Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 171 de Outubro/Dezembro 2008

DESTAQUE 1

O Livro dos Actos dos Apóstolos como você nunca o leu

 

E se a leitura / interpretação do segundo volume do Evangelho de S. Lucas, mais conhecido por livro dos Actos dos Apóstolos, que nós, Igrejas, continuamos a fazer desde há séculos, for uma leitura / interpretação eclesiasticamente interesseira e não teológica, bem na linha da Boa Notícia ou Evangelho de Jesus? O simples facto de as nossas Bíblias cristãs, todas elas, apresentarem a narrativa, não como o 2.º volume do Evangelho de Lucas, a ser lido / escutado, logo a seguir ao primeiro volume, mas como um livro independente, depois dos 4 Evangelhos Canónicos, já nos deveria deixar alarmados. De resto, esta decisão não foi de todo inocente. E pode ter trazido - trouxe, de facto - graves consequências ao desenvolvimento da Igreja, através dos tempos. Sem esta decisão / interpretação interesseira, a nossa Igreja católica romana, por exemplo, teria, alguma vez, chegado a ser o que é hoje, tão visceralmente papal, tão agressivamente patriarcal-hierárquica, e tão poderosamente romana, nos antípodas do Movimento libertador, de cariz profético-político, iniciado por Jesus na Galileia e prosseguido por discípulas e discípulos seus, em radical igualdade? Poderiam os bispos alguma vez reclamar-se de "sucessores dos Apóstolos", como se de uma monarquia absoluta se tratasse, quando havemos de ser simplesmente Igreja de Jesus, comunidade-de-comunidades?

 

Podemos nunca ter dado conta, porque, infelizmente, em Igreja, faze­mos quase sempre as coisas, mais por tradição e inércia, do que, como sem­pre deveria ser, por acção do Espírito Santo, o de Jesus, e por convicção pes­soal, mas a verdade é que entre os qua­tro Evangelhos canónicos e este segundo volume do Evangelho de Lu­cas, há um violento e chocante salto para trás, para o Judaísmo em torno do Templo de Jerusalém que Jesus, o de Nazaré, havia simbolicamente des­truído e abandonado, quando per­cebeu que o Deus da Lei e de Moisés lá cultuado ininterruptamente, era um ídolo, o maior Ídolo religioso que, qual vampiro, sugava não só o último cênti­mo da viúva pobre, mas até o sangue dela e de outros milhões de empobre­ci­dos, oprimidos e deprimidos, só para, assim, fazer crescer o seu Tesouro com que alimentava os 18.000 sacer­do­tes e suas famílias que dele viviam.

Ao reconhecer publicamente e, de chicote em punho, que o Templo de Je­­rusalém, em toda a sua imponência, não passava, como dele havia dito seis séculos antes o profeta Jeremias, de um "covil de ladrões"; e ao anunciar desassombradamente que dele não fi­caria pedra sobre pedra, Jesus havia rompido duma vez por todas com ele e com o Sistema sacerdotal de Poder que ele representava / materializava. Para Jesus, Povo de Deus, ou povo es­colhido, eram, afinal, todos os povos da terra, em radical igualdade, não era apenas, como ali oficialmente se ensinava, o Povo Judeu ou de Israel.

Esta denúncia valeu-lhe a morte violenta, não por parte do Povo Judeu, mas por parte do Sistema judaico e dos seus chefes de turno, na altura, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, mai-lo Sinédrio e o rei Herodes, a que se juntou também, à última hora, Pila­tos, o re­presen­tante do Império romano que ocupava militarmente o território. A este coube a execução da sentença de morte, já que a morte do "blasfemo" e do "subversivo" Jesus teve de ser exemplar para todo o Israel, e só o se­ria, se o condenado morresse de morte crucificada, pois, desse modo, fi­cava para sempre como o maldito dos malditos, não só dentro do território de Israel, mas em toda a ecumene en­tão conhecida, sob o domínio de Roma.

Impressiona ver como o Autor do Evangelho de Lucas tem o cuidado de, neste Segundo volume, acentuar bem as abismais diferenças entre o final da vida histórica de Jesus e a Missão que ele confere às discípulas, aos dis­cí­pulos, para que levem até aos con­fins do mundo a Boa Notícia de Deus que ele havia posto a descoberto / revelado e por causa da qual havia sido crucificado, e o comportamento du­ma significativa parte dos discípulos, particularmente dos Onze, desde cedo assediados pelos familiares de san­gue de Jesus que, a esse título, se achavam com direitos de herança, na hipótese vir a vingar a tese do "messi­a­nis­mo de Poder" na linha do rei Da­vid. Precisamente, os mesmos familia­res que, em vida de Jesus, tal como este grupo de discípulos, nunca se che­garam a identificar com o seu ministé­rio, muito menos, com o seu Projecto pro­fético-político libertador e universa­lis­ta, pelo contrário, no caso dos fami­liares, mãe incluída, romperam aberta­mente com ele e chegaram ao extremo de tentar detê-lo como "louco".

A sala de cima onde permanecem reunidos os Onze, cujos nomes são de novo referidos com grande destaque, quando, na verdade, todos eles, de­pois da prisão de Jesus, ha­viam-se com­portado como os seus opositores e, finalmente, até como os seus nega­dores e traidores, está toda conotada com o Templo de Jerusalém. Com eles, os Onze - anota e denuncia o relato de Lucas - estão também as mulheres deles, juntamente com Maria, mãe de Jesus e os seus irmãos.

Só lá não estão - vejam bem! - Ma­ria Madalena, nem as outras discí­pu­las nem os outros discípulos de Je­sus, precisamente, a­que­las e aqueles que já o haviam enten­di­do e aceite o seu Projecto profético-político e o se­gui­­ram fielmente desde a Galileia, sem jamais o verem como "messias" na li­nha do Poder e da Casa de David, a­pe­­­nas na linha do Servo Sofredor de Ja­­vé, cantado pelo Segundo Isaías, uma concepção que nunca haviam feito o seu percurso dentro do Judaísmo sa­cerdotal e davídico, mas com a qual Je­sus se identificou, à maneira do Grão de Trigo que, caído na terra, morre e dá muito fruto.

Este núcleo de discípulas e discí­pulos de Jesus há-de aparecer reuni­do não aqui, na sala de cima, muito menos, no Templo de Jerusalém que Jesus simbolicamente havia destruído, mas na casa de uma delas, por sinal, também Maria, de seu nome, então muito em voga entre as mulheres, não, obviamente, Maria, mãe de Jesus, mas Maria, mãe de João Marcos, precisa­mente aquela Comunidade a quem se de­ve o Evan­ge­lho que leva o nome de Marcos e que, embora apareça no No­vo Testa­men­to como o segundo dos quatro, é efectivamente o primeiro a ser escrito, muito provavelmente, uns 12-14 anos depois do assassinato de Jesus na cruz! Por isso, o mais antigo dos qua­tro relatos e o que está na ori­gem dos outros três, sobretudo dos outros dois Sinópticos, Mateus e Lucas. Se esta da­ta vier a ser plenamente con­fir­mada, como se espera, contra tudo o que tem sido repetido e ensina­do até agora, será tam­bém o escrito mais antigo do Novo Testamento. Com­pre­ende-se, assim, por­que é que ele foi tão ignorado pela Cristandade Oci­dental, nascida na continuação do co­lapso do Império de Roma e como sua continuadora, com o seu papa, ainda hoje, chefe de esta­do do Vaticano, um título de que está a ser difícil ver o Bis­po de Roma abdi­car. E que, enqu­an­to se mantiver, é o maior anti-sa­cramento de Jesus, o de Nazaré, cruci­ficado pelo Império.

A narrativa de Lucas avança uma mão cheia de pormenores que não te­mos sabido ver, muito menos, acolher e interpretar, mas que estão lá e dizem bem quanto foi atribulada e desastrosa a retoma, depois da morte violenta de Jesus, da actividade apostólica deste grupo de discípulos, congregado em torno dos "Doze", de­pois, "Onze" e de­pois de novo "Doze", mas por muito pouco tempo, após a atribulada elei­ção de Matias, e lide­rado, desde a pri­meira hora, por Pedro (aqui, já nem se diz o seu ver­dadeiro nome, Simão, apenas o título Pedro / Pedra que Je­sus, ironicamente, lhe terá posto, por ele ser casmurro como uma pedra e só pensar num pro­jecto de Poder, bem na linha de David, oposto ao dele, todo na linha do Servo Sofredor de Javé e do Filho do Ho­mem).

Do outro núcleo de discípulas e dis­cípulos, este Segundo volume do Evangelho de Lucas praticamente não fala. Não porque não saiba dele, ou não queira saber dele, mas simples­men­te porque esse outro núcleo de discípulas e de discípulos já estava plenamente identificado com Jesus e o seu Projecto profético-político, não sacerdotal nem religioso, de fazer de todos os povos e nações o Povo de Deus, então designado pelo próprio Je­­sus por Reino / Reinado de Deus.

Infelizmente, sempre nos têm es­condido que o Autor do Evangelho de Lucas só se ocupa de alguém, mulher ou homem, que ande com Jesus, enqu­anto ela, ele não lhe dá a sua incon­dicio­nal adesão e não faz seu o seu Projecto li­ber­tador e universalista do Rei­no / Rei­nado de Deus. Porque, qu­an­do dá esse libertador e decisivo passo, a narrativa deixa de se ocupar mais com essa pessoa. A partir daí, é definitiva­mente uma mulher/um homem de missão, a mesma de Jesus, e pros­se­gue-a, lá onde estiver, conforme o Espírito de Jesus lhe inspirar, de acor­do com as circunstâncias concretas de espaço e tempo e também culturais. É por isso que a Igreja, quando verda­dei­ramente reúne em nome e em me­mó­ria de Jesus, nunca pode tornar-se numa empresa, muito menos, numa multinacional do Religioso e/ou do Po­der. Só pode ser uma comunidade-de-comunidades, convocada e congrega­da pelo mesmo Espírito de Jesus, que é sempre a sua verdadeira "alma". Sem o Espírito San­to, o de Jesus, a Igreja sempre acabará uma empresa mais, hoje multinacio­nal, na continuação do que foram, no tempo de Jesus, a Sina­goga e o Templo de Jerusalém, com tu­do de Lei e de Poder / Domínio, na­da de Liberdade e de Humanidade / So­ro­ridade.

Desse outro núcleo, vamos ter notícias mais adiante, neste Segundo Volume do Evangelho de Lucas, preci­sa­mente, na altura em que Pedro, já definitivamente liberto da "prisão" do império da Lei de Moisés e do projecto de Poder davídico, dirige-se, não ao Templo de Jerusalém e à comunidade que lá se reunia, presidida por Tiago, irmão de Jesus, mas "a casa de Maria, mãe de João, de sobrenome Marcos", e é atendido à porta pela esfusiante alegria de uma "serva" (ali não havia Poder, hierarquia, todas, todos eram servos uns dos outros, na linha do Ser­vo Sofredor de Javé, tal como Jesus sempre fora entre eles e com eles, e havia recomendado que sempre fos­sem também, vida fora - "O que qui­ser ser o maior entre vós faça-se o ser­vo de todos"!). E deste novo Pedro, finalmente convertido em discípu­lo de Jesus, só se voltará a falar de raspão, por ocasião do Concílio de Jerusalém, aonde ele também aparece, mas então já para defender abertamente e sem papas na língua o mesmo Projecto li­ber­tador e universalista de Jesus, com o qual está total e definitivamente identifica­do, ao contrário de Tiago, ir­mão carnal de Je­sus, que se mantinha à frente da Igreja de Jerusalém, a reu­nir em pleno Templo, numa manifesta traição à maior Revolução Teológica de sem­pre, operada por Jesus, ao dei­xar bem claro que DeusVivo, Abbá, não quer ser adorado nem em Jerusa­lém, nem noutro Monte alto qualquer (só os mí­ticos deuses e deusas que não pas­sam de ídolos é que querem), porque os adoradores, elas e eles, de que Ele gosta são-no apenas em Espí­rito e Ver­dade, nada que se pareça com o que fazem as Religiões todas do mun­do, com os seus templos e alta­res e sa­cerdotes, verdadeiros comerci­an­tes de Deus Religioso, o Ídolo mais uni­versal que, juntamente com o Ídolo Poder e o Ídolo Dinheiro, im­pede(m) as pessoas e os po­vos de ser / crescer em sabedoria e em graça, o mesmo é dizer, em liber­dade e em protagonis­mo sócio-político na História.

Deste Segundo Volume do Evan­gelho de Lucas, há, como se sabe, uma outra figura que se destaca, de­pois da conversão de Simão Pedro. É Saulo de Tarso, depois chamado Pau­lo. Pode dizer-se que do capítulo 13 até ao fim, capítulo 28, o Segundo Vo­lume do Evangelho de Lucas anda só ocupado com ele. Temos sido levados a pensar que é pela importância de Paulo na Missão aos pagãos. Nada disso. Também aqui, o Autor do Evan­gelho de Lucas narra todo o tipo de obstáculos que Saulo / Paulo levantou ao Espírito Santo, até, finalmente, aca­bar "derrotado" por Ele, para sua e nossa alegria. Também Paulo, fariseu de gema, formado na Escola da Lei de Moisés, que não na Comunidade do Evangelho de Jesus, do qual Mar­cos é o fiel garante, tinha o seu proje­cto político muito pessoal. Em nome desse seu projecto, chegou a perseguir a Comunidade-de-comunidades do E­vangelho de Jesus que vivia e anunci­ava em toda a parte o seu Projecto li­bertador e universalista do Reino / Reinado de Deus, no qual todos os po­vos do mundo são Povo de Deus, na mais radical igualdade, sem neces­sidade sequer do baptismo de água, muito menos da circuncisão. Apenas a mesma Fé de Jesus que pressupõe práticas profético-políticas maiêuticas integradoras idênticas às dele, mesas partilhadas e afectos partilhados, as­sim como duelos teológicos desarma­dos contra a Idolatria, nos quais se po­de até perder a vida. Acabou por deixar-se contagiar por uma dessas Co­munidades, em Antioquia. Só que, tal como Simão Pedro, também Saulo / Paulo teve enorme dificuldade em a­ban­donar o projecto messiânico de Po­der na linha de David e acolher o do Servo Sofredor de Javé. Queria, a toda a força, que fossem os Judeus, o povo eleito de Deus, no qual os demais po­vos - os Pagãos - poderiam e deveriam  integrar-se, sem discriminação. Por isso, nas suas viagens missionárias, começa sempre por dar prioridade aos Judeus, nas sinagogas onde eles se reuniam ao sábado. O Segundo Volu­me do Evangelho de Lucas é rico em pormenores e deixa bem a descoberto quanto Paulo resistiu ao Espírito Santo, as alhadas em que se meteu só para tentar levar a dele à frente, contra o pró­prio Espírito Santo. Inclusive, che­gou a desfazer-se da crítica compa­nhia de João Marcos, o garante do E­vangelho de Jesus. Paulo não está sozinho nesta resistência. Com ele, está, tem estado praticamente toda a Igreja, a começar no papa de Roma e a acabar no mais desconhecido pároco de aldeia. Mudar é preciso. De Deus. E de Projecto. Só o Abbá, de Jesus, nos faz humanos em plenitude e soro­rais/fraternos. Um só Povo de muitos Povos. Vamos por Ele?


DESTAQUE 2

XXVIII Congresso de Teologia de Madrid

Olho vivo! – pede Nancy Cardoso, teóloga do Brasil

 

"Olho vivo!", pediu Nancy Cardoso, teóloga e Pastora da Igreja Metodista do Brasil, metida até aos ossos nas dores e nas alegrias, nas aflições e nas esperanças das / dos Sem-Terra daquele imenso país irmão. O XXVIII Congresso de Teologia de Madrid foi nitidamente "apanhado" de surpresa com a irrupção desta teóloga-mulher, a transpirar liberdade e alegria por todos os poros. A temática em debate, "Cristianismo e Laicidade", convidava às grandes tiradas filosóficas e teológicas, mas Nancy rompeu com o protocolo e comunicou com todo o seu corpo e com toda a sua pessoa. Foi o Brasil no seu melhor. Por duas vezes, usou da palavra no Congresso. A primeira, numa mesa redonda sobre "modelos de Família", e a segunda, numa conferência, a quinta num total de apenas seis, escutadas no decurso dos quatro dias. Pois nem aqui, Nancy se deu ares de sisuda conferencista, como gostam de se dar certos intelectuais, mesmo da área da Teologia. Imaginem que iniciou a sua conferência a cantar uma canção de Mercedes Sosa, ao mesmo que se baloiçava toda na cadeira, diante duma assembleia de várias centenas de participantes, boca aberta de espanto. E até se permitiu modificar o título da conferência. Em lugar de falar da "Presença libertadora do Cristianismo na América Latina", como lhe haviam proposto, preferiu falar sobre as contribuições que o Cristianismo dos colonizadores tem recebido de positivo dos povos latino-americanos! (Ver o principal desta conferência na nossa próxima edição, a primeira de 2009. Vale a pena esperar).

 

O pedido-alerta "Olho vivo!", de Nan­cy, tem a ver com a dura realidade que o Mundo do nosso Século XXI está a atravessar, com o Grande Capital a tomar conta de tudo, sem querer saber para nada nem de Ética, nem de Laici­da­de, nem de Religião, nem de Cristi­a­­nis­mo. Ele cria as suas próprias re­gras e impõe-nas aos diversos Estados que, depois, se limitam, mais ou menos sub­ser­vientemente, a executá-las. Os Povos assistem a tudo, sem darem por nada, entretidos e anestesiados que andam com os futebóis e as novelas, ou com as religiões e os grandes santuários das ditas, as quais, na maior parte dos ca­sos, mais não são do que verda­dei­ras máfias encapotadas de religiões ou de igrejas com esta ou aquela de­si­­gna­ção, que para isso serve às mil maravilhas a chamada "liberdade reli­giosa" que continuamos aí, mais ou me­­nos ingenuamente, a defender co­mo um direito que o até o Estado lai­co de­ve salvaguardar, e que este Con­gres­so de Teologia de Madrid tão pouco foi excepção, como se pode ver pela Mensagem final aprovada por a­cla­mação. Nancy quase gritou o seu aler­ta, quan­do interveio, ao segundo dia, na mesa redonda sobre "Modelos de Família".

Advertiu, sem papas-na-língua, que uma Família que se limite a re­pro­du­zir, no seu âmbito, os interesses do Grande Capital, em vez de lhe resis­tir com imaginação e liberdade criado­ra, sem querer saber para nada dos tradicionais e hipócritas "modelos de família", como o da chamada "Sagrada Família" (é algum modelo de família para alguém?, perguntou ela, entre o jocoso e o bem-humorado. E adiantou, a propósito: Ao que se diz, essa "sagrada família" era composta por um pai que o não era, por uma mãe que foi sempre virgem e por um filho que foi sempre Deus). Houve risos, mas ama­relos, porque, de uma só penada, Nan­cy derrubou o que não passa de um relato mítico, elaborado com categorias bíblicas que não são mais as do nosso Século XXI. E não há maneira de cair­mos na conta disso, como Igreja, nem como Teologia tradicional, para mudar­mos de discurso.

 

Defendeu então, com vivacidade, não "modelos de família", mas "modos de vida de família" que, na luta de classes, enfrentem a Banca, o Grande Capital, como fazem, desde há anos e anos, as / os Sem Terra do Brasil e de outras partes do Mundo empobre­ci­do. Chegou, inclusive, a falar de "fa­mílias orgásmicas, onde prazeres e do­res rimam e ajudam a manter as pes­soas na linha da frente dos combates pela Vida, pela Terra, pelo Pão, pelo Tecto, pelo Futuro.

É preciso - disse - desnaturalizar a família e libertar Maria, a de Jesus de tantas ideotices e de tantos moralis­mos bobos. Em defesa do seu ponto de vista, não hesitou em recordar "as avós de Jesus" que entram na sua genealo­gia teologicamente elaborada pelo Evan­gelho de Mateus, e que foram adúlteras e prostitutas. Perante o rosto incrédulo de muitos dos participantes, chegou a dizer com graça e prazer que há muita teologia num orgasmo, nomeadamente naqueles "Ai, meu Deus!", uma e outra vez repetidos em tais momentos pelas mu­lheres.

 

Falou também de "matrimónio in­dis­solúvel", pois claro, mas - Olho vi­vo!, pediu ela tam­bém aqui - para acen­tuar que o único "matrimónio indisso­lúvel" que verdadeiramente existe sobre a Terra é o do Dinheiro e o do Lucro, que nós, os que andamos tão preocupa­dos com a indissolubilidade do chama­do casa­mento canónico nunca vemos, muito menos, denunciamos e combate­mos. No entanto, enquanto ele aí esti­ver activo e, para mais, sem nenhum freio, não há "modelo de família" tra­di­cional que se aguente, apenas "mo­dos de vida familiar" sempre em cons­tante adaptação, para que a vida chegue a ter oportunidade, apesar de todos os obstáculos e de todos os ata­ques que o Grande Capital lhe move.

 

Outro momento alto do Congresso foi o da conferência do grande François Houtart, catedrático emérito da Universidade de Lovaina. Foi com a sua sábia e oportuna conferência sobre "Lai­cidade, movimentos sociais e Cristianismo", que o Congresso concluiu. Contamos partilhar, nalguma das nos­sas próximas edições, o texto integral que o professor ficou de enviar por mail para o nosso Jornal que ele já conhece e aprecia.

O teólogo madrileno Benjamín For­cano também esteve à altura do Mo­mento e desmontou de cima abaixo a concepção de Igreja que permanece na cabeça das diversas conferências episcopais do Ocidente, também da do Estado espanhol e que está nos antí­podas do Evangelho de Jesus, ainda que muito de acordo com os transviados caminhos dos privilégios clericais e e­cle­siásticos. A essa concepção contra­pôs com peso e medida a concepção de Igreja que já hoje se vive na Igreja de Base, toda ela muito mais conforme ao Espírito de Jesus. Não podia ter sido mais lúcida e mais clarificadora a sua intervenção. E também mais fecunda­men­te subversiva e conspirativa, de resto, bem na linha do Bispo Pedro Ca­saldáliga, em cuja Prelazia Forcano es­tá incardinado, e que, apesar de hoje já ser bispo emérito, ainda enviou ao Con­gresso uma oportuna e solidária men­­sa­gem. É, de resto, o único Bispo da Igreja católica que o faz, desde há mui­tos anos. Os bispos das dioceses es­pa­lhadas pelo Estado espanhol nun­ca foram capazes de um gesto e de um si­nal de boa vontade e de comu­nhão eclesial. Pensarão que, desse modo, o Congresso acontece fora da Igreja, mas o contrário é que é verda­deiro: São eles, os bispos, que se põem fora da Igreja, ao revelarem-se total­mente in­ca­pazes de tamanha catoli­ci­dade.

O filósofo José António Marina e a catedrática de Filosofia Moral na Uni­versidade de Barcelona encantaram com as suas eruditas conferências, ele sobre "O fenómeno do laicismo", logo a abrir o Congresso, e ela sobre "Ética e laicismo", no final do segundo dia.

 

Importantes achegas

de J.J.Tamayo

Igualmente, encantou o teólogo Juan José Tamayo, secretário-geral da As­so­ciação de Teólogas e Teólogos Jo­ão XXIII, na apresentação-abertura da última mesa redonda do Congresso, des­tinada a debater os polémicos A­cor­dos Igreja-Estado espanhol. Tamayo não se limitou a apresentar os dois in­ter­venientes, uma e um, mas formulou, ele próprio, duas perguntas e avançou alguns tópicos de respostas, que valem mais do que tudo o resto. São estas as perguntas: 1. "E o governo socialista actual refém da Igreja católica?"; 2. "É a Igreja católica o quarto poder do Estado?".

Estas per­guntas são mais do que pertinentes tam­bém para o nosso pró­prio país, onde mais do que simples "Acordos", há uma Concordata assina­da em 1940 entre o Estado do Vaticano e o Estado Portu­guês e que ainda recen­temente foi actualizada, quando de­veria ter sido pura e simplesmente abo­lida pelo Estado constitucionalmente laico, como é o nosso.

Mas o teólogo Tamayo não se ficou por aquelas perguntas. Avançou tam­bém diversos dados concretos que nos levam a ter de concluir que o Estado espanhol, neste momento, está cada vez mais refém da hierarquia católica e a hierarquia católica é cada vez mais uma espécie de quarto poder do Esta­do espanhol. Isto, apesar de o governo espanhol ter aprovado leis como a do matrimónio homossexual e a do cha­ma­do divórcio express que levaram os bispos a manifestar-se nas ruas de Ma­drid, lado a lado com grupos católicos fortemente conservadores e escandalosa­men­te ligados à alta finança naquele país e no mundo ocidental em geral.

O exemplo mais clamoroso contra a laicidade do Estado e a favor da nova aliança entre o trono e o altar - diz Tamayo - foi o acordo de financiamen­to, que, em 2007, subiu de 0,52 para 0,70. "Com que facilidade conseguiu a Igreja católica o que, anos e anos de luta não conseguiram as ONGs, Or­ganizações Não Governamentais que vêm reclamando, em vão, os 0,7 para pro­jectos de desenvolvimento no Ter­ceiro Mundo!"

Porém, o mais escandaloso é que este financiamento contradiz o próprio Acordo Económico entre a Santa Sé e o Governo espanhol de 1979, no qual "a Igreja católica declara a sua deter­minação de conseguir por si própria os recursos necessários para atender às suas necessidades" (art. 2.5).

Com este novo acordo, longe de se avançar para o autofinanciamento da Igreja, avança-se a passos largos para o pleno financiamento por parte do Estado à Igreja católica, o que fere grave e escandalosamente o princípio de igualdade entre todas as Igrejas pre­sentes e actuantes no Estado espa­nhol.

Tamayo lembrou um outro exemplo que revela quanto o actual governo espanhol está refém da Igreja católica. É a manutenção da oferta obrigatória da religião católica em todos os colé­gios públicos, concertados e privados, e em todos os níveis do ensino escolar, desde o infantil até ao bacharelato. Por outro lado, "nu­ma manifestação mais, de ingerência clerical e de transgressão das normas de acesso do professorado ao ensino, os bispos continuam a deter o privilégio nomear e de despedir os professores de religião, quando, entre­tanto, é o Estado espanhol que os con­tra­ta e lhes paga e ainda se encarrega das indemnizações, quando os tribu­nais, chamados pelos profes­sores a intervir, víti­mas de despedimento sem justa causa, decidem a favor dos pro­fessores arbitrariamente despedidos pelos bispos.

Escandalosa é também a cedência do governo espanhol no que respeita aos conteúdos da nova disciplina de Educação para a Cidadania, onde não se poderá falar nem de aborto nem de matrimónio homossexual, por exemplo, e tudo por interferência da hierarquia católica. O mesmo se diga das questões relativas à origem e ao terminus da vida hu­mana, ou eutanásia. "Muitas vezes me perguntei - diz Tamayo com ironia - se alguns dos membros do governo e o próprio presidente Zapatero se te­riam convertido ao catolicismo da hie­rar­quia.

Na sua breve intervenção, Tamayo defendeu ainda a necessidade de uma nova Lei de Liberdade de Consciência e Liberdade Religiosa que substitua a actual Lei Orgânica de Liberdade Reli­giosa. E uma outra, a Lei ou Estatuto de Laicidade em todos os âmbitos da função pública.

Já no que tem a ver com a Igreja ca­tólica espanhola como quarto poder do Estado, Tamayo denunciou no Congresso a estraté­gia seguida pela hie­rar­quia para o conseguir ser cada vez mais. São quatro os pontos desta estratégia episcopal eclesiástica católica: 1. O constante apelo à lei natural; 2. A ocupação das ruas de Madrid, sempre que preciso, pelos próprios bispos; 3. A tentativa de confessionalizar as ins­tituições laicas; 4. A insistência no financiamento da Igreja por parte do Es­tado.

Em todas estas frentes, a hierar­quia católica tem conseguido marcar pontos, perante um governo cada vez mais refém dela. O que não deixa, ob­via­mente, de constituir um retrocesso no processo da laicidade da sociedade e do Estado espanhóis. Porque o pior que nos poderia suceder, a nós euro­peus, era o regresso à velha Cristan­dade Ocidental, apenas um pouco mais reciclada. É caso, pois, para, também aqui, recordar o grito "Olho vivo!", da teóloga brasileira Nancy no Congresso. Antes que seja tarde demais.


Mensagem final do XXVIII Congresso de Teologia

 

1. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa são direitos fundamen­tais dos quais ninguém pode ser privado e que estão garantidos pela Constitui­ção. Os poderes públicos são obrigados a promover as condições para que es­sas liberdades das pessoas e das organizações sejam reais e efectivas.

2. Ao vivermos numa sociedade plural no que respeita a crenças, o Estado tem a obrigação de velar pelos direitos de todos os cidadãos, sem qualquer tipo de discriminação, e para isso tem de se assumir como um Estado laico e independente. Deve, por isso, manter-se neutro diante das diferentes opções re­li­giosas, garantindo a todas elas o exercício dos seus direitos, indepen­den­te­mente do desenvolvimento que tenham podido alcançar ou da sua dimensão so­cial. Por conseguinte, a liberdade religiosa não pode estar condicionada nem subordinada a nenhum critério de tipo quantitativo nem de conveniência política ou razões históricas.

3. O direito à liberdade de consciência não é um preceito religioso, mas lai­co que, finalmente, foi aceite pela religião cristã, que está na base da secula­ri­zação e da laicidade.

4. A laicidade tem uma relação vital com a secularização. À Igreja não compete indicar ou definir a ordem política da sociedade, uma vez que qualquer interven­ção directa nesta matéria seria uma ingerência numa área que não é a sua. O Estado tem todo o direito de defender a sua autonomia e liberdade, de modo a não ficar refém da hierarquia religiosa. No entanto, laicidade não significa que o facto religioso deve limitar-se à esfera privada, renunciando a toda a pre­sença na vida pública.

5. Laicidade não é a mesma coisa que irreligiosidade ou ateísmo. Nós, os cristãos, devemos defendê-la como uma garantia da liberdade de consciência e de crenças

6. Não se pode falar de uma ética deduzida directamente da fé. A ética é laica, fruto da razão humana, expressão da consciência individual e social, que diz respeito a todos os seres humanos. A relação da fé cristã com a ética situa-se no campo das motivações e da fundamentação, as quais não têm de ser ne­cessariamente religiosas.

7. A vivência da fé cristã requer a incorporação de saberes autónomos provenientes das diversas áreas do conhecimento e do esforço humano. Só ten­do em conta estes saberes, podemos responder eticamente aos desafios de cada momento histórico.

8. A laicidade, finalmente, é o marco jurídico e político no qual cabem todas as crenças e ideologias. Os cristãos e cristãs são chamados a colaborar na cons­trução de um Estado laico que torne possível uma sociedade justa e solidária, sem discriminações por motivos religiosos, culturais ou sociais. Os movimentos sociais constituem a mediação necessária para que o laicismo e o cristianismo sejam motores de transformação social e de propostas alternativas, e não se tornem numa ideologia legitimadora da ordem estabelecida, como muitas vezes aconteceu ao longo da história. Este Congresso de Teologia compromete-se a trabalhar em conjunto com outros colectivos religiosos e laicos, na defesa de uma ética cívica libertadora para todos os cidadãos e cidadãs, com aqueles va­lores evangélicos que possam contribuir para um clima de convivência pacífica, baseada na justiça. O horizonte do nosso compromisso há-de ser a realidade da exclusão e da marginalização, que ocorrem no Terceiro Mundo. Neste Con­gres­so consideramos especialmente a situação da América Latina e da África, através dos testemunhos e reflexões de duas teólogas dos referidos continentes.


Lúcido e corajoso MANIFESTO PELA LAICIDADE do Colectivo Redes Cristãs

 

Foi no decorrer da última Mesa redonda do Congresso que Raquel, porta-voz do Colectivo Redes Cristãs da Igreja de Base, a outra voz organizada, não hierárquica, da Igreja católica no Estado espanhol, por sinal, uma voz cada vez mais credível do que a conservadora voz hierárquica, lançou o seu "Manifesto pela Laicidade". O documento, em oito pontos, está já nestes dias e até final do ano, a recolher assinaturas em todo o Estado espanhol e irá por certo provocar um pequeno-grande sismo na sociedade e na Igreja católica de Espanha. É esse Manifesto que o Jornal Fraternizar que acompanhou em permanência o Congresso, divulga aqui em primeira-mão no nosso país. Para que ele frutifique também nestas terras lusas, onde, infelizmente, dizer Igreja continua a ser sinónimo de dizer hierarquia católica. Uma heresia que tem de ser depressa ultrapassada, porque, enquanto ela durar, não somos Igreja, povo-de-Deus, apenas "rebanho" sem voz nem vez. E, ainda por cima, pagante de todos os luxos da hierarquia eclesiástica e dos seus braços compridos, os párocos. Eis:

 

O Colectivo Redes cristãs, a partir da sua dupla pertença à comunidade cristã-católica e à sociedade civil, aposta decidida­mente na independên­cia, no respeito e na colaboração entre esses dois âm­bitos e bate-se por um Estado laico, que supere o actual con­fessionalismo encoberto, e por uma Igreja inspirada exclusivamente pelo Evangelho, sem qualquer submissão à tutela do Estado.

 

Consciente de que as actuais rela­ções entre Igreja / Estado em Espanha, baseadas nos Acordos de 1979, foram o principal obstáculo à separação entre ambos e que actualmente estão a gerar um grande mal-estar em amplos sectores católicos ou não, o Colectivo Redes Cristãs manifesta claramente a sua po­si­ção e convida a juntar-se a ele as ins­tituições ou pessoas que o queiram fazer.

 

O desenvolvimento progressivo da laicidade deve ser considerado como um facto positivo. É a lenta maturação da humanidade para uma cultura do pluralismo, do respeito à diferença, e o avanço para a criação daqueles es­paços de liberdade que tornam possível o diálogo entre todas as ideologias filo­sóficas ou religiosas, crentes ou não. E, posto que o único garante deste es­paço público é o Estado, laicidade si­gni­fica a autonomia do Estado em rela­ção a qualquer magistério religioso ou cosmovisão filosófica que pretenda im­por-se como a única verdadeira. A partir desta posição:

 

1. Denunciamos os Acordos de 1979 do Estado espanhol com a Santa Sé, em vigor há quase 30 anos, e não propomos a sua renovação, porque, nas­cidos numa situação de privilégio confessional católico, estão a afectar actualmente uma sociedade religiosa­mente plural e amplamente seculariza­da e são causa de muitos conflitos que afectam a convivência cívica. Em con­sequência, exigimos que as entidades dependentes da Igreja e outras confissões religiosas se atenham ao direito civil que regulamenta a vida associativa no Estado.

 

2. Apostamos numa laicidade ple­na que reconheça a autonomia do po­lítico e civil em relação ao religioso e caminhe para a separação definitiva da Igreja e do Estado, reconhecendo a igualdade de direitos e de deveres, sem privilégios nem vantagens eclesiás­ticas e garantindo o exercício das liber­dades fundamentais para todos e todas. A Igreja será livre tão-somente quando estiver, clara a definitivamente, desli­gada do Estado e ocupada decidida­mente no serviço dos pobres e excluí­dos deste mundo.

 

3. Defendemos um "pacto pela lai­cidade" entre confissões religiosas e o Estado, que abra caminho a um "esta­tuto de laicidade" que regulamente a presença e as actuações dos poderes po­líticos nas cerimónias religiosas e das hierarquias religiosas nos actos políticos, suprimindo os símbolos reli­giosos no espaço público civil.

 

4. Exigimos que o funcionamento de­mocrático interno, a participação das bases e a transparência sejam critérios a ter em conta por parte do Estado, no momento de estabelecer marcos de co­la­boração com as entidades sociais. Consequentemente, denunciamos o cle­ricalismo e a discriminação por ra­zões de género e orientação sexual, ainda presentes na Igreja católica e ou­tras confissões.

 

5. Defendemos uma "laicidade es­co­lar" que possibilite a formação inte­gral da pessoa, a aprendizagem, a socialização e a inculturação sem prose­li­tismos nem catequeses tendenciosas, e que responda a princípios de igualdade, liberdade e formação crítica para todas as pessoas. Reconhecemos o plu­ralismo religioso e cultural existente e, em consequência, denunciamos a actual presença da religião confessio­nal católica no sistema educativo e na escola pública e concertada.

 

6. Apostamos numa sociedade se­cularizada e pluralista, organizada de­mo­craticamente a partir da aconfessionalidade e sem permitir interferências confessionais no espaço público, nem privilégios que, à luz dos princípios de justiça e equidade, causam agravos com­parativos com o resto das institui­ções. Neste ponto, denunciamos o a­ctual sistema de financiamento da Igreja católica por parte do Estado espanhol.

 

7. Defendemos que se mantenha a autonomia da ética numa sociedade laica em todos os âmbitos próprios du­ma sociedade secular (no tecido social, político, produtivo, cultural, científico...), sem necessidade de recorrer a motivações religiosas para a legitimar. Em con­sequência, denunciamos as pres­sões da hierarquia católica para impor a sua moral sobre a ética pública.

 

8. Defendemos a presença das con­fissões religiosas nos meios de co­mu­ni­cação. Mas denunciamos a Confe­rên­cia Episcopal Espanhola pelo intole­rável abuso do direito da Liberdade de Ex­pressão que está a fazer a Cope [rádio católica]. Exigimos à Conferência Episcopal Espanhola a mudança radi­cal na sua linha editorial, e ao Governo maior firmeza na garantia do respeito pelos direitos dos cidadãos.

Finalmente, exigimos ao actual go­verno do Estado, como detentor e re­pre­sentante da soberania popular, e às hierarquias das confissões religio­sas, especialmente à da Igreja católica, que assumam responsavelmente o es­pírito da Constituição, a qual, no art 16 parágrafo 3, ao afirmar que "nenhu­ma confissão terá carácter estatal", defende o estabelecimento daquele es­paço laico e de diálogo a que fazemos referência.


Uma ceia do Senhor SÓ-FAZ-DE-CONTA

 

O XXVIII Congresso de Teologia de Madrid encerrou, como habitualmente, com uma "Celebração da Ceia do Se­nhor", previamente preparada pela "Co­mu­nidad de Santo Tomás". Desta vez, estive presente, mas apenas na minha qua­lida­de de jornalista, director do Jor­nal Frater­ni­zar, dado que, por mim, já não alinho neste tipo de missas-faz-de-conta. Tudo saiu conforme o progra­mado. Sem que a assembleia tivesse voz e vez, para lá do que estava escrito nas folhas entregues à entrada na sala das conferências, onde a celebração decorreu. Tudo sem surpresas. Como nu­ma representação teatral, onde os "a­ctores" se limitam a executar o guião.

Custa-me ter de o dizer aqui, mas acreditem que é com muita ternura que o faço. Como espectáculo litúrgico, foi di­ferente das tradicionais e rotineiras mis­sas paroquiais e episcopais, onde impera simplesmente a fria e mais do que antiquada letra do Missal. Mas aca­bou por ser uma "Ceia do Senhor" só de nome, porque sem ceia, sem comida a sério, sem mesa partilhada entre to­dos e com todos, as mulheres e os ho­mens. Tudo muito longe, por isso, da­queles dois ou três que se reúnem em nome e em memória de Jesus, com ele e o seu Espírito presentes e actuantes, em redor de mesas com comida-de-comer parti­lhada. Para cúmulo, era a ho­ra do almoço ou do jantar como se diz lá por Espanha. As cerca de 700-800 pessoas presentes tinham neces­sidade de se alimentar, mas cada qual teve de ir satisfazer essa real ne­ces­si­­dade, ou em sua casa, ou num restau­rante das redondezas. No salão, onde durante os dias de Congresso se serviu a palavra, houve apenas um bocadinho de pão, a simbolizar a comida real de que necessitamos para viver. E ainda por cima a leitura do Evangelho, escolhida para ser proclamada na ocasião, falava de um banquete de bodas em que os primeiros convidados para ele, todos à uma recusaram o convite. Um porque havia comprado um campo e tinha de ir vê-lo; outro porque havia com­prado cinco juntas de bois e tinha de ir experimentá-las; e um outro - imagine-se! - porque se havia casado e, naturalmente, não podia ir, apesar de se tratar de um banquete de bodas.

Os cantos foram animados, houve até momentos de dança, houve oferen­das, houve mesa, mas não houve comi­da real, nem comunhão real, nem par­ti­lha de vidas, nem partilha de afectos, nem compromissos efectivos com cau­sas e situações concretas. Houve uma colecta solidária de dinheiro, com a­que­le obsceno sabor a caridadezinha que ajuda a "aliviar" as consciências pe­sadas de quem as dá, mesmo de quem sem ser rico, desconhece a fome e o desemprego, e a humilhação estru­tural do terceiro, do quarto e do quinto mundos, os da fome endémica, porque os seus povos são sistematicamente explorados/assassinados, para que nós, na Europa, possamos desfrutar do ne­ces­sário e até do supérfluo.

Pelos rostos das pessoas, à saída, pude constatar que iam satisfeitas e contentes com todo aquele teatro litúrgico, onde nem se chegou a fazer me­­mória do Crucificado, já que as pala­vras com que habitualmente ela é feita foram modificadas para pior. Em lugar do "Tomai e comei isto é o meu corpo entregue por vós", saiu um politica­men­te inócuo "Tomai e comei este pão sou eu"; e em lugar do "Este é o cálice do meu sangue derramado por vós e por todas/todos", saiu um politica­men­te inócuo "Tomai e bebei este vi­nho sou eu"!!!

Sou o primeiro a reconhecer que é muito difícil celebrar com decência neste exigente e hiper-crítico Século XXI. Mais difícil ainda é sermos Jesus no Século XXI. Quando, porém, for­mos Jesus de verdade, também saberemos fazer de cada Ceia do Senhor a nossa própria Ceia para a vida do Mundo.


EDITORIAL

Esta é a hora da Demência, mas só

a Sapiência Humana garante futuro

aos seres humanos e ao Planeta

 

1. Nestes dias que são ainda os últimos do Século XX e do Segundo Milénio, o Grande Dinheiro mostra às escâncaras todas as suas garras e já não disfarça mais quanto está determinado e disposto a derrubar até grandes bancos nacionais e mundiais, grandes empresas multinacionais e grandes Executivos das nações e as próprias nações, só para, assim, se poder concentrar ainda mais e tornar-se no definitivo e único Senhor do Mundo. O calendário por que nos pautamos diz que estamos já a viver os primeiros anos do Século XXI e do Terceiro Milénio. Está redondamente enganado. E a enganar-nos a todas, todos. Estamos ainda a viver os últimos dias do Século XX e do Segundo Milénio, em que a Demência Humana tinha muito de artesanal e era pouco cientificamente organizada. Chegamos agora, só agora, aos primeiros dias do Século XXI e do Terceiro Milénio. Os próprios Executivos das grandes nações deixam perceber que foram completamente apanhados de surpresa (o nosso, em Portugal, ainda nem sequer deu por nada e continua a cantar loas ao Desastre e ao Abismo para onde está a levar o país!) e tentam resistir a todas estas inesperadas investidas do Grande Dinheiro. Será muito difícil, porque, para o fazerem, é ainda ao Grande Dinheiro que recorrem e, com isso, dão-lhe ainda mais poder de destruição e de descriação dos seres humanos e do Planeta. Deveriam decapitá-lo, sem dó nem piedade, mas, em vez disso, recorrem a ele, numa adoração/idolatria sem precedentes na História. Na sua Ignorância pretensamente ilustrada, desconhecem que o Grande Dinheiro é o filho unigénito da Demência Humana e, desde sempre, fez-se aclamar e adorar por todos eles e respectivas nações como o único Deus Todo-Poderoso que, por isso mesmo, não conhece lealdades, muito menos, conhece fidelidades para com os seus súbditos adoradores idólatras. Tão pouco respeita acordos que alguma vez possa ter assinado e leis aprovadas pelos Executivos das nações e respectivos Parlamentos. Apenas conhece as leis que ele próprio dita aos seus sucessivos Moisés nos poucos e inacessíveis Montes Sinais aos quais apenas esses seus poucos eleitos, em número cada vez mais reduzido, podem ter acesso. E mesmo essas, só enquanto são leis que lhe convêm, porque, a todo o instante, o Grande Dinheiro pode ignorá-las e mudá-las. E o que ontem valia, hoje já não vale. Porque só mesmo Ele, o Grande Dinheiro, único Deus Todo-Poderoso, é que vale. Tudo o mais, até velhos colaboradores mais fiéis, são atirados para a valeta da História como lixo, a partir do momento em que o Grande Dinheiro decidiu prescindir deles, sem apelo nem agravo. É a Demência Humana em toda a sua Treva pretensamente ilustrada, e pomposamente chamada Ordem Económica Mundial, sem dúvida, a Mentira mais bem arquitectada e ensinada nas Universidades e nas catedrais da nossa vergonha, como Ordem natural e sagrada. O que está a suceder estes dias que são os primeiros do Século XXI e do Terceiro Milénio, é um tsunami financeiro à escala global como nunca se viu e que, da noite para o dia, traça uma nova geografia do Planeta, sem que nada nem ninguém lhe resistam. Parece, até, que nem tempo há para se esboçar um qualquer gesto de resistência. E o que se vê, já se começa a ver, é que apenas o Grande Dinheiro sai ainda mais fortalecido, mais concentrado deste tsunami financeiro que a sua Demência Humana cientificamente organizada provocou e continuará a provocar, sempre que chegar a sua hora de agir, e que mais não faz do que roubar, matar e destruir em escala cada vez mais global. Os milhões de vítimas - porque há milhões e milhões de vítimas, senhoras, senhores! - ficarão até insepultos, se tanto for necessário, para que os ares fiquem rapidamente empestados e, assim, desapareçam mais depressa da face da Terra os seres humanos que ainda restam. Em seu lugar, ficará em todo o seu esplendor de Treva, o Grande Dinheiro, juntamente com todos os robots formatados pela Demência que os concebeu e pariu. Não. Não é para aqui que vamos. É já aqui que acabamos de chegar. Numa viagem sem retorno. Qualquer abrandamento e paragem que se verifique são apenas abrandamentos e paragens estratégicos. Para que a Demência cientificamente organizada possa preparar o próximo golpe, o próximo tsunami financeiro. Com a mestria e a crueldade que só ela conhece e é capaz.

 

2. Ando há anos a proclamar, no âmbito da minha missão presbiteral de Evangelizar os Pobres e os Povos, e não me cansarei de continuar, que o nosso Século XXI e o Terceiro Milénio que só agora começam, serão jesuânicos, ou pura e simplesmente não serão. Acham muitos, muitas, inclusive entre amigas minhas, amigos meus, que deliro e já nem sequer me tomam a sério. Correm, inclusive, a juntar as suas às vozes da Demência cientificamente organizada, e passam a vida a dizer, mais elas, que Jesus, o de Nazaré, de quem eu tanto dou testemunho e cuja mesma Fé tanto procuro viver e prosseguir, está mais do que ultrapassado. Esquecem-se de que são as vozes da Demência, e, por isso, por mais ilustradas que se pintem, nunca têm razão, ainda que, infelizmente, possam continuar a ter, e têm muita audiência. Porque a Demência de que elas são as vozes, nunca olha a meios nem conhece escrúpulos de nenhuma espécie para poder perpetuar o seu domínio e manter intactos e cada vez mais sofisticados todos os seus privilégios. Chega a realizar tantos prodígios, que consegue impressionar e deixar paralisados, até os que se têm por mais lúcidos e ilustrados. E seduz a muitas, muitos para as suas fileiras, sobretudo, os mais hábeis, os mais ambiciosos e os mais corruptíveis. Já as vozes da Sapiência, ao contrário, embora sejam vozes carregadas de razão e de verdade, e também de futuro, só porque são por sua natureza vozes desarmadas, despojadas de Riqueza, de todo o tipo de Poder, e cheias de Espírito Santo, o de Jesus, apenas frequentam e praticam a estratégia da fecundidade, própria do Grão de Trigo que, para dar fruto, muito fruto, aceita ser lançado à terra e aí morre, numa explosão de vida, sem a qual não haveria nem Pão Partilhado, nem Vida Humana Sapiente e Afectiva, apenas a Demência, o Nada, o Vazio, a Esterilidade, o Caos. Que é tudo o que hoje está aí a implantar-se cada vez mais à escala global.

 

3. "Não podeis servir aos Pobres e aos Povos (= a Deus que é mais íntimo a eles do que eles próprios) e ao Dinheiro". O nosso Século XXI e o Terceiro Milénio que começaram por estes dias estão, finalmente, maduros para entenderem esta Boa Notícia ou Evangelho de Jesus, o de Nazaré. Acolhemo-lo, finalmente, como o Alfa e Ómega dos Humanos, ou matamo-lo como o maldito dos malditos?


ESPAÇO ABERTO

A vontade de acreditar

Por MANUEL SÉRGIO

Reitor do Instituto Piaget

 

Há quem sustente que Malraux afir­ma­va que “o século XXI será religioso, ou não será”. Se não descambo em er­ro grave, hoje é cada vez maior o nú­me­ro de pessoas que defendem um pro­jecto ateu de vida – um projecto laico e de profunda ética e da mais autêntica es­piritualidade, mas... dispensando Deus! As religiões não têm o monopólio da moral. E filósofos há que afirmam que “o século XXI será laico, ou não será”.

O Espírito do Ateismo (L’Esprit de l’a­theisme. Introduction à une spiritua­lité sans Dieu, Albin Michel, 2006) de André Comte-Sponville e o Tratado de Ateologia (Traité d’athéologie, Grasset, 2005) de Michel Onfray, dois sucessos editoriais, defendem, cada qual à sua ma­neira, que Deus é uma ideia perfei­ta­mente dispensável, no mundo da éti­ca e da moral. André Comte-Sponville, de 56 anos de idade, considera-se um aluno dos “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud), assumindo por isso o desafio de ajudar à construção de uma metafísica materialista, de uma ética humanista, de uma espiritualidade sem Deus, procurando criar assim “uma sabedoria para o nosso tempo”.

Segundo o mesmo filósofo, o ateu nas­cituro abraçará a mensagem judai­co-cristã, sem necessitar de invocar o nome de Deus. Demais, o nosso tempo testemunha os crimes mais hediondos, praticados por fanáticos religiosos que, portanto, se dizem crentes e tementes a Deus. Comte-Sponville proclama-se um “ateu cristão”, ou seja, aceita a mo­ral cristã, sem descobrir em Cristo o Fi­lho de Deus. É o filho do carpinteiro e possivelmente a maior figura da Histó­ria, mas sem quaisquer atributos divi­nos.

Mas é a altura de lermos boa parte da tese de André Comte-Sponville: “Os três monoteismos, animados pela mes­ma pulsão de morte genealógica, parti­lham um conjunto de taras idênticas: o ódio da razão e da inteligência; o ó­dio da liberdade; o ódio de todos os li­vros em nome de um só; o ódio da vi­da; o ódio da sexualidade, das mu­lheres e do prazer; o ódio do feminino; o ódio do corpo, dos desejos, das pul­sões. O judaismo, o cristrianismo e o is­lão defendem: a lei como fé, a obedi­ência e a submissão, o gosto da morte e a paixão pela outra vida, anjos asse­xuados e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a mulher que se realiza unicamente como esposa e mãe, o dualismo corpo-alma. Que o mes­mo é dizer: uma vida crucificada e o nada divinizado”.

Michel Onfray, de 49 anos de idade, é radical: é “um ateu não cristão”, re­cusando mesmo a bondade da mensa­gem judaico-cristã. A ateologia é uma no­va disciplina que supõe a mobili­za­ção de várias ciências, tais como a psi­cologia, a psicanálise, a arqueologia, a linguística, a história, etc. E uma filo­sofia que se fundamente e seja a cúpu­la de “uma física da metafísica, uma re­al teoria da imanência, uma ontologia materialista”.

A conquista da tolerância, o surgi­men­to da democracia, a libertação da mulher acontecem, apesar das religiões monogâmicas. E os mártires da liber­da­de de pensamento? Como esquecer as Cruzadas e a violência que se oculta por detrás dos Descobrimentos? E Co­pér­nico, asseverando que o Sol não ro­da à volta da Terra? E Giordano Bru­no, queimado em praça pública, por­que tentava provar que o universo é in­finito? E Galileu, obrigado a retratar-se, por fazer suas muitas das teses de Copérnico?... Enfim, o rol de mártires da liberdade, mortos, ou presos, ou con­denados ao silêncio e ao desprezo pú­blico, pelas religiões monoteistas (o­cor­rem-me, neste passo, Espinoza, Tei­lhard de Chardin, Hans Kung, Leo­nar­do Boff, Mário de Oliveira, Felicidade Alves) e pelo actual terrorismo dos fun­da­mentalistas islâmico é tão grande, que me fico por aqui, não recordando as encíclicas papais onde o próprio re­gime democrático é considerado con­trá­rio à vontade de Deus. É possível encontrar a vontade de um Deus, infini­ta­mente bom, em tantos pecados con­tra a humanidade?

Há necessidade de uma espirituali­da­de ateia? Estes dois filósofos dizem que sim e apontam a possibilidade da sua construção, já que a espiritualidade das religiões monoteistas é fixista, re­tró­grada, fascizante. Permitam-me que acrescente algumas nótulas da minha autoria: todos nós somos viajantes a ca­minho do Absoluto. O sentido da vida é a trancendência, ou seja, a capaci­da­de de transcender e transcender-me, em pleno contexto de solidariedade e justiça social, já que não me trans­cendo senão em grupo (e quanto maior for o grupo tanto melhor). Jesus dei­xou-nos um mandamento: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo co­mo a vós mesmos”. Comte-Sponville, por­que não acredita n’Ele, confunde Deus com o Bem, a Verdade, a Beleza. Mas Jesus, ao dar-nos este manda­mento diz-nos, implicitamente, que o ser humano não é um retórico num mun­do feito, mas um ser práxico num mundo por fazer. Por isso, tanto André Comte-Sponville como Michel Onfray, não acreditando embora em Deus, se­guem o grande mandamento que Jesus nos deixou - mandamento donde nasce uma efectiva e concreta solidariedade e não a “solidariedade” abstracta, inefi­caz e longínqua do capitalismo e de to­das as ditaduras mascaradas de so­cialismo, através de um capitalismo de Estado.

Li, com atenção e respeito, André Comte-Sponville e Michel Onfray e con­tinuo a acreditar na missão salvífica de Jesus de Nazaré. A passagem de uma moral estática a uma moral dinâmica encontro-a em Jesus: na passagem de uma moral que se fundamenta na Ra­zão a uma moral que se fundamenta no Amor, onde a Razão se encontra integral mas superada. Continuo com a vontade de acreditar no manda­mento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mes­mos”. Amar... que não é filosofar unica­mente!

Joseph Ratzinger, indiscutivelmente um teólogo de grande erudição, no seu livro A Igreja e a Nova Europa, traduzido, para português, pela editorial Ver­bo, afirma “que o dever moral não signi­fica o cativeiro do Homem (...). O dever mo­ral constitui a sua dignidade e, se ele o despreza, não se torna mais livre, antes  acaba por se degradar ao plano da máquina e da pura e simples reali­da­de das coisas (...). O reconhecimento daquilo que é moral é que constitui a dignidade humana (...). A moral não é o cárcere do Homem, mas o que nele há de divino” (p. 27). E acrescenta, mais adiante: “a visão ética ligada à fé cristã não é algo de exclusivamente cristão, mas antes a síntese das gran­des intuições éticas do género humano”.

Ratzinger, em posições intelectuais opostas às de Comte-Sponville e Michel Onfray, continua a filosofar tão-somen­te, não sabendo descortinar a dimen­são política da mensagem de Jesus. É que, se a ética cristã é uma síntese das grandes intuições éticas da humanida­de, não há outra maneira de concreti­zá-la na sociedade, se a ética não for política também. A teologia da liberta­ção tentou impregnar a política da ética que de Jesus emana. Pois foi rejeitada pelo então Cardeal Ratzinger! Bem pre­ga Frei Tomás!... Nesta ética, que não me parece igual à de Jesus crucifi­cado, não tenho vontade de acreditar. Por ca­pricho ou antipatia por Joseph Ratzin­ger? De maneira nenhuma! Por esta única razão: o Jesus em que acredito e com quem dialogo, nas minhas ora­ções quotidianas, foi um político tam­bém. Por isso, o prenderam, o tortura­ram e mataram. É neste Jesus, Filho de Deus, que sofreu, amou, verdadei­ra­mente viveu – que eu tenho vontade de acreditar! É a Ele que eu invoco, sempre que a solidão me assalta pelos caminhos pedregosos desta vida! É a Ele que eu invoco, várias vezes ao dia, pois que sem a Sua companhia já não sei viver!


Desvendar a Mente de Deus

Por FREI BETTO

Teólogo

 

O Grande Colisor, o acelerador de partículas inaugurado a 10 de setembro 2008 com 27km de circunferência, construído sob as fronteiras da Suíça e da França, é para a física o que o te­lescópio é para a astrofísica.

Seu princípio operacional baseia-se na famosa equação de Einstein - E=mc2 (E é energia; m, massa; c, velo­cidade da luz). A quantidade de ener­gia concentrada numa porção de maté­ria equivale à sua massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. A velocidade da luz é de 300 mil kms por segundo.

Se a energia tem massa, 1 kg de car­vão, convertido totalmente em ener­gia, produziria 25 mil milhões de quilo­watt-hora (kwh) de eletricidade. Toda a energia eléctrica gerada nos EUA, somada à do Brasil, não chega a 15% disso.

Antes de Einstein, ninguém supôs que energia e massa se igualassem. A constante c, aparentemente inofensi­va, representa um número astronómico - o quadrado da velocidade da luz. Se extrairmos energia de uma colherada de água, ela será suficiente para que um transatlântico atravesse o Atlântico mil vezes.

O que se pretende com o acelera­dor de partículas é captar a energia primitiva que deu início ao Universo há 13,7 bilhões de anos – o Big Bang. Ele é como uma imensa serpente bro­tando de um pequeno balão de hidro­génio, cujas válvulas, controladas por computadores, libertam jactos de gás, como se fosse uma brincadeira de cri­ança. No entanto, em cada um daque­les jactos há mais prótons do que a so­ma de todas as estrelas da Via Lá­ctea.

As minúsculas nuvens de gás en­tram pela cavidade eléctrica do ge­rador que separa os elétrons dos áto­mos de hidrogénio, como quem arranca o halo de luz de uma estrela, e lançam os prótons, primeiro, por um túnel de gran­de velocidade; em seguida, por um cano estreito como uma mangueira de jardim, mas com cerca de 5 kms de extensão. Dentro desse anel os pró­tons são acelerados por pulsão pro­vo­cada por eletroímãs, enquanto ímãs focalizadores os reúnem num feixe tão fino quanto a grafite de um lápis.

Ao atingir uma velocidade próxima à da luz, a massa inicial aumenta cerca de 300 vezes, graças à própria velocidade. Neste momento, são desviados do anel e lançados contra um alvo den­tro de um detector. Seus rastros, ca­ptados pelo campo magnético do de­te­ctor, revelam a identidade da partí­cula.

Os aceleradores seriam como es­tre­las mecânicas; sua temperatura, elevada a milhões de graus, pode fa­zer com que as partículas se movam tão rapidamente como no coração das estrelas. No anel do acelerador, pró­tons e antiprótons percorrem trajectó­rias opostas em velocidades próximas à da luz, colidindo um milhão de vezes por segundo - e, assim, fragmentando os átomos em suas partículas mais ge­nuínas, entre as quais o quark top, o último dos seis tijolos fundamentais da matéria a ter sua existência comprova­da, em 1995.

Quanto mais aperfeiçoado o acele­rador de partículas, mais serão desco­ber­tas novas partículas. Assim, os ci­en­tistas se perguntam se algum dia essa “arqueologia” da matéria findará - ao se depararem com aquela partícu­la que seria, afinal, a mais elementar, base de todas as demais.

O acelerador nos aproxima do parto gerador do Universo. Para as nossas di­mensões de tempo, alcançar o que sucedeu 1 centésimo de segundo após a Criação é fantástico. Que importa saber o que ocorreu 1 decimilibilioné­si­mo de segundo antes que você deci­disse piscar o olho, como fez agora? No entanto, quando se trata da evolu­ção da matéria, cada fragmento de se­gundo é como um século para a história humana.

Sabe-se, hoje, o que teria ocorrido nos três primeiros minutos após a explo­são do Ovo Primordial que continha to­do o Universo, o Big Bang. Mas isto não basta, muitas outras coisas se pas­saram na fornalha original antes da­quela fracção de segundo.

O que a ciência procura é aproxi­mar-se do momento em que o átomo inicial não se conteve e, pleno, abriu-se como um botão de rosa que exibe pétalas em todas as direcções. Assim, ficaremos sabendo um pouco mais a res­peito das raízes de nossa universal e holística árvore genealógica.

O que fazia Deus antes de criar o Uni­verso? A resposta foi dada por Santo Agostinho, no século IV: “Preparava o inferno para quem faz esse tipo de pergunta”.

Quem aprecia culinária e gosta de pi­lo­tar um fogão saiba que os ingredi­en­tes da receita para fazer o Universo são simples: 76,5% de hidrogénio; 21,5% de hélio e 2% de outros elementos químicos.

De preferência, o cozinheiro deve ter mãos divinas.

* escritor, autor de A Obra do Artista – uma visão holística do Universo (Ática), entre muitos outros livros.


Peixinhos e Tubarões

Por FREI BETTO

Teólogo

 

Angélica Aparecida de Souza Teo­do­ro, 18 anos, mãe de um filho de dois anos, estudou apenas o 1º. grau. Tra­balha como empregada doméstica, mas encontrava-se desempregada, ao ser presa, em Novembro, dentro de um mercadinho do Jar­dim dos Ipês, na ca­pi­tal paulista, acu­sada de roubar uma lata de manteiga marca Aviação, de 200 gramas, no va­lor de 3,10 reais. Le­vada para a 59º Dis­trito Policial, conhe­cido como Cadei­ão de Pinheiros, rece­beu voz de prisão do delegado Marco Aurélio Bolzoni.

Por subtrair mercadoria no valor de R$ 3,10, Angélica passou na prisão o Na­tal, o Ano-Novo e o Carnaval, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o pedido de defesa da domés­tica, o indeferiu. Angélica foi solta dia 23 de Março, mais de quatro meses de­pois, graças à liminar do ministro Paulo Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

O Brasil e sua Justiça parecem pos­tos de cabeça para baixo. Há uma inver­são total de valores e critérios. Um publicitário vem a público e declara ter rece­bi­do, via caixa dois, 10 milhões de reais numa conta clandestina no exterior, e fica, por isso mesmo, protegido por di­rei­tos que lhe foram garantidos pelo STF, reagindo com escárnio às interro­gações dos parlamentares incumbidos de apurar corrupções.

 

Um publicitário mineiro faz biliar­dá­rios empréstimos ao tesoureiro de um partido político, sem revelar a ori­gem dos recursos, porém destinan­do-os ao suborno de deputados federais, e fica por isso mesmo.

Um deputado federal, cassado a­pós ocupar o cargo de presidente da Câmara dos Deputados, achaca em R$ 7 mil o proprietário de um restaurante e ninguém lhe dá voz de prisão.

Um alto funcionário dos Correios é filmado embolsando propina no valor de R$ 3 mil, a polícia não é chamada e ele continua livre, prova viva de que crimes de colarinho branco, merecem a cumplicidade de sectores da Justiça.

Quando políticos, banqueiros e em­presários processados por desvios de recursos públicos devolverão o que roubaram? Quem pune os gastos exor­bitantes de um reitor de Universidade de Brasília, os desvios de recursos do BNDES, as maracutaias nas privatiza­ções sob o governo FHC?

Fica a impressão de que, por baixo de tanta corrupção, há uma extensa re­de de cumplicidade. Tubarões não são punidos para evitar que entre­guem outros tubarões à Justiça. Neste país, basta ter dinheiro, bons advoga­dos e relações nas instâncias de poder para ficar assegurada a impunidade. Enquanto isso, os pobres, sob simples suspeita, sofrem torturas ou levam bala antes de serem inquiridos ou investiga­dos.

Os peixinhos, como Angélica, ficam meses na cadeia por causa de R$ 3,10. Os tubarões, imunes e impunes, são a prova viva de que o crime compensa – de facto e de direito – desde que o assalto abocanhe valores em milhões de reais. De preferência dinheiro dos cofres públicos.

Vale o provérbio: “Quem rouba 1 real é ladrão, quem rou­ba 1 milhão é barão”.

Estatísticas comprovam que a polí­cia do governador Sérgio Cabral, do Rio, matou mais este ano do que os cri­mes cometidos em São Paulo por bandidos. Quem decepa a mão assas­si­na do Estado?

 

No Brasil, quando a polícia pára uma pessoa de posses, a pergunta é: “Sabe com quem está falando?” Em outros países é o policial que faz a per­gunta: “Quem você pensa que é?”

Quando estive na Inglaterra, nos anos 80, vi pela BBC – uma TV estatal – o sobrinho da rainha Elizabeth II ser levado a julgamento. Parado por uma pa­trulha rodoviária, constatou-se que ele dirigia sob efeito de álcool. Cassa­ram-lhe a carteira por seis meses.

Dois meses depois foi parado por outra patrulha. Pediram-lhe a carteira. Não tinha. Então apelou para o jeitinho brasileiro: “Sabe com quem está falan­do? Sou o príncipe fulano”. O guarda in­sis­tiu em ver os documentos. O rapaz voltou ao bate-boca. Então o policial disse-lhe: “Um de nós dois está errado. Você está preso e a Justiça dirá quem de nós tem razão”.

Televisionado para todo o país, o prín­cipe viu-se obrigado, pelo juiz, a pedir desculpas ao guarda e teve a sua licença de condução cassada por cinco anos.

Assim se faz cidadania.

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A Impossível COMENSALIDADE depois de Doha

Por L. BOFF

Teólogo

 

O vergonhoso fracasso da Cimeira de Doha deve-se principalmente aos paí­ses ricos que quiseram garantir a parte de leão nos mercados dos pobres. Num quadro de fome já instalada, des­per­diçou-se a oportunidade de assegu­rar comida na mesa dos famintos. O so­nho ancestral da comensalidade que nos faz humanos, quando todos poderi­am sentar-se à mesa para comer e co­mun­gar, torna-se ainda mais distante.

Além da crise alimentar, ainda nos assolam a crise energética e a climática. Se não houver políticas mundiais articu­la­das, podemos causar graves riscos às populações e ao equilíbrio do planeta. Daí A Carta da Terra propor uma alian­ça de cuidado universal entre todos os humanos e para com a Terra, até como questão de sobrevivência colectiva.

Os problemas são todos interdepen­den­tes. Por isso não é possível uma so­lu­ção isolada com meros recursos técnicos, políticos ou comerciais. Precisa-se de uma conjugação de mentes e cora­ção novos, imbuídos de responsabili­da­de universal, com valores e princí­pios de acção, imprescindíveis para uma outra Ordem mundial. Enumeremos alguns deles:

 

O primeiro de todos reside no cuida­do pela herança que recebemos do i­men­so processo de evolução do uni­verso.

O segundo está no respeito e na re­verência face a toda alteridade, a cada ser da natureza e às diferentes cul­turas.

O terceiro encontra-se na coopera­ção permanente de todos com todos, por­que somos todos eco-interdepen­dentes, a ponto de termos um destino comum.

O quarto é a justiça societária que va­loriza as diferenças, diminui as hie­rar­quizações e impede que se transfor­mem em desigualdades.

O quinto é a solidariedade e a com­pai­­xão ilimitada para com todos os se­res que sofrem, a começar pela própria Terra que está crucificada e pelos mais vulneráveis e fracos.

O sexto reside na responsabilidade universal pelo futuro da vida, dos eco­sis­te­mas que garantem a sobrevivência humana, enfim, do próprio planeta Ter­ra.

O sétimo é a justa medida em todas as iniciativas que concernem a todos, já que viemos de uma experiência cultural marcada pelo excesso e pelas de­sigualdades.

Por fim, é a auto-contenção da nos­sa voracidade de acumular e consumir, para que todos possam ter o suficiente e o decente e sentir-se membros da úni­ca família humana.

Tudo isso só é possível se, junto com a razão instrumental, resgatarmos a razão sensível e cordial.

A economia não se pode indepen­den­tizar da sociedade, pois a conse­quência será a destruição da própria ideia de sociedade e de bem comum. O ideal a ser buscado é uma economia do suficiente para toda a comunidade de vida.

A política não se pode restringir a ordenar os interesses nacionais, mas se obriga a projectar uma governação global para atender equitativamente os interesses colectivos.

A espiritualidade precisa de ser cós­mica, que nos permita “viver com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade face ao lugar que o ser hu­mano ocupa na natureza” (Carta da Terra, introdução).

O desafio que se impõe parece ser este: passar de uma sociedade de pro­dução industrial em guerra com a natu­re­za para uma sociedade de promoção de toda a vida em sintonia com os ci­clos da natureza e com sentido de equi­dade.

Estas são as pré-condições de or­dem ética e de natureza prática que se destinam a criar as condições de uma comensalidade possível entre os humanos. Logicamente, tornam-se ne­cessárias as mediações técnicas, polí­ticas e culturais para viabilizar este pro­pósito. Mas elas dificilmente serão eficazes, se não forem plasmadas à luz destes princípios-guias que significam valores e inspirações.


A Cristina e Isidro

VIVAM OS NOIVOS

 

A Cristina e Isidro:

Vivam os noivos! Felicidades!

Felicitamo-vos pelo compromisso e pela coragem que significa romper com as estruturas estabelecidas para estas celebrações. Dar toda a prioridade ao amor, no momento de compartilhar com as pessoas que vos amam a celebração do amor, que é o único essencial, pe­ran­te a parafernália que habitualmente acompanha estes momentos (roupas, banquete, convidados e presentes de to­do o tipo...).

Obviamente, estamos convosco. Des­tes um passo muito significativo nes­tes tempos que correm. Este é um mo­mento muito importante na vossa vida e vós destes este passo duma maneira livre, recorrendo a gestos livres e em radical rebeldia em relação ao que nos cerca, o que faz deste vosso passo um forte sinal revolucionário. Fica assim pro­vado que também vós quereis fazer parte, já fazeis parte, deste pequeno gru­po de homens e de mulheres livres que apostamos que outro mundo é pos­sí­vel. O mundo da fraternidade univer­sal, da igualdade e da justiça, da liberdade, do compromisso.

Compartilhamos este modo de cele­bração. Há já quase 28 anos, experi­mentámo-lo nós, de outro modo, mas também rebelde, já que nessa altura deu muito que falar... Os modos de fazer não são de um tempo ou de outro, respondem a sentimentos e a atitudes pe­ran­te a vida. Mais uma vez, felicidades!

O dia 28 de Março 2008 foi apenas uma pausa ou um momento de paragem no vosso caminhar. Uma paragem muito importante, na qual, olhando-vos nos olhos, dissestes que sim, que já éreis fe­lizes e que quereis continuar a sê-lo, unidas que estão, agora, ainda mais as vossas vidas e as vossas pessoas. O vosso compromisso não nasceu nesse dia. Já vinha crescendo há muito tempo. Depois desta paragem e com mais for­ças ainda, como as que ganha o cami­nhante depois de um reparador tempo de descanso, carregadas as vossas mo­chilas de carinho, respeito, igualdade, projecto comum, responsabilidade, sin­ceridade... e tantas outras coisas, conti­nuais a caminhar e a fazer caminho ao andar.

As mochilas, mesmo quando cheias, não são pesadas, uma vez que os dois juntos as enchestes e nelas colocastes coi­sas que vos unem livremente, em vez de coisas que vos acorrentam.

É um caminho difícil, mas bonito ao mesmo tempo. E o mais bonito é que se percorre juntos. E todos sabemos que “juntos” o percorremos muito bem. Os momentos difíceis também aparece­rão, mas como na mochila vós levais reservas, eles vão-se superando. Aten­ção! Para que as reservas não se esgotem na mochila, é preciso mantê-las sempre carregadas. A casa e as tarefas domésticas são dos dois. Os dois tendes duas mãos cada um. As mãos, se as habituamos, podem fazer qualquer serviço. Não tem de haver ser­viços próprios do homem e servi­ços próprios da mulher. É bom que também nisto sejamos valentes, rom­pa­mos estruturas e revolucionemos este mundo pela igualdade entre ho­mens e mulheres. A simplicidade de vida, a todos os níveis, é também algo que nos pode fazer avançar. E o aco­lhimento, pois então, a casa acolhe­dora, uma casa aberta onde ninguém se sinta estranho e onde realmente se compartilha.

Como vedes, podíamos continuar aqui a falar, a falar... É que, quando estamos felizes e alegres, estamos com gosto e é como se nem déssemos pelo tempo passar. Nunca nos cansamos.

Queremos participar da vossa ale­gria, compartilhando uma semana con­vos­co aqui em Madrid. Seria no mês de Julho. Em Agosto, não estaremos. A nossa casa é também vossa. Aqui, de uma maneira simples, podeis passar uns dias felizes. Maria Laura conhece bem a casa. Na sala, podemos pôr um colchão de casal. Tudo o que temos, po­mo-lo à vossa disposição. Apenas te­reis que nos dizer o dia em que che­gais. Não são precisos preparativos es­pe­ciais, quando alguém vai à sua pró­pria casa e esta, dizemo-lo de novo com a maior simplicidade do mundo, é também vossa casa. Uma pessoa é i­men­samente rica, na medida em que é capaz de compartilhar o pouco ou o muito que tiver, pois devemos sentir-nos apenas administradores do que ti­ver­mos, nunca proprietários ou donos. Felicidades!

Amparo / António.


OUTRAS CARTAS

Os seus livros são tesouros

 

Queluz. E. Lopes: Sr. Padre Mário de Oliveira, desejo que continue bem de saúde. Gostei muito de o ter conhe­cido pessoalmente, este ano, em Lisboa, na Feira do Livro. Obrigada pela forma amável como me acolheu e autografou o livro que comprei na altura: Ouvistes o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos. Eu já tinha comprado outros que ia encontrando nalgumas livrarias. Na Fnac do Fórum de Almada, comprei Quando a Fé move montanhas, logo em Maio.

Os seus livros são tesouros que en­contrei. No meu coração, sempre “pen­sei” Deus, Jesus, Maria de Nazaré e também certos “factos”, tal como o Sr. Pe Mário no-los faz entender. Vivi num sofrimento interior, por não conseguir “pen­sar” nem aceitar como verdade a­qui­lo que ouvia na igreja católica e no que os meus amigos e as pessoas que conheço acreditam e praticam. Gera­va-me um conflito interior que como que me fazia “doer”. E não podia desabafar, a não ser com o meu marido, porque per­cebia que não tinha à volta quem pen­sasse como eu. Teria preferido nun­ca ter conhecido o meio religioso cató­lico ou outro que fosse. O que ouvi e da maneira como mo diziam contrariava o dom precioso da inteligência. Sufo­cava, era doentio.

Decididamente, por mim, ainda an­tes de conhecer os seus livros, afastei-me do ambiente religioso que me perturbava. Não me afastei das pessoas. Continuo a abraçá-las, quando me en­contro com elas. E digo-lhes, delicadamente, ou melhor, dizia-lhes, quan­do mo perguntavam, por me terem dei­xado de ver, que penso no meu íntimo de maneira diferente e quero ter outro caminho.

Quando me deparei sucessiva­men­te com os seus livros, foi a Ale­gria e a Paz. Encontrei neles Deus da Vida e da Alegria! Emocionei-me verdadeiramente. Nem consigo bem ex­primir-me, porque a Alegria da Ver­da­de é muito profunda. Bem-haja!

Hoje, venho pedir-lhe o favor de me enviar, quando puder, o seu livro Na companhia de Jesus e de ateus. Livro dos Actos século XXI. Agradecia-lhe que o autografasse, porque me dá muito gosto.

Agradeço-lhe tudo o que escreve nos livros. Leio-os com muita atenção. Acho que posso dizer que rezo com eles, quando os leio. Lembro-me da frase que fez clarão no meu coração, qu­ando li o primeiro livro que adquiri. Não a reproduzo literalmente, mas o sen­tido que me ficou gravado é este: não é ter Fé em Jesus. É ter a mesma Fé de Jesus! Ela leva-nos à vida frater­na, sempre. E a sermos Pessoas como Deus Pai/Mãe nos deseja. Muito obriga­da por tudo.

Respeitosos cumprimen­tos.

 

Brasil. M. Tiago: Olá, Padre Mário! Mais uma vez lhe escrevo. Antes de mais nada, para dizer-lhe que estamos cada vez mais actuantes e perseveran­tes na fé libertadora em Jesus. Seus textos e estudos nos fazem cada vez mais sentir que não estamos sozinhos no caminho estreito, porém profunda­men­te libertário de uma fé que rompe preconceitos, estereótipos e nos leva a querer uma sociedade Justa, Frater­na, Politizada, esses mesmos atributos que definem quem é Deus, o Ser Polí­ti­co, Fraterno e Justo por excelência.

Escrevo-te para, antes de mais na­da, dizer que tua última resposta a nossa carta foi para nós um bálsamo e um compromisso. Bálsamo, por ser uma espécie de sacramento de confir­ma­ção para nossa caminhada pastoral. E compromisso, pois nos alertou que não tínhamos que ficar apenas na de­núncia do ateísmo do sistema neolibe­ral, mas ir mais além, mergulharmos na crítica, dura e radical. E a partir de nós mesmos, de todas as formas de ido­latria, que tiram a Política e a Fraterni­dade do centro de nossas vidas e colocam outras coisas no lugar. Coisas que se traduzem pelo Deus Dinheiro.

Assim, estamos avançando. Estamos num conflito aberto com os poderes ecle­siásticos. Denunciamos a malfada­da campanha do dízimo que a paró­quia central quer impingir as comuni­da­des pobres. E em troca, propomos a luta solidária pelos direitos das pes­soas. Ao invés de enviarmos dízimos para a paróquia central, o que nós fa­ze­mos com o dinheiro arrecadado é um pouco o que vocês fazem aí em Maciei­ra da Lixa: estamos construindo um centro de defesa dos direitos humanos. Contaríamos com advogados para de­fen­der os pobres, as prostitutas, os ho­mossexuais e todos aqueles que so­frem injustiças.

Outro aspecto positivo: Estamos fir­memente posicionados contra o prose­litismo de qualquer Igreja. Visitamos presídios mas não para converter nin­guém, nem administramos os malfada­dos sacramentos em seus ritos vãos. Quando vamos aos presídios, levamos o único sacramento que temos o man­da­to de levar: a luta pela Justiça. Lutamos por melhores condições para os en­carcerados e, ao mesmo tempo, os esclarecemos de seus direitos... Não há sacramento melhor que esse. E ainda dizemos para as pessoas que não é necessário que se vinculem ás igrejas para se salvarem...

Como pode ver, padre Mário, cres­cemos muito em qualidade, depois que estudamos os seus livros e os de Jon Sobrino. E continuamos esses estu­dos... Conseguimos a edição de seu último livro QUANDO A FÉ MOVE MONTANHAS e mais do que depressa distribuímos al­guns exemplares em nossas comuni­da­des. As pessoas os devoravam como um prato suculento e cheio de conteú­do. E já está combinado que, tal como os outros livros, ao final desse ano, os livros serão “soltos no mundo”, para que possam livremente estar nas mãos de outras pessoas.

Ouro aspecto importante a conside­rar: Deixamos bem claro ao nosso pá­ro­co que não queremos deixar de ser cristãos católicos. Mas que sermos cató­licos (universais) só tem sentido se for­mos jesuánicos, ou seja. profundamente re­beldes em relação a qualquer forma de poder que nos corrompa. Se a Igreja existe é para um serviço maiêutico, que rompa com quaisquer idolatrias e for­mas de adoração do poder e do di­nhei­ro.

Não é isso que queremos. Quere­mos a liberdade, a Justiça, o fim dos pre­conceitos. E, lá, em nossas peque­ninas comunidades de base do bairro de Sapopemba, na zona leste de São Paulo, é assim que queremos viver.

E feitos inéditos têm acontecido. Aqueles membros que têm automóveis (eu, inclusive), já disponibilizamos nos­sos carros para o serviço da comuni­da­de. Quem mais precisa, usa de forma responsável. Aqueles que têm livros, emprestam para os outros. Aqueles que têm um saber profissional, cedem parte do seu tempo no serviço dos outros. ...Estamos a começar a viver um pouco a Utopia descrita lá em Actos, capítulo 02.

Não somos ingénuos, mas utópicos. Jesuanicamente utópicos. Sabemos que é por aí que se começa a construir uma sociedade Jeusânica. E é nela que pomos nossas Utopias e nossas espe­ran­ças. E, em grande parte, devemos aos seus livros, querido Padre Mário.

Por isso, tu estás sempre presente em nossas celebrações eucarísticas. Quando lemos um texto seu em nossas celebrações, sempre alguém faz um co­mentário e procura apresentar aos de­mais a importância dos valores jesuânicos. Enfim, querido padre, quando estiver desanimado, lembre que, se não for por mais nada, vale a pena seguir lutando, primeiro pelo projecto de Jesus... e depois porque, do outro lado do oceano, algumas pequenas comuni­dades de base se inspiram em suas re­flexões na busca de um mundo com Justiça e Liberdade. Os outros nomes de Deus!

Paz! Axé! Salam! Shalom! M. Tiago (em nome de dez comunidades de base da zona leste paulistana)

 

ND

Querido M. Tiago e demais Compa­nheiras / Compa­nheiros das dez Co­mu­nidades de Base da Zona Leste Pau­listana, Brasil

Li, interiormente emocionado, a sua / Vossa mensagem. O Oceano atlântico não nos distancia, aproxima-nos. No Espírito, que não na carne. Mas é no Espírito, o de Jesus, que melhor nos aproximamos e somos. A carne, por vezes, impede-nos de vermos o Essen­cial, sempre invisível aos olhos. E aca­bamos a ver mais as limitações e os de­feitos, os feitios e as maneiras de ser deste e daquele do que o Essencial. No Espírito, isso já não acontece. Aca­bamos sempre centrados e unidos no Essencial.

Constato, e com isso torno-me Euca­ristia viva sem cessar, que estais a cres­cer em sabedoria e em graça, tal como sucedeu paradigmaticamente com Jesus, o de Nazaré. Por isso sois cada vez menos do Templo e cada vez mais da Cidade, cada vez menos da Re­ligião e cada vez mais da Política, não a dos profissionais do Poder polí­tico, mas a Política jesuânica feita de praticas maiêuticas em todos os domí­nios da vida humana, com destaque pa­ra o Econcómico-financeiro (até já partilhais os carros!), o social e o cultu­ral. Efectivamente, sem Justiça não há Paz e sem Paz, fruto da Justiça, não há Culto que agrade a Deus, o de Je­sus, porque tão-pouco agrada aos se­res humanos, a começar pelos mais em­pobrecidos e oprimidos. Só agrada­ria ao Deus-Ídolo do Religioso, sempre casado com o Poder e o Dinheiro.

Vivemos hoje sob o mais completo domínio da Besta, que, neste século XXI, já não é mais o Império Romano, como era no tempo em que as comuni­da­des de João, o de Jesus, não o Ba­ptista, escreveram o livro que leva o no­me bíblico de Apocalipse ou Revela­ção, em cujas páginas se fala do Im­pério romano como a Besta. Hoje, o Império que domina e controla até a própria consciência dos povos é o Im­pério do Senhor Deus Dinheiro, muito mais perigoso, assassino e cruel que o Romano e o de Bush. Nem sequer é territorial. Nem precisa de o ser. Aloja-se na mente dos seus súbditos, mete-se na sua consciência, mata-os na al­ma, ao mesmo tempo que os faz correr, correr, correr, mas para ninguém, numa demente fuga das pessoas de carne e osso, num suicida viver quotidiano sem quaisquer afectos.

Fazeis bem em estar atentos às tá­cti­­cas deste Império, aos seus modos de agir e de operar, aos seus disfar­ces. Para não vos deixardes enganar. Jesus, o Crucificado da Galileia em Je­ru­salém, no ano 30, é o grande antídoto deste tipo de Império. Porque, com a sua Morte-Ressurreição, se constituiu para sempre na Luz dos povos. Por isso, o Império do Dinheiro, mais ainda do que o Romano e o de Bush, está em­pe­nhado em fazer desaparecer da me­mória da Humanidade, dos Povos da Terra, das gerações que estão aí a chegar, o Nome de Jesus. Os anterio­res Impérios conseguiram convertê-lo num mítico Cristo com que os povos fo­ram sucessivamente alienados. Mas agora que Jesus, o de Nazaré, está de novo a emergir nas investigações dos especialistas, o actual Império do Di­nheiro está determinado em desacre­ditá-lo e em banir por completo o seu nome da face da Terra e da memória da Humanidade e dos Povos. Porque o Império do Dinheiro sabe que não po­derá subsistir por muito tempo com Jesus e a Luz do Mundo que ele é. En­tre ele e Jesus a incompatibilidade é total. Como entre a Luz e a Treva. Ha­vemos de resistir ao Império do Di­nheiro e a todas as suas seduções e mentiras. A melhor maneira de o fazer, já o sabeis e estais a dar provas disso, é sermos nós próprias, nós próprios Jesus, hoje e aqui, Jesus à Século XXI. O Espírito que há dois mil anos o con­cebeu e fez ser integralmente humano pode fazer outro tanto, hoje, connosco, se nós consentirmos. Vamos consentir, por mais ferozes e hábeis que sejam as tentações e aterradoras as ameaças do Império contra quem lhe resistir. Ja­mais deixaremos de tirar os olhos de Je­sus, o Mestre. E o Espírito sairá ven­ce­dor também em nós, como saiu nele e com ele. Mesmo que o Império nos re­duza a “malditos” e a “Ninguém”. Até porque quanto mais o fizer, na sua sa­nha, mais se autodestruirá.

Tereis grandes combates pela fren­te. Inclusive, duelos. Os teológicos se­rão os mais urgentes e fecundos. Por­que é com eles que o Deus-Ídolo do Re­ligioso sai radicalmente desmascara­do. E DeusVivo, o de Jesus, terá mais oportunidade de ser DeusVivo em nós e connosco. Alegro-me com o Vosso cres­cimento na mesma Fé de Jesus. E na mesma sabedoria de Jesus, assim como na sua mesma Graça / Verdade. E, se os meus livros são, estão a ser alimento neste Vosso crescimento, a minha alegria é ainda maior. Porque é sinal de que são livros com Espírito, o de Jesus. Fico por isso como um me­nino, em Eucaristia convosco, sempre, na certeza de que, apesar das incompreensões institucionais que conheço na carne, e tantas são, o caminho é ine­­qui­vocamente por aqui. Nem poderia ser de outro modo, porque, afinal, mais não faço do que procurar seguir Jesus, o Caminho, a Verdade e a Vida. Por isso, mais do que pordes os olhos em mim, tereis de os pôr em Jesus, o de Nazaré, que haveremos de conhe­cer cada vez mais e melhor, por acção do seu próprio Espírito que está aí em­pe­nhado em conduzir-nos para a Ver­dade total. Avancemos em comunhão, a comunhão que Ele, o Espírito, sempre faz.

Abraço-Vos a todas, todos, num só e mesmo abraço sororal / fraterno. Com imenso afecto e gratidão. Vosso, Mário

 

E-mail. M. Neiva: Caro Pe Mário: Sabe tão bem quanto qualquer católico, que a Igreja proclama Jesus na sua du­pla natureza divina e humana. O sr. Pe acaba de fazer exactamente o mes­mo, na resposta que me deu. É certo que cada um tem de Jesus uma visão di­ferente. A sua, a verdadeira e a da Igreja, a falsa. Diz o Sr. Pe. Mas, se a Igreja é herética, o Sr. não o será me­nos, na perspectiva da Igreja.

 E quem está “de fora” de uma tal crença dirá que a sua “guerra” com a Igreja Católica não passa de uma dis­pu­ta entre comadres desavindas.

 Quem “está de fora”, como o autor es­pa­nhol do Galileu Armado, lança so­bre os dois um olhar complacente, aba­na a cabeça e murmura consigo pró­prio: Coitados, ainda acreditam no Pai Natal e até se zangam a discutir «o meu (Pai Natal) é melhor que o teu».

Entretanto o mundo dos homens se­gue o seu rumo, cada vez mais indife­rente a essa disputa sobre o sexo dos anjos ou sobre alguém que o Sr. Pe apelida de Alfa e Ómega, o que vem a dar o mesmo.

Os que “estão de fora”, já deixaram de lado todas as verdades há muito re­ve­ladas nos livros sagrados, sejam o seu Evangelho, seja o Corão, e procu­ram a verdade escondida nas profunde­zas das partículas subatómicas, para ver a luz ao fundo do túnel. E, tal como os nossos antepassados, os que “estão de fora” fizeram um livro para se orien­ta­rem na caminhada do dia a dia, um livro cheio de preceitos e tão compre­en­sí­vel para os homens de hoje como eram os evangelhos para os cristãos de há dois mil anos: OS DIREITOS DO HOMEM, DA MULHER, DA CRIANÇA, DOS ANIMAIS, DO PLANETA TERRA. Radicam na cultura anterior, a cristã-ocidental? É verdade, tal qual os seus evangelhos emergem no contexto da cul­tura judaico-helénica…

Permita-me, Pe Mário, que lhe faça uma pergunta: Vai passar o resto da sua vida a olhar para o passado em vez de mergulhar a fundo na construção do futuro da Humanidade que, ao ser construída, se irá revelando o que é? Ou pensa, e falo muito a sério, que já sabe o que somos, donde viemos e pa­ra onde vamos?

Se acha que é humilde, reze todos os dias, ao levantar-se da cama: Sei que nada sei, sei que nada sei. Como dizia Sócrates, o Grego.

Fraternalmente, M. Neiva.

 

ND

M. Neiva, meu amigo

Nem sei como ainda continua a per­der tempo comigo. Afinal, se é assim como diz neste seu mail, eu vivo completamente fora do presente, só a olhar o passado, ocupado com o passado e, ao que parece, ainda por cima estou disposto a gastar o resto dos meus dias “a olhar para o passado em vez de mer­gu­lhar a fundo na construção do futuro da Humanidade”. Será que já conse­guiu ver-me tal e qual eu sou, ou ape­nas imagina-me assim como acaba de me descrever? Por outro lado, vejo que para si, Homens a valer e com futuro à sua frente, são “os que estão de fora [da Igreja, suponho] e já deixaram de lado todas as verdades há muito revela­das nos livros sagrados”. Como, pelos vistos, estará, desde há muito tempo, a fazer o seu autor preferido que es­creveu o Galileu Armado. Esse sim, não quer saber para nada das verdades há muito reveladas, a não ser as que vêm nos Evangelhos apócrifos, por exemplo, e outros escritos gnósticos, do século II-III, esses, sim, escritos totalmente fi­de­dignos e ainda profundamente actu­ais. Acontece, porém, que J. Montserrat Torrents foi (não sei se ainda é) profes­sor da Universidade Autónoma de Bar­ce­lona, e muito provavelmente viverá do que escreve e do que ensina sobre es­sas e outras matérias do passado. Enquanto eu, pobre de mim, oficialmen­te já nem sequer existo como presbítero da Igreja do Porto (o meu nome deixou há bastantes anos de constar nas listas oficiais dos padres da Diocese) e, des­de 1975, vivo exclusivamente do meu trabalho profissional de jornalista (ago­ra, já reformado pela Caixa de Previ­dên­cia dos Jornalistas, pouco mais de 600 euros/mês), já que até os meus di­reitos de autor pelos livros publicados e vendidos revertem integralmente para a Associação Cultural AS FORMIGAS DE MACIEIRA e o seu Barracão de Cultura ainda em fase de construção (antes desta Associação existir, reverteram para a Associação Cultural Padre Ma­ximino, em S. Pedro da Cova). Tenho feito questão de sempre dar de graça o que de graça recebi, de resto, já era assim, nos poucos anos em que me dei­xaram ser pároco, o que levou, na altura, muitas das pessoas a procurar os párocos vizinhos para lhes rezarem as missas pelos seus mortos, porque as missas que eu celebrava na paró­quia não deveriam ter valor nenhum, devido a eu recusar receber dinheiro por elas.

Entretanto, também eu reco­nheço juntamente consigo, que os que “estão de fora” podem andar mais car­re­gados de futuro do que os que “es­tão dentro”. Mas penso, sobretudo, nos que estão fora desta Ordem Económica idolátrica do Dinheiro e do Poder. Por­que os que estão fora apenas desta ou daquela Igreja, mas não desta obs­ce­na Ordem Mundial do Dinheiro e do Poder, por mais que falem do futuro e saibam de cor a Declaração Universal dos direitos humanos, dos animais, das crianças e da terra, podem muito bem estar a ser cúmplices activos ou passi­vos de todos os crimes que essa mes­ma Ordem Mun­dial e os seus Executivos cometem dia e noite. Impunemente. Ao serviço de quê e de quem coloco a pes­soa que sou, os conhecimentos que ad­quiri, os estudos que faço, as capaci­da­des que me “fazem”? É a pergunta que sempre me coloco e coloco às pes­soas que ainda me dão alguma aten­ção. Deve saber, porque isso é público, que, um ano depois de ter sido ordena­do pres­bít­ero da Igreja do Porto em 1962, fui rapidamente exonerado das funções de coadjutor da paróquia das Antas; depois exonerado, ao fim de dois anos, de professor de Religião e Moral no Liceu A. Herculano; depois fui exo­nerado, ao fim de mais dois anos, de professor da mesma cadeira no Liceu D. Manuel II; a seguir fui expulso, ao fim de apenas 4 meses, de capelão mili­tar na Guiné-Bissau; fui depois exone­rado de pároco de Paredes de Viado­res, ao fim de apenas 14 meses de fun­ções; fui preso duas vezes pela Pide, em 1970 e 1973, na minha condição de pároco de Macieira da Lixa e outras tantas julgado no Tribunal Plenário do Porto; e, finalmente, fiquei sem o ofício de pároco, precisamente no mesmo dia em que fui preso a segunda vez pela Pi­de. Alguns anos depois, e como já disse antes, até deixei de existir oficial­mente como presbítero da Igreja do Porto. Ainda assim, assumo-me e com­por­to-me, por imperativo de consciên­cia, como um dissidente na Igreja, mas não da Igreja, com tudo o que isso tem de negativo e de positivo e também de ambiguidade. Nesta condição, com mui­to de deserto, continuo a dar-me e a dar o meu melhor, totalmente de gra­ça, à missão presbiteral de EVANGELI­ZAR OS POBRES, sem querer saber para nada do preço que tenho de pagar por me permitir tamanha liberdade.

Conhe­ço na carne ódios teológicos sem conta e outros ódios bem mais mes­quinhos, desprezos sem conta, excomunhões sem conta; ataques sem conta, aleivo­sias sem conta. E não só dos que “estão dentro” das Igrejas, mas também dos que estão fora delas, mas não fora des­ta Ordem Mundial do Dinheiro e do Po­der. E nem sequer me livro da fama de “louco”, na boca de muitos dos meus colegas, alguns dos quais, professores muito bem vistos na Universidade cató­lica. Não sei se é assim que costumam ser tratados os que só vivem virados para o passado, como garante neste seu mail que eu vivo, ou, pelo contrário, se é por eu ter razão antes de tempo, devido, precisamente, a ter os meus pés assentes no Ómega e no Alfa, pro­curar viver no Século XXI e à Século XXI a mesma Fé do Galileu Armado da Ternura e da Paz, Jesus, de seu nome histórico, a Ternura e a Paz que o Po­der e o Dinheiro não dão, não podem dar e nem sequer conhecem. Coloco-me, pois, nas suas mãos.

Tem à sua dis­posição os meus livros publicados. Tem o Jornal Fraternizar, agora trimes­tral. Tem os meus sítios na net. Tem-me a mim próprio a viver aqui em Maci­ei­ra da Lixa, um-mais-com-e-entre-os-demais, numa casinha aluga­da que, an­teriormente, tinha sido uns anexos da casa da minha actual se­nho­ria. Além disso, pode ter-me tam­bém um dia des­tes, se quiser, sentado à sua mesa.

Jul­gue-me como entender e achar mais pertinente. Por mim, não me darei a esse trabalho, porque o Tempo urge e a Missão chama-me a dar-me aos de­mais, a começar pelos que não têm nem voz nem vez e nunca leram os tex­tos sagrados de nenhuma religião ou Igreja.

Agradeço-lhe o tempo que ainda perde comigo. E creia que as palavras que me escreve e envia não caem em saco roto, porque medito-as a todas no meu coração.

Dou-lhe o meu abraço fraterno. Mário


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