanto maior for o grupo tanto melhor). Jesus deixou-nos um mandamento: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos”. Comte-Sponville, porque não acredita n’Ele, confunde Deus com o Bem, a Verdade, a Beleza. Mas Jesus, ao dar-nos este mandamento diz-nos, implicitamente, que o ser humano não é um retórico num mundo feito, mas um ser práxico num mundo por fazer. Por isso, tanto André Comte-Sponville como Michel Onfray, não acreditando embora em Deus, seguem o grande mandamento que Jesus nos deixou - mandamento donde nasce uma efectiva e concreta solidariedade e não a “solidariedade” abstracta, ineficaz e longínqua do capitalismo e de todas as ditaduras mascaradas de socialismo, através de um capitalismo de Estado.
Li, com atenção e respeito, André Comte-Sponville e Michel Onfray e continuo a acreditar na missão salvífica de Jesus de Nazaré. A passagem de uma moral estática a uma moral dinâmica encontro-a em Jesus: na passagem de uma moral que se fundamenta na Razão a uma moral que se fundamenta no Amor, onde a Razão se encontra integral mas superada. Continuo com a vontade de acreditar no mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Amar... que não é filosofar unicamente!
Joseph Ratzinger, indiscutivelmente um teólogo de grande erudição, no seu livro A Igreja e a Nova Europa, traduzido, para português, pela editorial Verbo, afirma “que o dever moral não significa o cativeiro do Homem (...). O dever moral constitui a sua dignidade e, se ele o despreza, não se torna mais livre, antes acaba por se degradar ao plano da máquina e da pura e simples realidade das coisas (...). O reconhecimento daquilo que é moral é que constitui a dignidade humana (...). A moral não é o cárcere do Homem, mas o que nele há de divino” (p. 27). E acrescenta, mais adiante: “a visão ética ligada à fé cristã não é algo de exclusivamente cristão, mas antes a síntese das grandes intuições éticas do género humano”.
Ratzinger, em posições intelectuais opostas às de Comte-Sponville e Michel Onfray, continua a filosofar tão-somente, não sabendo descortinar a dimensão política da mensagem de Jesus. É que, se a ética cristã é uma síntese das grandes intuições éticas da humanidade, não há outra maneira de concretizá-la na sociedade, se a ética não for política também. A teologia da libertação tentou impregnar a política da ética que de Jesus emana. Pois foi rejeitada pelo então Cardeal Ratzinger! Bem prega Frei Tomás!... Nesta ética, que não me parece igual à de Jesus crucificado, não tenho vontade de acreditar. Por capricho ou antipatia por Joseph Ratzinger? De maneira nenhuma! Por esta única razão: o Jesus em que acredito e com quem dialogo, nas minhas orações quotidianas, foi um político também. Por isso, o prenderam, o torturaram e mataram. É neste Jesus, Filho de Deus, que sofreu, amou, verdadeiramente viveu – que eu tenho vontade de acreditar! É a Ele que eu invoco, sempre que a solidão me assalta pelos caminhos pedregosos desta vida! É a Ele que eu invoco, várias vezes ao dia, pois que sem a Sua companhia já não sei viver! |
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Desvendar a Mente de Deus
Por FREI BETTO
Teólogo
O Grande Colisor, o acelerador de partículas inaugurado a 10 de setembro 2008 com 27km de circunferência, construído sob as fronteiras da Suíça e da França, é para a física o que o telescópio é para a astrofísica.
Seu princípio operacional baseia-se na famosa equação de Einstein - E=mc2 (E é energia; m, massa; c, velocidade da luz). A quantidade de energia concentrada numa porção de matéria equivale à sua massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. A velocidade da luz é de 300 mil kms por segundo.
Se a energia tem massa, 1 kg de carvão, convertido totalmente em energia, produziria 25 mil milhões de quilowatt-hora (kwh) de eletricidade. Toda a energia eléctrica gerada nos EUA, somada à do Brasil, não chega a 15% disso.
Antes de Einstein, ninguém supôs que energia e massa se igualassem. A constante c, aparentemente inofensiva, representa um número astronómico - o quadrado da velocidade da luz. Se extrairmos energia de uma colherada de água, ela será suficiente para que um transatlântico atravesse o Atlântico mil vezes.
O que se pretende com o acelerador de partículas é captar a energia primitiva que deu início ao Universo há 13,7 bilhões de anos – o Big Bang. Ele é como uma imensa serpente brotando de um pequeno balão de hidrogénio, cujas válvulas, controladas por computadores, libertam jactos de gás, como se fosse uma brincadeira de criança. No entanto, em cada um daqueles jactos há mais prótons do que a soma de todas as estrelas da Via Láctea.
As minúsculas nuvens de gás entram pela cavidade eléctrica do gerador que separa os elétrons dos átomos de hidrogénio, como quem arranca o halo de luz de uma estrela, e lançam os prótons, primeiro, por um túnel de grande velocidade; em seguida, por um cano estreito como uma mangueira de jardim, mas com cerca de 5 kms de extensão. Dentro desse anel os prótons são acelerados por pulsão provocada por eletroímãs, enquanto ímãs focalizadores os reúnem num feixe tão fino quanto a grafite de um lápis.
Ao atingir uma velocidade próxima à da luz, a massa inicial aumenta cerca de 300 vezes, graças à própria velocidade. Neste momento, são desviados do anel e lançados contra um alvo dentro de um detector. Seus rastros, captados pelo campo magnético do detector, revelam a identidade da partícula.
Os aceleradores seriam como estrelas mecânicas; sua temperatura, elevada a milhões de graus, pode fazer com que as partículas se movam tão rapidamente como no coração das estrelas. No anel do acelerador, prótons e antiprótons percorrem trajectórias opostas em velocidades próximas à da luz, colidindo um milhão de vezes por segundo - e, assim, fragmentando os átomos em suas partículas mais genuínas, entre as quais o quark top, o último dos seis tijolos fundamentais da matéria a ter sua existência comprovada, em 1995.
Quanto mais aperfeiçoado o acelerador de partículas, mais serão descobertas novas partículas. Assim, os cientistas se perguntam se algum dia essa “arqueologia” da matéria findará - ao se depararem com aquela partícula que seria, afinal, a mais elementar, base de todas as demais.
O acelerador nos aproxima do parto gerador do Universo. Para as nossas dimensões de tempo, alcançar o que sucedeu 1 centésimo de segundo após a Criação é fantástico. Que importa saber o que ocorreu 1 decimilibilionésimo de segundo antes que você decidisse piscar o olho, como fez agora? No entanto, quando se trata da evolução da matéria, cada fragmento de segundo é como um século para a história humana.
Sabe-se, hoje, o que teria ocorrido nos três primeiros minutos após a explosão do Ovo Primordial que continha todo o Universo, o Big Bang. Mas isto não basta, muitas outras coisas se passaram na fornalha original antes daquela fracção de segundo.
O que a ciência procura é aproximar-se do momento em que o átomo inicial não se conteve e, pleno, abriu-se como um botão de rosa que exibe pétalas em todas as direcções. Assim, ficaremos sabendo um pouco mais a respeito das raízes de nossa universal e holística árvore genealógica.
O que fazia Deus antes de criar o Universo? A resposta foi dada por Santo Agostinho, no século IV: “Preparava o inferno para quem faz esse tipo de pergunta”.
Quem aprecia culinária e gosta de pilotar um fogão saiba que os ingredientes da receita para fazer o Universo são simples: 76,5% de hidrogénio; 21,5% de hélio e 2% de outros elementos químicos.
De preferência, o cozinheiro deve ter mãos divinas.
* escritor, autor de A Obra do Artista – uma visão holística do Universo (Ática), entre muitos outros livros. |
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Peixinhos e Tubarões
Por FREI BETTO
Teólogo
Angélica Aparecida de Souza Teodoro, 18 anos, mãe de um filho de dois anos, estudou apenas o 1º. grau. Trabalha como empregada doméstica, mas encontrava-se desempregada, ao ser presa, em Novembro, dentro de um mercadinho do Jardim dos Ipês, na capital paulista, acusada de roubar uma lata de manteiga marca Aviação, de 200 gramas, no valor de 3,10 reais. Levada para a 59º Distrito Policial, conhecido como Cadeião de Pinheiros, recebeu voz de prisão do delegado Marco Aurélio Bolzoni.
Por subtrair mercadoria no valor de R$ 3,10, Angélica passou na prisão o Natal, o Ano-Novo e o Carnaval, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o pedido de defesa da doméstica, o indeferiu. Angélica foi solta dia 23 de Março, mais de quatro meses depois, graças à liminar do ministro Paulo Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.
O Brasil e sua Justiça parecem postos de cabeça para baixo. Há uma inversão total de valores e critérios. Um publicitário vem a público e declara ter recebido, via caixa dois, 10 milhões de reais numa conta clandestina no exterior, e fica, por isso mesmo, protegido por direitos que lhe foram garantidos pelo STF, reagindo com escárnio às interrogações dos parlamentares incumbidos de apurar corrupções.
Um publicitário mineiro faz biliardários empréstimos ao tesoureiro de um partido político, sem revelar a origem dos recursos, porém destinando-os ao suborno de deputados federais, e fica por isso mesmo.
Um deputado federal, cassado após ocupar o cargo de presidente da Câmara dos Deputados, achaca em R$ 7 mil o proprietário de um restaurante e ninguém lhe dá voz de prisão.
Um alto funcionário dos Correios é filmado embolsando propina no valor de R$ 3 mil, a polícia não é chamada e ele continua livre, prova viva de que crimes de colarinho branco, merecem a cumplicidade de sectores da Justiça.
Quando políticos, banqueiros e empresários processados por desvios de recursos públicos devolverão o que roubaram? Quem pune os gastos exorbitantes de um reitor de Universidade de Brasília, os desvios de recursos do BNDES, as maracutaias nas privatizações sob o governo FHC?
Fica a impressão de que, por baixo de tanta corrupção, há uma extensa rede de cumplicidade. Tubarões não são punidos para evitar que entreguem outros tubarões à Justiça. Neste país, basta ter dinheiro, bons advogados e relações nas instâncias de poder para ficar assegurada a impunidade. Enquanto isso, os pobres, sob simples suspeita, sofrem torturas ou levam bala antes de serem inquiridos ou investigados.
Os peixinhos, como Angélica, ficam meses na cadeia por causa de R$ 3,10. Os tubarões, imunes e impunes, são a prova viva de que o crime compensa – de facto e de direito – desde que o assalto abocanhe valores em milhões de reais. De preferência dinheiro dos cofres públicos.
Vale o provérbio: “Quem rouba 1 real é ladrão, quem rouba 1 milhão é barão”.
Estatísticas comprovam que a polícia do governador Sérgio Cabral, do Rio, matou mais este ano do que os crimes cometidos em São Paulo por bandidos. Quem decepa a mão assassina do Estado?
No Brasil, quando a polícia pára uma pessoa de posses, a pergunta é: “Sabe com quem está falando?” Em outros países é o policial que faz a pergunta: “Quem você pensa que é?”
Quando estive na Inglaterra, nos anos 80, vi pela BBC – uma TV estatal – o sobrinho da rainha Elizabeth II ser levado a julgamento. Parado por uma patrulha rodoviária, constatou-se que ele dirigia sob efeito de álcool. Cassaram-lhe a carteira por seis meses.
Dois meses depois foi parado por outra patrulha. Pediram-lhe a carteira. Não tinha. Então apelou para o jeitinho brasileiro: “Sabe com quem está falando? Sou o príncipe fulano”. O guarda insistiu em ver os documentos. O rapaz voltou ao bate-boca. Então o policial disse-lhe: “Um de nós dois está errado. Você está preso e a Justiça dirá quem de nós tem razão”.
Televisionado para todo o país, o príncipe viu-se obrigado, pelo juiz, a pedir desculpas ao guarda e teve a sua licença de condução cassada por cinco anos.
Assim se faz cidadania.
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A Impossível COMENSALIDADE depois de Doha
Por L. BOFF
Teólogo
O vergonhoso fracasso da Cimeira de Doha deve-se principalmente aos países ricos que quiseram garantir a parte de leão nos mercados dos pobres. Num quadro de fome já instalada, desperdiçou-se a oportunidade de assegurar comida na mesa dos famintos. O sonho ancestral da comensalidade que nos faz humanos, quando todos poderiam sentar-se à mesa para comer e comungar, torna-se ainda mais distante.
Além da crise alimentar, ainda nos assolam a crise energética e a climática. Se não houver políticas mundiais articuladas, podemos causar graves riscos às populações e ao equilíbrio do planeta. Daí A Carta da Terra propor uma aliança de cuidado universal entre todos os humanos e para com a Terra, até como questão de sobrevivência colectiva.
Os problemas são todos interdependentes. Por isso não é possível uma solução isolada com meros recursos técnicos, políticos ou comerciais. Precisa-se de uma conjugação de mentes e coração novos, imbuídos de responsabilidade universal, com valores e princípios de acção, imprescindíveis para uma outra Ordem mundial. Enumeremos alguns deles:
O primeiro de todos reside no cuidado pela herança que recebemos do imenso processo de evolução do universo.
O segundo está no respeito e na reverência face a toda alteridade, a cada ser da natureza e às diferentes culturas.
O terceiro encontra-se na cooperação permanente de todos com todos, porque somos todos eco-interdependentes, a ponto de termos um destino comum.
O quarto é a justiça societária que valoriza as diferenças, diminui as hierarquizações e impede que se transformem em desigualdades.
O quinto é a solidariedade e a compaixão ilimitada para com todos os seres que sofrem, a começar pela própria Terra que está crucificada e pelos mais vulneráveis e fracos.
O sexto reside na responsabilidade universal pelo futuro da vida, dos ecosistemas que garantem a sobrevivência humana, enfim, do próprio planeta Terra.
O sétimo é a justa medida em todas as iniciativas que concernem a todos, já que viemos de uma experiência cultural marcada pelo excesso e pelas desigualdades.
Por fim, é a auto-contenção da nossa voracidade de acumular e consumir, para que todos possam ter o suficiente e o decente e sentir-se membros da única família humana.
Tudo isso só é possível se, junto com a razão instrumental, resgatarmos a razão sensível e cordial.
A economia não se pode independentizar da sociedade, pois a consequência será a destruição da própria ideia de sociedade e de bem comum. O ideal a ser buscado é uma economia do suficiente para toda a comunidade de vida.
A política não se pode restringir a ordenar os interesses nacionais, mas se obriga a projectar uma governação global para atender equitativamente os interesses colectivos.
A espiritualidade precisa de ser cósmica, que nos permita “viver com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade face ao lugar que o ser humano ocupa na natureza” (Carta da Terra, introdução).
O desafio que se impõe parece ser este: passar de uma sociedade de produção industrial em guerra com a natureza para uma sociedade de promoção de toda a vida em sintonia com os ciclos da natureza e com sentido de equidade.
Estas são as pré-condições de ordem ética e de natureza prática que se destinam a criar as condições de uma comensalidade possível entre os humanos. Logicamente, tornam-se necessárias as mediações técnicas, políticas e culturais para viabilizar este propósito. Mas elas dificilmente serão eficazes, se não forem plasmadas à luz destes princípios-guias que significam valores e inspirações. |
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A Cristina e Isidro
VIVAM OS NOIVOS
A Cristina e Isidro:
Vivam os noivos! Felicidades!
Felicitamo-vos pelo compromisso e pela coragem que significa romper com as estruturas estabelecidas para estas celebrações. Dar toda a prioridade ao amor, no momento de compartilhar com as pessoas que vos amam a celebração do amor, que é o único essencial, perante a parafernália que habitualmente acompanha estes momentos (roupas, banquete, convidados e presentes de todo o tipo...).
Obviamente, estamos convosco. Destes um passo muito significativo nestes tempos que correm. Este é um momento muito importante na vossa vida e vós destes este passo duma maneira livre, recorrendo a gestos livres e em radical rebeldia em relação ao que nos cerca, o que faz deste vosso passo um forte sinal revolucionário. Fica assim provado que também vós quereis fazer parte, já fazeis parte, deste pequeno grupo de homens e de mulheres livres que apostamos que outro mundo é possível. O mundo da fraternidade universal, da igualdade e da justiça, da liberdade, do compromisso.
Compartilhamos este modo de celebração. Há já quase 28 anos, experimentámo-lo nós, de outro modo, mas também rebelde, já que nessa altura deu muito que falar... Os modos de fazer não são de um tempo ou de outro, respondem a sentimentos e a atitudes perante a vida. Mais uma vez, felicidades!
O dia 28 de Março 2008 foi apenas uma pausa ou um momento de paragem no vosso caminhar. Uma paragem muito importante, na qual, olhando-vos nos olhos, dissestes que sim, que já éreis felizes e que quereis continuar a sê-lo, unidas que estão, agora, ainda mais as vossas vidas e as vossas pessoas. O vosso compromisso não nasceu nesse dia. Já vinha crescendo há muito tempo. Depois desta paragem e com mais forças ainda, como as que ganha o caminhante depois de um reparador tempo de descanso, carregadas as vossas mochilas de carinho, respeito, igualdade, projecto comum, responsabilidade, sinceridade... e tantas outras coisas, continuais a caminhar e a fazer caminho ao andar.
As mochilas, mesmo quando cheias, não são pesadas, uma vez que os dois juntos as enchestes e nelas colocastes coisas que vos unem livremente, em vez de coisas que vos acorrentam.
É um caminho difícil, mas bonito ao mesmo tempo. E o mais bonito é que se percorre juntos. E todos sabemos que “juntos” o percorremos muito bem. Os momentos difíceis também aparecerão, mas como na mochila vós levais reservas, eles vão-se superando. Atenção! Para que as reservas não se esgotem na mochila, é preciso mantê-las sempre carregadas. A casa e as tarefas domésticas são dos dois. Os dois tendes duas mãos cada um. As mãos, se as habituamos, podem fazer qualquer serviço. Não tem de haver serviços próprios do homem e serviços próprios da mulher. É bom que também nisto sejamos valentes, rompamos estruturas e revolucionemos este mundo pela igualdade entre homens e mulheres. A simplicidade de vida, a todos os níveis, é também algo que nos pode fazer avançar. E o acolhimento, pois então, a casa acolhedora, uma casa aberta onde ninguém se sinta estranho e onde realmente se compartilha.
Como vedes, podíamos continuar aqui a falar, a falar... É que, quando estamos felizes e alegres, estamos com gosto e é como se nem déssemos pelo tempo passar. Nunca nos cansamos.
Queremos participar da vossa alegria, compartilhando uma semana convosco aqui em Madrid. Seria no mês de Julho. Em Agosto, não estaremos. A nossa casa é também vossa. Aqui, de uma maneira simples, podeis passar uns dias felizes. Maria Laura conhece bem a casa. Na sala, podemos pôr um colchão de casal. Tudo o que temos, pomo-lo à vossa disposição. Apenas tereis que nos dizer o dia em que chegais. Não são precisos preparativos especiais, quando alguém vai à sua própria casa e esta, dizemo-lo de novo com a maior simplicidade do mundo, é também vossa casa. Uma pessoa é imensamente rica, na medida em que é capaz de compartilhar o pouco ou o muito que tiver, pois devemos sentir-nos apenas administradores do que tivermos, nunca proprietários ou donos. Felicidades!
Amparo / António. |
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OUTRAS CARTAS
Os seus livros são tesouros
Queluz. E. Lopes: Sr. Padre Mário de Oliveira, desejo que continue bem de saúde. Gostei muito de o ter conhecido pessoalmente, este ano, em Lisboa, na Feira do Livro. Obrigada pela forma amável como me acolheu e autografou o livro que comprei na altura: Ouvistes o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos. Eu já tinha comprado outros que ia encontrando nalgumas livrarias. Na Fnac do Fórum de Almada, comprei Quando a Fé move montanhas, logo em Maio.
Os seus livros são tesouros que encontrei. No meu coração, sempre “pensei” Deus, Jesus, Maria de Nazaré e também certos “factos”, tal como o Sr. Pe Mário no-los faz entender. Vivi num sofrimento interior, por não conseguir “pensar” nem aceitar como verdade aquilo que ouvia na igreja católica e no que os meus amigos e as pessoas que conheço acreditam e praticam. Gerava-me um conflito interior que como que me fazia “doer”. E não podia desabafar, a não ser com o meu marido, porque percebia que não tinha à volta quem pensasse como eu. Teria preferido nunca ter conhecido o meio religioso católico ou outro que fosse. O que ouvi e da maneira como mo diziam contrariava o dom precioso da inteligência. Sufocava, era doentio.
Decididamente, por mim, ainda antes de conhecer os seus livros, afastei-me do ambiente religioso que me perturbava. Não me afastei das pessoas. Continuo a abraçá-las, quando me encontro com elas. E digo-lhes, delicadamente, ou melhor, dizia-lhes, quando mo perguntavam, por me terem deixado de ver, que penso no meu íntimo de maneira diferente e quero ter outro caminho.
Quando me deparei sucessivamente com os seus livros, foi a Alegria e a Paz. Encontrei neles Deus da Vida e da Alegria! Emocionei-me verdadeiramente. Nem consigo bem exprimir-me, porque a Alegria da Verdade é muito profunda. Bem-haja!
Hoje, venho pedir-lhe o favor de me enviar, quando puder, o seu livro Na companhia de Jesus e de ateus. Livro dos Actos século XXI. Agradecia-lhe que o autografasse, porque me dá muito gosto.
Agradeço-lhe tudo o que escreve nos livros. Leio-os com muita atenção. Acho que posso dizer que rezo com eles, quando os leio. Lembro-me da frase que fez clarão no meu coração, quando li o primeiro livro que adquiri. Não a reproduzo literalmente, mas o sentido que me ficou gravado é este: não é ter Fé em Jesus. É ter a mesma Fé de Jesus! Ela leva-nos à vida fraterna, sempre. E a sermos Pessoas como Deus Pai/Mãe nos deseja. Muito obrigada por tudo.
Respeitosos cumprimentos.
Brasil. M. Tiago: Olá, Padre Mário! Mais uma vez lhe escrevo. Antes de mais nada, para dizer-lhe que estamos cada vez mais actuantes e perseverantes na fé libertadora em Jesus. Seus textos e estudos nos fazem cada vez mais sentir que não estamos sozinhos no caminho estreito, porém profundamente libertário de uma fé que rompe preconceitos, estereótipos e nos leva a querer uma sociedade Justa, Fraterna, Politizada, esses mesmos atributos que definem quem é Deus, o Ser Político, Fraterno e Justo por excelência.
Escrevo-te para, antes de mais nada, dizer que tua última resposta a nossa carta foi para nós um bálsamo e um compromisso. Bálsamo, por ser uma espécie de sacramento de confirmação para nossa caminhada pastoral. E compromisso, pois nos alertou que não tínhamos que ficar apenas na denúncia do ateísmo do sistema neoliberal, mas ir mais além, mergulharmos na crítica, dura e radical. E a partir de nós mesmos, de todas as formas de idolatria, que tiram a Política e a Fraternidade do centro de nossas vidas e colocam outras coisas no lugar. Coisas que se traduzem pelo Deus Dinheiro.
Assim, estamos avançando. Estamos num conflito aberto com os poderes eclesiásticos. Denunciamos a malfadada campanha do dízimo que a paróquia central quer impingir as comunidades pobres. E em troca, propomos a luta solidária pelos direitos das pessoas. Ao invés de enviarmos dízimos para a paróquia central, o que nós fazemos com o dinheiro arrecadado é um pouco o que vocês fazem aí em Macieira da Lixa: estamos construindo um centro de defesa dos direitos humanos. Contaríamos com advogados para defender os pobres, as prostitutas, os homossexuais e todos aqueles que sofrem injustiças.
Outro aspecto positivo: Estamos firmemente posicionados contra o proselitismo de qualquer Igreja. Visitamos presídios mas não para converter ninguém, nem administramos os malfadados sacramentos em seus ritos vãos. Quando vamos aos presídios, levamos o único sacramento que temos o mandato de levar: a luta pela Justiça. Lutamos por melhores condições para os encarcerados e, ao mesmo tempo, os esclarecemos de seus direitos... Não há sacramento melhor que esse. E ainda dizemos para as pessoas que não é necessário que se vinculem ás igrejas para se salvarem...
Como pode ver, padre Mário, crescemos muito em qualidade, depois que estudamos os seus livros e os de Jon Sobrino. E continuamos esses estudos... Conseguimos a edição de seu último livro QUANDO A FÉ MOVE MONTANHAS e mais do que depressa distribuímos alguns exemplares em nossas comunidades. As pessoas os devoravam como um prato suculento e cheio de conteúdo. E já está combinado que, tal como os outros livros, ao final desse ano, os livros serão “soltos no mundo”, para que possam livremente estar nas mãos de outras pessoas.
Ouro aspecto importante a considerar: Deixamos bem claro ao nosso pároco que não queremos deixar de ser cristãos católicos. Mas que sermos católicos (universais) só tem sentido se formos jesuánicos, ou seja. profundamente rebeldes em relação a qualquer forma de poder que nos corrompa. Se a Igreja existe é para um serviço maiêutico, que rompa com quaisquer idolatrias e formas de adoração do poder e do dinheiro.
Não é isso que queremos. Queremos a liberdade, a Justiça, o fim dos preconceitos. E, lá, em nossas pequeninas comunidades de base do bairro de Sapopemba, na zona leste de São Paulo, é assim que queremos viver.
E feitos inéditos têm acontecido. Aqueles membros que têm automóveis (eu, inclusive), já disponibilizamos nossos carros para o serviço da comunidade. Quem mais precisa, usa de forma responsável. Aqueles que têm livros, emprestam para os outros. Aqueles que têm um saber profissional, cedem parte do seu tempo no serviço dos outros. ...Estamos a começar a viver um pouco a Utopia descrita lá em Actos, capítulo 02.
Não somos ingénuos, mas utópicos. Jesuanicamente utópicos. Sabemos que é por aí que se começa a construir uma sociedade Jeusânica. E é nela que pomos nossas Utopias e nossas esperanças. E, em grande parte, devemos aos seus livros, querido Padre Mário.
Por isso, tu estás sempre presente em nossas celebrações eucarísticas. Quando lemos um texto seu em nossas celebrações, sempre alguém faz um comentário e procura apresentar aos demais a importância dos valores jesuânicos. Enfim, querido padre, quando estiver desanimado, lembre que, se não for por mais nada, vale a pena seguir lutando, primeiro pelo projecto de Jesus... e depois porque, do outro lado do oceano, algumas pequenas comunidades de base se inspiram em suas reflexões na busca de um mundo com Justiça e Liberdade. Os outros nomes de Deus!
Paz! Axé! Salam! Shalom! M. Tiago (em nome de dez comunidades de base da zona leste paulistana)
ND
Querido M. Tiago e demais Companheiras / Companheiros das dez Comunidades de Base da Zona Leste Paulistana, Brasil
Li, interiormente emocionado, a sua / Vossa mensagem. O Oceano atlântico não nos distancia, aproxima-nos. No Espírito, que não na carne. Mas é no Espírito, o de Jesus, que melhor nos aproximamos e somos. A carne, por vezes, impede-nos de vermos o Essencial, sempre invisível aos olhos. E acabamos a ver mais as limitações e os defeitos, os feitios e as maneiras de ser deste e daquele do que o Essencial. No Espírito, isso já não acontece. Acabamos sempre centrados e unidos no Essencial.
Constato, e com isso torno-me Eucaristia viva sem cessar, que estais a crescer em sabedoria e em graça, tal como sucedeu paradigmaticamente com Jesus, o de Nazaré. Por isso sois cada vez menos do Templo e cada vez mais da Cidade, cada vez menos da Religião e cada vez mais da Política, não a dos profissionais do Poder político, mas a Política jesuânica feita de praticas maiêuticas em todos os domínios da vida humana, com destaque para o Econcómico-financeiro (até já partilhais os carros!), o social e o cultural. Efectivamente, sem Justiça não há Paz e sem Paz, fruto da Justiça, não há Culto que agrade a Deus, o de Jesus, porque tão-pouco agrada aos seres humanos, a começar pelos mais empobrecidos e oprimidos. Só agradaria ao Deus-Ídolo do Religioso, sempre casado com o Poder e o Dinheiro.
Vivemos hoje sob o mais completo domínio da Besta, que, neste século XXI, já não é mais o Império Romano, como era no tempo em que as comunidades de João, o de Jesus, não o Baptista, escreveram o livro que leva o nome bíblico de Apocalipse ou Revelação, em cujas páginas se fala do Império romano como a Besta. Hoje, o Império que domina e controla até a própria consciência dos povos é o Império do Senhor Deus Dinheiro, muito mais perigoso, assassino e cruel que o Romano e o de Bush. Nem sequer é territorial. Nem precisa de o ser. Aloja-se na mente dos seus súbditos, mete-se na sua consciência, mata-os na alma, ao mesmo tempo que os faz correr, correr, correr, mas para ninguém, numa demente fuga das pessoas de carne e osso, num suicida viver quotidiano sem quaisquer afectos.
Fazeis bem em estar atentos às tácticas deste Império, aos seus modos de agir e de operar, aos seus disfarces. Para não vos deixardes enganar. Jesus, o Crucificado da Galileia em Jerusalém, no ano 30, é o grande antídoto deste tipo de Império. Porque, com a sua Morte-Ressurreição, se constituiu para sempre na Luz dos povos. Por isso, o Império do Dinheiro, mais ainda do que o Romano e o de Bush, está empenhado em fazer desaparecer da memória da Humanidade, dos Povos da Terra, das gerações que estão aí a chegar, o Nome de Jesus. Os anteriores Impérios conseguiram convertê-lo num mítico Cristo com que os povos foram sucessivamente alienados. Mas agora que Jesus, o de Nazaré, está de novo a emergir nas investigações dos especialistas, o actual Império do Dinheiro está determinado em desacreditá-lo e em banir por completo o seu nome da face da Terra e da memória da Humanidade e dos Povos. Porque o Império do Dinheiro sabe que não poderá subsistir por muito tempo com Jesus e a Luz do Mundo que ele é. Entre ele e Jesus a incompatibilidade é total. Como entre a Luz e a Treva. Havemos de resistir ao Império do Dinheiro e a todas as suas seduções e mentiras. A melhor maneira de o fazer, já o sabeis e estais a dar provas disso, é sermos nós próprias, nós próprios Jesus, hoje e aqui, Jesus à Século XXI. O Espírito que há dois mil anos o concebeu e fez ser integralmente humano pode fazer outro tanto, hoje, connosco, se nós consentirmos. Vamos consentir, por mais ferozes e hábeis que sejam as tentações e aterradoras as ameaças do Império contra quem lhe resistir. Jamais deixaremos de tirar os olhos de Jesus, o Mestre. E o Espírito sairá vencedor também em nós, como saiu nele e com ele. Mesmo que o Império nos reduza a “malditos” e a “Ninguém”. Até porque quanto mais o fizer, na sua sanha, mais se autodestruirá.
Tereis grandes combates pela frente. Inclusive, duelos. Os teológicos serão os mais urgentes e fecundos. Porque é com eles que o Deus-Ídolo do Religioso sai radicalmente desmascarado. E DeusVivo, o de Jesus, terá mais oportunidade de ser DeusVivo em nós e connosco. Alegro-me com o Vosso crescimento na mesma Fé de Jesus. E na mesma sabedoria de Jesus, assim como na sua mesma Graça / Verdade. E, se os meus livros são, estão a ser alimento neste Vosso crescimento, a minha alegria é ainda maior. Porque é sinal de que são livros com Espírito, o de Jesus. Fico por isso como um menino, em Eucaristia convosco, sempre, na certeza de que, apesar das incompreensões institucionais que conheço na carne, e tantas são, o caminho é inequivocamente por aqui. Nem poderia ser de outro modo, porque, afinal, mais não faço do que procurar seguir Jesus, o Caminho, a Verdade e a Vida. Por isso, mais do que pordes os olhos em mim, tereis de os pôr em Jesus, o de Nazaré, que haveremos de conhecer cada vez mais e melhor, por acção do seu próprio Espírito que está aí empenhado em conduzir-nos para a Verdade total. Avancemos em comunhão, a comunhão que Ele, o Espírito, sempre faz.
Abraço-Vos a todas, todos, num só e mesmo abraço sororal / fraterno. Com imenso afecto e gratidão. Vosso, Mário
E-mail. M. Neiva: Caro Pe Mário: Sabe tão bem quanto qualquer católico, que a Igreja proclama Jesus na sua dupla natureza divina e humana. O sr. Pe acaba de fazer exactamente o mesmo, na resposta que me deu. É certo que cada um tem de Jesus uma visão diferente. A sua, a verdadeira e a da Igreja, a falsa. Diz o Sr. Pe. Mas, se a Igreja é herética, o Sr. não o será menos, na perspectiva da Igreja.
E quem está “de fora” de uma tal crença dirá que a sua “guerra” com a Igreja Católica não passa de uma disputa entre comadres desavindas.
Quem “está de fora”, como o autor espanhol do Galileu Armado, lança sobre os dois um olhar complacente, abana a cabeça e murmura consigo próprio: Coitados, ainda acreditam no Pai Natal e até se zangam a discutir «o meu (Pai Natal) é melhor que o teu».
Entretanto o mundo dos homens segue o seu rumo, cada vez mais indiferente a essa disputa sobre o sexo dos anjos ou sobre alguém que o Sr. Pe apelida de Alfa e Ómega, o que vem a dar o mesmo.
Os que “estão de fora”, já deixaram de lado todas as verdades há muito reveladas nos livros sagrados, sejam o seu Evangelho, seja o Corão, e procuram a verdade escondida nas profundezas das partículas subatómicas, para ver a luz ao fundo do túnel. E, tal como os nossos antepassados, os que “estão de fora” fizeram um livro para se orientarem na caminhada do dia a dia, um livro cheio de preceitos e tão compreensível para os homens de hoje como eram os evangelhos para os cristãos de há dois mil anos: OS DIREITOS DO HOMEM, DA MULHER, DA CRIANÇA, DOS ANIMAIS, DO PLANETA TERRA. Radicam na cultura anterior, a cristã-ocidental? É verdade, tal qual os seus evangelhos emergem no contexto da cultura judaico-helénica…
Permita-me, Pe Mário, que lhe faça uma pergunta: Vai passar o resto da sua vida a olhar para o passado em vez de mergulhar a fundo na construção do futuro da Humanidade que, ao ser construída, se irá revelando o que é? Ou pensa, e falo muito a sério, que já sabe o que somos, donde viemos e para onde vamos?
Se acha que é humilde, reze todos os dias, ao levantar-se da cama: Sei que nada sei, sei que nada sei. Como dizia Sócrates, o Grego.
Fraternalmente, M. Neiva.
ND
M. Neiva, meu amigo
Nem sei como ainda continua a perder tempo comigo. Afinal, se é assim como diz neste seu mail, eu vivo completamente fora do presente, só a olhar o passado, ocupado com o passado e, ao que parece, ainda por cima estou disposto a gastar o resto dos meus dias “a olhar para o passado em vez de mergulhar a fundo na construção do futuro da Humanidade”. Será que já conseguiu ver-me tal e qual eu sou, ou apenas imagina-me assim como acaba de me descrever? Por outro lado, vejo que para si, Homens a valer e com futuro à sua frente, são “os que estão de fora [da Igreja, suponho] e já deixaram de lado todas as verdades há muito reveladas nos livros sagrados”. Como, pelos vistos, estará, desde há muito tempo, a fazer o seu autor preferido que escreveu o Galileu Armado. Esse sim, não quer saber para nada das verdades há muito reveladas, a não ser as que vêm nos Evangelhos apócrifos, por exemplo, e outros escritos gnósticos, do século II-III, esses, sim, escritos totalmente fidedignos e ainda profundamente actuais. Acontece, porém, que J. Montserrat Torrents foi (não sei se ainda é) professor da Universidade Autónoma de Barcelona, e muito provavelmente viverá do que escreve e do que ensina sobre essas e outras matérias do passado. Enquanto eu, pobre de mim, oficialmente já nem sequer existo como presbítero da Igreja do Porto (o meu nome deixou há bastantes anos de constar nas listas oficiais dos padres da Diocese) e, desde 1975, vivo exclusivamente do meu trabalho profissional de jornalista (agora, já reformado pela Caixa de Previdência dos Jornalistas, pouco mais de 600 euros/mês), já que até os meus direitos de autor pelos livros publicados e vendidos revertem integralmente para a Associação Cultural AS FORMIGAS DE MACIEIRA e o seu Barracão de Cultura ainda em fase de construção (antes desta Associação existir, reverteram para a Associação Cultural Padre Maximino, em S. Pedro da Cova). Tenho feito questão de sempre dar de graça o que de graça recebi, de resto, já era assim, nos poucos anos em que me deixaram ser pároco, o que levou, na altura, muitas das pessoas a procurar os párocos vizinhos para lhes rezarem as missas pelos seus mortos, porque as missas que eu celebrava na paróquia não deveriam ter valor nenhum, devido a eu recusar receber dinheiro por elas.
Entretanto, também eu reconheço juntamente consigo, que os que “estão de fora” podem andar mais carregados de futuro do que os que “estão dentro”. Mas penso, sobretudo, nos que estão fora desta Ordem Económica idolátrica do Dinheiro e do Poder. Porque os que estão fora apenas desta ou daquela Igreja, mas não desta obscena Ordem Mundial do Dinheiro e do Poder, por mais que falem do futuro e saibam de cor a Declaração Universal dos direitos humanos, dos animais, das crianças e da terra, podem muito bem estar a ser cúmplices activos ou passivos de todos os crimes que essa mesma Ordem Mundial e os seus Executivos cometem dia e noite. Impunemente. Ao serviço de quê e de quem coloco a pessoa que sou, os conhecimentos que adquiri, os estudos que faço, as capacidades que me “fazem”? É a pergunta que sempre me coloco e coloco às pessoas que ainda me dão alguma atenção. Deve saber, porque isso é público, que, um ano depois de ter sido ordenado presbítero da Igreja do Porto em 1962, fui rapidamente exonerado das funções de coadjutor da paróquia das Antas; depois exonerado, ao fim de dois anos, de professor de Religião e Moral no Liceu A. Herculano; depois fui exonerado, ao fim de mais dois anos, de professor da mesma cadeira no Liceu D. Manuel II; a seguir fui expulso, ao fim de apenas 4 meses, de capelão militar na Guiné-Bissau; fui depois exonerado de pároco de Paredes de Viadores, ao fim de apenas 14 meses de funções; fui preso duas vezes pela Pide, em 1970 e 1973, na minha condição de pároco de Macieira da Lixa e outras tantas julgado no Tribunal Plenário do Porto; e, finalmente, fiquei sem o ofício de pároco, precisamente no mesmo dia em que fui preso a segunda vez pela Pide. Alguns anos depois, e como já disse antes, até deixei de existir oficialmente como presbítero da Igreja do Porto. Ainda assim, assumo-me e comporto-me, por imperativo de consciência, como um dissidente na Igreja, mas não da Igreja, com tudo o que isso tem de negativo e de positivo e também de ambiguidade. Nesta condição, com muito de deserto, continuo a dar-me e a dar o meu melhor, totalmente de graça, à missão presbiteral de EVANGELIZAR OS POBRES, sem querer saber para nada do preço que tenho de pagar por me permitir tamanha liberdade.
Conheço na carne ódios teológicos sem conta e outros ódios bem mais mesquinhos, desprezos sem conta, excomunhões sem conta; ataques sem conta, aleivosias sem conta. E não só dos que “estão dentro” das Igrejas, mas também dos que estão fora delas, mas não fora desta Ordem Mundial do Dinheiro e do Poder. E nem sequer me livro da fama de “louco”, na boca de muitos dos meus colegas, alguns dos quais, professores muito bem vistos na Universidade católica. Não sei se é assim que costumam ser tratados os que só vivem virados para o passado, como garante neste seu mail que eu vivo, ou, pelo contrário, se é por eu ter razão antes de tempo, devido, precisamente, a ter os meus pés assentes no Ómega e no Alfa, procurar viver no Século XXI e à Século XXI a mesma Fé do Galileu Armado da Ternura e da Paz, Jesus, de seu nome histórico, a Ternura e a Paz que o Poder e o Dinheiro não dão, não podem dar e nem sequer conhecem. Coloco-me, pois, nas suas mãos.
Tem à sua disposição os meus livros publicados. Tem o Jornal Fraternizar, agora trimestral. Tem os meus sítios na net. Tem-me a mim próprio a viver aqui em Macieira da Lixa, um-mais-com-e-entre-os-demais, numa casinha alugada que, anteriormente, tinha sido uns anexos da casa da minha actual senhoria. Além disso, pode ter-me também um dia destes, se quiser, sentado à sua mesa.
Julgue-me como entender e achar mais pertinente. Por mim, não me darei a esse trabalho, porque o Tempo urge e a Missão chama-me a dar-me aos demais, a começar pelos que não têm nem voz nem vez e nunca leram os textos sagrados de nenhuma religião ou Igreja.
Agradeço-lhe o tempo que ainda perde comigo. E creia que as palavras que me escreve e envia não caem em saco roto, porque medito-as a todas no meu coração.
Dou-lhe o meu abraço fraterno. Mário |
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