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DESTAQUE 1
Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sim ou não?
Pe. A. Vaz Pinto foi um desastre no “Prós e Contras”
Para já, só se fala do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Do casamento canónico, ninguém se atreve a falar. Mas este não pode ser dissociado daquele. Sob pena de a discriminação prosseguir, mesmo depois da provável aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Porque o casamento canónico vale também como casamento civil. Assim o diz a Concordata, desde 1940. Ela não deveria existir. Mas existe. Então porque há-de ficar de fora o direito ao casamento canónico para pessoas do mesmo sexo? A hierarquia da Igreja pode teimar em ser contra, quando deveria ser a pioneira no pôr fim à discriminação actualmente reinante. Mas, ao ser contra, ela impõe-se ao Estado e as pessoas que insistirem no casamento canónico não podem ser do mesmo sexo, quando, afinal, o casamento canónico é simultaneamente casamento civil. Em que ficamos? O Estado vai meter o rabo entre as pernas e ceder à hierarquia católica?
O Pe. António Vaz Pinto, jesuíta, saiu-se mal, muito mal, no programa da RTP 1, Prós e Contras, do dia 16 de Fevereiro 2009. O programa debateu a questão do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, sim ou não. Ele ficou do lado do não. E a apresentadora do programa, a jornalista Fátima Campos Ferreira, ainda por cima fez questão de dizer, na abertura, sem ter sido, de imediato, desmentida pelo próprio, que ele estava ali a representar a Igreja católica. As outras Igrejas, da área protestante, maioritárias noutros países da Europa, ainda que, pelo menos para já, minoritárias em Portugal, não foram tidas nem achadas. Como a dizer que só as maiorias contam. Ai das minorias. Inclusive, das minorias fecundamente dissidentes dentro da Igreja maioritária. Simplesmente não existem. Podem andar, como efectivamente andam, carregadas de futuro, o mesmo é dizer, carregadas de razão, mas ficam sempre, ou quase sempre, na borda do prato. Fermento na massa? Sal da terra? Luz do mundo? Sentinela na cidade? Deixem-se disso. O que conta e o que importa são as maiorias, as massas, a Treva, a Alienação.
Esta é a perversa e demente lógica que continua aí subjacente à chamada democracia representativa. Ainda está para chegar o tempo em que a Humanidade caia na conta desta perversão. Infelizmente, não foi já o caso deste debate, na RTP 1. As Igrejas minoritárias em Portugal não foram ao debate. Por falta de convite da RTP 1. E teriam certamente algo de substantivo, a dizer sobre o assunto. Muito menos, foram ao debate, também por falta de convite, as minorias dissidentes dentro da própria Igreja católica, sem dúvida, com algo de ainda mais substantivo a dizer sobre a matéria em debate. Todos saímos a perder com esta ausência. Também a Igreja católica que deveria ter sido a primeira a “exigir” que as outras Igrejas também fossem tidas e achadas em matéria de tanta monta.
O Pe. António Vaz Pinto não disse uma palavra a este propósito. E com o seu silêncio, também deixou passar em claro o equívoco da apresentadora do programa. Na verdade, ele não representava ali a Igreja católica. Representava-se a si próprio e, porventura, a quantas, quantos se revêem nas suas posições sobre esta matéria. Nada mais. Não me representou a mim, por exemplo. E eu sou Igreja católica quanto ele, inclusive presbítero quanto ele. Não sou jesuíta, como ele. Nem sou pároco, como a maioria dos presbíteros católicos hoje é. Mas sou Igreja católica e seu presbítero, na Igreja do Porto, com a profissão /missão de jornalista, hoje, muito mais abrangente que a missão /profissão de pároco. E é nesta minha condição de presbítero da Igreja católica, que aqui digo que o Pe. António Vaz Pinto saiu-se muito mal no programa e deixou ficar muito mal a Igreja católica que pareceu querer ali representar.
Sobre questão tão candente e fracturante, devido sobretudo aos séculos e séculos de Obscurantismo e de Moralismo imoral católico romano contra os homossexuais e as lésbicas, que, para nossa vergonha católica, acabaram por marcar negativamente a cultura ambiente e a sociedade em geral, o Pe. Vaz Pinto ainda chorou algumas lágrimas de crocodilo, mas apenas isso, lágrimas de crocodilo. Todo o seu ar no programa – para mais, coube-lhe a primeira palavra, logo a abrir! – foi agressivo, nervoso, exaltado, farisaico, próprio de quem pensa que tem a virtude e a verdade do seu lado. Gesticulou, gesticulou desabridamente e falou num tom não menos desabrido, próprio de alguém que, entretanto, se sente acossado nas suas retrógradas e (i)moralistas posições que, sobre o assunto, se sente obrigado a ter de defender perante a sociedade em geral, sob pena de vir a ter de se assumir publicamente como dissidente dentro da Igreja, com todas as duras consequências que esse estatuto acarreta, e muitas são, como eu sei por um saber de experiência feito, ao longo de muitos anos.
Melhor fora que ele não tivesse ido ao programa. De resto, o debate foi, desde o início, estupidamente reduzido a pronunciar-se, e com que fundamentos, sobre o direito, sim ou não, ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, nas mesmíssimas circunstâncias em que ele já existe entre pessoas de sexo diferente. A presença do Pe. A. Vaz Pinto no programa adquiriria pleno sentido, se também estivesse em debate o sacramento do matrimónio, o casamento-sacramento entre pessoas do mesmo sexo na Igreja e pela Igreja. Mas quem pensou o programa já nem coragem teve de incluir esta dimensão da questão. Autocensurou-se, tamanho é o medo que ainda há na sociedade civil da hierarquia católica, como se toda ela fosse um papão. E tinha tido todo o sentido que essa dimensão não ficasse de fora do debate, dado que a Igreja católica é uma instituição pública e, inclusive, mantém, desde 1940, com o Estado português uma Concordata, onde se inclui o chamado casamento canónico que é simultaneamente eclesial e civil.
Ora, pessoas do mesmo sexo que queiram casar canonicamente (por sinal, ninguém deveria querer, porque é uma promiscuidade institucional de todo o tamanho absolutamente indigna), tal e qual como já o fazem as pessoas heterossexuais que quiserem, nunca o poderão fazer, nem que o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo venha a ser, como espero, reconhecido pelo Estado. A Igreja católica romana continuará a discriminar as pessoas do mesmo sexo que queiram casar canonicamente. E, com ela, também o Estado português, sempre que dois cidadãos portugueses do mesmo sexo, elas ou eles, quiserem casar canonicamente. Para que a discriminação fosse completamente abolida, também o casamento canónico teria de ser objecto de radicais mexidas na sua actual formulação. E, caso a Igreja católica não cedesse na sua posição de princípio, o Estado deveria, pura e simplesmente, romper com a Concordata. Porque, se o não fizer, nem que o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo venha a ser reconhecido por lei e praticado normalmente, nunca duas pessoas do mesmo sexo, se quiserem casar civilmente por meio do casamento canónico, o poderão fazer.
É a Cristandade ainda em vigor no século XXI e já lá vão tantos anos depois do Concílio Vaticano II que acabou, quis acabar, com ela. E, infelizmente, será assim ainda por muitos mais anos. A menos que o Estado português se dê conta da contradição e, pura e simplesmente, rompa com a Concordata. De contrário, a Igreja católica impõe o seu (i)moralismo ao Estado, pelo menos, no chamado casamento canónico.
Na sua argumentação, o Pe. A. Vaz Pinto foi um desastre teológico completo, pelo menos, no que tem a ver com a Teologia de Jesus, o de Nazaré. Imaginem que ele ainda se atreveu, neste início do terceiro milénio e do século XXI, a lembrar que há textos da Bíblia, nos quais, em seu entender, a homossexualidade é considerada uma aberração, um pecado horrendo, uma monstruosidade. Estava certamente a pensar no que lá se diz sobre as cidades de Sodoma e de Gomorra e no livro Levítico. Chegou a referir expressamente certas cartas de S. Paulo. É preciso ter lata. Quanta água já correu debaixo das pontes, desde então até hoje. E o Pe. Vaz Pinto ainda não saiu dos tempos em que foi escrito o livro do Génesis e o Levítico, nem dos tempos de S. Paulo. É o que se chama crasso e bárbaro fundamentalismo bíblico.
Parece desconhecer por completo que a chamada Revelação bíblica é, sobretudo, revelação da Pedagogia de Deus na sua relação com a Humanidade e desta com Ele. Não é um ditado de normas de conduta, válidas para todo o sempre, como se diz oficialmente do Alcorão, livro mais bárbaro! O objectivo último da Revelação bíblica é ajudar maieuticamente a formar liberdades /maioridades humanas e consciências críticas que, nas múltiplas circunstâncias em que a vida histórica de cada uma, cada um de nós se processa, sejamos capazes de fazer as melhores opções, sem termos de ir a correr perguntar a uma Lei ou a um Tutor /Pedagogo o que fazer.
Aliás, se a Bíblia não for para ajudar maieuticamente as pessoas e os povos a chegar à liberdade /maioridade, é melhor rasgá-la ou queimá-la, porque a sua leitura só prejudicará quem a fizer. Está visto que ninguém, muito menos o Estado e muito menos a igreja que se reivindica de Jesus e do Deus de Jesus, tem o direito de discriminar pessoas, pelo facto de elas serem homossexuais /lésbicas. São pessoas iguais às heterossexuais, com os mesmos direitos e deveres. Melhor ainda: Todas, heterossexuais e homossexuais, indistintamente, somos pessoas humanas. Ponto final. O que não for assim já é indecente discriminação. Um crime gravíssimo, na linguagem secular, que é a do Estado. Um Pecado mortal gravíssimo, na linguagem eclesial.
Deus, Ele próprio, fez-nos heterossexuais e homossexuais, em radical igualdade. Não separe, pois, o Poder o que Deus uniu. O que não for assim é crime de lesa-humanidade e ocasião ou mesmo causa de o Nome de Deus ser blasfemado. A hierarquia da Igreja católica e das múltiplas Igrejas protestantes pode correr e saltar, mas será sempre uma hierarquia em estado de pecado mortal, se discriminar membros seus, por serem homossexuais /lésbicas. Ora, se Deus nos fez heterossexuais e homossexuais, quem é a hierarquia da Igreja, das Igrejas, para ir contra Deus?
Era por estas águas teológicas que o Pe. A. Vaz Pinto deveria ter navegado no programa onde esteve em representação (?) da Igreja católica. Se o tivesse feito, no dia seguinte ao debate, já estaria excomungado pela hierarquia e pelo seu superior da Companhia de Jesus. Mas estaria em comunhão viva e intensa com toda a Humanidade, indistintamente, os heterossexuais e os homossexuais, fora da qual não há salvação; e fora da qual invocar o nome de Deus é blasfemar. Assim, graças à sua (i)moralista prestação no programa, continua a ter o aval da hierarquia, mas auto-excluiu-se da Humanidade, no seu todo, aquela mesma que Deus Criador fez acontecer no decurso da Evolução, como Humanidade simultaneamente heterossexual e homossexual. |
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Entrevista conduzida por Daniel Gabarró i Berbegal (Valência-Espanha) para o Jornal Fraternizar
Irmãozinho, Emílio de Jesus, pioneiro
da causa gay no interior da Igreja católica em Espanha
Homossexual pela graça de Deus!
O Sistema eclesiástico é cruel e inumano connosco,
os homossexuais e as lésbicas
Tem os olhos claros e brilhantes, cheios de curiosidade e de inocência, próprias de um menino, apesar dos seus 71 anos de idade. Recebe-me num pequeno apartamento de Valencia, acolhedor e cheio de arquivos onde guarda centenas de cartas e de documentos que fariam as delícias de qualquer historiador da causa gay. Tenho a sensação de estar numa eremita, apesar de estar no centro da cidade. Na verdade, é uma eremita urbana das muitas que estão aí a proliferar, nestes nossos dias. A única divisão independente é um oratório. Olho-o nos olhos e compreendo a importância que tem dar a conhecer o heróico trabalho de uma pessoa que já leva mais de 40 anos da sua vida consagrada, dedicada à causa gay. Também e sobretudo, no interior da Igreja católica. A sua história tem algo de incrível, mas as centenas de cartas que guarda no apartamento-eremita, todas devidamente classificadas, são a prova de que tudo o que me conta é real. Começa por me dizer, olhos nos olhos, quando eu quis saber como tudo aconteceu:
Emílio (E): O movimento gay em Espanha surgiu connosco. Fomos os pioneiros. Como movimento, nascemos em 1966. Protagonizamo-lo, Antonio M. M. e eu, em pleno franquismo e durante os extraordinários tempos pós-conciliares. Os homossexuais éramos perseguidos pela lei que perseguia “vadios e malcomportados”. O que iniciámos, recebeu o nome de Fraternidade Cristã da Amizade, dado por mim, enquanto na sua dimensão laica, levada para a frente por Antonio M. M. recebeu a designação de As Fraternidades da Amizade, simplesmente. Um serviço mais especializado como movimento de fé gay. Aquela era uma época obscura, de medo e de repressão, em Espanha. Não se tratou duma explosão momentânea. Ambos sentíamos um profundo chamamento, uma missão pessoal transformada em vocação inédita e não nos atrevemos a dizer-lhe “Não”, apesar do risco e da incerteza que representava. Era mais que uma opção passageira. Era uma aventura que correspondia ao chamamento dos nossos corações, sob pena de cairmos no Nada e no desespero como tantos outros /tantas outras tinham já caído. E eu desejava viver a plenos pulmões… Era a minha missão. Ou assim, ou nunca mais seria eu próprio.
P. Queres dizer que se não tivesses dedicado a tua vida à população GLBT [Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgéneros], terias sentido que a tua vida carecia de sentido?
E. Exactamente. Vivi uma adolescência e uma juventude cheias de sofrimento. Mas tinha fé em Deus, em Jesus de Nazaré, e em mim próprio. A luta maior era entre a minha condição de homossexual e a minha fé, melhor, entre a minha condição de homossexual e a minha pertença à Igreja, entre o meu desejo de permanecer na Igreja católica e a minha própria identidade. Vivia em paz as duas realidades dentro de mim mesmo, porém o sistema eclesiástico era e é cruel connosco, inumano, e, sobretudo, completamente anti-evangélico, uma fonte de sofrimento constante, humanamente falando; porém, de um altíssimo valor corredentor, evangelicamente falando, por e para nós, os perseguidos GLBT.
P. E em que momento dessa introspecção decides passar a converter essa dor, essa culpa numa opção pelas pessoas homossexuais?
E. Foi no decorrer de um Curso Apostólico de primeiro grau da Acção Católica Operária, dedicado à classe operária – isto era revolucionário durante o franquismo – no qual participei providencialmente, em 1964. Durante as conferências, nas quais, como operário [que verdadeiramente não era], sentia-me como alguém sem classe, ainda que espiritualmente muito bem integrado; a dada altura, a minha mão escreve, sem que mediasse uma deliberada intenção, uma frase que mudaria a minha vida: “Eu serei o apóstolo dos meus”, uma frase dita na linguagem cultural da época. Foi a minha real conversão. Entrou um Emílio no Curso e saiu outro completamente diferente. Tudo que eu tinha ido acumulando no meu interior sobre a causa gay, explodiu naquele bendito dia 9 de Novembro de 1964. Até hoje. Alguém me colocou nesse dia um potentíssimo Motor no meu interior que ainda hoje ruge… Compreendi que essa era a missão da minha vida, que não podia nem devia já mentir-me mais, como seria, se me dedicasse a outras coisas. Só dedicando a minha vida aos meus irmãos /irmãs e amigos /amigas de sinal GLBT e de êxodo, me sentiria plenamente realizado e a minha homossexualidade e a minha Fé seriam vividas em paz. Tudo então ganhou sentido e foi o primeiro dia de um longo caminho que ainda estou a percorrer hoje e que prosseguirei até ao último dia da minha vida na História.
P. A tua vocação nasce então durante um Curso operário, no seio da Igreja católica.
E. Isso mesmo. E permanece e permanecerá sempre dentro dela. Sublinho que esse Curso foi “providencial” para mim, porque, se em vez de ser, por assim dizer, “um curso sobre Cristianismo”, fosse um “Curso de Cristandade”, o meu desastre pessoal poderia ter sido completo, um verdadeiro fiasco ainda maior que a Luz que eu procurava. Explico-me. Os Cursos de Cristandade que, apesar de tudo, fizeram e fazem tanto bem, eram, na atura, tudo aquilo de que eu precisava de fugir, uma fé recaramelizada, pegajosa, sentimental e sentimentaloide, basicamente cultual e de apostolado muito formal. Ao contrário, com as pessoas da Acção Católica Operária, homens de trabalho duro, escorreitos, de cara levantada, encontrei o Cristo [Jesus] desnudado, próximo, aberto, real, militante, que eu precisava. Nada de vestes talares, nada de beatices, de fanfarronices, mas Verdade e Vida, compromisso real, efectivo, directo, ombro a ombro com os comunistas, o que havia de mais avançado da época. Esse estilo comprometido de agir transplantei-o de algum modo para toda a luta atroz, feroz que me sobreveio depois, e sem o qual ter-me-ia sido ainda mais difícil continuar e perseverar. Não se trata de abandonar levianamente a Igreja às primeiras dificuldades de mudança, mas permanecer dentro dela praticando jesuanicamente a desarmada “guerra de guerrilhas”. Até que soe a hora da Verdade. Se abandonamos, não temos direito a reclamar nada. Não cortemos, pois, os ramos do mesmo tronco, porque nos esgotaremos logo a seguir. Os grandes edifícios materiais ou espirituais exigem profundos alicerces. No Curso da Acção Católica Operária, conheci o padre Carlos de Foucauld, cuja espiritualidade me fascinou e me arrebatou para sempre. Compreendi que abertamente não havia nada que se pudesse fazer dentro da Igreja oficial. Decidi também que, extra muros, eu desejava viver como consagrado e o faria de modo clandestino, já que as circunstâncias canónicas e outras assim o exigiam. Mas quem é quem para impedir outros de viverem a sua vida, a sua vocação, e neste caso, a sua missão nova, inédita? Assim, procurei um superior hierárquico, homem absolutamente de Deus, humaníssimo e de perspectivas proféticas, e pedi-lhe que recebesse os meus votos privados de pobreza, de castidade e de obediência, e ainda um quarto voto, de consagrar toda a minha vida à libertação e evangelização de todas as pessoas gay. E ele aceitou. Foi uma Ocasião transcendental, única na minha vida. Por esse quarto voto obrigava-me a ser “o servo dos servos de todos os homófilos de Deus”. E impus-me a mim mesmo o hábito de Irmãozinho da amizade, ao estilo do padre Carlos de Foucauld, uma vez que a minha vocação nascia para ser vivida em deserto e, desde aí projectar o meu apostolado, como assim fiz e continuo a fazer, uma vez que nem entre os numerosos irmãos e irmãs seguidores dele, nas diversas fraternidades e associações que o têm como pai e fundador, somos acolhidos, escutados amados, para dor, mágoa e decepção minhas. Esse superior hierárquico converteu-se em meu pai e mestre, em meu confidente, meu amigo, com quem mantive durante 33 anos uma amizade profunda e sincera, sempre a par da minha missão, e contando com o seu apoio e bênção incondicionais. As inúmeras cartas suas que tenho em arquivo são prova disso. Não me sentia sozinho, portanto. Apesar das muitas escuridões interiores que houve na minha vida e especialmente da parte da hierarquia eclesiástica. Nem sequer agora os tempos vão de feição, nem para mim para o sinal gay, GLBT. Sou sempre perseguido. Às vezes, até de nome tive de trocar para poder prosseguir, para evitar essa perseguição tenaz e anti-evangélica, com tudo o que ela carrega dentro…
P. Mas esta entrevista faz-te aparecer publicamente. Não temes que voltem a perseguir-te e, inclusive, que tentem excluir-te da Igreja?
E. Agora, já não, precisamente, quando as minhas forças físicas já vão desfalecendo. Tenho a consciência absolutamente tranquila, apesar de tudo o que se disse de negativo a meu respeito. Mas vê, não falhei, tens-me aqui ainda, atendendo e abrindo os braços a todos os que choram e me procuram. Sou filho do Concílio Vaticano II e do pós-Concílio, daquela mentalidade aberta, renovadora, de Pentecostes, que a Igreja de então (1962-1965) ofereceu ao mundo, através do papa João XXIII. Por meio daquele sopro do Espírito, eu e alguns decidimos abrir nem que fosse só um carreiro no meio da selva inumana de ignorância, preconceitos, ofensas e condenações que eram as nossas vidas e conseguimo-lo, por onde podem hoje passar as pessoas GLBT. Agora, graças a Deus e às pedras que "gritaram”, isto é, a todos aqueles /aquelas que não sendo crentes lutaram até à morte para conseguir os enormes avanços que agora conseguimos, e às quais rendo a minha mais sincera e cordial gratidão, as coisas mudaram mesmo. Nós partíamos da certeza de que a Igreja é depositária da Fé, mas não é a proprietária da Fé, embora ela continue a pensar que é. Quero romper a nefasta divisão entre hierarquia e leigos, entre acolhidos e excluídos; que deixe de se identificar a Igreja com a hierarquia, e esta deixe de ser um conjunto de cristãos sem Igreja. A Igreja, somos todos, especialmente os mais excluídos, a Igreja das Bem-aventuranças. Infelizmente, com demasiada frequência é a própria Igreja quem impede muitos de conhecer e aproximar-se de Deus, de Jesus. Decidi tornar público o que vivi e vivo, porque o movimento gay precisa conhecer as suas origens e a minha história é parte dessas origens. Não devemos esquecer que quem perde as suas origens perde a sua identidade. E também porque a Verdade me fez livre, sofredor, mas também oblação viva. “Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós”, diz Jesus.
P. Como responderás à acusação de promover a homossexualidade, de promover “comportamentos desordenados”, vivências “intrinsecamente perversas”, quando a hierarquia, se ler esta entrevista, te acusar de tudo isso?
E. Amando. Orando com mais intensidade. Testemunhando. Continuando a acolher os irmãos e amigos GLBT. Esse julgamento da hierarquia é cultural, não tem nenhuma base teológica nem evangélica, por mais que ela se empenhe nisso. Eu, diante de qualquer GLBT, o que vejo antes de mais é um ser humano e imediatamente ou ao mesmo tempo, um filho de Deus. E “o que fizestes a um destes mais pequeninos, a mim o fizestes”, diz o Senhor Jesus. Não podemos fazer um Deus à parte, só para os heterossexuais, um Deus a la carte, à nossa medida, mas sim distinguir o cultural do espiritual. Eu sou homossexual pela graça de Deus. Por mais que custe a quem custe, goste ou não goste, seja quem for. A minha homossexualidade aliada perfeitamente à minha fé é consubstancial à minha pessoa, a causa mais nobre que o Senhor me concedeu, e do que terei de lhe dar contas, do mesmo modo que terão de lhe dar contas os que me perseguiram, negaram e não amaram. Já entoei muitas vezes o meu Nunc dimittis pessoal [refere-se ao Canto do velho Simeão, do Evangelho de Lucas que diz, depois de ver o menino: “Agora, Senhor, já posso partir], porque os meus olhos viram a salvação, tão esperada, que muitíssimos, inumeráveis, não viram durante dois mil anos de judeo-cristianismo e suas perseguições.
P. E porquê precisamente agora é que decides falar, dar-te a conhecer?
E. Talvez devesse tê-lo feito antes. Não sei. Tiveram influência várias razões. A prudência. A oportunidade. E agora a minha idade. Pois já me vejo “vinho velho”, e isso comporta os seus graus. Já não quero continuar a perder mais tempo. Durante mais de 40 anos, acolhi centenas de homossexuais e tentei orientá-los, aconselhá-los, acompanhá-los e ajudá-los a aceitarem-se na sua especificidade. Quero que se saiba que fui e sou testemunho vivo da causa gay que é também a minha, dentro da Igreja católica e que quero viver e morrer dentro dela. “No coração da minha Mãe, a Igreja, fui e sou o sofrimento corredentor”, parafraseando a de Lisieux.
P. E de que modo ajudaste os gays durante estes mais de 40 anos?
E. Fiel à minha espiritualidade foucauldiana, vivi muitos anos numa casa-fraternidade-eremita, nas proximidades de Valencia, durante bastantes anos. Depois, noutras eremitas. Na casa mãe, onde promovemos retiros, acolhi, entre chistes, espreitadelas e espiões, centenas de pessoas, a maioria homossexuais. A primeira tarefa era com frequência desculpabilizá-los. Costumavam regressar a suas casas alegres e reconhecidos. Finalmente, recuperados na sua dignidade humana e a saber, quer isso lhes interessasse ou não, que eram filhos de Deus e amados por Ele. Escutei e continuo a escutar muita gente. Durante anos, ofereci um espaço de silêncio e de escuta que foi cura para muitos. Essa foi a minha missão e continua a ser. Fico estupefacto que a Instituição eclesiástica expulse do seu seio os diferentes, os que, por os não compreender ou não querer compreender, andam por aí errantes sem porto fixo, nem casa segura, justamente o contrário do que fazia Jesus. Por isso eu os acolho. E porque são meus, pertencem-me. Ajudo-os a evitar cair na mentira de pensarem que a Igreja é apenas a hierarquia, que os da hierarquia são os bons e nós os maus. Ajudo-os a crerem na vida e neles próprios. Que há Igreja para lá do ódio e do autoritarismo machista actual e de sempre. O machismo é o verdadeiro pecado original. Não há outro, de onde provêm todos os males.
P. E que sentes ao olhar para o nosso Hoje?
E. Invade-me uma grande alegria. Vejo que muitas coisas pelas quais lutei se conseguiram. Alegra-me ver como existem organizações-chave que marcam um caminho, como a Associação de Mães e de Pais de Gays e Lésbicas, ou numerosas organizações GLBT, ou grupos anti-Sida… Sei que é preciso continuar a lutar, que a vitória é a longo prazo, mas estou convencido que avançamos muito. O meu coração alegra-se por isso. Embora pense que há demasiado sexo nas nossas vidas. O sexo é importante, ocupa um lugar, mas nunca deve ser o prioritário. O que nos há-de distinguir há-de ser o afectivo, o compromisso, o testemunho de normalidade, a solidariedade, a entreajuda.
P. E como fazer para que a solidariedade seja o prioritário na nossa vida?
E. Temos que resgatar o espírito que trazemos dentro. Porque só o amor nos faz entrar numa espiritualidade, talvez nova, que trazemos dentro e não sabemos como desenvolver. Devemos continuar a manifestar-nos publicamente, mas de uma forma tão discreta quanto estratégica para podermos conseguir viver em paz e em liberdade. Devemos negar-nos a ficar inactivos perante todo o tipo de manifestações homófobas existentes e fazer surgir uma nova sociedade e uma nova Igreja onde caibamos todos os marginalizados e todos os diferentes. O que não for assim continuará a ser um fracasso total. O amor fraternal, a ajuda e a solidariedade far-nos-ão mais livres e capazes de reconciliar a fé com a homossexualidade. Falo de fé, não de religião. Temos que romper a esquizofrenia existente entre espírito e corpo, entre homossexualidade e fé. Do Deus encarnado em Jesus de Nazaré, vem-nos novas maneiras de sermos crentes. Embora não saibamos como se materializará esta osmose, mas já tudo hoje a anuncia, e ela já se aproxima. Eu que atravessei grande parte do século XX, olho para trás e dou-me conta de que tudo será possível com fé e com firmeza. Sinto-me feliz com o já conseguido, humildemente. Crer é comprometer-se. Há um futuro que já está aí presente, que nos inunda de esperança. Os nossos profetas já falam no meio do coro dos outros profetas.
A minha conclusão, como entrevistador: Antes de dar por concluída a entrevista e antes de me afastar de Emílio, olho-o de novo nos olhos claros e brilhantes e dou-me conta de que ele é como um farol na sua eremita, rural ou urbana, uma ajuda viva para muitos, um modelo vivo a seguir e prosseguir. Penso que talvez esta entrevista, depois de publicada, seja o início de uma nova perseguição, por ele ser fiel ao nosso sinal GLBT e à sua fé. Porém, intuo que isto o não assusta e que ter decidido falar é muito mais proveitoso para nós, gays. Enquanto desço a escada que me leva à rua, sinto que o mundo é um lugar cada vez melhor, graças a pessoas como Emílio de Jesus e alegro-me por ter conhecido um dos pioneiros do movimento gay em Espanha. Ele mantém-se disponível, sempre, se não já com a acção tão intensa de outrora, com a constante presença contemplativa, atento como poucos às necessidades de quantos precisam de quem os apoie e de quem os escute. Ao perto. Ou ao longe. |
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DESTAQUE 2
Afinal, a senhora de Fátima poderia ser a senhora da Folhada!
Sabiam que a chamada nossa senhora de Fátima podia hoje dar pelo título de nossa senhora da Folhada? Para tanto, teria bastado que o respectivo pároco, no ano de 1757 e anos seguintes, tivesse tido a habilidade que teve o cónego Formigão e os seus cúmplices clérigos de Ourém, em 1917 e nos anos imediatamente a seguir. Mas não teve. Em consequência, a fantasiosa aparição da virgem, no dia 13 de Maio de 1757, a três crianças da freguesia, todas com menos de 12 anos de idade e pastoras de rebanhos de ovelhas (vejam só todas estas coincidências com a fantasiosa aparição de 13 de Maio de 1917, em Fátima, quer no que respeita ao número de crianças videntes, idade e ocupação, quer no que respeita ao dia, mês e último algarismo do ano!), deu em pouco mais do que nada. Naquele mesmo lugar da primeira fantasiosa aparição de 13 de Maio, ergue-se hoje, na referida freguesia da Folhada, Concelho do Marco de Canaveses, uma minúscula capela, cuja construção remonta a essa altura, e que dá pelo título de senhora da aparecida. A paróquia católica continua a fazer dela e do local em volta a sua festa-romaria principal, cada ano, não em Maio, mas no primeiro domingo de Setembro. O mais surpreendente é que o orago ou padroeiro da paróquia é S. João Baptista, mas não é dele a festa principal. A mítica deusa ou senhora da aparecida roubou-lhe esse estatuto, como a sublinhar que, no inconsciente colectivo dos povos, mantém-se ainda gravado que, no princípio, foi o matriarcado, não o patriarcado que, depois, lhe sucedeu e parece ter vindo para ficar, apesar de a Humanidade ser hoje manifestamente constituída por muito mais mulheres do que por homens.
Na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar, tive acesso a um documento, inserido num volume recentemente editado, redigido pelo pároco da Folhada, à data da fantasiosa aparição e, com ele na mão, fui até à freguesia ver com os próprios olhos o que resta de tudo aquilo. No dizer de algumas pessoas lá residentes, a designação senhora da aparecida poderá ter sido posterior, porque, no início, ter-se-á chamado senhora da Lapa. Diz textualmente o documento:
“Nos limites desta freguesia [para facilitar a leitura, a transcrição do documento faz-se em português actualizado], mas quase nos confins dela que a dividem da freguesia de Santo André de Várzea, com a qual esta confina, pelas partes do Poente e do Sul, nas fraldas dos grossos e ásperos matos da serra de Abobereira [hoje, Aboboreira], à parte do Sul, num cabeço do dito monte [mais uma outra coincidência com Fátima, onde também se fala em “loca do Cabeço”], no dia 13 de Maio do ano próximo passado de mil setecentos e cinquenta e sete [o pároco está a escrever em 1758], quase uma hora antes do ocaso do sol, andando três criaturas de idade menor de menos de 12 anos, apascentando umas ovelhas no tal sítio chamado o Outeiro do Preiro, sem que nada vissem, ouviram uma voz que as chamava cada qual pelo seu próprio nome, que eram duas Marias e uma Teresa. E voltando o rosto viram sobre umas ásperas pedras uma mulher prostrada ou ao modo de encostada a outras mais altas fragas, de mediana estatura, mas de tão brilhante e resplandecente rosto [mais outra coincidência com a de Fátima], que logo admiradas lhes pareceu não ser mulher patrícia [= terrena]. Mas chegando a ela, ainda que algum tanto admiradas de ver tal mulher e em tal sítio, as animou esta com afagos a que chegassem a ela para mais perto estarem, [a] estas ensenuou [sic] a falta de saudar. E pegando-lhe da mão a uma de virtude mais moral, e a outra tirando-lhe um rosário que trazia ao pescoço [já então a obsessão pelo rosário e /ou terço, como em Fátima], o lançou ao céu, enquanto com elas praticou [= rezou]. E a terceira que era mais adulta [correspondente a Lúcia, na fantasiosa aparição de Fátima] repreendendo-a do vício de falar do demónio. Logo a todas, encomendou fossem a[o] seu lugar e dissessem a todos [que] jejuassem a pão e água as primeiras Sextas-Feiras e Sábados, quando dali seguissem, e que o mesmo dissessem a todas as pessoas que vissem e com elas falassem. E depois uma por mais [in]discreta, perguntando à tal mulher quem era [foi o que se diz ter feito Lúcia em Fátima], lhe respondera esta que, feito o que lhe recomendava e continuando nove dias contínuos ao redor daqueles penedos uma romaria em louvor de Nossa Senhora [= Deusa Madre ou Mãe], saberão então quem ela era, o que cumpriram assim as três meninas prontamente. E relatando [elas] esta notícia, foi tal o concurso do povo de perto e de longe, que todos uniformemente o aclamavam por milagre [mais outra coincidência com a fantasiosa aparição de Fátima]. O que vendo eu e observando, dei de tudo parte ao Muito Reverendíssimo Doutor Provisor deste bispado e pedindo-lhe mandasse averiguar este caso judicialmente, ordenou o dito senhor, observasse eu rultancia [sic] deste caso e se não desprezasse, à vista do que fazendo eu as maiores averiguações que pude por mim e por outrem, não achei até ao presente coisa em contrário. Antes achei por pessoas muito fidedignas haverem visto e observado há muitos anos a esta parte, uma luz muitas noites em o tal sítio, até o dia véspera da Ascensão [sic] de Nossa Senhora de Agosto, de noite se viu uma luz tão resplandecente quase a horas de meia noite, que afirmam se podia ler uma carta à sua claridade, isto sendo distância mais de meia légua [tal e quaal como em Fátima]. E ao depois deste caso se não observou mais tal luz. Além do que e das mais observâncias [sic] que tenho feito, tem, ocorrido, a um ano a esta parte, alguns milagres e o maior que tenho observado é o infinito povo que continuamente concorre àquele sítio [também como em Fátima], para satisfação do qual mandei pôr nele uma estampa de Nossa Senhora da Lapa e uma cruz de pau para o culto da adoração e devoção daquele povo.”
Até aqui a transcrição do documento, conforme consta no volume editado este ano de 2009, em Braga, sob o título As Freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História de Património, da responsabilidade de Capela, José Viriato; Matos, Henrique; e Borralheiro, Rogério.
São tantas e tamanhas as semelhanças com a fantasiosa e mentirosa aparição de Fátima em 1917 (não sei se sabem, mas do ponto de vista estritamente teológico, falar em aparições é, só por si, falar de uma impossibilidade absoluta, pelo que todas elas são fantasia e, no pior dos casos, orquestrada mentira, que, como tais, nunca são para tomar a sério por ninguém, muito menos por parte da Igreja católica, sob pena de grave ofensa a Deus e de grave injúria aos seres humanos, tanto os que intervêm, como protagonistas, nessa fantasia ou mentira, como os milhares /milhões de crédulos que doentiamente se deixam ir na onda), que eu fiz questão de meter a carrinha e fui à freguesia de Folhada.
Da primeira vez, um sábado à tarde, estive junto da igreja paroquial, conversei com várias pessoas que por ali se encontravam à espera do início da missa vespertina. Cheguei a cumprimentar o pároco, meu contemporâneo do Seminário que, cheio de pressa, mal parou, quando lhe disse quem era, e ele logo me disparou, por entre sorrisos e alguma indisfarçável apreensão /perturbação, “O que fazes aqui?”, e, ala que se faz tarde, logo para dentro do templo, a fazer lembrar o sacerdote e o levita da parábola lucana.
Todas as pessoas que, entretanto, acederam a conversar comigo me remetiam para a capelinha que ainda hoje existe lá no local referido pelo pároco do tempo, e cuja construção remonta a esses anos. Não fui lá nesse dia. Deixei para mais tarde, na expectativa de, entretanto, vir a obter mais algumas informações da parte da Junta de freguesia, cuja presidente acabou por integrar-se, com visível agrado, na conversa que decorria no adro da igreja. O cartão de visita que lhe deixei com todos os meus contactos, mais as possíveis (inevitáveis?) conversas posteriores entre o pároco e ela (ela é uma das suas catequistas na paróquia), terão levado a que, mais de uma semana depois, dela me não chegasse nem um telefonema, nem um e-mail.
Voltei então à freguesia e, desta vez, com o propósito feito de subir ao monte onde se situa a capela. Os acessos são complicados, sempre a subir, depois que se sai da estrada principal e, uma grande parte, cerca de metade da subida, precisamente a mais próxima da capela, é um mero estradão de terra batida, todo ele sulcado por fundos e enviesados regos causados pelas águas das chuvas.
Lá no cimo, sem quaisquer casas à vista, lá está a minúscula capela sobre os rochedos. Nenhuma janela. Apenas duas portas de grossa madeira. A principal, na frente, sem fechaduras, por isso, de abrir só pela parte de dentro. E uma outra lateral, bem mais estreita, por onde entrará o portador da chave. Não pude entrar. Nem ver nada do seu interior. Nenhuma legenda nas paredes de granito. Nem sequer uma data à vista. Também nenhuma imagem nos três nichos exteriores da frente, destinados a elas. Fiz algumas fotografias e desci o monte, com a carrinha aos solavancos.
Dirigi-me à sede da Junta de Freguesia, nas proximidades da igreja paroquial. A funcionária de serviço, ainda jovem, que já uma vez me tinha atendido num telefonema que fiz para saber do motivo de tanto silêncio por parte da presidente, foi duma simpatia inexcedível comigo. Inclusivamente, acompanhou-me à residência paroquial, quando lhe mostrei vontade de lá ir, para tentar conversar com o pároco sobre o assunto. Infelizmente, ele não estava em casa. Falou-me /nos a empregada, cabeça quase estrangulada na janela, lá em cima, sem nunca chegar a descer à porta da casa, mesmo depois de eu, junto da Sónia que ela conhece bem, lhe ter dito quem era e ao que ia. Limitou-se a dizer, lá do alto, que o pároco estava para uma consulta médica.
Regressei a casa. E pelo caminho vinha a pensar no que vira /ouvira nestas duas deslocações e no que lera do pároco sobre a fantasiosa aparição: Como é que três crianças, todas meninas e pastoritas de ovelhas, de idades inferiores a 12 anos, podiam estar, longe de casa, no dia 13 de Maio de 1757, sozinhas, naquele inóspito monte (se ainda hoje ele é inóspito, o que seria então?), uma hora antes de o sol se pôr, sem nunca manifestarem qualquer medo, bem pelo contrário, até aceitarem conversar descontraidamente com uma desconhecida que inopinadamente lhes ”apareceu” e chamou por elas pelos seus próprios nomes? E como - espanto dos espantos! - elas logo acolheram o lhes foi dito e executaram tudo o que a fantasiosa aparição lhes ordenou, inclusive, andar em romaria, nove dias seguidos (porquê nove e não oito ou dez?!), em redor daqueles rochedos, só, para no final, poderem saber quem ela era (as míticas deusas têm cá uns caprichos e uns gostos!...)
Digam lá se tudo isto não é fantasioso até ao delírio! E, se tudo isto não tem apenas a ver com míticos e ancestrais relatos justificadores de ancestrais cultos politeístas, em honra de míticas deusas ou nossas senhoras e de míticos deuses ou nossos senhores, contra os quais já os profetas bíblicos, 6/7 séculos antes de Jesus ter nascido, denunciaram como cultos inumanos?!
Uma coisa, porém, não é fantasia em tudo isto. Reza actualmente o respectivo portal na net da freguesia, que Folhada “já foi abadia do ordinário”; e que, em 1706, rendeu ao abade (apenas!?) 150.000 reis. Porém, já no ano da fantasiosa aparição, rendeu muitíssimo mais ainda, exactamente 400.000 reis! Quer dizer: O povo de então pode ter passado a jejuar a pão e água, dois dias por mês , às primeiras sextas-feiras e aos primeiros-sábados, mas o abade de Folhada, não. Pelo contrário, até viu os seus rendimentos quase triplicados. Graças, certamente, aos muitos romeiros de perto e de longe que passaram a peregrinar /penar rumo os rochedos onde hoje está erecta a capela da senhora da aparecida.
Queremos mais dados para tirarmos conclusões que nos dignifiquem? Os romeiros, ainda hoje, neste início do século XXI, continuam a ser mais do que muitos, sobretudo de longe, na única ocasião por ano, em que a capela abre ao culto público idolátrico, no primeiro fim-de-semana de Setembro. Fora disso, permanece fechada a sete chaves, uma masmorra sobre os rochedos, inacessível, como as míticas divindades da nossa vergonha e da nossa alienação /demência humana.
A imagem da mítica senhora ou deusa que não come nem bebe, não anda nem sente, não fala nem ouve, não ri nem chora, é apenas uma coisa inerte, feita pela mão de homens sem sentido crítico, tão pouco protesta por ser assim tratada. Nem faz chover raios e coriscos, muito menos bênçãos, sobre o pároco e os paroquianos de Folhada que a têm sadicamente sequestrada, não vá ela voltar a aparecer /falar a criancinhas como se diz que fez em 13 de Maio de 1757, em Folhada-Marco de Canaveses e, 260 anos depois, no mesmo dia e mês do ano 1917, em Fátima-Ourém! Será que nem assim nós, os seres humanos, abrimos os olhos da mente e da consciência?! |
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ESPAÇO ABERTO
Editorial
Abster-se ou Votar?
Vêm aí três actos eleitorais. Todos neste ano de 2009. O primeiro é já dia 7 de Junho. Para o Parlamento Europeu. Vamos abster-nos ou votar? Votar em branco, ou votar nulo, com declaração de indignação /protesto e, se possível, também com proposta, escritos no próprio boletim de voto que nos é entregue na hora de votar? E proceder de igual modo, nos outros dois actos eleitorais? A questão é profunda. Séria. Exige muito discernimento. Muita lucidez. Muita sabedoria. Muita inteligência sapiente-sapiente. Aliás, como todas as decisões humanas. Ou já não são humanas. Apenas decisões. Mais ou menos automáticas e rotineiras. E o Automático e o Rotineiro, em seres humanos, podem levar-nos ao abismo e a levar connosco o país, o continente, o Mundo. Nada é politicamente indiferente na História. Pelo menos, no que toca a decisões humanas. Nem sequer a não-acção, como poderia ser olhada por muitas pessoas, a abstenção nas eleições. Direi, até, que, num acto eleitoral, pior do que votar mal, é não votar. É abster-se. A abstenção é sempre o pior. É a postura ditada pela Preguiça, um dos velhos sete pecados capitais ou mortais. Em questões de Política, a Preguiça /abstenção é um pecado que mata. Como assim - reagirá alguém - se eu nem sequer dei um passo, mexi um dedo, muito menos recorri a uma arma, branca ou de tiro, ou a comida /bebida envenenada? Pois é, mas a abstenção em Política mata. Primeiro, a própria pessoa que se abstém. É o seu Eu que não cresce. Não se afirma. Não se manifesta. Não toma partido. Uma postura não-activa, não-participativa que acaba sempre por favorecer o Poder Político que, como inimigo que é da Política, dos seres humanos, dos Povos e da própria Natureza, nunca dorme. Nunca se abstém. Trabalha continuamente. Vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. E de geração em geração. Ao ponto de a maioria de nós nunca chegar a ser verdadeiramente um Eu. Nunca chegar a crescer em Sabedoria e em Graça, como diz o Evangelho de Lucas que Jesus crescia. E, pelos vistos, cresceu tanto, que atingiu o Limite do Humano e até passou para lá do limite do Humano, ao ponto de ficar-sem-lugar - a Utopia Viva - dentro do Sistema do Poder e da sua Ordem Mundial, intrinsecamente perversa. Embora a Ordem Mundial sempre se disfarce de intrinsecamente boa, ela é tão-só o Lobo institucionalizado que se veste de Cordeiro institucionalizado. Todas, todos nós sabemos bem como acabou Jesus. Na Cruz. Inventada e fabricada pelo Império de turno. No caso, o Romano. Para castigar exemplarmente todos os politicamente insubmissos, rebeldes, que ousam resistir-lhe e se recusam a dobrar o joelho e a cerviz ao seu Domínio Absoluto. De todos eles, Jesus é o mais politicamente Insubmisso, Rebelde, Anti-Idolatria, e tão activo, que não tinha pouso certo onde reclinar a cabeça. Porém, o mais dramaticamente revelador, no caso de Jesus, é que o Império agiu assim, com a crueldade toda que se sabe, a instâncias, antes de mais, dos grandes sacerdotes do seu país e de todos os outros líderes religiosos que viviam à sombra e à pala do Templo, no caso, o de Jerusalém.
Nunca antes de Jesus, se havia visto nada de semelhante. E, depois dele, também não. Pela primeira vez e duma vez por todas, ficou claro, nessa Hora única da História, a da Morte Crucificada de Jesus, que a Ordem Mundial que sempre se faz passar por intrinsecamente boa, é intrinsecamente perversa. É, da sua natureza, Mentir e Assassinar. E, hoje, ela está aí cientificamente organizada só para matar, roubar e destruir. Ainda que pareça que está aí para nos proteger e garantir condições de vida. Mente, quando o diz e tenta convencer-nos. Mente sempre. Porque a Ordem Mundial tem por pai (mãe, nunca teve) o Ídolo, a Grande Idolatria, o Grande Dinheiro, ao qual todo o Poder Político serve e todo o Poder Religioso-Eclesiástico também, católico-romano, incluído. O Poder Religioso, como o seu braço direito. E o Poder Político, como o seu braço esquerdo. Os três juntos, como um só, são a Trindade. Três deuses, cada qual no seu galho, mas um só Deus Omnipotente, Omnipresente e Omnisciente, o Grande Dinheiro. Sem nenhum lugar para os seres humanos que crescem em Sabedoria e em Graça. Só para os súbditos. Vassalos. Verdugos, prontos a executar todas as suas ordens, sem nunca as discutir. A Ordem Mundial é exclusivamente dele. Por isso, intrinsecamente Mentirosa. Opressora. Assassina. Genocida. E, hoje, também e cada vez mais, Ecocida. Não damos por isso, porque ela nos cega. É Treva cheia de luz. Uma luz-treva /idolatria que cega, encandeia as mentes e nos leva a ir contra os demais, contra nós próprios, contra a própria mãe, o próprio pai, os próprios filhos e filhas, contra todas /todos e contra a Natureza indefesa.
Numa Ordem Mundial assim, o pior que podemos fazer é abster-nos de intervir politicamente. Abster-nos significa deixar à rédea solta o Lobo disfarçado de Cordeiro. E ele, como sublinha, uma e outra vez, Jesus, o do Evangelho de João, é mentiroso e assassino, só existe para roubar, matar e destruir. Exactamente, por esta ordem. Primeiro, rouba, mesmo quando parece que dá. Rouba tudo. Mas sobretudo rouba o Eu que cada uma, cada um de nós estamos chamados a ser, ainda antes de termos sido concebidos no útero materno. Se lhe dermos entrada - e quem não lha dá, porventura já no ventre materno?! - ele ocupa todo o nosso ser, sobretudo o nosso centro pessoal de decisões, o cérebro, a Mente, a Consciência. E passa a comandar as nossas decisões. Ficamos reféns dele. Possuídos. Fazemos só o que ele manda e quer. Dizemos só o que politicamente mais lhe convém que digamos. Ou, então, nem fazemos nem dizemos nada. Abstemo-nos, pura e simplesmente. As pessoas que, na sua maioria, ainda não cresceram em Sabedoria e em Graça, apenas em anos e em corpo, é por aí que vão. Pela abstenção em Política. É claro que o Lobo disfarçado de Cordeiro, esfrega as mãos de satisfação. O Poder Político e os profissionais pagos para estarem incondicionalmente ao seu serviço são tão politicamente porcos, corruptos, aldrabões, prepotentes, autoritários, demagogos, repetitivos, oportunistas, de pernas e mãos e mentes ininterruptamente abertas ao Grande Dinheiro e aos seus Sacerdotes, que as maiorias em peso nem querem ouvir falar de Política, menos ainda de Práticas Políticas. E correm a meter-se em peso nos Estádios do Futebol dos Milhões, aos gritos pelo seu clube de eleição, sem nunca se aperceberem de que ele já nem clube é, quanto mais de eleição. Metamorfoseou-se em SAD /Sociedade Anónima Desportiva, uma Máquina-de-fazer-Dinheiro a qualquer custo, sem o mínimo de escrúpulos e sem sequer cuidar em manter as aparências. Só se lixa o que roubar menos, o que mentir menos, o que (se) corromper menos, o que tiver lavado menos dinheiro sujo. Já os outros que não não vão em Futebóis, metem-se nas Religiões, sobretudo as mais recentes que prometem este mundo e o outro, em correntes de oração com tudo de mentira e de ópio. Cobram dízimos sem conta, mas não é com isso que os respectivos pastores e a empresa /Igreja enriquece. Tudo isso serve apenas de manto para eles esconderem os rios de Dinheiro sujo que está constantemente a ser lavado e a circular, enquanto os crédulos e ingénuos fiéis batem palmas e gritam, na ilusão de que o Deus dos pastores comerciantes os ouve. Desconhecem que o Deus dos pastores comerciantes é o Deus-Dinheiro, o Grande Ídolo. E que os pastores comerciantes, mai-las suas Igrejas são o seu braço direito.
Dia 7 de Junho é dia de eleições para o Parlamento Europeu. Agora que os deputados portugueses passam a ganhar por mês o dobro do muito que já ganhavam, serão sete cães ao mesmo osso. O que fazer? Abster-se? Por mim, entendo que o melhor é votar com protesto e, se possível, com proposta, escritos à mão no próprio boletim de voto que nos é entregue na hora. Porém, a proposta, para ser verdadeira alternativa, tem de apontar como saída, a via da Política, feita, não de Poder Político, mas de Práticas Políticas e Económicas maiêuticas. E também de Duelos Teológicos que prossigam hoje no país, na Europa e no Mundo os mesmos Duelos Teológicos de Jesus. São Práticas Políticas assim, e Duelos Teológicos assim que ajudarão a derrubar o Poder Político e o Poder Religioso-Eclesiástico. Quando estes forem derrubados, emergem, em seu lugar, os Povos, finalmente, livres deles e de todos os tutores, que prenderão o Grande Dinheiro e obrigá-lo-ão a passar de seu Senhor a seu servo. Esse será o Dia 1 da Humanidade chegada à Maioridade.
Mário, presbítero da Igreja do Porto |
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Frei Betto, Teólogo
Carta aos Judeus
“Por mais que o governo de Israel e todos os que o apoiam tentem, não irei odiar a vocês, irmãos judeus. Ainda que as tropas israelitas matem centenas de crianças e pessoas inocentes, não irei desejar a morte de suas crianças, nem jogar a culpa na totalidade de seu povo. Mesmo que manchem a Faixa de Gaza com o sangue de um povo, que também corre em minhas veias, metade árabe, não irei revoltar-me contra nenhuma etnia nem julgar que há raças melhores ou com mais direitos que outras, como quer fazer-nos acreditar o governo israelita. Embora eu também queira ouvir as vozes judaicas de protesto contra o massacre dos palestinos, não deixarei de condenar os que se calaram diante do holocausto judeu. E mesmo que tomem à força a terra do povo árabe, não irei jamais apoiar o confisco dos bens do povo judaico, praticado há tempos pelo governo nazista. Por mais que o governo de Israel e todos que o apoiam traiam a tradição hebraica dos grandes profetas que clamaram por justiça e paz, ainda quero manter viva a esperança que eles anunciaram. Mesmo que joguem sua memória na lata de lixo, faço dos profetas do antigo Israel os meus profetas, pois o anúncio da justiça não distingue credos, nações ou etnias. Sei que muitos de vocês condenam a violência, não apoiam o massacre dos árabes palestinos, e gostariam que o governo de Israel respeitasse as decisões da ONU e o clamor da comunidade internacional pelo cessar-fogo imediato. Mas, gritem! Se sua voz não for ouvida, acreditar-se-ão com razão aqueles que ainda falam mal de seu povo. Mesmo que sejam deploráveis todos os anti-semitas, o silêncio dos judeus diante do massacre perpetrado pelo país que ostenta a estrela de David na bandeira pode ser usado como reforço para os argumentos torpes da superioridade racial.
Há mais de 60 anos, seu povo clamou ao mundo por solidariedade. Chegou o momento de retribuir, de mostrar que a solidariedade é um sentimento universal e não restrito a uma etnia. Não deixem o governo de Israel fazer esquecer o quanto vocês sofreram como vítimas, só porque agora ele é algoz e está protegido pela maior potência mundial, os EUA. Não permitam que a ação de Israel faça parecer que, apesar das manifestações mundiais de condenação, seu Estado se acredita o único que possui razão, pois era assim que o governo alemão pensava no tempo do nazismo. Estejam certos de uma coisa: independentemente do resultado da absurda campanha israelita ou qualquer que seja a posição de seu povo diante da violência e injustiça cometida por aquele país, não irei ceder à tentação do pensamento racista; não irei apagar da minha memória a catástrofe do nazismo e o sofrimento do povo judeu; não irei pensar que há povos que não merecem nação e que devem ser eliminados; não deixarei de condenar o anti-semitismo ou qualquer tipo de preconceito étnico. Continuarei defendendo a ideia de que todos, sem distinção, somos iguais, e temos os mesmos direitos: judeus, negros, árabes, índios, asiáticos etc. Manter-me-ei firme em minhas convicções, pois jamais quero me igualar aos governantes de Israel e àqueles que os apoiam.”
Faço minhas estas palavras de meu querido amigo Maurício Abdalla, companheiro no Movimento Fé e Política, professor de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e autor de reconhecida qualidade, como o comprova o texto acima, que tão bem traduz a indignação e a dor de tantos que testemunhamos a guerra do Médio Oriente. Vários intelectuais judeus têm manifestado indignação frente às operações do Estado de Israel. Tom Segev, historiador e cientista político, escreveu no Haaretz que “Israel sempre acreditou que causar sofrimento a civis palestinos os faria rebelarem-se contra seus líderes nacionais, o que se mostrou errado várias vezes”. O escritor Amos Oz sublinhou:“chegou o tempo de buscar um cessar-fogo”, com o que concorda o escritor David Grossman e o ex-chanceler israelita, Shlomo Ben-Ami. |
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Frei Betto (2)
Pai Nosso
Escrevi esta versão do Pai-Nosso para os retiros dos grupos de oração que acompanho há 29 anos. Procurei dar um toque poético para permitir que seja rezado em forma de meditação louvativa e penitencial.
Pai-nosso que estais no céu, e sois nossa Mãe na Terra, amorosa orgia trinitária, criador da aurora boreal e dos olhos enamorados que enternecem o coração, Senhor avesso ao moralismo desvirtuado e guia da trilha peregrina das formigas do meu jardim;
Santificado seja o vosso nome gravado nos girassóis de imensos olhos de ouro, no enlaço do abraço e no sorriso cúmplice, nas partículas elementares e na candura da avó ao servir sopa;
Venha a nós o vosso Reino para saciar-nos a fome de beleza e semear partilha onde há acumulação, alegria onde irrompeu a dor, gosto de festa onde campeia desolação;
Seja feita a vossa vontade nas sendas desgovernadas de nossos passos, nos rios profundos de nossas intuições, no voo suave das garças e no beijo voraz dos amantes, na respiração ofegante dos aflitos e na fúria dos ventos subvertidos em furacões;
Assim na Terra como no céu, e também no âmago da matéria escura e na garganta abissal dos buracos negros, no grito inaudível da mulher aguilhoada e no próximo encarado como dessemelhante, nos arsenais da hipocrisia e nos cárceres que congelam vidas;
O pão nosso de cada dia nos dai hoje, e também o vinho inebriante da mística alucinada, a coragem de dizer não ao próprio ego e o domínio vagabundo do tempo, o cuidado dos deserdados e o destemor dos profetas;
Perdoai as nossas ofensas e dívidas, a altivez da razão e a acidez da língua, a cobiça desmesurada e a máscara a encobrir-nos a identidade, a indiferença ofensiva e a reverencial bajulação, a cegueira perante o horizonte despido de futuro e a inércia que nos impede fazê-lo melhor;
Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e aos nossos devedores, aos que nos esgarçam o orgulho e imprimem inveja em nossa tristeza de não possuir o bem alheio, e a quem, alheio à nossa suposta importância, fecha-se à inconveniente intromissão;
E não nos deixeis cair em tentação frente ao porte sumptuoso dos tigres de nossas cavernas interiores, às serpentes atentas às nossas indecisões, aos abutres predadores da ética;
Mas livrai-nos do mal, do desalento, da desesperança, do ego inflado e da vanglória insensata, da dessolidariedade e da flacidez do carácter, da noite desenluada de sonhos e da obesidade de convicções inconsúteis;
Amemos.
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Manuel Sérgio, Reitor do Instituto Piaget
Carta Aberta a CRISTIANO RONALDO
Meu caro Cristiano Ronaldo
Perdoe-me a ousadia desta carta. Não sei se já ouviu falar de mim. Num ponto estaremos de acordo: nem sequer ainda nos cumprimentámos! Mas eu conheço-o inevitavelmente. O Cristiano é um dos grandes mitos do nosso tempo! Vejo futebol, há muitos anos e não me custa colocá-lo, no pódio, ao lado da meia-dúzia de melhores jogadores que conheci: o Pelé, o Maradona, o Matateu, o Eusébio, o Puskas e o Cruyff. Estou a vê-los, neste momento, com os olhos da saudade – da mais dolorosa das saudades que é aquela que nós sentimos por nós mesmos!... Há-de estranhar não ter referido o nome do Di Stéfano. Ele foi, para mim (e até é natural que eu me engane) o maior entre os maiores. Esperemos que haja prémio, no Céu, que o distinga. Na Terra, não há. Entre ele e todos os outros, há uma diferença de qualidade. No entanto, em Portugal, é bem possível que nenhum jogador haja beneficiado da publicidade que tem anunciado o Cristiano Ronaldo, por esse mundo além. Confesso, porém que talvez nenhum deles apresentasse o dom de comunicabilidade, a energia persuasiva, a originalidade criadora que o Cristiano tem... indiscutivelmente! Se, neste caso, o todo é maior do que a soma das partes, a totalidade que você é, como futebolista de eleição, talvez não tenha par, na história do futebol português. E, por isso, para o nosso tempo (e não só na sua terra natal que, neste momento, estremece de emoção pelos seus feitos) o Cristiano Ronaldo é um semi-deus! Nas religiões tradicionais, as divindades sempre estiveram directamente relacionadas com as forças da natureza, fosse nos faraónicos egípcios, na Grécia ou na Roma da Antiguidade. No judaísmo, Iavé fala com Moisés, no meio de trovões. No Evangelho, os ventos e as ondas obedecem a Jesus Cristo. Na nossa sociedade, laica e agnóstica, Deus parece poder ser dispensado, mas não morreu a necessidade de crer num Absoluto, qualquer que ele seja.
Ortega y Gasset percebeu que “a religião do século XX é o futebol”. O historiador Eric Hobsbawn é mais específico e adianta: “o futebol é a religião laica da classe operária”. Não surpreende, por isso, que você, ilustre madeirense e português, produto do seminário de jogadores excepcionais, que é o Sporting Clube de Portugal, seja (repito) um semi-deus.
Eu estudo filosofia do desporto, há precisamente quarenta anos; já convivi, com muitos colegas seus de profissão e com alguns treinadores de nomeada, como o José Maria Pedroto (para mim, o maior de todos) – e aprendi, por isso, que o futebolista genial não o é só pelas suas qualidades físico-motoras, mas também pelas suas qualidades psicológicas e espirituais. Arrebatadores e assombrosos, fisica e tecnicamente, foram também o Mané Garrincha ou, em Portugal, o Vítor Batista e acabaram na miséria física e moral. E o Maradona é o actual seleccionador da Argentina, porque uma nação inteira o não deixa tombar por terra. Não há exemplo maior de divinização de um futebolista do que a referência ao golo ilegal que ele fez aos ingleses no Mundial de 1986... “com a mão de Deus” dizem! Só que nenhum dos tristes exemplos aqui citados (e outros que me ocorrem) dispunha do dinheiro que você aufere, nem do calor que lhe transmite o regaço carinhoso de sua família. Mesmo assim, não se esqueça do que há de frágil na glória, nem o que há de efémero no êxito. Com muito dinheiro, são muitos os que não são cidadãos exemplares, são muitos os que não são modelos de virtudes cívicas, são muitos os que findam os seus dias, sem paz e sem amor, como, por exemplo, o George Best, também jogador do clube que você hoje representa.
Ora, um atleta da sua craveira, mesmo sujeito a errar, como “é próprio do Homem”, deve manifestar uma mentalidade forte, uma sólida formação moral e política. Porque só se é verdadeiro campeão, quando o desporto é uma ética em movimento. O Cristiano Ronaldo já tem por si a admiração de muita gente, como jogador de futebol! Que a tenha também como Homem! No meu modesto entender, é preciso humanizar “sub-homens” desumanizados por carências de toda a ordem e humanizar “super-homens” desumanizados por excessos de toda a ordem! Não se deixe enfileirar, na fila dos “super-homens”, que fazem de uma política, em prol dos marginalizados, a dimensão esquecida das suas vidas...
Deixe-me, agora, lançar-lhe uma pergunta difícil: sabe que o desporto de alta competição (o desporto de que é um exímio praticante) reproduz e multiplica as taras da sociedade neoliberal, ou seja, a competição sem cooperação ou solidariedade; a mania da medida, do rendimento, do recorde, onde a quantidade é tudo e a qualidade quase-nada; e ainda que fomenta o bellum omnium contra omnes (= a guerra de todos contra todos), típica do capitalismo? Tudo isto, para além de adormecer os marginalizados à recusa da sociedade injusta estabelecida!
Proclama-se, para papalvo ouvir, que o desporto dá saúde. Mas porque não se contrapõe que o que dá saúde é, sobre o mais, uma sociedade diferente, sem ricos e pobres, sem sábios e ignorantes, sem dualismos de todo o tipo? Porque não se ensina que o desporto não é uma actividade física – porque, no ser humano, um comportamento unicamente físico serve tão-só para manipular, para reificar, para alienar. Os governos não temem quem faz esse desporto, físico tão-só, temem,sim, quem pensa. Não é por acaso que, para o desporto físico, a-crítico, a-céfalo, haja milhões de euros dos cofres do Estado.
Sou dos que acreditam no desporto, mas não naquele que o Cristiano Ronaldo pratica, se a especialização desportiva não significa diálogo com os grandes valores da vida. É verdade que o desporto deve desenvolver a resistência, a força, a velocidade, a flexibilidade, etc., etc. Mas não lhe parece pouco limitarmos o desporto à corporeidade, enquanto contexto biológico, num mundo onde há fome e guerra e exclusão e num desporto onde há doping, corrupção e... lobbies, com sólidos apoios na ordem social estabelecida? Pode transformar-se o desporto mais publicitado e propagandeado, em contra-poder ao poder de uma visão monetarista estreita?
Uma vez mais, peço-lhe que me desculpe, por esta carta. Afinal eu só queria associar-me aos aplausos que ecoam, pelo mundo fora, em honra da sua classe futebolística indiscutível, tentando pensar um pouco. É que nem tudo se explica biologicamente, ou com parvos patriotismos e regionalismos, na prática desportiva. Há mais a dizer (e eu disse tão pouco)... que as grandes centrais de manipulação da opinião pública escondem!
Seu, Manuel Sérgio |
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OUTRAS CARTAS
“Como vê, a sua colecção de livros
à volta dos deuses em que deixou de acreditar
bem poderia começar pela Bíblia e pelo Alcorão”
Pombal. António Marques: Junto envio o cheque, no valor de… para retribuir o envio de dois exemplares do livro AS HOMILIAS DA PAZ. Mais uma vez lhe digo que me agradaria muito poder encontrar-me consigo, por aí, à sombra do Barracão de Cultura, mas, se calhar, os deuses não vão deixar, dada a insuficiência renal com que quiseram mimosear-me. Não é que não pudesse ir, mas o ter de sujeitar-me à diálise, dia sim, dia não, deixa-me o calendário e a agenda muito curtos.
Já li as duas Homilias. E digo: se o Autor foi parar a Caxias [por causa delas], não foi malfeito: elas bem o merecem. E mais: se o “santo bispo” Ferreira Gomes esteve por eles… Quem diria?!...
Agora, aqui para nós que somos racionalistas até às últimas consequências… Se um dos seus ouvintes (e agora eu também já o sou), o interpelasse mais ou menos assim: Pois, esses deuses todos, mais ou menos pagãos, menos ou mais judaico-cristãos, que, nestes milénios, foram sendo criados pelo Homem como você muito bem diria, ao invés da Bíblia, à sua imagem e semelhança, ou melhor, em conformidade (antropomorfidade – de que palavra mais bárbara eu me havia de lembrar!...) com o deus que ele desejava ser (sempre deseja…) …E, então, finalmente o Deus que recusou (“revelou”?...) o sacrifício do filho Isaac, não foi (porque não?) mais um deus, não revelado mas criado pelo homem, significando um gigantesco passo civilizacional, sem a intervenção de qualquer Deus (com maiúscula ou com minúscula) que, para um racionalista até às últimas consequências, não existe senão na mente ou no coração “criador” do Homem?...
Estou a amontoar uma colecção de livros girando à volta dos deuses em que deixei de acreditar. No monte estão incluídos, para que se não diga que estou a ser parcial: Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo, Coord. de Anselmo Borges, Campo das Letras e, claro, A Desilusão de Deus, Richard Dawkins, Casa das Letras. Não preciso de dizer de qual deles mais aceito a argumentação. E então se lhe disser que do monte faz parte também o Tratado de Ateologia, Michel Onfray, Asa… Será caso para você dizer: o homem está mesmo perdido! Posso estar. Mas numa coisa estamos unidos, não é verdade? Com um grande abraço
ND
Para nos encontrarmos, cara a cara, basta que renuncie a ter de ser aqui, à sombra do BC e aceite que seja aí, à sombra da sua casa, ou de uma frondosa árvore. Ou à Mesa de um restaurante de Pombal que nos permita, num dos seus recantos, a Partilha-da-Comida-e-da Palavra-com-afectos-e-com-Espírito, o de Jesus, o único Homem à face da Terra que, desde que o Mundo é mundo, sempre detectou, detecta e detectará a presença do Ídolo, lá, onde todos os demais seres humanos sempre viram, vêem e continuarão a ver Deus e /ou Não-Deus. E, porque Jesus viu, também agiu politicamente em coerência e até às últimas consequências, nomeadamente, tudo fez para o desmascarar /denunciar /derrubar, ao mesmo tempo que convocou todos os povos e todas as nações para prosseguirmos na História as suas mesmas práticas políticas e económicas maiêuticas e o seu mesmo duelo teológico, inteiramente desarmado, não porque tivesse ciúmes do Ídolo, mas apenas porque percebeu que o Ídolo é sempre o Grande Inimigo, melhor, é o único Inimigo dos seres humanos que nós, cegos de nascença, não há maneira de O vermos como tal e por isso vivemos para O servir incondicionalmente, ao ponto de lhe darmos a própria alma, a própria identidade, a própria honra, a própria vida, sob a forma de culto religioso-eclesiástico, ou sob a forma de culto secular /laico /ateísta. E até lhe damos as nossas próprias filhas /os nossos próprios filhos, as quais /os quais, ainda antes de serem concebidos, já frequentam os seus ambientes e são todos gerados sob o seu bafo ou sopro homicida, genocida, ecocida. Sim, porque estamos rodeados, dia e noite e por todos os lados, pelo bafo ou sopro do Ídolo. É esse sopro ou bafo, o envenenado ar que habitualmente respiramos, a começar – imagine o meu caro António Marques! – por os próprios Ateus, elas e eles. Exactamente, por os Ateus. É esse o mortal risco que correm aquelas /aqueles que se apressam a dizer que são Racionalistas até às últimas consequências. Porque também o Racionalismo absoluto é filho do Ídolo, tal e qual como o Ateísmo. Por isso, em verdade, em verdade lhe digo: Só a mesma Fé de Jesus nos faz Humanos, pois é a única que nos coloca na Via ou Caminho que nos leva a dar pela presença do Ídolo, o qual, camaleónico como é, sempre se faz passar por Deus, por Religião, por Pátria, por Poder Político, por Ateísmo, por Cristianismo, por Agnosticismo, por Racionalismo absoluto. Nunca, obviamente, por Ídolo, que é o que Ele intrinsecamente é! Já viu maior idólatra, e idólatra mais perigosamente refinado, que um Ateu confesso e militante, como é, por exemplo, hoje, o nosso Nobel da Literatura, José Saramago, tão admirado /cultuado até por cristãos de fala castelhana, que se têm na conta de progressistas e até adeptos da teologia da libertação, mas que, bem vistas as coisas, não passam, eles também, de adoradores do Grande Ídolo que, neles, se veste de intelectual /teólogo progressista que, entretanto, não abdica do seu status, dos seus títulos académicos e dos privilégios que esses títulos lhes garantem, nesta Ordem Mundial que é inteirinha dele, o Grande Ídolo? Como vê, a sua colecção de livros à volta dos deuses em que deixou de acreditar bem poderia começar pela Bíblia e pelo Alcorão e deveria incluir todos os milhões e milhões de outros livros que nasceram a partir dela e dele, e que nunca chegaram a descobrir que o Deus dela e dele é o Grande Ídolo. E ainda o António Marques pensa que o Ateísmo e o Racionalismo levados às últimas consequências já estão vacinados contra os deuses e as deusas que inventamos. Puro engano seu. Pura ilusão sua. E também de tanta outra gente que hoje se tem na conta de muito ilustrada, mas vive sacrificialmente, dia e noite, a dar corpo ao Poder Político e ao Poder Religioso-eclesiástico, um e outro completamente de cócoras perante o Grande Dinheiro, por isso, num viver individual /corporativo totalmente prostituído-e-sem-afectos, devorado por solidões-que-lhe-secam-as-entranhas-de-humanidade e, por isso, faz de toda ela, gente-assassina-de-povos por acção e por omissão, ou simplesmente por mera cumplicidade. “Gigantesco passo civilizacional em frente”?! Oh, António Marques, por favor. Confunde Treva ilustrada e globalizada com avanço civilizacional? Não, António. Não se deixe encandear pelo Ídolo. Deus? Saiba que não basta negar a sua existência para já não se ser idólatra. Ser-se simplesmente ateu, sabe sempre a muito pouco. Ateu, e ateu ilustrado, e de renome mundial, é, como já lhe disse, o nosso Saramago e é ver como ele é idólatra que se farta. Como religioso, é o nosso Papa de Roma, Bento XVI, e é ver como ele é idólatra que se farta. Todo o Deus que pensamos, que dizemos, que imaginamos é sempre obra nossa, sim. Também o Deus que os ateus ilustrados criam /imaginam e depois negam. Não, António! Não diga que Ele não existe. Porque Ele está aí bem visível e é adorado /obedecido por ateus e religiosos, indistintamente. Todos vivem para O servir, uns, sob a forma de Ateísmo ilustrado, outros, sob a forma de Religião popular ou ilustrada. E esse é o drama da Humanidade. Jesus, o de Nazaré, foi crucificado, sabe porquê? Porque, ao contrário dos religiosos e dos ateus de todos os tempos, não O adorou, não O serviu. E levou este seu Non serviam! (= Não te servirei!) até ao limite, mais, até para lá do limite. Ainda ninguém, antes e depois dele, levou o Humano tão longe. Só ele. Por isso, dizemos que ele é o Caminho, o ser humano por antonomásia, o Paradigma dos seres humanos. O Ídolo nunca teve domínio sobre ele. Nem por um instante! Porque Jesus, felizmente, viu o que nós, que nascemos teologicamente cegos, corremos o risco de nunca chegarmos a ver, por mais anos que vivamos! Viu que o Deus que se vê e que se adora /serve, ou que se nega /serve é o Ídolo por antonomásia, sobre o qual se fundamenta a Ordem Mundial que temos e que tudo fazemos para que se mantenha em funcionamento, sobretudo, as nossas minorias ilustradas que são simultaneamente as minorias dos privilégios, numa hierarquia que vai da mulher-de-limpeza, do porteiro, do motorista ou do sacristão ao chefe de Estado, ao chefe do Império, ao patrão do Banco Mundial, e ao Papa de Roma. Vade retro, Satanás /Ídolo, sempre diz /faz Jesus! A este ver-de-Jesus-e-a-este-seu-agir-em-coerência, sem jamais ficar a meio caminho, é o que podemos chamar a Fé de Jesus. Só possível, porque Jesus se experimentou misteriosamente habitado, atravessado, empurrado por um Sopro outro que o fez a ele, não que ele fez, e que o fez-Homem-para-os-demais-e-com-os-demais, sem jamais excluir ninguém, nem nenhum povo, a pretexto nenhum. Por isso, Homem-com-os-demais-e-para-os-demais, a começar sempre pelas vítimas do Ídolo e da sua Ordem Mundial, um e outra intrinsecamente perversos, e a acabar nos verdugos ou algozes que as fabricam. É nestes lugares teológicos jesuânicos, os das vítimas, que, também eu, como um menino, procuro ter sempre os pés e a cabeça, as entranhas e as mãos, numa palavra, todo o meu ser /viver quotidiano. Uma coisa, posso então testemunhar: nunca, como desde que passei a frequentar estes lugares teológicos e a viver esta mesma Fé de Jesus, eu me descubro tão Humano, tão sororal-fraterno, tão Eu-sou entre os demais e com os demais.
Vila Verde. António Machado: Envio cheque para pagar a minha assinatura do FRATERNIZAR que muito aprecio. Todos os temas são de se lhe tirar o chapéu, mas no n.º 172 li um que mexeu muito comigo. Trata-se de Manifesto a favor da Comunidade Política de Jesus. Dou todo o meu apoio às sete Comunidades de Base do Brasil pela coragem que têm para se manifestarem e desmascararem a podridão que existe no seio da Igreja católica romana. Eu sei que é muito difícil o que estão fazendo, mas com coragem e fé vão chegar lá. Também li que o Pe. Mário está cada vez mais sozinho na Trincheira. Não! O sr. não está sozinho. Ainda há muita gente que está consigo, a contar comigo próprio e espero que nunca perca a coragem para enfrentar aqueles que só sabem dizer: Senhor, Senhor, e mais nada. A Teologia do Pe. Mário vai direita ao coração das pessoas, e não compreendo como, ao fim de algum tempo, elas viram as costas e regressam à Mediocridade em que estavam antes. São como a semente que caiu em terreno pedregoso. Ficam entusiasmadas, mas pouco tempo, depois esquecem tudo. Um grande abraço.
Brasil. Maria A.: Querido amigo padre Mário, Força de Mulher, Até o Nome Ela Perde, Maria João do Mar, Maria-mulher, Maria de Viadores e tantas outras Marias, todas cantadas em prosa e quase verso pela sua palavra libertadora! Pode-se acrescentar a tantas, também esta Maria aqui, do Brasil, que já sinto ventos de liberdade a rufar-me o rosto. Olha, demorei 40 anos de minha vida para conhecer o que chamam sexo, apesar de, a essas alturas, já ter 5 filhos e 25 anos de casamento tradicional... Sem mentir, devo tal repressão à Santa Madre! Ela, que pelas freiras e padres, me ensinou que sexo é feio, que sexo é pecado e que só é possível, se for para cumprir uma missão: a de gerar filhos... acabou por me castrar quase que completamente e deixar, em mim, marcas profundas e insolúveis, que ate hoje me castigam.
Padre Mário, suas palavras são carregadas de sensualidade e de carinho, quando fala de mulheres. Vejo-o como presbítero, mas também como homem que é e sempre será, pois foi assim que Deus o fez. O senhor não nega, em palavras, a sua sexualidade. Seus escritos não escondem o grande amor que tem por todas essas Marias de sua vida que, com certeza, lhe inspiraram e inspiram... Eu costumava ir à missa, às 3.as feiras, no centro da cidade, numa capela, a mais antiga da cidade, que possui como pároco um monsenhor tão preparado como o senhor, um teólogo na verdade… Ia lá, mais por causa dos fiéis que frequentam a capela, gente muito humilde e de grande fé. Mas este homem de tanta sabedoria e cultura, mostra em suas homilias, um amargor irónico que agora, depois de ler os seus escritos, vejo como o amargor do celibatário que, à forca, abandonou a própria sexualidade e desconta tal dano numa audiência que não tem culpa disso. A palavra que ele diz, quando não é condenando e reprimindo, é a pedir dinheiro para as obras de reconstrução da capela, ou para convidar aquele povo humilde à peregrinação anual que prepara à terra santa, de preço elevadíssimo!!! Padre Mário, voltarei a conversar com o senhor, muito obrigada por me ouvir (ler). Fique com Deus, Beijos.
ND
Querida Maria: Alegram-me sobremaneira estas suas considerações, a propósito do meu livro EM MEMÓRIA DELAS. LIVRO DE MULHERES, um dos livros de que eu mais gosto, de todos quantos já publiquei até hoje. Alegram-me, nomeadamente, as considerações que faz sobre alguns dos seus TEXTOS, que aqui destaca com tanta emoção. Felizmente, no meu percurso de presbítero da Igreja do Porto, também as Mulheres, não apenas os Homens, têm estado sempre e continuam a estar muito presentes na minha vida. E sempre como Graça, nunca como Tentação. Obviamente que a Mulher que mais me marcou /evangelizou até hoje foi sem dúvida a Ti Maria do Grilo, minha mãe. A ela devo o ter chegado a despertar para a mesma Fé de Jesus que, desde então, nunca mais deixei de viver e, por isso, é a única Fé que me “faz”. Nesse particular, ela foi como que a minha “parteira”. Nunca o seminário que frequentei durante 12 anos o fez como ela. Nem nenhum clérigo, os vários que conheci nos 12 anos do seminário ou outros quaisquer. Dos clérigos, recebi sobretudo a Fé religiosa tradicional, não a Fé fecundamente subversiva e conspirativa de Jesus. A de Jesus, apenas a minha Mãe ma despertou. Mas a minha Mãe não foi a única Mulher na minha vida a deixar-me marcas tão positivas. Muitas outras, felizmente, ao longo dos anos, “puxaram” por mim, ajudaram-me a “desclericalizar”, a perder os “tiques” clericais que o seminário havia desenvolvido em mim, porque me pretendia clérigo por toda a vida, em vez de Humano por toda a vida. As Mulheres e os Pobres humanizaram-me /evangelizaram-me. Com elas e com eles, reaprendi a ser Humano, a valorizar a Ternura, os Afectos, a viver o Celibato pelo Reino /Reinado de Deus, não por força duma Lei eclesiástica, objectivamente imoral e inumana que, como tal, nunca deve ser acatada /obedecida por nenhum ser humano, sob pena de Pecado, isto é, sob pena de nos desumanizarmos, mas como fruto de uma opção livre, por isso, um Celibato vivido naquele saudável e fecundo clima que paradigmaticamente se nos dá a respirar no poema bíblico Cântico dos Cânticos, fora do qual não há Celibato pelo Reino /Reinado de Deus, mas apenas Solteirismo, Fariseísmo, Repressão sexual, Castração, Homofobia, Misoginia, Moralismo imoral, numa palavra, só há “eunucos que o Poder Eclesiástico fez /faz tais”.
Infelizmente, com o andar dos anos, nem todas elas permaneceram fiéis ao caminho que, juntamente com muitos homens das Comunidades cristãs de base e fora delas, me ajudaram a abrir, abriram comigo e eu abri com elas, com eles. Não estranho o facto, muito menos condeno as pessoas. Porque sei por experiência própria que uma vivência assim é sempre via de “porta estreita”, de muito desprendimento e sobretudo, de total gratuidade que nem a todas as pessoas é dado entender e, por isso, o próprio Jesus, o do Evangelho de Mateus, quando fala desta via, não pôde deixar de concluir: “Quem puder compreender que compreenda” (19, 10-12). É também via de total entrega aos mais empobrecidos e oprimidos, cujas Causas Maiores há que abraçar em primeiro lugar e por toda a vida, porque se identificam com as Causas Maiores do Reino /Reinado de Deus na História. Em dada altura de tão “atrevida” Caminhada, bate-nos à porta a tentação do bem-bom, duma-família-própria-sem-as-demais-famílias e, pior ainda, a Tentação duma-família-própria-sem-nenhum-lugar-para-os-sem-família-e-os-sem-bom-nome-na-praça. Ou, em palavras mais pragmáticas, a tentação do regresso ao útero materno, à segurança, ao Institucional, ao Legal, ao Moralismo, ao Normativo, ao Rotineiro, ao Ser-como-toda-a-outra-gente, sem nada mais de Sinal-de-Contradição, por demais incómodo, particularmente nestes tempos de tanto Cinzentismo que são hoje os nossos. E, então, todo o Belo de antes aparece como Feio, senão mesmo como Pecado, quando, antes, Tudo era Graça e continua a ser Graça, Acção do Espírito Santo, o de Jesus, o do Reino /Reinado de Deus, não o do Eclesiástico e o do Moralismo hipócrita e imoral.
Sabe, certamente, a Maria que só lá, onde há Liberdade /Maioridade, é que há plenitude de Graça e de Verdade. Sabe igualmente que foi para a Liberdade que (o Espírito de) Jesus nos libertou. Só que para haver verdadeira e plena Liberdade, tem de haver também corpos-que-se-entregam-como-Pão-Partido-e-Repartido-que-se-dá-a-comer, vidas /sangue-derramado-como-Vinho-que-se-dá-a-beber pela vida do Mundo. Quando desistimos e até regredimos desta Dimensão que está para lá da Lei – a dimensão da Liberdade e da Graça – o estado em que nos tornamos corre o risco de passar a ser pior do que era antes de termos começado a ir por ele.
Felizmente, a Causa Maior do Reino /Reinado de Deus tem estado sempre aí, na minha frente e dentro de mim, e é ela que continua a dar sentido a todo o meu Ser /Viver Quotidiano e é a fonte de toda a Alegria e de toda a Paz que vivo e respiro, mesmo em pleno “Deserto”. Muitas são hoje as pessoas que não entendem este meu ser /viver, porque, para o entenderem, seria necessário que, primeiro, também elas se abrissem à Partilha dos bens, se fizessem pobres por opção, se abrissem sem medo à Liberdade e à Graça, em lugar de passarem o resto das suas vidas como súbditas da Lei /do Legal, do Institucional, do Normativo, do Eclesiástico, à semelhança daquele filho mais velho da parábola lucana dos dois filhos, mais conhecida por “Parábola do filho pródigo”.
Como vê, querida Maria, a sua mensagem trouxe muito de bálsamo ao meu Caminhar em “Deserto” que tem sido e continua a ser este meu ser /viver como sinal de contradição dentro desta Ordem Mundial sem jamais ser dela. É, por isso, uma mensagem muito fecunda, como só a Liberdade é capaz de ser. Bem-Haja, também por isso! Dou-lhe um beijo cheio de Ternura e de Paz. Mário
E-mail. Ancião Beto, das Testemunhas de Jeová (1): Boa tarde, quem escreve é o ancião Beto e gostaria de lhe dizer meu irmão que o Fim está Próximo e que se devia converter. Você anda a influenciar as minhas irmãs para que mudem de Deus, mas o Padre Mário não sabe que Deus é PODER E JUSTIÇA? Converta-se enquanto é tempo, pois o tempo urge, e é preciso mudar de esse seu deus para o Deus Justiça! O Dia do Senhor está Próximo, a Segunda vinda está próxima, converta-se!!!!!
Seu irmão.
ND
Meu irmão Beto, Ancião. Com que então eu escrevo para um pequeno grupo de três Testemunhas de Jeová (foi assim que, no início, elas me disseram que eram) e, desta vez, quem me responde, no mesmo endereço electrónico, é o Ancião que, pelos vistos manda nelas, na consciência delas e até lhes tirou o pio, concretamente, as proibiu de lerem outros livros que não os da Congregação Jeová e de se encontrarem ao vivo comigo, em dia, hora e local a combinar, de preferência, em redor duma Mesa Partilhada!? E, para cúmulo, ainda me escreve com quatro pedras bíblicas na mão!? Para um primeiro contacto, deixe-me que lhe diga, é de arrasar /esmagar /calar o mais assustadiço. Só que, meu irmão Beto, Medo de Deus, desse seu Deus PODER E JUSTIÇA, em mim não há nenhum. Pela simples razão de que esse Deus PODER E JUSTIÇA é um Ídolo, portanto, é igual a Nada! A existir, seria pior do que eu e do que a maior parte dos seres humanos que, hoje, neste século XXI, somos VÍTIMAS do Deus-Ídolo Dinheiro, o Grande Dinheiro, que, esse sim, é omnisciente, omnipotente e omnipresente, criador de INFERNOS, de DESEMPREGO EM MASSA, de POBRES e de POBREZA EM MASSA, como, de resto, está aí bem à frente dos olhos de toda a gente que queira ver.
Saiba, meu irmão Ancião, que não fui eu quem procurou as suas irmãs. Foram elas que me procuraram. Fiz mal em acolhê-las, tentar dialogar com elas, mostrar-lhes o outro lado da Bíblia que a Congregação Jeová sistematicamente esconde, salta à frente, escamoteia, interpreta de forma perversa e mentirosa? Pelo vistos, parece que sim.
E para que me vem, o meu irmão Ancião, com essas ameaças em nome de Deus-Jeová? Acha que eu sou assim tão infantil, que me assusto com elas? Sou, não me canso de o dizer e até de cantar, quero ser, como um menino, mas não sou, não quero ser, infantil, em dimensão nenhuma da minha vida humana, muito menos na da Fé, a mesma de Jesus. Sabe, certamente, que o Evangelho de João, logo no final do seu Prólogo, é taxativo: A Deus nunca ninguém O viu. Um Filho único, Deus, o que vive cara a cara com o Pai, é que O deu a conhecer (cf. Jo 1, 18). Quer dizer: O que sabemos de DeusVivo, é por Jesus que o sabemos, antes de mais, pelas suas práticas políticas e económicas maiêuticas /libertadoras, e pela sua Palavra geradora de libertação para a Liberdade, inclusive, pelos seus duelos teológicos que o levaram à Morte Crucificada. Imposta pela JUSTIÇA e pelo PODER dos poderosos sumos-sacerdotes do Templo de Jerusalém e pelos poderosos do Império de turno, na altura, o Romano. Pois bem, meu irmão Ancião, é por Jesus, o de Nazaré, que vou. Não por Moisés, nem pela Lei de Moisés, nem pela Casa de David /Salomão que mandou escrever o relato mítico bíblico de Adão e Eva e da Serpente, nem pela Cúria Romana e todas as outras Cúrias sob outros nomes, incluída a de Jeová. Deus, meu irmão Ancião? Só mesmo o de Jesus, que, felizmente para nós, é o descriador definitivo de todos os infernos históricos que, na nossa demência, possamos criar para nós próprios e para os demais, porque Ele é o único que é Criador de filhas e de filhos da mesma estatura da de Jesus, o Filho-Homem por antonomásia.
Deixe-se de mitos, meu irmão Ancião, como esse da Segunda Vinda, do Dia do Senhor que está próximo. Abra-se a Deus-Abbá /Mãe-Pai, o de Jesus e nosso, que é mais íntimo a nós do que nós próprios, e de modo ininterrupto. Como pode vir, quem nunca nos deixou nem deixa? E como pode o dia do Senhor estar próximo, se Deus, o de Jesus, nunca nos deixou, e, por isso, todos os dias, todas as noites, são dias e noites do Senhor, sempre mais íntimo a nós do que nós próprios? Razão tenho eu, quando escrevi e escrevo, Jeová, nome de Terror. Não dá para ver que se Deus fosse como o meu irmão Ancião diz, neste seu curto mail (imagino o que não dirá porta a porta às pessoas que lhe abram a porta), era bem melhor sermos todas, todos ateus? Haja modos, meu irmão! E não blasfememos o Santo Nome de Deus, ao atribuir a Deus intenções e acções que só o Grande Dinheiro, o Ídolo por antonomásia, mentiroso e assassino, concebe e realiza, está aí a conceber e a realizar. Abra-me esses olhos, irmão, se ainda for capaz!
Dou-lhe a minha paz. E o meu abraço fraterno. Seu, Mário
E-mail. Ancião das Testemunhas de Jeová (2): Quando no fim [da sua mensagem anterior], o Padre Mário diz para não blasfemar contra Deus é porque é um pecado Capital, certo?
Ancião Beto
ND
Não tente levar-me por aí, irmão Beto, sem fazer nenhum caso de tudo quanto de substantivo lhe escrevi no meu mail anterior, e muito foi. Porque eu não vou por aí. Não entro no seu jogo, perverso jogo, de resto já aqui bem à vista de toda a gente. Veja como, até essa sua conclusão a que perversamente tentou reduzir, sem o conseguir, todo o meu mail anterior, uma conclusão toda ela redigida com palavras suas, não com palavras minhas, o Ancião Beto teve necessidade, para o fazer, de, escandalosamente, tirar tudo do seu contexto que é, afinal, todo o mail que eu lhe dirigi, com muito afecto e de coração aberto. Fê-lo, sem dúvida, perversamente, para ver se, agora, munido dessa sua conclusão, me lançava uma fatal /mortal casca de banana e eu, ingenuamente, escorregava nela e me estatelava. Ao agir assim, o Ancião Beto mais não fez do que recorrer à técnica de manipulação de um texto, técnica em que todas as Testemunhas de Jeová que eu conheço, e muitas são, são perversamente peritas, concretamente, no que respeita ao uso /interpretação da Bíblia. Nisso, desculpe que lhe diga, Vós, Testemunhas de Jeová, sois como os chefes dos Judeus, nomeadamente, os fariseus, os escribas /doutores da Lei e os sumos-sacerdotes, do tempo e do país de Jesus (cf. João, todo o capítulo 8), acerca dos quais ele disse, sem papas na língua, que tinham por pai, não Deus Jeová, como eles se reivindicavam, nem sequer Abraão, mas apenas o Diabo, um termo mítico então muito em voga, que, posto em termos históricos, corresponde a dizer que eles eram uns Praticantes profissionais da Mentira e do Ódio teológico, por isso, uns verdadeiros Assassinos das populações que se deixassem guiar pelos seus ensinamentos. Como eles, também Vós, hoje, com essa técnica manipuladora em que sois perversamente peritos, acabais por levar a Bíblia a dizer o contrário do que ela efectivamente diz. Sois uns praticantes da Mentira e do Ódio teológico, por isso, uns Assassinos (quase) compulsivos. A Desonestidade intelectual que praticais – e que o Ancião Beto aqui pratica comigo e com o mail que lhe enviei - não pode ser maior e mais nefasta, mortal, até. Antes de mais, para Vós, anciãos e outros líderes hierarquicamente acima de vós, os anciãos, que a praticais e – o que mais me dói – também para os muitos milhares de pessoas ignorantes em interpretação bíblica, que vos dão ouvidos e, assim, se deixam aterrorizar /dominar /oprimir /humilhar /matar por vós e pelos vossos falsos ensinamentos. Por isso, Ancião Beto, digo-lhe agora o que já, antes, tinha dito às suas irmãs que, pelos vistos, o Ancião Beto já dissolveu, ao ponto de elas já não existirem mais desse lado: Qualquer diálogo mais comigo, só mesmo ao vivo, cara a cara, olhos nos olhos. Ainda assim, e a concluir este mail, sempre lhe digo: Volte a ler, como quem mastiga, a minha mensagem anterior e deixe que o Espírito libertador de Jesus que a atravessa do princípio ao fim, que é o Espírito da Ternura e da Liberdade, o fecunde e o torne, cada dia, um bocadinho mais humano, por isso, cada dia, um bocadinho menos cruel, menos opressor, menos terrorista, menos manipulador, menos assassino das suas irmãs, dos seus irmãos. O que, entretanto, só sucederá se, também para si, como para João Baptista, a sua alegria consistir em que as suas irmãs, os seus irmãos cresçam e o Ancião Beto diminua!
Renovo a minha paz e o meu abraço fraterno, Seu, Mário
E-mail. Hélder: Padre Mário: Como seu futuro discípulo li, aliás reli, porque já tinha partilhado consigo aqueles momentos irrepetíveis em Salvaterra de Magos, o seu Diário Aberto [2009 MARÇO 02]. Quanto à componente teológica/histórica julgo que a sua leitura é assaz pertinente, crível e consistente. Ficam-me dúvidas - certamente porque ainda não estou no adequado estado de maturação que a sua reflexão de décadas já atingiu - quanto à “culpabilização” do Ocidente. O Ocidente é, nas suas palavras, uma representação do que está menos bem.
Não estarão os ocidentais mais disponíveis para escutar outras leituras?! Não estarão os ocidentais mais preparados para receber outras mensagens?! Não estarão os ocidentais mais preparados, que outros, para mudar hábitos, conceitos e preconceitos?!
Padre, nós estamos vergados e controlados pelo dinheiro, também estamos vergados e controlados pelas hierarquias, mas muitos de nós já temos essa percepção. Isso é positivo. Ainda não encontrámos foi um modelo alternativo de organização social. Acredito que só lá chegaremos com a valorização da educação, da formação e da cultura (sob as diferentes formas de expressão de que se pode revestir) e a 2 ou 3 gerações de distância. Mas não vejo outro local no Mundo onde o Padre consiga lá chegar mais depressa! Em África a luta pela sobrevivência absorverá ainda durante longos anos as energias daqueles povos. Nos países islâmicos - onde as ditaduras ou monarquias absolutas imperam - não é admitido o contraditório, como influir então?!
Sobra algum oriente... talvez aí! Hum!... do que sei, também aí se repete o nosso modelo ocidental ainda que mais musculado. Não teme, Padre, que o seu “ataque” ao nosso estilo de vida possa ser confundido como um ataque ao Ocidente, que para mim é o único capaz de inverter e corrigir? Não sei se tenho dados muito fiáveis, mas já pouca gente acredita na Virgem Maria, nos milagres de Cristo, na Ressurreição, etc. Alguns ainda não encontraram o caminho, mas sabem que não é por ALI. Abraço, padre. Até um dia.
ND
Meu caro Hélder
Não se deixe encandear assim tanto pela Treva Ilustrada que o nosso Ocidente é. Com ela, ele cega-nos e nós nem sequer nos vemos uns aos outros. Tão pouco nos vemos a nós próprios, tais quais somos. A partir das vítimas, o olhar é outro, muito outro. Meta-se na pele delas e olhe o Ocidente. Será o Ocidente ainda capaz de inverter a marcha que leva a grande velocidade para o abismo? Ou, pelo contrário, dele se poderá - deverá - dizer o que Jesus disse de toda a grandeza que era o Templo de Jerusalém, que não ficará pedra sobre pedra?
O nosso bem-estar europeu e ocidental é Mentira. É fruto de roubo, de exploração, de espoliação de genocídio e de ecocídio em massa e sem medida. Estamos edificados sobre os gritos dos Povos que conquistamos, dominamos, escravizamos, sugamos, espoliamos, assassinamos. O nosso Deus é um Ídolo que tanto dá para o Religioso, como para o Ateísmo! Desde que não o denunciemos e desmascaremos, não o derrubemos nem o decapitemos, ele está-se nas tintas para a Religião e para o Ateísmo! Por isso eu digo - e não estou sozinho a dizê-lo - o Ocidente é um acidente gerador de acidentes em cadeia. Tanta Inteligência demente-demente ao comando do Ocidente não o deixa inquieto? Ainda é capaz de pensar /dizer que vive no melhor dos mundos? Só porque, aqui, quem for da Trindade do Poder sempre se safa à grande e à ocidente, e só o mexilhão é que se lixa?
Se o seu Ateísmo não der para topar o Ídolo devorador que se disfarça sob o manto diáfano da Treva Ilustrada, que é o nosso Ocidente, acha que pode continuar a dormir descansado?
Por mim, prefiro continuar a fazer da casa uma Trincheira, da palavra, duelo teológico, e ser Sentinela, dia e noite, na cidade e na aldeia.
Seu, no abraço e na paz, Mário
V.N. Gaia. Felícia: Obrigada pela força que me transmite nas palavras que escreve e diz! Com pessoas como você, é que as areias lá se vão movendo, muito devagarinho… Mas é bom saber que há gente a tentar. Um bem-haja. Obrigada. |
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DOCUMENTO
O grande teólogo da Teologia de Libertação, L. Boff,
completou 70 anos de idade. Houve quem lhe promovesse homenagens.
Esqueçam-nas. E mergulhem nesta sua imperdível reflexão teológica
Velho, Cristão, Franciscano, Teólogo, Homem
Entre os marcos mais salientes da sua vida de 70 anos, o grande Teólogo da Teologia da Libertação, L. Boff, salienta o de velho, cristão, franciscano, teólogo e homem. A reflexão teológica aconteceu por ocasião dos 70 anos, em finais de 2008. Das homenagens, sempre dispensáveis (aos pobres ninguém se lembra de lhas fazer!), não queiram saber. Mas não percam esta Partilha teológica com que nos brinda. A começar pelos extractos do texto, um sobre cada destas suas cinco dimensões
1. A vida na velhice impõe esta exigência: que nos confrontemos, com temor e tremor, com as questões derradeiras e inadiáveis. É então que de facto podemos amadurecer, ganhar gravidade e acabar de nascer. É a oportunidade de virarmos sábios. Então teremos concluído a tarefa de nossa vida. Saímos do palco. Entramos no silêncio. Morremos. Se não carregados de dias, pelo menos, carregados de experiência, quem sabe, de sabedoria
2. Deus [o de Jesus] é tão humano, que é divino (Fernando Pessoa). Ele quis caminhar, alegrar-se, sofrer, viver e morrer conosco, para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de nós, que nós somos da sua Casa. Ele não quis fundar uma nova religião ou uma nova sinagoga que se chama Igreja, nem nomeou herdeiros. Quis um homem novo e uma mulher novos. Deslanchou um sonho e um movimento que nos alcançam até os dias de hoje
3. De São Francisco aprendi que não basta ser cristão. Temos que ser bons, humanos, finos, sensíveis, amorosos e abraçar ternamente a cada criatura até o voraz irmão lobo de Gubbio. Então não vivemos num vale de lágrimas, mas numa montanha de bem-aventuranças. Como nos recorda Gaston Bachelard, “não aparecemos como filhos e filhas da necessidade, mas como filhos e filhas da alegria”.
4. Por ser teólogo da libertação, conheci tribulações, tive que me justificar diante das mais altas instâncias doutrinárias da Igreja e sofri discriminações por parte de irmãos da fé até os dias de hoje. Mas este padecimento nada é em comparação com o que os pobres sofrem. É um privilégio poder participar, por um pouco, de sua paixão dolorosa
5. Quem somos? Como já o acenei anteriormente, talvez o espelho no qual Deus mesmo quer olhar-se a si mesmo. Num momento de sua superabundância, criou alguém fora de si, diferente, uma alteridade consciente para poder comunicar-se a ela em amor, em entendimento e em ternura. Nós somos frutos desta auto-comunicação divina. Numa só palavra: somos Deus por participação
1. Agradecimentos
Antes de mais nada, quero agradecer a Deus por ter chegado a esta idade. Bem diz o salmo (90,10): “70 anos é a nossa idade e se tivermos saúde, 80”. Ele é, como dizem as Escrituras, “o soberano amante da vida” (Sab 11,26). Ele inclui-me em seu amor.
Em seguida, quero agradecer aos familiares segundo a carne. Deles não falo para não chorar, porque eles estão dentro de mim e sinto muitas saudades deles. Neste contexto não posso esquecer a família dos Monteiro Miranda com a companheira Márcia e seus 6 filhos com quem comparto a vida e que me enraizaram no chão da realidade no qual todos os humanos nos encontramos.
Depois, sinto o dever de agradecer à comunidade cristã. Ela me transmitiu a fé, o amor e a esperança de Jesus. Alimento-me do seu sonho de um novo céu e uma nova Terra, de um novo homem e de uma nova mulher junto com a ressurreição de todo o universo, feito corpo de Deus-Trindade.
Agradeço também a outra família espiritual, à família franciscana de quem herdei o legado de S. Francisco, o mais humano de todos os humanos [depois de Jesus]. Dele aprendi que a vida só será verdadeiramente plena, se for construída com ternura e vigor e na confraternização com todas as coisas.
Desejo agradecer aos peregrinantibus mecum - aos que peregrinaram comigo - ao longo destes tantos anos, aqueles, homens e mulheres, com quem compartilhei a vida, as utopias, as lutas, as tribulações e os avanços. São tantos que nem sequer posso nomear.
Quero manifestar a alegria pela dupla homenagem literária que me foi feita. Primeiramente, pelo livro Leituras Críticas sobre Leonardo Boff organizado pelo prof. Juarez Guimarães, num trabalho em conjunto do Instituto Perseu Abramo e da Universidade Federal de Belo Horizonte. Honram-me nomes notáveis de nosso pais e do estrangeiro.
Em seguida, quero expressar também a minha satisfação e reconhecimento ao número especial da revista Estudos Teológicos da Escola Superior de Teologia (EST), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. É fruto de um debate que durou uma semana com especialistas que estudaram a fundo os meus escritos e fizeram-lhe observações e criticas pertinentes das quais muito aprendi. Ressaltaram as convergências e as diferenças entre a sensibilidade dos Reformadores e a sensibilidade romano-franciscano-católica.
Meu agradecimento vai também a todos os que organizaram esta celebração dos 70 anos, universidades, entidades, grupos, pessoas, especialmente o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, do qual sou presidente honorário, o Serviço de Educação e Organização Popular (SEOP) que também ajudei a fundar e não em último lugar o Instituto Bennett da Igreja Metodista que sempre esteve do meu lado. Foi nos seus espaços que se celebrou um acto de desagravo por ocasião do “silêncio obsequioso” imposto pelo Vaticano em 1985.
Por fim, quero agradecer a todos os que vieram nesta noite do dia 9 de Dezembro 2008 aqui no Rio de Janeiro, alguns de longe e que pelo carinho se tornaram próximos.
Não direi muitas palavras. Nem farei um balanço aos 70 como fiz aos 50 e aos 60, pois não é aqui a ocasião. Apenas quero realçar alguns marcos salientes como numa leitura de cego.
2. Marcos salientes
a) Velho
Em primeiro lugar, devo dizer e reconhecer que estou velho. Para as condições brasileiras, sou oficialmente velho. Não quero, porém, entender o ser velho meramente na óptica da biologia. Mesmo assim, há no velho uma perda irrefreável do capital vital e um lento colapso dos sentidos. Mas a velhice é muito mais que sua dimensão biológica. É a última etapa da vida, a oportunidade derradeira que a vida nos oferece para continuarmos a crescer, chegar a amadurecer e, por fim, acabar de nascer.
Se bem repararmos, começamos um dia a nascer, mas ainda não acabamos de nascer, porque ainda não estamos prontos. Estamos sempre na génese de nós mesmos, trabalhando, sofrendo, nos alegrando, nos frustrando, estabelecendo relações, amando e criando sentidos para a nossa curta passagem por este pequeno planeta. Vamos nascendo lentamente, em prestações até acabar de nascer.
A velhice é a oportunidade última de dar o toque final à estátua que fomos talhando de nós mesmos.
A velhice tem suas vantagens. Você não precisa usar mais as máscaras que a vida lhe impõe a cada momento. Pois a vida é como um teatro no qual você é chamado a representar vários papéis. Você veste a máscara de homem, de frade, de padre, de teólogo, de escritor, de conferencista, de antigo torcedor do Canto do Rio e depois do América e de não sei o que mais. Agora como velho você tem o direito e o privilégio de ser você mesmo e de livrar-se das máscaras.
Não é um momento fácil, porque frequentemente nos identificamos com as máscaras. Mas quando desaparecem, irrompe você mesmo em sua identidade. Então surgem perguntas amedrontadoras: quem é você, finalmente? Que faz você realmente neste mundo? Quais são seus sonhos fundamentais? Que demónios o atormentam? Qual é o seu lugar no desígnio do Mistério?
Neste momento, deixamos todos companheiros para trás. Estamos sós com a nossa solidão. E não dá mais para se esconder atrás de máscaras e de papéis. Ego factus sum quaestio magna diz Santo Agostinho: “eu me fiz para mim mesmo, a grande questão”.
A vida na velhice impõe esta exigência: que nos confrontemos, com temor e tremor, com as questões derradeiras e inadiáveis. É então que de facto podemos amadurecer, ganhar gravidade e acabar de nascer. É a oportunidade de virarmos sábios. É ilusão pensar que a sabedoria vem com os muitos anos da velhice. Ela não vem. É o espírito, é a coragem com a qual enfrentamos estas questões incontornáveis que nos pode fazer sábios. Então teremos concluído a tarefa de nossa vida. Saímos do palco. Entramos no silêncio. Morremos. Se não carregados de dias, pelo menos, carregados de experiência, quem sabe, de sabedoria.
Pois cheguei a esta derradeira fase da vida. Não chegaram meu pai que morreu com 54 anos, nem minha mãe que faleceu com 64, nem minha queridíssima irmã Cláudia que se transfigurou aos 33 anos. Eu cheguei e isso é graça de Deus.
Por isso, para atender a estas questões, deverei tomar tempo, renunciar a tantas andanças, falar menos, meditar mais e levar avante a viagem mais longa da vida que é rumo ao próprio coração. E então preparar o Grande Encontro. Descer como Cristo até o coração do universo, lá onde o coração da pedra, o coração da flor, o coração de todo vivente, o coração do ser humano e o coração do universo são um só coração. Encontrar-se com Deus, o Coração dos corações, a Fonte originária de todo ser, de toda bondade, de todo amor, de toda ternura e de toda compaixão.
Se ser velho é poder vivenciar esse processo, então bem-vinda a velhice, bendita seja a velhice. Não é castigo, mas graça sobre graça. Ela nos permite experimentar o que nos diz São Paulo: “Na medida em que definha o homem exterior, se rejuvenesce o homem o interior”(2Cor 4,16).
Portanto, sou um velho, rumo à Fonte da perene juventude que é Deus.
b) Cristão
Sou um velho e cristão. Que me ensinou, em síntese, o Cristianismo? Muitas coisas, mas quero me ater ao essencial. O Cristianismo me fez ver que, no fundo, há somente dois mistérios: Deus e o mundo. Por que não existe o nada e sim Deus? Ele não conhece o ontem nem o amanhã. Só o agora. É a eternidade, o absoluto limite da razão. E quando me ponho a pensar quase enlouqueço. E o mundo. Por que ao lado de Deus existe o mundo? O que ele significa? Talvez o espelho no qual Deus mesmo se quer ver a si mesmo e permitir que nós o vejamos também. Mas eles não estão separados por um abismo. Este o equívoco do pensamento grego e nosso: Deus, o transcendente, e o mundo, o imanente. Na verdade, não é assim. Existe o transparente: um dentro do outro, um presente no outro formando um único grande Coração.
Imaginem a alegria de sabermos que não estamos apenas na palma da mão de Deus, mas no seu próprio coração. E esse Deus é comunhão e não solidão. Ele é feito de relações eternas entre as três divinas Pessoas. Não é sem razão que o mundo todo, como nos dizem os físicos quânticos e os modernos cosmólogos, também é feito de relações e nada existe fora da relação Porque Mundo e Deus são afins, um é imagem e semelhante do outro.
Para que isso fosse realmente verdade, Deus mesmo veio até nós e se fez humano. Então podemos dizer: “os nossos ouvidos o ouviram, os nossos olhos o viram, as nossas mãos o apalparam e o nosso coração o sentiu” (cf. 1Jo 1,1). Esse Deus é tão humano, que é divino (Fernando Pessoa). Ele quis caminhar, alegrar-se, sofrer, viver e morrer connosco, para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de nós, longe de modo nenhum. Que nós somos da sua Casa. E quando morrermos, Ele vem e toma o que é seu e introduz para dentro de sua Família. Ele não quis fundar uma nova religião ou uma nova sinagoga que se chama Igreja, nem nomeou herdeiros, mas quis um homem novo e uma mulher novos. Deslanchou um sonho e um movimento que nos alcançam até os dias de hoje.
Portanto, esse Deus não é apenas Mistério sem nome. Ele é vida, comunhão e amor. E se Ele é amor, comunhão e vida, significa então que para Ele importa que cegos vejam, coxos andem, surdos ouçam, famintos sejam saciados. Ele não fica indiferente face à paixão de seus filhos e filhas. Sofre com eles e sua ressurreição simboliza uma insurreição contra a violação da vida destes últimos.
c) Franciscano
Sou velho, cristão e franciscano. Que significa para mim ser franciscano? Ser franciscano é encontrar através da figura de São Francisco a porta pela qual se entra e se descobre o único Cristo verdadeiro, aquele que foi um artesão e camponês mediterrâneo, tão anónimo, que as crónicas da época, seja de Jerusalém, de Atenas e de Roma nem sequer notificaram seu nascimento e sua morte. Era um pobre, considerado por seus familiares um louco (cf. Mc 3,21), que saiu pelos caminhos pedregosos da Palestina a pregar um sonho, o do Reino de Deus que é uma criação reconciliada com Deus, descoberto como Paizinho, na justiça, no amor, no cuidado de uns para com os outros e no perdão e que começa pelos pobres. Crucificado, ressuscitou, fazendo uma revolução dentro da evolução, mostrando que o fim da criação é o bom. Ressurreição é também uma insurreição contra um tipo de justiça que condena os inocentes.
Mas o que ensinou Francisco é encontrar Deus na criação. Ele, com grande humildade, colocou-se ao pé de todos os seres. Confraternizou-se com as obscuras forças da Mãe Terra e com o brilho benfazejo do Sol. Fez-se irmão das flores do campo, dos passarinhos, do vento, da chuva, das estrelas, do Sol e da Lua e até da morte. Por isso tratava a todos os seres com finura e cortesia. Seu mundo é cheio de magia, de encantamento e de música.
De São Francisco aprendi que não basta ser cristão. Temos que ser bons, humanos, finos, sensíveis, amorosos e abraçar ternamente a cada criatura até o voraz irmão lobo de Gubbio. Então não vivemos num vale de lágrimas, mas numa montanha de bem-aventuranças. Como nos recorda Gaston Bachelard, “não aparecemos como filhos e filhas da necessidade, mas como filhos e filhas da alegria”.
d) Teólogo
Sou velho, cristão, franciscano e teólogo. O que é um teólogo? É um ser quase impossível. Ele levanta uma pretensão inaudita: pensar a Ultima Realidade, Deus, e tentar exprimi-la com palavras adequadas. De saída, dá-se conta de que esta tarefa é impossível. Se, mesmo assim, tenta, suas palavras parecem-se mais a mentiras que a verdades. Como expressar quem é por definição Inexprimível? Aquele que vem antes do antes e que existe previamente a qualquer palavra?
Como não desiste, não lhe resta ao teólogo outra alternativa que não seja voltar-se para as criaturas, lidas a partir de Deus e iluminadas por Deus. Elas todas se fazem sacramentos de sua inefável realidade. Por isso toda teologia se vê obrigada a articular o discurso sobre Deus com o discurso sobre o mundo. Como diziam os antigos mestres: a teologia vem dotada de dois olhos, ante et retro occulata: um voltado para trás onde capta os sinais deixados por Deus na história, na vida dos povos, dos mestres, dos santos e santas e das Escrituras sagradas não só judaico-cristãs mas também das Escrituras sagradas dos povos. E outro voltado para frente, lendo os sinais dos tempos, as intimidações que nos vêm da realidade e que desafiam a nossa consciência. Combinando os dois olhares, fazemos uma teologia fiel à tradição e ao mesmo tempo fiel à história actual. É antiga e moderna e sempre contemporânea.
Olhando com o olho da frente, a realidade sofredora, injusta e opressora da maioria de nossos irmãos e irmãs, senti-me, em consciência, obrigado a ser um teólogo da libertação. O gemido dos escravizados do Egipto; o clamor dos exilados da Babilónia, de ontem e de sempre, as invectivas dos profetas, a prática de Jesus e dos Apóstolos nos forçam a nos engajarmos na libertação dos oprimidos, a partir de sua fé e de sua força histórica. Se não formos teólogos da libertação em nosso contexto, dificilmente, escaparemos da crítica de cinismo e desumanidade. Na verdade nos colocaríamos fora da herança de Jesus que foi libertador, não porque nós o dizemos, mas porque os textos fundadores do Evangelho assim no-lo mostram. E a libertação tem que ser integral: não apenas libertar os seres humanos oprimidos, mas toda a comunidade de vida que geme e da Terra, nossa Casa Comum, devastada pela voracidade do produtivismo e do consumismo. Se não libertamos a Terra, vãs serão todas as demais libertações que pressupõem uma Terra viva, saudável e íntegra. Nos últimos anos tenho-me batido por esta causa verdadeiramente urgente: articular o grito dos pobres com o grito da Terra, grito por libertação.
Por ser teólogo da libertação, conheci tribulações, tive que me justificar diante das mais altas instâncias doutrinárias da Igreja e sofri discriminações por parte de irmãos da fé até os dias de hoje. Mas este padecimento nada é em comparação com o que os pobres sofrem. É um privilégio poder participar, por um pouco, de sua paixão dolorosa.
e) Velho, cristão, franciscano, teólogo e um homem.
Ser homem, plenamente homem: eis o grande desafio. Suspeito que a velhice, o cristianismo, o franciscanismo e a teologia não sejam outra coisa que caminhos e subsídios que Deus e nós criamos para chegarmos a ser o que somos, homens. “Sê o que és”, rezava o aforismo antigo dos sábios de todas as culturas. Talvez o maior mistério depois de Deus, seja o universo e dentro do universo, o ser humano, homem e mulher.
Quem somos? Eu não sei. Apenas suspeito. De seguro, só sei que sou um ser contraditório, sapiente e simultaneamente demente; por um lado centrado em mim mesmo e por outro aberto aos outros; portador de uma dimensão sim-bólica que me faz ouvinte da Palavra que vem de todos os lados, capaz de amor e de compaixão e também portador da dimensão dia-bólica que me faz rejeitar, me enraivecer e ofender os outros.
Apesar desta união dos opostos, sinto-me tomado por uma fome de infinito e que me surpreendo como um projecto também infinito. E fico com o cor inquietum [coração inquieto] agostiniano, enquanto não repousar no Infinito.
Cada vez mais me convenço de que o supremo imperativo ético é tratar humanamente os humanos. Tratá-los humanamente implica aceitar a condição humana ambígua e por isso ser paciente e compassivo com as dimensões sombrias e também ser solidário e inspirador com as dimensões luminosas.
Esta compreensão de mim mesmo aprofundou-se e problematizou-se ainda mais, a partir de minha continuada ocupação com a nova cosmologia, a astrofísica, a nova antropologia e com as ciências da Terra, encerradas na palavra Ecologia, objecto de meus estudos já quase há 30 anos.
Ai resulta claro que o universo trabalhou 13 mil e setecentos milhões de anos, para que surgissem ordens complexas, teias de relações e sistemas de informação que permitissem a vida e como expressão maior da vida, a consciência reflexa. Para que ela fosse possível, ocorreu um subtil equilíbrio de todas as energias e de todos movimentos evolucionários. Caso contrário, não estaríamos aqui para celebrar esta festa.
O universo como que pressentia a nossa irrupção lá na frente e se organizou de tal forma que finalmente pudesse surgir este ser raro que sou eu e que somos cada um de nós. Em cada um de nós, culmina o universo por nós conhecido. Através de nossa consciência o universo e a Terra se pensam a si mesmos. Por nosso amor e nosso enternecimento as coisas todas se atraem como que enamoradas entre si.
Quem somos? Como já o acenei anteriormente, talvez o espelho no qual Deus mesmo quer olhar-se a si mesmo. Num momento de sua superabundância, criou alguém fora de si, diferente, uma alteridade consciente para poder comunicar-se a ela em amor, em entendimento e em ternura. Nós somos frutos desta auto-comunicação divina. Numa só palavra: somos Deus por participação. E nos criou para que pudéssemos corresponder ao seu amor. Pudéssemos amar também a Deus. Talvez a maior contribuição de Duns Scotus, o génio medieval da teologia franciscana, foi ter entendido o propósito supremo da emergência do ser humano na criação: Deus quis que alguém fora de Deus pudesse amar a Deus como Deus se ama. Para isso projectou a santa humanidade de Jesus. Para que pudesse amar a Deus divinamente, o elevou ao nível divino. Então pode, sendo homem, amar a Deus como Deus se ama. E ao dizer isso, mais não digo porque ficaria aquém do que disse.
3. Conclusão: a Deus
a última palavra.
Vejam aonde cheguei: sou velho, cristão, franciscano, teólogo, homem e por fim, por participação, Deus. E Deus junto com vocês todos. É isso loucura ou a suprema descoberta? Todos os místicos de todos os tempos, do Oriente e do Ocidente, testemunham: somos chamados a fazer uma experiência de não-dualidade. Não simplesmente o Tao e o Mundo ou Deus e a Criação, mas o Tao no mundo e com o mundo, Deus na Criação e com a Criação. E chamaram a isso de experiência de bem-aventurança, de Satori, de Nirvana, de Graça e de união mística ou na expressão de São João da Cruz: “da alma amada no Amado transformada”. É a suprema Sabedoria.
Nesta altura de minha vida, sempre me voltam à mente, quase obsessivamente as duas questões fundamentais que São Francisco, meu pai espiritual, sempre colocava para si mesmo em forma de oração: “Senhor, quem sois Vós e quem sou eu? Vós o Altíssimo Senhor do céu e da Terra e eu o miserável vermezinho, vosso ínfimo servo”. Depois que os biólogos nos ensinaram que 4 quintos dos seres vivos são constituídos por vermes nematóides (vermes cilíndricos), aqueles que mantém a terra sempre fofa e apta para produzir vida é um privilégio cósmico sermos vermes, mesmo miseráveis.
As duas perguntas são suspiros da alma e não têm, na verdade, nenhuma resposta porque tanto Deus quanto nós somos mistério. Por isso as perguntas sempre retornam como num ritornelo. Bem sentenciava um filósofo que no final da vida virou místico (Witgenstein): “sobre o que não podemos falar, devemos calar”. Assim todo discurso religioso é convidado a retirar-se para o nobre silêncio ou para a silenciosa reverência.
Suspeito que nosso conhecimento de Deus possui a estrutura da saudade. Esta é uma presença e uma ausência. A presença na memória e no coração e uma ausência nos sentidos. Trata-se, pois, de uma presença ausente ou de uma ausência presente. Toda saudade nos produz uma noble tristesse, uma alegria num transfundo de tristeza e uma tristeza aliviada pela alegria.
A única fala permitida porque não quer definir nada apenas acenar e sugerir, seja a da poesia. Ela guarda a saudade de Deus e respeita o silêncio, o silêncio diante de uma absoluta presença, inexprimível por palavras.
É neste espírito que, numa noite atormentada, numa espécie de luta entre Javé e Jacob, escrevi:
Sinto em mim um grande vazio
Tão grande, do tamanho de Deus.
Nem o Amazonas que é dos rios o rio
Pode enchê-lo com os afluentes seus.
Tento, intento e de novo tento
Sanar esta chaga que mata.
Quem pode, qual é o portento
Que estanca esta veia ou a ata?
Pode o finito conter o Infinito
Sem ficar louco ou adoecer?
Não pode. Por isso, eu grito
Contra esse morrer sem morrer.
Implode o Infinito no finito!
O vazio é Deus no meu ser!
Leonardo Boff, theologus peregrinus et peccator [= teólogo peregrino e pecador]
Petrópolis 14 de Dezembro 2008. |
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IGREJA /SOCIEDADE
O D. Hélder que eu conheci
Testemunho de Frei Betto, Teólogo
(Com vénia à Revista Fórum)
De uma carta, recém-divulgada, de Dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda e Recife, datada de 27/28 de Maio de 1969 e endereçada a seus amigos e amigas, a quem chamava de “família mecejanense” (Mecejana é o distrito de Fortaleza no qual ele nasceu): De repente, às 13h30min me chega o boato de que o padre António Henrique havia sido assassinado. Procura daqui, procura dali, ele foi identificado no necrotério de Santo Amaro, onde dera entrada como cadáver desconhecido. Estaria com sinais de sevícias incríveis: três balas na cabeça, uma instalada na garganta, sinais evidentes de que foi amarrado pelos braços e pelo pescoço, e arrastado... 28 anos de idade, três anos de sacerdote. Crime: trabalhar com estudantes e ser da linha do Arcebispo.
Coube-me procurar os velhos pais e dar-lhes a notícia terrível. No necrotério – onde ficamos até 19h, quando o cadáver foi liberado pelos médicos legistas – vivi uma avant-première de minha própria morte. Burburinho na sala. Gente chegando de todos os cantos. A imprensa escrita, falada, teve ordem de ignorar o acontecimento, mas demos avisos a todas as paróquias, por telefone e recados pessoais. Levei-o para a matriz do Espinheiro. (...) Na primeira concelebração, às 21h, tínhamos mais de 40 sacerdotes, e a igreja, enorme, estava transbordante de jovens.
Dei uma tríplice palavra:
· Palavra de fé, aos velhos Pais, esmagados de dor;
· Palavra de esperança aos jovens com quem ele trabalhava; assumi o compromisso de que eles não ficariam órfãos;
· Aos fiéis que enchiam o templo – mais uma vez a imprensa escrita e falada tinha ordem para recusar até o aviso pago de falecimento - pedi que ajudassem a espalhar que às 9h haverá nova concelebração, saindo o enterro, às 10h, para o cemitério da Várzea, que é o cemitério da família.
Li, então, a nota, assinada pelo Governo Colegiado, nota que a imprensa não divulgará, mas que nós tentaremos espalhar por toda a cidade, pelo País e... pelo Mundo.
Faz, pois, 40 anos que padre Henrique Pereira Neto foi assassinado no Recife.
O coordenador
Conheci Dom Hélder Câmara - cujo centenário de nascimento ele teria comemorado no último dia 2 de Fevereiro 2009 - quando ele era bispo auxiliar do Rio de Janeiro, nos anos 60. Homem de muitos talentos e tarefas, ocupava-se também da Acção Católica, movimento que agrupava o chamado A, E, I, O e U (JAC, JEC, JIC, JOC e JUC). Eu participava da direção nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Dom Hélder nos coordenava, cuidava de nos matricular numa escola, com bolsa de estudos, e de nos assegurar recursos para o trabalho, como passagens aéreas que possibilitavam aos dirigentes do movimento viajar por todo o país. Graças ao prestígio dele, as portas se abriam.
Embora ele nos assegurasse o “atacado”, às vezes padecíamos no “varejo”. Morávamos em Laranjeiras - 12 rapazes da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica) -, num apartamento de três quartos, verdadeira república da pindaíba! Ali, com frequência se hospedavam os líderes estudantis Betinho, de Minas, e José Serra, de São Paulo. Tínhamos recursos para viajar e escritório bem montado na rua Miguel Lemos, em Copacabana, mas nem sempre para a voracidade de nosso apetite juvenil...
Na época, o governo Kennedy, preocupado com a penetração do comunismo na América Latina, criou o programa chamado Aliança para o Progresso: doava leite e queijo, em caixas de papelão, para os pobres do Brasil. Parte da cota da Igreja ia para a nossa alimentação. Como as caixas ficavam meses no porto, humedeciam e o alimento se deteriorava. Tivemos sérios problemas de saúde por comer o queijo do Kennedy e beber o leite da Jaqueline...
O empreendedor
Além dos anos em que fiquei na direção da Acção Católica (1962-1964), convivi com Dom Hélder no último período da vida dele; anualmente eu participava, no Recife, da Semana Teológica promovida pelo grupo Igreja Nova. Nunca deixava de visitá-lo na igreja das Fronteiras, onde residia.
Homem pequeno e frágil, Dom Hélder tinha características curiosas: quase não se alimentava. Todos diziam que ele comia feito passarinho. Também dormia pouco, tinha um horário estranho de sono: deitava-se por volta de onze, levantava às duas da madrugada, sentava numa cadeira de balanço e se entregava à oração. Era, como ele dizia, seu “momento de vigília”. Rezava até as quatro, dormia mais uma hora, hora e meia, e levantava para celebrar missa e começar seu dia.
Nos anos 60, Dom Hélder encabeçava, no Rio, a Cruzada São Sebastião, projecto de desfavelização criado por ele. Malgrado a meritória intenção de propiciar aos mais pobres condições dignas de moradia, não deu certo: sem renda suficiente ou desempregados, moradores de favela eram transferidos para um apartamento que tratavam de subalugar; ou arrancavam a banheira, a pia, a torneira, para fazer dinheiro e comer.
Como Dom Hélder obtinha recursos? Havia um programa de grande sucesso na TV, no qual sorteava-se uma pessoa da plateia, colocava-a numa cabine fechada, a partir da qual a escolhida não conseguia enxergar nada do que se passava fora. O auditório, repleto de prendas: carro, televisor, liquidificador, geladeira, relógio, pinça, cortador de unhas... uma porção de objectos. Dom Hélder recebeu convite do patrocinador do programa para perguntar ao seu Joaquim, operário sorteado: “O senhor troca isto por aquilo?” Joaquim não tinha ideia do que estava sendo proposto, cabia-lhe responder sim ou não. Isso umas sete ou oito vezes, até que, cessada a pergunta, o objecto da última troca era o prémio merecido. O auditório, na torcida pelo operário, lamentou quando seu Joaquim deixou de ganhar um carro, por preferir, jogando no escuro, um abridor de latas. O apresentador lamentou ao entregar-lhe o prémio: “O senhor teve a oportunidade de ganhar este carro ou aquela geladeira, mas insistiu no abridor de latas... Queremos agradecer, em nome de nossos patrocinadores, a presença de Dom Hélder; e aqui vai um cheque para as obras da Cruzada São Sebastião”. Dom Hélder, génio da comunicação, virou-se e propôs: “Seu Joaquim, você troca isto (o cheque) por este abridor?” E entregou o cheque ao operário!
No dia seguinte, na sede da Acção Católica, comentámos com ele: “Mas Dom Hélder, o senhor abriu mão do dinheiro da Cruzada, uma contribuição importante! Como vai obter igual valor?” Ele retrucou: “Ah... vocês não têm ideia: o que perdi no cheque ganhei em publicidade. Maiores recursos virão”.
O articulador
Homem de mil actividades, dotado de profundo senso crítico, Dom Hélder tinha o dom de dialogar com qualquer pessoa, de qualquer nível. Figura muito carismática, difícil alguém considerá-lo inimigo, depois de falar pessoalmente com ele, ainda que continuasse a discordar de suas ideias. Espírito gregário, onde Dom Hélder chegasse juntava gente em torno dele. Foi quem criou a CNBB, inventando as conferências episcopais, e o CELAM, o conselho dos bispos da América Latina. Todos esses organismos que, de certa forma, descentralizam a Igreja romana, saíram da cabeça do bispo que, para azar dos militares golpistas, virou arcebispo exactamente em 1964. O papa o nomeou para São Luís e, dias depois, o transferiu para a arquidiocese de Olinda e Recife, na qual ele permaneceu até falecer.
O agitador
Dom Hélder despontou, em 1972, como forte candidato ao Prémio Nobel da Paz. Hoje sabemos que não ganhou o prémio por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua imagem exterior, caso ele fosse laureado. Mesmo dentro do Brasil, Dom Hélder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o “arcebispo vermelho” falava era reproduzido ou noticiado pelos media de nosso país. A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prémio que deveria, primeiro, ser dado ao papa...
Nos anos 70, ele era a única figura brasileira a competir, fora do país, com o prestígio do Pelé. Aonde ia, lotava auditórios. Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num auditório em que cabiam 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo o para o Palácio dos Desportos, que comporta 12 mil.
Um dia, o governo militar, preocupado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo lhe acontecesse e a culpa recaísse sobre a ditadura, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: “Dom Hélder, o governo teme que algum maluco ameace o senhor e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos aqui para lhe oferecer segurança”. Dom Hélder reagiu: “Não preciso de vocês, já tenho quem cuide de minha segurança”. “Mas, Dom Hélder, o senhor não pode ter um esquema privado. Todos que têm serviço de segurança precisam registá-lo na Polícia Federal. Esta equipa precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança”. Dom Hélder retrucou: “Podem anotar os nomes: são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
O denunciador
Dom Hélder morava numa casa modesta ao lado da igreja das Fronteiras. Frequentemente, as pessoas que tocavam a campainha eram atendidas pelo próprio arcebispo. Certa noite, a polícia fez uma batida numa favela do Recife, em busca do chefe do tráfico de drogas. Confundiu um operário com o homem procurado. Levou-o para a delegacia e passou a torturá-lo. A lógica da polícia era esta: se o cara apanha e não fala é porque é importante, treinado para guardar segredos. Vizinhos e a família, desesperados, ficaram em volta da delegacia ouvindo os gritos do homem. Até que alguém teve a ideia de sugerir que a esposa do operário recorresse a Dom Hélder. A mulher bateu na igreja das Fronteiras: “Dom Hélder, pelo amor de Deus, vem comigo porque lá na delegacia do bairro estão matando meu marido de pancada”. O prelado acompanhou-a. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: “Eminência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?” Dom Hélder explicou: “Doutor, vim aqui, porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano”. “Seu irmão?!” “É, fulano de tal – deu o nome – é meu irmão”. “Mas, Dom Hélder – reagiu o delegado -, o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!”. Dom Hélder aproximou-se do ouvido do polícia e sussurrou: “É que somos irmãos só por parte de Pai”. “Ah, entendi, entendi”. E libertou o homem.
Essas, as tiradas de Dom Hélder, capaz de jogadas proféticas que provocavam certa ciumeira entre os bispos. Ele tinha muitos aliados no episcopado, mas também quem invejasse seu prestígio mundial.
Durante o tempo em que estive na prisão, Dom Hélder moveu intensa campanha no exterior de denúncia da ditadura brasileira. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou criminalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Hélder era financiado por Cuba e Moscovo. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, amigo do governador e de Dom Hélder. Não foi capaz de tomar uma posição firme na contenda. Depois a denúncia caiu no vazio, não havia provas, apenas recortes de jornais.
Incomodava ao governo ver desmoralizada pelo discurso de Dom Hélder, a imagem que a ditadura queria projectar do Brasil no exterior, negando torturas e assassinatos. Ele sempre ressaltava que, se o governo brasileiro quisesse provar que ele mentia, então abrisse as portas do país, para que comissões internacionais de direitos humanos viessem investigar, como fez a ditadura da Grécia. A ditadura grega era militar, mas abriu as portas para a investigação, o que o governo brasileiro, evidentemente, nunca fez.
Se nós, hoje, na Igreja, falamos de direitos humanos, especificamente a Igreja do Brasil, que tem uma pauta exemplar de defesa desses direitos, apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Hélder. Nenhum episcopado do mundo tem agenda semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc. Isso é realmente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pelo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.
Dom Hélder sempre dizia: “Quando falo dos famintos, todos me chamam de cristão; quando falo das causas da fome, me chamam de comunista”. Isso demonstra bem o incómodo que causava. Não era um bispo que falava apenas de quem passa fome, mas também das causas da fome e da miséria, o que incomodava o sistema que se recusa a tratar as causas da miséria, porque são parte da sua lógica. |
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Irmã Dorothy, assassinada há quatro anos
Deu a vida pela causa das famílias
de pequenos agricultores da Amazónia
A bela homilia do Bispo do Xingu, Erwin Krautler, um dos três bispos ameaçados de morte no Pará (Brasil), por enfrentarem o crime organizado na região, durante a Eucaristia celebrada por ocasião do quarto aniversário da morte /nova vida da Irmã Dorothy Stang, da Congregação de Notre Dame de Namur, na Igreja Matriz de Santa Luzia, dia 12 de Fevereiro 2009
Irmãs e irmãos caríssimos em Nosso Senhor Jesus Cristo, meu bom Povo de Deus de Anapu, da Transamazónica e do Xingu,
Quatro anos passaram, desde o assassinato de Irmã Dorothy. Morreu porque não estava de acordo que a Amazónia fosse loteada entre alguns grileiros. Sonhou sempre com uma Amazónia, terra de todos os povos que aqui vivem, terra herdada das gerações passadas indígenas e ribeirinhas, terra confiada a essa e às futuras gerações para que possam viver e sobreviver sem destruí-la. Nunca foi contra o “desenvolvimento“ como alguns queriam incriminá-la, mas queria um desenvolvimento sustentável.
Ela entendeu esse termo como indicador de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente responsável. Hoje, já estamos mais cautelosos com o termo “desenvolvimento sustentável“, pois os seguidores do neoliberalismo já se apoderaram do conceito e usam-no como “fachada“ para encobrir a verdadeira intenção. Continuam acumulando e querem sustentar essa ambição através de sempre novas formas científicas e tecnológicas de exploração.
Desenvolvimento tem para eles o sentido de sustentar a ânsia, a sede insaciável de riquezas. “Sustentável“ assumiu paulatinamente a conotação de salvaguardar a exploração sem sequer se lembrar dos primeiros habitantes da Amazónia, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e seus direitos à educação, saúde, segurança, habitação, transporte.
Dorothy entendeu desenvolvimento sustentável no sentido de “convivência“ com a natureza que Deus criou, de viver dela e com ela, cuidando dela e zelando por ela como se cuida do próprio lar em que vive e convive a família. Ela sonhou com a comunidade que se sustenta nessa Amazónia, usufruindo do que ela oferece sem destruí-la, sem arrasá-la. Amazónia é uma região única no mundo e por isso merece todo o carinho. Por milénios e milênios o equilíbrio entre selvas e águas ficou intacto, a floresta deu seus frutos e sua caça, as águas os peixes e mariscos. Até que um dia a ambição de dominar e subjugar a natureza e a ganância subverteram os homens e os fizeram perder a vergonha. Daqui em diante não foi mais o zelo e o cuidado, o amor pela terra e o carinho pelas futuras gerações que moveram os corações e estabeleceram as normas de convivência, mas é o lucro imediato, sem dó nem piedade, sem cuidado nem cautela, sem remorso ou arrependimento, que dita as regras. Violentaram a mãe-terra e estupraram a mata-virgem.
Não faltam vozes que denunciam os crimes e acusam os criminosos. Não faltam vozes que defendem a terra e a selva, os rios e os lagos como lar dos povos da floresta. Mas os criminosos não aceitam o “oráculo do Senhor“ de quem fala em nome do Deus Criador. Matam e ameaçam matar a quem se opõe à sua ganância, a quem sonha com uma Amazónia, lar de todos os povos, de comunidades que sabem viver em harmonia com o mundo que Deus criou e nos confiou.
Dorothy, a Irmã, morreu, dando a sua vida pela causa das famílias de pequenos agricultores, seus irmãos, suas irmãs. Dema, pai de família, morreu defendendo a região do Xingu como lar de sua mulher, suas filhas e seus filhos. Ambos tornaram-se mártires da Amazónia pela Amazónia, do Xingu pelo Xingu.
Mas o sangue derramado engendrou uma luta que nunca mais parou. Em vez de deixar-se amedrontar pelos que causam a morte, em lugar de deixar-se intimidar e bater em retirada, o povo se organiza e conquista seus direitos. Sepultamos os mártires, mas o grito por uma sociedade justa e pela defesa do meio-ambiente tornou-se um brado ensurdecedor. A morte gerou vida, trouxe novo alento para a luta. “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só. Mas, se morre, produz muito fruto“ (Jo 12,24). Surgiram e surgem cada vez mais mulheres e homens nesta Amazónia que, de cara erguida, enfrentam os inimigos da Amazónia. Os emissários dos grandes projectos não conseguem convencê-los nem cooptá-los, pois seus argumentos são inbatíveis. Indígenas, ribeirinhos, povo do campo e da cidade, mulheres e homens, jovens e idosos vão a luta pela vida contra a morte, pela Amazónia contra a sua devastação.
O que São Paulo escreveu aos Coríntios, repetimos hoje na Amazónia: “Somos amaldiçoados e bendizemos“ (1 Cor 4,12), O que os inimigos podem fazer? Sua maldição não surte efeito, pois nossa resposta é “bênção“, “bênção“ para a Amazónia agredida, “bênção“ contra a praga da destruição, do sacrifício inescrupuloso do Xingu, “graça“ contra a desgraça dos grandes projectos, “vida“ contra a morte que querem decretar para o rio e seus povos.
Também repetimos com São Paulo: “Somos perseguidos e suportamos“ (1 Cor 4,12). A perseguição foi e é a logomarca do profetismo, das mulheres e dos homens que acreditam e defendem um mundo diferente. Quem hoje grita “Um outro mundo é possível“ e dá testemunho desta sua convicção, agride o sistema estabelecido e prega a morte de estruturas que põem em risco todo o planeta. E sabemos que esse sistema se vinga e persegue e tantas vezes mata.
Se a nossa Igreja deixar de ser perseguida é sinal de que ela se acomodou e renunciou à sua vocação profética. Proclamar que tudo já é “paz e amor“ e dar-se conta de que o sistema já não reage mais deixando de perseguir, é sinal de que a Igreja perdeu sua audácia, sua intrepidez, sua ousadia, sua coragem, sua paixão pela causa do Reino, sua “parrhesia“ (cfr. At 4,13; 4,29; 4,31; 9,27; 13,46; 14,3; 19,8; 26,26; 28,31).
“Suportamos“ porque acreditamos que “outro mundo é possível“. E esse “outro mundo“ que “é possível“ coincide para nós com o Reino de Deus, é a realização do sonho de Jesus, é o anúncio e o testemunho da Boa Nova do amor de Deus, da fraternidade, da solidariedade para toda a família humana. “Enviada por Cristo“, a Igreja tem por missão “manifestar e a comunicar a todos os seres humanos e povos o amor de Deus“ (AG 10).
E ainda mais repetimos com São Paulo: “Somos caluniados e consolamos.“ (1 Cor 4,13). A calúnia, a difamação foi e continua sendo o método empregado pelos inimigos do Reino de Deus, do “outro mundo possível“. Inúmeras foram as calúnias que antecederam a morte de Irmã Dorothy. As mensageiras, os mensageiros da Boa Nova são criminalizados, até demonizados. Nada de novo! O próprio Jesus foi acusado de ser “louco“ (Mc 3,21) e de agir “pelo poder de Belzebu, o chefe dos demónios“ (Lc 11,15). Mas é exactamente nesta fase, em que gritam contra as discípulas e discípulos de Jesus, quando escarram em nosso rosto e usam de todos os meios para conspurcar nosso bom nome, cobrindo-nos de injúrias, que sentimos, como nunca, a presença de Deus e ouvimos sua voz: “Eles lutarão contra ti, mas nada poderão contra ti, porque eu estou contigo – oráculo do Senhor – para te libertar“ (Jr 1,19).
É nesta noite escura que o próprio Jesus dirige sua palavra a Paulo apóstolo: “Não temas. Continua a falar e não te cales. Eu estou contigo...“ (At 18,9). A nossa fé inquebrantável na presença de Deus é nosso consolo e ao mesmo o motivo de consolarmo-nos uns aos outros. Esta é a nossa mística. Só Deus mesmo consola e na medida em que nos deixarmos inspirar por seu Espírito consolamos também os oprimidos, estendendo-lhes as mãos e abrindo-lhes o coração. E quando falamos em oprimidos, “já não se trata simplesmente do fenómeno da exploração e opressão, mas de algo novo: da exclusão social. (...) já não se está abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está de fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis” (DA 65).
Somos cidadãs e cidadãos do Reino, do “outro mundo possível“ em que acreditamos. Esse direito à nossa fé ilimitada e irredutível, conquistado pelo Sangue do Senhor, ninguém jamais será capaz de arrancar-nos das mãos e do coração. Amém. |
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