Textos do
Jornal Fraternizar

Edição nº 173 de Abril/Junho 2009

DESTAQUE 1

Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sim ou não?

Pe. A. Vaz Pinto foi um desastre no “Prós e Contras”

 

Para já, só se fala do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Do casamento canónico, ninguém se atreve a falar. Mas este não pode ser dissociado daquele. Sob pena de a discriminação prosseguir, mesmo depois da provável aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Porque o casamento canónico vale também como casamento civil. Assim o diz a Concordata, desde 1940. Ela não deveria existir. Mas existe. Então porque há-de ficar de fora o direito ao casamento canónico para pessoas do mesmo sexo? A hierarquia da Igreja pode teimar em ser contra, quando deveria ser a pioneira no pôr fim à discriminação actualmente reinante. Mas, ao ser contra, ela impõe-se ao Estado e as pessoas que insistirem no casamento canónico não podem ser do mesmo sexo, quando, afinal, o casamento canónico é simultaneamente casamento civil. Em que ficamos? O Estado vai meter o rabo entre as pernas e ceder à hierarquia católica?

 

O Pe. António Vaz Pinto, jesuíta, saiu-se mal, muito mal, no programa da RTP 1, Prós e Contras, do dia 16 de Fevereiro 2009. O programa deba­teu a questão do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, sim ou não. Ele ficou do lado do não. E a apresen­tadora do programa, a jornalista Fáti­ma Campos Ferreira, ainda por cima fez questão de dizer, na abertura, sem ter sido, de imediato, desmentida pelo próprio, que ele estava ali a represen­tar a Igreja católica. As outras Igrejas, da área protestante, maioritárias nou­tros países da Europa, ainda que, pelo menos para já, minoritárias em Portu­gal, não foram tidas nem achadas. Co­mo a dizer que só as maiorias contam. Ai das minorias. Inclusive, das mino­rias fecundamente dissidentes dentro da Igreja maioritária. Simplesmente não existem. Podem andar, como efe­cti­va­mente andam, carregadas de fu­turo, o mesmo é dizer, carregadas de razão, mas ficam sempre, ou quase sem­pre, na borda do prato. Fermento na massa? Sal da terra? Luz do mun­do? Sentinela na cidade? Deixem-se disso. O que conta e o que importa são as maiorias, as massas, a Treva, a Alienação.

Esta é a perversa e demente lógi­ca que continua aí subjacente à cha­ma­da democracia representativa. Ain­da está para chegar o tempo em que a Humanidade caia na conta desta per­­versão. Infelizmente, não foi já o ca­so deste debate, na RTP 1. As Igrejas minoritárias em Portugal não foram ao debate. Por falta de convite da RTP 1. E teriam certamente algo de substanti­vo, a dizer sobre o as­sun­to. Muito me­nos, foram ao debate, também por falta de convite, as mino­rias dissidentes dentro da própria Igre­ja católica, sem dúvida, com algo de ainda mais subs­tan­tivo a dizer sobre a matéria em de­ba­te. Todos saímos a perder com esta ausência. Também a Igreja católica que deveria ter sido a primeira a “exi­gir” que as outras Igrejas também fos­sem tidas e achadas em matéria de tanta monta.

O Pe. António Vaz Pinto não disse uma palavra a este propósito. E com o seu silêncio, também deixou passar em claro o equívoco da apresentadora do programa. Na verdade, ele não re­presentava ali a Igreja católica. Repre­sen­tava-se a si próprio e, porventura, a quantas, quantos se revêem nas suas posições sobre esta matéria. Nada mais. Não me representou a mim, por exemplo. E eu sou Igreja católica quan­to ele, inclusive presbítero quanto ele. Não sou jesuíta, como ele. Nem sou pá­ro­co, como a maioria dos presbíte­ros católicos hoje é. Mas sou Igreja ca­tólica e seu presbítero, na Igreja do Porto, com a profissão /missão de jor­nal­ista, hoje, muito mais abrangente que a missão /profissão de pároco. E é nesta minha condição de presbítero da Igreja católica, que aqui digo que o Pe. António Vaz Pinto saiu-se muito mal no programa e deixou ficar muito mal a Igreja católica que pareceu que­rer ali representar.

Sobre questão tão candente e fra­ctu­rante, devido sobretudo aos séculos e séculos de Obscurantismo e de Mo­ra­lismo imoral católico romano contra os homossexuais e as lésbicas, que, para nossa vergonha católica, acaba­ram por marcar negativamente a cul­tura ambiente e a sociedade em geral, o Pe. Vaz Pinto ainda chorou algumas lágrimas de crocodilo, mas apenas isso, lágrimas de crocodilo. Todo o seu ar no programa – para mais, coube-lhe a primeira palavra, logo a abrir! – foi agressivo, nervoso, exaltado, farisai­co, próprio de quem pensa que tem a virtude e a verdade do seu lado. Gesticulou, gesticulou desabridamente e falou num tom não menos desabrido, próprio de alguém que, entretanto, se sente acossado nas suas retrógradas e (i)moralistas posições que, sobre o assunto, se sente obrigado a ter de defender perante a sociedade em ge­ral, sob pena de vir a ter de se assumir publicamente como dissidente dentro da Igreja, com todas as duras conse­qu­ên­cias que esse estatuto acarreta, e muitas são, como eu sei por um saber de experiência feito, ao longo de mui­tos anos.

Melhor fora que ele não tivesse ido ao programa. De resto, o debate foi, desde o início, estupidamente re­du­zido a pronunciar-se, e com que fundamentos, sobre o direito, sim ou não, ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, nas mesmíssimas cir­cunstâncias em que ele já existe entre pessoas de sexo diferente. A presença do Pe. A. Vaz Pinto no programa ad­qui­riria pleno sentido, se também esti­vesse em debate o sacramento do matrimónio, o casamento-sacramento entre pessoas do mesmo sexo na Igre­ja e pela Igreja. Mas quem pensou o programa já nem coragem teve de incluir esta dimensão da questão. Auto­censurou-se, tamanho é o medo que ainda há na sociedade civil da hierar­quia católica, como se toda ela fosse um papão. E tinha tido todo o sentido que essa dimensão não ficasse de fora do debate, dado que a Igreja católica é uma instituição pública e, inclusive, mantém, desde 1940, com o Estado português uma Concordata, onde se inclui o chamado casamento canónico que é simultaneamente eclesial e civil.

Ora, pessoas do mesmo sexo que queiram casar canonicamente (por si­nal, ninguém deveria querer, porque é uma promiscuidade institucional de todo o tamanho absolutamente indi­gna), tal e qual como já o fazem as pes­soas heterossexuais que quise­rem, nunca o poderão fazer, nem que o casamento civil entre pessoas do mes­mo sexo venha a ser, como espero, reconhecido pelo Estado. A Igreja cató­lica romana continuará a discriminar as pessoas do mesmo sexo que quei­ram casar canonicamente. E, com ela, também o Estado português, sempre que dois cidadãos portugueses do mes­mo sexo, elas ou eles, quiserem casar canonicamente. Para que a dis­cri­minação fosse completamente abo­lida, também o casamento canónico teria de ser objecto de radicais mexi­das na sua actual formulação. E, caso a Igreja católica não cedesse na sua posição de princípio, o Estado deveria, pura e simplesmente, romper com a Concordata. Porque, se o não fizer, nem que o casamento civil entre pes­so­as do mesmo sexo venha a ser reco­nhe­cido por lei e praticado normal­mente, nunca duas pessoas do mesmo sexo, se quiserem casar civilmente por meio do casamento canónico, o pode­rão fazer.

É a Cristandade ainda em vigor no século XXI e já lá vão tantos anos depois do Concílio Vaticano II que aca­bou, quis acabar, com ela. E, infelizmente, será assim ainda por muitos mais anos. A menos que o Estado por­tuguês se dê conta da contradição e, pura e simplesmente, rompa com a Concordata. De contrário, a Igreja ca­tó­­lica impõe o seu (i)moralismo ao Es­tado, pelo menos, no chamado ca­sa­mento canónico.

Na sua argumenta­ção, o Pe. A. Vaz Pinto foi um desastre teológico completo, pelo menos, no que tem a ver com a Teologia de Jesus, o de Na­zaré. Imaginem que ele ainda se atre­veu, neste início do terceiro milénio e do século XXI, a lembrar que há textos da Bíblia, nos quais, em seu entender, a homossexualidade é considerada uma aberração, um pecado horrendo, uma monstruosidade. Estava certamen­te a pensar no que lá se diz sobre as cidades de Sodoma e de Gomorra e no livro Levítico. Chegou a referir ex­pres­samente certas cartas de S. Paulo. É preciso ter lata. Quanta água já correu debaixo das pontes, desde então até hoje. E o Pe. Vaz Pinto ainda não saiu dos tempos em que foi escrito o li­vro do Génesis e o Levítico, nem dos tempos de S. Paulo. É o que se chama crasso e bárbaro fundamentalismo bí­bli­co.

Parece desconhecer por comple­to que a chamada Revelação bíblica é, sobretudo, revelação da Pedagogia de Deus na sua relação com a Humanidade e desta com Ele. Não é um dita­do de normas de conduta, válidas para todo o sempre, como se diz ofici­al­mente do Alcorão, livro mais bárba­ro! O objectivo último da Revelação bí­blica é ajudar maieuticamente a formar liberdades /maioridades humanas e cons­ciências críticas que, nas múlti­plas circunstâncias em que a vida his­tó­rica de cada uma, cada um de nós se processa, sejamos capazes de fa­zer as melhores opções, sem termos de ir a correr perguntar a uma Lei ou a um Tutor /Pedagogo o que fazer.

Aliás, se a Bíblia não for para aju­dar maieuticamente as pessoas e os po­vos a chegar à liberdade /maiorida­de, é melhor rasgá-la ou queimá-la, porque a sua leitura só prejudicará quem a fizer. Está visto que ninguém, muito menos o Estado e muito menos a igreja que se reivindica de Jesus e do Deus de Jesus, tem o direito de dis­criminar pessoas, pelo facto de elas serem homossexuais /lésbicas. São pessoas iguais às heterossexuais, com os mesmos direitos e deveres. Melhor ainda: Todas, heterossexuais e homos­se­xuais, indistintamente, somos pes­soas humanas. Ponto final. O que não for assim já é indecente discriminação. Um crime gravíssimo, na linguagem se­cular, que é a do Estado. Um Pecado mortal gravíssimo, na linguagem eclesial.

Deus, Ele próprio, fez-nos heteros­se­xuais e homossexuais, em radical igualdade. Não separe, pois, o Poder o que Deus uniu. O que não for assim é crime de lesa-humanidade e ocasião ou mesmo causa de o Nome de Deus ser blasfemado. A hierarquia da Igreja católica e das múltiplas Igrejas protestantes pode correr e saltar, mas será sempre uma hierarquia em estado de pecado mortal, se discriminar mem­bros seus, por serem homossexuais /lés­bicas. Ora, se Deus nos fez heteros­se­xuais e homossexuais, quem é a hie­­rar­quia da Igreja, das Igrejas, para ir contra Deus?

Era por estas águas teológicas que o Pe. A. Vaz Pinto deveria ter na­vegado no programa onde esteve em representação (?) da Igreja católica. Se o tivesse feito, no dia seguinte ao debate, já estaria excomungado pela hi­erarquia e pelo seu superior da Com­pa­nhia de Jesus. Mas estaria em comunhão viva e intensa com toda a Humanidade, indistintamente, os hete­ros­sexuais e os homossexuais, fora da qual não há salvação; e fora da qual invocar o nome de Deus é blasfemar. Assim, graças à sua (i)moralista pres­ta­ção no programa, continua a ter o aval da hierarquia, mas auto-excluiu-se da Humanidade, no seu todo, a­que­la mesma que Deus Criador fez a­contecer no decurso da Evolução, co­mo Humanidade simultaneamente he­te­rossexual e homossexual.


Entrevista conduzida por Daniel Gabarró i Berbegal (Valência-Espanha) para o Jornal Fraternizar

Irmãozinho, Emílio de Jesus, pioneiro

da causa gay no interior da Igreja católica em Espanha

Homossexual pela graça de Deus!

O Sistema eclesiástico é cruel e inumano connosco,

os homossexuais e as lésbicas

 

Tem os olhos claros e bri­lhantes, cheios de curio­si­dade e de inocência, pró­prias de um menino, apesar dos seus 71 anos de idade. Re­cebe-me num pe­queno a­par­tamento de Valencia, aco­­lhedor e cheio de arqui­vos onde guarda centenas de cartas e de documentos que fariam as delícias de qual­quer histo­riador da cau­sa gay. Tenho a sensação de estar numa eremita, ape­sar de estar no centro da ci­dade. Na verdade, é uma ere­mita urbana das muitas que estão aí a proliferar, nes­tes nossos dias. A ú­ni­ca divisão independente é um ora­tório. Olho-o nos o­lhos e compreendo a impor­tân­cia que tem dar a conhe­cer o heróico trabalho de uma pessoa que já leva mais de 40 anos da sua vida con­sa­grada, dedicada à causa gay. Também e sobretudo, no interior da I­gre­ja católi­ca. A sua história tem algo de incrível, mas as centenas de cartas que guarda no a­partamento-eremita, todas devidamente classificadas, são a prova de que tudo o que me conta é re­al. Come­ça por me dizer, olhos nos olhos, quando eu quis sa­ber como tudo aconteceu:

 

Emílio (E): O movimento gay em Espanha surgiu connosco. Fomos os pioneiros. Como movimento, nascemos em 1966. Protagonizamo-lo, Antonio M. M. e eu, em pleno franquismo e durante os extraordinários tempos pós-concili­ares. Os homossexuais éramos perse­gui­dos pela lei que perseguia “vadios e malcomportados”. O que iniciámos, recebeu o nome de Fraternidade Cristã da Amizade, dado por mim, enquanto na sua dimensão laica, levada para a frente por Antonio M. M. recebeu a de­signação de As Fraternidades da Ami­zade, simplesmente. Um serviço mais especializado como movimento de fé gay. Aquela era uma época obscura, de medo e de repressão, em Espanha. Não se tratou duma explosão momen­tâ­nea. Ambos sentíamos um profundo chamamento, uma missão pessoal trans­formada em vocação inédita e não nos atrevemos a dizer-lhe “Não”, apesar do risco e da incerteza que re­presentava. Era mais que uma opção passageira. Era uma aventura que cor­respondia ao chamamento dos nossos corações, sob pena de cairmos no Na­da e no desespero como tantos outros /tantas outras tinham já caído. E eu desejava viver a plenos pulmões… Era a minha missão. Ou assim, ou nunca mais seria eu próprio.

 

P. Queres dizer que se não tivesses dedicado a tua vida à população GLBT [Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgéneros], terias sen­tido que a tua vida ca­recia de sentido?

E. Exactamente. Vivi uma adoles­cência e uma juventude cheias de sofri­mento. Mas tinha fé em Deus, em Jesus de Nazaré, e em mim próprio. A luta maior era entre a minha condição de homossexual e a minha fé, melhor, entre a minha condição de homossexual e a minha pertença à Igreja, entre o meu desejo de permanecer na Igreja cató­lica e a minha própria identidade. Vivia em paz as duas realidades dentro de mim mesmo, porém o sistema eclesiás­tico era e é cruel connosco, inumano, e, sobretudo, completamente anti-evan­gélico, uma fonte de sofrimento constante, humanamente falando; po­rém, de um altíssimo valor corredentor, evangelicamente falando, por e para nós, os perseguidos GLBT.

 

P. E em que momento des­sa introspecção deci­des passar a converter es­sa dor, essa culpa numa o­pção pelas pessoas ho­mos­sexuais?

E. Foi no decorrer de um Curso Apostólico de primeiro grau da Acção Católica Operária, dedicado à classe operária – isto era revolucionário du­rante o franquismo – no qual participei providencialmente, em 1964. Durante as conferências, nas quais, como ope­rá­rio [que verdadeiramente não era], sentia-me como alguém sem classe, ainda que espiritualmente muito bem integrado; a dada altura, a minha mão escreve, sem que mediasse uma deliberada intenção, uma frase que muda­ria a minha vida: “Eu serei o apóstolo dos meus”, uma frase dita na linguagem cultural da época. Foi a minha real con­versão. Entrou um Emílio no Curso e saiu outro completamente diferente. Tudo que eu tinha ido acumulando no meu interior sobre a causa gay, explo­diu naquele bendito dia 9 de Novembro de 1964. Até hoje. Alguém me colocou nesse dia um potentíssimo Motor no meu interior que ainda hoje ruge… Com­preendi que essa era a missão da minha vida, que não podia nem devia já mentir-me mais, como seria, se me de­dicasse a outras coisas. Só dedi­cando a minha vida aos meus irmãos /irmãs e amigos /amigas de sinal GLBT e de êxodo, me sentiria plenamente rea­lizado e a minha homossexualidade e a minha Fé seriam vividas em paz. Tudo então ganhou sentido e foi o primeiro dia de um longo caminho que ainda es­tou a percorrer hoje e que prosseguirei até ao último dia da minha vida na His­tória.

 

P. A tua vocação nasce então durante um Curso o­pe­rário, no seio da Igreja ca­tólica.

E. Isso mesmo. E permanece e permanecerá sempre dentro dela. Su­blinho que esse Curso foi “providencial” para mim, porque, se em vez de ser, por assim dizer, “um curso sobre Cris­tianismo”, fosse um “Curso de Cristan­da­de”, o meu desastre pessoal poderia ter sido completo, um verdadeiro fiasco ainda maior que a Luz que eu procu­rava. Explico-me. Os Cursos de Cristan­dade que, apesar de tudo, fizeram e fazem tanto bem, eram, na atura, tudo aquilo de que eu precisava de fugir, uma fé recaramelizada, pegajosa, sentimental e sentimentaloide, basica­mente cultual e de apostolado muito formal. Ao contrário, com as pessoas da Acção Católica Operária, homens de trabalho duro, escorreitos, de cara le­van­tada, encontrei o Cristo [Jesus] des­nu­dado, próximo, aberto, real, militan­te, que eu precisava. Nada de vestes talares, nada de beatices, de fanfarro­nices, mas Verdade e Vida, compromis­so real, efectivo, directo, ombro a ombro com os comunistas, o que havia de mais avançado da época. Esse estilo compro­metido de agir transplantei-o de algum modo para toda a luta atroz, feroz que me sobreveio depois, e sem o qual ter-me-ia sido ainda mais difícil continuar e perseverar. Não se trata de abando­nar levianamente a Igreja às primeiras dificuldades de mudança, mas perma­ne­cer dentro dela praticando jesuani­camente a desarmada “guerra de guer­rilhas”. Até que soe a hora da Verdade. Se abandonamos, não temos direito a reclamar nada. Não cortemos, pois, os ramos do mesmo tronco, por­que nos esgotaremos logo a seguir. Os grandes edifícios materiais ou espiri­tuais exigem profundos alicerces. No Curso da Acção Católica Operária, conheci o padre Carlos de Foucauld, cuja espiritualidade me fascinou e me arrebatou para sempre. Compreendi que abertamente não havia nada que se pudesse fazer dentro da Igreja ofici­al. Decidi também que, extra muros, eu desejava viver como consagrado e o faria de modo clandestino, já que as cir­cunstâncias canónicas e outras assim o exigiam. Mas quem é quem para impedir outros de viverem a sua vida, a sua vocação, e neste caso, a sua missão nova, inédita? Assim, procurei um superior hierárquico, homem abso­lu­tamente de Deus, humaníssimo e de perspectivas proféticas, e pedi-lhe que recebesse os meus votos privados de pobreza, de castidade e de obediência, e ainda um quarto voto, de consagrar toda a minha vida à libertação e evan­ge­lização de todas as pessoas gay. E ele aceitou. Foi uma Ocasião transcen­dental, única na minha vida. Por esse quarto voto obrigava-me a ser “o servo dos servos de todos os homófilos de Deus”. E impus-me a mim mesmo o há­bito de Irmãozinho da amizade, ao es­tilo do padre Carlos de Foucauld, uma vez que a minha vocação nascia para ser vivida em deserto e, desde aí pro­jectar o meu apostolado, como assim fiz e continuo a fazer, uma vez que nem entre os numerosos irmãos e irmãs se­gui­dores dele, nas diversas fraternida­des e associações que o têm como pai e fundador, somos acolhidos, escutados amados, para dor, mágoa e decepção mi­nhas. Esse superior hierárquico con­verteu-se em meu pai e mestre, em meu confidente, meu amigo, com quem mantive durante 33 anos uma amizade profunda e sincera, sempre a par da minha missão, e contando com o seu apoio e bênção incondicionais. As inú­me­ras cartas suas que tenho em arqui­vo são prova disso. Não me sentia sozinho, portanto. Apesar das muitas es­cu­ridões interiores que houve na minha vida e especialmente da parte da hie­rar­quia eclesiástica. Nem sequer agora os tempos vão de feição, nem para mim para o sinal gay, GLBT. Sou sempre per­seguido. Às vezes, até de nome tive de trocar para poder prosseguir, para evitar essa perseguição tenaz e anti-evangélica, com tudo o que ela carrega dentro…

 

P. Mas esta entrevista faz-te aparecer publica­men­te. Não temes que vol­tem a perseguir-te e, inclu­sive, que tentem excluir-te da Igreja?

E. Agora, já não, precisamente, quando as minhas forças físicas já vão desfalecendo. Tenho a consciência ab­so­lutamente tranquila, apesar de tudo o que se disse de negativo a meu res­pei­to. Mas vê, não falhei, tens-me aqui ainda, atendendo e abrindo os braços a todos os que choram e me procuram. Sou filho do Concílio Vaticano II e do pós-Concílio, daquela mentalidade aberta, renovadora, de Pentecostes, que a Igreja de então (1962-1965) ofe­receu ao mundo, através do papa João XXIII. Por meio daquele sopro do Espí­rito, eu e alguns decidimos abrir nem que fosse só um carreiro no meio da sel­va inumana de ignorância, precon­cei­tos, ofensas e condenações que eram as nossas vidas e conseguimo-lo, por onde podem hoje passar as pessoas GLBT. Agora, graças a Deus e às pedras que "gritaram”, isto é, a todos aqueles /aquelas que não sendo cren­tes lutaram até à morte para conseguir os enormes avanços que agora conse­guimos, e às quais rendo a minha mais sincera e cordial gratidão, as coisas mu­da­ram mesmo. Nós partíamos da cer­teza de que a Igreja é depositária da Fé, mas não é a proprietária da Fé, embora ela continue a pensar que é. Que­ro romper a nefasta divisão entre hie­rar­quia e leigos, entre acolhidos e ex­cluídos; que deixe de se identi­ficar a Igreja com a hierarquia, e es­ta deixe de ser um conjunto de cristãos sem Igreja. A Igreja, somos todos, espe­cial­mente os mais excluídos, a Igreja das Bem-aventuranças. Infelizmente, com dema­siada frequência é a própria Igre­ja quem impede muitos de conhecer e apro­xi­mar-se de Deus, de Jesus. De­ci­di tornar público o que vivi e vivo, por­que o movimento gay precisa co­nhe­cer as suas origens e a minha his­tó­ria é parte dessas origens. Não deve­mos esquecer que quem perde as suas origens perde a sua identidade. E tam­bém porque a Verdade me fez livre, so­fredor, mas também oblação viva. “Se a mim me per­seguiram, também vos per­seguirão a vós”, diz Jesus.

 

P. Como responderás à acusação de promover a homossexualidade, de pro­mo­ver “comportamentos de­sor­denados”, vivências “in­trin­secamente perversas”, quando a hierarquia, se ler esta entrevista, te acusar de tudo isso?

E. Amando. Orando com mais inten­sidade. Testemunhando. Continuando a acolher os irmãos e amigos GLBT. Es­se julgamento da hierarquia é cultural, não tem nenhuma base teológica nem evangélica, por mais que ela se empenhe nisso. Eu, diante de qualquer GLBT, o que vejo antes de mais é um ser humano e imediatamente ou ao mes­mo tempo, um filho de Deus. E “o que fizestes a um destes mais peque­ninos, a mim o fizestes”, diz o Senhor Jesus. Não podemos fazer um Deus à parte, só para os heterossexuais, um Deus a la carte, à nossa medida, mas sim distinguir o cultural do espiritual. Eu sou homossexual pela graça de Deus. Por mais que custe a quem custe, goste ou não goste, seja quem for. A mi­nha homossexualidade aliada per­fei­ta­mente à minha fé é consubstancial à minha pessoa, a causa mais nobre que o Senhor me concedeu, e do que terei de lhe dar contas, do mesmo modo que terão de lhe dar contas os que me perseguiram, negaram e não amaram. Já entoei muitas vezes o meu Nunc di­mittis pessoal [refere-se ao Canto do velho Simeão, do Evangelho de Lucas que diz, depois de ver o menino: “Ago­ra, Senhor, já posso partir], porque os meus olhos viram a salvação, tão espe­rada, que muitíssimos, inumeráveis, não viram durante dois mil anos de ju­deo-cristianismo e suas perseguições.

 

P. E porquê precisamen­te agora é que decides fa­lar, dar-te a conhecer?

E. Talvez devesse tê-lo feito antes. Não sei. Tiveram influência várias ra­zões. A prudência. A oportunidade. E agora a minha idade. Pois já me vejo “vinho velho”, e isso comporta os seus graus. Já não quero continuar a perder mais tempo. Durante mais de 40 anos, acolhi centenas de homossexuais e ten­tei orientá-los, aconselhá-los, acompa­nhá-los e ajudá-los a aceitarem-se na sua especificidade. Quero que se saiba que fui e sou testemunho vivo da causa gay que é também a minha, dentro da Igreja católica e que quero viver e mor­rer dentro dela. “No coração da minha Mãe, a Igreja, fui e sou o sofrimento cor­redentor”, parafraseando a de Lisi­eux.

 

P. E de que modo aju­daste os gays durante es­tes mais de 40 anos?

E. Fiel à minha espiritualidade foucauldiana, vivi muitos anos numa casa-fraternidade-eremita, nas proximi­dades de Valencia, durante bastantes anos. Depois, noutras eremitas. Na casa mãe, onde promovemos retiros, acolhi, entre chistes, espreitadelas e espiões, centenas de pessoas, a maioria homos­sexuais. A primeira tarefa era com fre­quência desculpabilizá-los. Costuma­vam regressar a suas casas alegres e reconhecidos. Finalmente, recuperados na sua dignidade humana e a saber, quer isso lhes interessasse ou não, que eram filhos de Deus e amados por Ele. Escutei e continuo a escutar muita gen­te. Durante anos, ofereci um espaço de silêncio e de escuta que foi cura para muitos. Essa foi a minha missão e conti­nua a ser. Fico estupefacto que a Insti­tuição eclesiástica expulse do seu seio os diferentes, os que, por os não com­pre­ender ou não querer compreender, andam por aí errantes sem porto fixo, nem casa segura, justamente o contrá­rio do que fazia Jesus. Por isso eu os aco­lho. E porque são meus, perten­cem-me. Ajudo-os a evitar cair na men­tira de pensarem que a Igreja é apenas a hierarquia, que os da hierarquia são os bons e nós os maus. Ajudo-os a cre­rem na vida e neles próprios. Que há Igreja para lá do ódio e do autorita­rismo machista actual e de sempre. O machismo é o verdadeiro pecado ori­ginal. Não há outro, de onde provêm to­dos os males.

 

P. E que sentes ao olhar para o nosso Hoje?

E. Invade-me uma grande alegria. Vejo que muitas coisas pelas quais lutei se conseguiram. Alegra-me ver como existem organizações-chave que mar­cam um caminho, como a Associação de Mães e de Pais de Gays e Lésbi­cas, ou numerosas organizações GLBT, ou grupos anti-Sida… Sei que é preciso continuar a lutar, que a vitória é a lon­go prazo, mas estou convencido que avan­çamos muito. O meu coração ale­gra-se por isso. Embora pense que há demasiado sexo nas nossas vidas. O sexo é importante, ocupa um lugar, mas nunca deve ser o prioritário. O que nos há-de distinguir há-de ser o afectivo, o compromisso, o testemunho de nor­ma­lidade, a solidariedade, a entrea­juda.

 

P. E como fazer para que a solidariedade seja o prioritário na nossa vida?

E. Temos que resgatar o espírito que trazemos dentro. Porque só o a­mor nos faz entrar numa espirituali­dade, talvez nova, que trazemos dentro e não sabemos como desenvolver. De­ve­mos continuar a manifestar-nos pu­bli­camente, mas de uma forma tão dis­creta quanto estratégica para poder­mos conseguir viver em paz e em liber­dade. Devemos negar-nos a ficar ina­ctivos perante todo o tipo de manifesta­ções homófobas existentes e fazer sur­gir uma nova sociedade e uma nova Igre­ja onde caibamos todos os margi­nalizados e todos os diferentes. O que não for assim continuará a ser um fra­casso total. O amor fraternal, a ajuda e a solidariedade far-nos-ão mais livres e capazes de reconciliar a fé com a ho­mossexualidade. Falo de fé, não de reli­gião. Temos que romper a esquizo­frenia existente entre espírito e corpo, entre homossexualidade e fé. Do Deus encarnado em Jesus de Nazaré, vem-nos novas maneiras de sermos crentes. Embora não saibamos como se mate­rializará esta osmose, mas já tudo hoje a anuncia, e ela já se aproxima. Eu que atravessei grande parte do século XX, olho para trás e dou-me conta de que tudo será possível com fé e com firmeza. Sinto-me feliz com o já conseguido, humildemente. Crer é compro­me­ter-se. Há um futuro que já está aí pre­sente, que nos inunda de espe­ran­ça. Os nossos profetas já falam no meio do coro dos outros profetas.

 

A minha conclusão, co­mo entrevistador: Antes de dar por concluída a entrevista e antes de me afastar de Emílio, olho-o de novo nos olhos claros e brilhantes e dou-me conta de que ele é como um farol na sua eremita, rural ou urbana, uma ajuda viva para muitos, um modelo vivo a seguir e prosseguir. Penso que talvez esta entrevista, depois de publicada, seja o início de uma nova perseguição, por ele ser fiel ao nosso sinal GLBT e à sua fé. Porém, intuo que isto o não as­susta e que ter decidido falar é muito mais proveitoso para nós, gays. Enqu­an­to desço a escada que me leva à rua, sinto que o mundo é um lugar cada vez melhor, graças a pessoas como Emílio de Jesus e alegro-me por ter co­nhecido um dos pioneiros do movi­mento gay em Espanha. Ele mantém-se disponível, sempre, se não já com a acção tão intensa de outrora, com a constante presença contemplativa, aten­to como poucos às necessidades de quantos precisam de quem os apoie e de quem os escute. Ao perto. Ou ao longe.


DESTAQUE 2

Afinal, a senhora de Fátima poderia ser a senhora da Folhada!

 

Sabiam que a chamada nossa senhora de Fátima podia hoje dar pelo título de nossa senhora da Folhada? Para tanto, teria bastado que o respectivo pároco, no ano de 1757 e anos seguintes, tivesse tido a habilidade que teve o cónego Formigão e os seus cúmplices clérigos de Ourém, em 1917 e nos anos imediatamente a seguir. Mas não teve. Em consequência, a fantasiosa aparição da virgem, no dia 13 de Maio de 1757, a três crianças da freguesia, todas com menos de 12 anos de idade e pastoras de rebanhos de ovelhas (vejam só todas estas coincidências com a fantasiosa aparição de 13 de Maio de 1917, em Fátima, quer no que respeita ao número de crianças videntes, idade e ocupação, quer no que respeita ao dia, mês e último algarismo do ano!), deu em pouco mais do que nada. Naquele mesmo lugar da primeira fantasiosa aparição de 13 de Maio, ergue-se hoje, na referida freguesia da Folhada, Concelho do Marco de Canaveses, uma minúscula capela, cuja construção remonta a essa altura, e que dá pelo título de senhora da aparecida. A paróquia católica continua a fazer dela e do local em volta a sua festa-romaria principal, cada ano, não em Maio, mas no primeiro domingo de Setembro. O mais surpreen­dente é que o orago ou padroeiro da paróquia é S. João Baptista, mas não é dele a festa principal. A mítica deusa ou senhora da aparecida roubou-lhe esse estatuto, como a sublinhar que, no inconsciente colectivo dos povos, mantém-se ainda gravado que, no princípio, foi o matriarcado, não o patriarcado que, depois, lhe sucedeu e parece ter vindo para ficar, apesar de a Humanidade ser hoje manifestamente constituída por muito mais mulheres do que por homens.

 

Na minha qualidade de director do Jornal Fraternizar, tive acesso a um documento, inserido num volume re­cen­te­mente editado, redigido pelo páro­co da Fo­lha­da, à data da fantasiosa a­pa­rição e, com ele na mão, fui até à fre­guesia ver com os próprios olhos o que resta de tudo aquilo. No dizer de algumas pes­soas lá residentes, a desi­gnação senhora da aparecida poderá ter sido posterior, porque, no início, ter-se-á chamado senhora da Lapa. Diz textualmente o docu­men­to:

 

Nos limites desta freguesia [para facilitar a leitura, a transcrição do do­cu­mento faz-se em português actua­liza­do], mas quase nos confins dela que a dividem da freguesia de Santo André de Várzea, com a qual esta confina, pelas partes do Poente e do Sul, nas fral­das dos grossos e ásperos matos da serra de Abobereira [hoje, Abobo­reira], à parte do Sul, num cabeço do di­to monte [mais uma outra coincidên­cia com Fátima, onde também se fala em “loca do Cabeço”], no dia 13 de Maio do ano próximo passado de mil setecentos e cinquenta e sete [o páro­co está a escrever em 1758], quase uma hora antes do ocaso do sol, an­dando três criaturas de idade menor de menos de 12 anos, apascentando umas ovelhas no tal sítio chamado o Outeiro do Preiro, sem que nada vis­sem, ouviram uma voz que as chamava cada qual pelo seu próprio nome, que eram duas Marias e uma Teresa. E voltando o rosto viram sobre umas áspe­ras pedras uma mulher prostrada ou ao modo de encostada a outras mais altas fragas, de mediana estatura, mas de tão brilhante e resplandecente rosto [mais outra coincidência com a de Fáti­ma], que logo admiradas lhes pareceu não ser mulher patrícia [= terrena]. Mas chegando a ela, ainda que algum tanto admiradas de ver tal mulher e em tal sítio, as animou esta com afagos a que chegassem a ela para mais perto esta­rem, [a] estas ensenuou [sic] a falta de saudar. E pegando-lhe da mão a uma de virtude mais moral, e a outra tiran­do-lhe um rosário que trazia ao pesco­ço [já então a obsessão pelo rosário e /ou terço, como em Fátima], o lançou ao céu, enquanto com elas praticou [= rezou]. E a terceira que era mais adulta [correspondente a Lúcia, na fantasiosa aparição de Fátima] repreendendo-a do vício de falar do demónio. Logo a to­das, encomendou fossem a[o] seu lugar e dissessem a todos [que] jejuas­sem a pão e água as primeiras Sextas-Feiras e Sábados, quando dali seguis­sem, e que o mesmo dissessem a todas as pessoas que vissem e com elas fa­lassem. E depois uma por mais [in]dis­cre­ta, perguntando à tal mulher quem era [foi o que se diz ter feito Lúcia em Fátima], lhe respondera esta que, feito o que lhe recomendava e continuando nove dias contínuos ao redor daqueles penedos uma romaria em louvor de Nos­sa Senhora [= Deusa Madre ou Mãe], saberão então quem ela era, o que cumpriram assim as três meninas prontamente. E relatando [elas] esta notícia, foi tal o concurso do povo de per­to e de longe, que todos uniforme­mente o aclamavam por milagre [mais outra coincidência com a fantasiosa aparição de Fátima]. O que vendo eu e observando, dei de tudo parte ao Mui­to Reverendíssimo Doutor Provisor deste bispado e pedindo-lhe mandasse averiguar este caso judicialmente, or­de­nou o dito senhor, observasse eu rultancia [sic] deste caso e se não des­prezasse, à vista do que fazendo eu as maiores averiguações que pude por mim e por outrem, não achei até ao presente coisa em contrário. Antes a­chei por pessoas muito fidedignas ha­verem visto e observado há muitos anos a esta parte, uma luz muitas noites em o tal sítio, até o dia véspera da Ascen­são [sic] de Nossa Senhora de Agosto, de noite se viu uma luz tão resplande­cente quase a horas de meia noite, que afirmam se podia ler uma carta à sua claridade, isto sendo distância mais de meia légua [tal e quaal como em Fáti­ma]. E ao depois deste caso se não ob­ser­vou mais tal luz. Além do que e das mais observâncias [sic] que tenho feito, tem, ocorrido, a um ano a esta par­te, alguns milagres e o maior que tenho observado é o infinito povo que continuamente concorre àquele sítio [também como em Fátima], para sa­tisfação do qual mandei pôr nele uma estampa de Nossa Senhora da Lapa e uma cruz de pau para o culto da adoração e devoção daquele povo.”

 

Até aqui a transcrição do docu­mento, conforme consta no volume edi­ta­do este ano de 2009, em Braga, sob o título As Freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História de Patrimó­nio, da responsabilidade de Capela, José Viriato; Matos, Henrique; e Bor­ralheiro, Rogério.

São tantas e tamanhas as seme­lhanças com a fantasiosa e mentirosa aparição de Fátima em 1917 (não sei se sabem, mas do ponto de vista estritamente teológico, falar em aparições é, só por si, falar de uma impossibilida­de absoluta, pelo que todas elas são fan­tasia e, no pior dos casos, orquestra­­da men­tira, que, como tais, nunca são para tomar a sério por ninguém, mui­to menos por parte da Igreja cató­lica, sob pena de grave ofensa a Deus e de grave injúria aos seres humanos, tanto os que intervêm, como protago­nis­tas, nessa fantasia ou mentira, co­­mo os milhares /milhões de crédulos que doentiamente se deixam ir na on­da), que eu fiz ques­tão de meter a car­rinha e fui à freguesia de Folhada.

Da primeira vez, um sábado à tar­de, estive junto da igreja paroquial, con­­versei com várias pessoas que por ali se encontravam à espera do início da missa vespertina. Cheguei a cumpri­mentar o pároco, meu contemporâneo do Seminário que, cheio de pressa, mal parou, quando lhe disse quem era, e ele  logo me disparou, por entre sorri­sos e alguma indisfarçável apreensão /perturbação, “O que fazes aqui?”, e, ala que se faz tarde, logo para dentro do templo, a fazer lembrar o sacerdote e o levita da parábola lucana.

Todas as pessoas que, entretanto, acederam a conversar comigo me re­me­ti­am para a capelinha que ainda hoje existe lá no local referido pelo pároco do tempo, e cuja construção remonta a esses anos. Não fui lá nesse dia. Dei­xei para mais tarde, na expecta­tiva de, entretanto, vir a obter mais algumas infor­ma­ções da parte da Junta de fre­guesia, cuja presidente acabou por in­tegrar-se, com visível agrado, na con­versa que decorria no adro da igreja. O cartão de visita que lhe deixei com todos os meus contactos, mais as possí­veis (inevi­tá­veis?) conver­sas posterio­res entre o pároco e ela (ela é uma das suas catequis­tas na paróquia), te­rão levado a que, mais de uma semana depois, dela me não chegasse nem um telefonema, nem um e-mail.

Voltei então à freguesia e, desta vez, com o propósito feito de subir ao monte onde se situa a capela. Os aces­sos são complicados, sempre a subir, depois que se sai da estrada principal e, uma grande parte, cerca de metade da subida, precisamente a mais próxi­ma da capela, é um mero estradão de terra batida, todo ele sulcado por fun­dos e enviesados regos causados pe­las águas das chuvas.

Lá no cimo, sem quaisquer casas à vista, lá está a minúscula capela sobre os rochedos. Nenhuma janela. Apenas duas portas de grossa madeira. A prin­cipal, na frente, sem fechaduras, por isso, de abrir só pela parte de dentro. E uma outra lateral, bem mais estreita, por onde entrará o portador da chave. Não pude entrar. Nem ver na­da do seu interior. Nenhuma legen­da nas pare­des de granito. Nem se­quer uma data à vista. Também nenhu­ma imagem nos três nichos exteriores da frente, desti­na­dos a elas. Fiz algu­mas fotografias e desci o monte, com a carrinha aos solavancos.

Dirigi-me à sede da Junta de Fre­gue­sia, nas proximidades da igreja pa­ro­quial. A funcionária de serviço, ainda jovem, que já uma vez me tinha atendido num telefonema que fiz para saber do motivo de tanto silêncio por parte da presidente, foi duma simpatia inex­ce­dível comigo. Inclusivamente, acom­panhou-me à residência paroquial, qu­an­do lhe mostrei vontade de lá ir, para tentar conversar com o pároco sobre o assunto. Infelizmente, ele não estava em casa. Falou-me /nos a empregada, cabeça quase estrangulada na janela, lá em cima, sem nunca chegar a descer à porta da casa, mesmo depois de eu, junto da Sónia que ela conhece bem, lhe ter dito quem era e ao que ia. Limi­tou-se a dizer, lá do alto, que o pároco estava para uma consulta médica.

Regressei a casa. E pelo caminho vinha a pensar no que vira /ouvira nes­tas duas deslocações e no que lera do pároco sobre a fan­ta­siosa aparição: Como é que três crianças, todas meni­nas e pastori­tas de ovelhas, de idades inferiores a 12 anos, podiam estar, lon­ge de casa, no dia 13 de Maio de 1757, sozinhas, naquele inós­pi­to monte (se ain­da hoje ele é inóspito, o que seria então?), uma hora antes de o sol se pôr, sem nunca manifes­tarem qualquer medo, bem pelo con­trário, até aceita­rem conversar descontraidamente com uma desconhecida que inopinadamente lhes ”apareceu” e chamou por elas pe­los seus próprios nomes? E como - es­panto dos espantos! - elas logo acolhe­ram o lhes foi dito e executaram tudo o que a fantasiosa aparição lhes orde­nou, inclusive, andar em romaria, nove  dias seguidos (porquê nove e não oito ou dez?!), em redor daqueles ro­che­dos, só, para no final, poderem saber quem ela era (as míticas deusas têm cá uns caprichos e uns gostos!...)

Digam lá se tudo isto não é fanta­sioso até ao delírio! E, se tudo isto não tem apenas a ver com míticos e ances­trais relatos justificadores de ancestrais cultos politeístas, em honra de míticas deusas ou nossas senhoras e de míti­cos deuses ou nossos senhores, contra os quais já os profetas bíblicos, 6/7 sé­culos antes de Jesus ter nasci­do, de­nun­ciaram como cultos inumanos?!

Uma coisa, porém, não é fantasia em tudo isto. Reza actualmente o res­pectivo por­tal na net da freguesia, que Folhada “já foi abadia do ordinário”; e que, em 1706, rendeu ao abade (a­pe­nas!?) 150.000 reis. Porém, já no ano da fantasiosa aparição, rendeu muitíssimo mais ainda, exactamente 400.000 reis! Quer dizer: O povo de en­tão pode ter passado a jejuar a pão e água, dois dias por mês , às primeiras sex­tas-fei­ras e aos primeiros-sábados, mas o aba­de de Folhada, não. Pelo contrário, até viu os seus rendimentos quase triplicados. Graças, certamente, aos muitos romei­ros de perto e de longe que passaram a peregrinar /penar ru­mo os rochedos onde hoje está erecta a capela da se­nhora da aparecida.

Queremos mais dados para tirar­mos conclusões que nos dignifiquem? Os romeiros, ainda hoje, neste início do século XXI, continuam a ser mais do que muitos, sobretudo de longe, na única ocasião por ano, em que a capela abre ao culto público idolátrico, no pri­meiro fim-de-semana de Setem­bro. Fo­ra disso, permanece fechada a sete cha­ves, uma masmorra so­bre os rochedos, inacessível, como as míticas divindades da nossa vergonha e da nossa alienação /demência humana.

A imagem da mítica senhora ou deusa que não come nem bebe, não anda nem sente, não fala nem ouve, não ri nem chora, é apenas uma coisa inerte, feita pela mão de homens sem sentido crítico, tão pouco protesta por ser assim tratada. Nem faz chover raios e coriscos, muito menos bênçãos, sobre o pároco e os paroquianos de Folhada que a têm sadicamente sequestrada, não vá ela voltar a aparecer /falar a cri­­ancinhas como se diz que fez em 13 de Maio de 1757, em Folhada-Marco de Canaveses e, 260 anos depois, no mesmo dia e mês do ano 1917, em Fá­tima-Ourém! Será que nem assim nós, os seres humanos, abrimos os olhos da mente e da consciência?!


 

ESPAÇO ABERTO

Editorial

Abster-se ou Votar?

 

Vêm aí três actos eleitorais. Todos neste ano de 2009. O primeiro é já dia 7 de Junho. Para o Parlamento Euro­peu. Vamos abster-nos ou votar? Votar em branco, ou votar nulo, com declara­ção de indignação /protesto e, se pos­sível, também com proposta, escritos no próprio boletim de voto que nos é en­­tre­gue na hora de votar? E proceder de igual modo, nos outros dois actos elei­torais? A questão é profunda. Séria. Exige muito discernimento. Muita luci­dez. Muita sabedoria. Muita inteligên­cia sapiente-sapiente. Aliás, como to­das as decisões humanas. Ou já não são humanas. Apenas decisões. Mais ou menos automáticas e rotineiras. E o Automático e o Rotineiro, em seres hu­manos, podem levar-nos ao abismo e a levar connosco o país, o continente, o Mundo. Nada é politicamente indife­rente na História. Pelo menos, no que toca a decisões humanas. Nem sequer a não-acção, como poderia ser olhada por muitas pessoas, a abstenção nas eleições. Direi, até, que, num acto elei­to­ral, pior do que vo­tar mal, é não votar. É abster-se. A abstenção é sempre o pior. É a postura ditada pela Preguiça, um dos velhos sete pecados capitais ou mortais. Em questões de Política, a Preguiça /abstenção é um pecado que mata. Como assim - reagirá alguém - se eu nem sequer dei um passo, mexi um dedo, muito menos recorri a uma ar­ma, branca ou de tiro, ou a comida /bebida en­venenada? Pois é, mas a ab­s­ten­ção em Política mata. Primeiro, a própria pessoa que se abstém. É o seu Eu que não cresce. Não se afirma. Não se manifesta. Não toma partido. Uma postura não-activa, não-participa­tiva que acaba sempre por favorecer o Poder Político que, como inimigo que é da Política, dos seres humanos, dos Povos e da própria Natureza, nunca dor­me. Nunca se abstém. Trabalha con­ti­nu­amente. Vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. E de gera­ção em geração. Ao ponto de a maioria de nós nunca chegar a ser verdadei­ra­men­te um Eu. Nunca chegar a cres­cer em Sabedoria e em Graça, como diz o Evangelho de Lucas que Jesus crescia. E, pelos vistos, cresceu tanto, que atingiu o Limite do Humano e até passou para lá do limite do Humano, ao ponto de ficar-sem-lugar - a Utopia Viva - dentro do Sistema do Poder e da sua Ordem Mundial, intrinsecamen­te perversa. Embora a Ordem Mundial sempre se disfarce de intrinsecamente boa, ela é tão-só o Lobo institucionali­za­do que se veste de Cordeiro institu­ci­onalizado. Todas, todos nós sabe­mos bem como acabou Jesus. Na Cruz. Inventada e fabricada pelo Império de turno. No caso, o Romano. Para casti­gar exemplarmente todos os politica­mente insubmis­sos, rebeldes, que ou­sam resistir-lhe e se recusam a dobrar o joelho e a cerviz ao seu Domínio Ab­so­luto. De todos eles, Jesus é o mais po­liticamente Insubmisso, Rebelde, An­ti-Idolatria, e tão activo, que não tinha pouso certo on­de reclinar a cabe­ça. Porém, o mais dramaticamente revela­dor, no caso de Jesus, é que o Império agiu assim, com a crueldade toda que se sabe, a instâncias, antes de mais, dos grandes sacerdotes do seu país e de todos os outros líderes religiosos que viviam à sombra e à pala do Tem­plo, no caso, o de Jerusalém.

Nunca antes de Jesus, se havia vis­to nada de semelhante. E, depois de­le, também não. Pela primeira vez e du­ma vez por todas, ficou claro, nessa Hora única da História, a da Morte Cru­cificada de Jesus, que a Ordem Mundial que sempre se faz passar por intrinse­ca­mente boa, é intrinsecamente perver­sa. É, da sua natureza, Mentir e As­sas­sinar. E, hoje, ela está aí cientifica­mente organizada só para matar, rou­bar e destruir. Ainda que pareça que está aí para nos proteger e garantir condições de vida. Mente, quando o diz e tenta convencer-nos. Mente sem­pre. Porque a Ordem Mundial tem por pai (mãe, nunca teve) o Ídolo, a Grande Idolatria, o Grande Dinheiro, ao qual todo o Poder Político serve e todo o Po­der Religioso-Eclesiástico também, católico-romano, incluído. O  Poder Re­li­gioso, como o seu braço direito. E o Poder Político, como o seu braço es­quer­do. Os três juntos, como um só, são a Trindade. Três deuses, cada qual no seu galho, mas um só Deus Omnipo­tente, Omnipresente e Omnisciente, o Grande Dinheiro. Sem nenhum lugar para os seres humanos que crescem em Sabedoria e em Graça. Só para os súbditos. Vassalos. Verdugos, prontos a executar todas as suas ordens, sem nunca as discutir. A Ordem Mundial é exclusivamente dele. Por isso, intrinse­ca­men­te Mentirosa. Opressora. Assassi­na. Genocida. E, hoje, também e cada vez mais, Ecocida. Não damos por isso, porque ela nos cega. É Treva cheia de luz. Uma luz-treva /idolatria que cega, encandeia as mentes e nos leva  a ir contra os demais, contra nós próprios, contra a própria mãe, o próprio pai, os próprios filhos e filhas, contra todas /todos e contra a Natureza indefesa.

Numa Ordem Mundial assim, o pior que podemos fazer é abster-nos de in­tervir politicamente. Abster-nos signifi­ca deixar à rédea solta o Lobo disfarçado de Cordeiro. E ele, como subli­nha, uma e outra vez, Jesus, o do Evan­gelho de João, é mentiroso e assassino, só existe para roubar, matar e destruir. Exactamente, por esta ordem. Primeiro, rouba, mesmo quando parece que dá. Rouba tudo. Mas sobretudo rouba o Eu que cada uma, cada um de nós estamos chamados a ser, ainda antes de termos sido concebidos no útero materno. Se lhe dermos entrada - e quem não lha dá, porventura já no ventre materno?! - ele ocupa todo o nosso ser, sobretudo o nosso centro pessoal de decisões, o cérebro, a Mente, a Consciência. E pas­sa a comandar as nossas decisões. Fi­ca­mos reféns dele. Possuídos. Fazemos só o que ele manda e quer. Dizemos só o que politicamente mais lhe con­vém que digamos. Ou, então, nem faze­mos nem dizemos nada. Abstemo-nos, pura e simplesmente. As pessoas que, na sua maioria, ainda não cresceram em Sabedoria e em Graça, apenas em anos e em corpo, é por aí que vão. Pel­a abstenção em Política. É claro que o Lobo disfarçado de Cordeiro, esfrega as mãos de satisfação. O Poder Político e os profissionais pagos para estarem incondicionalmente ao seu serviço são tão politicamente porcos, corruptos, al­drabões, prepotentes, autoritários, de­ma­go­gos, repetitivos, oportunistas, de pernas e mãos e mentes ininterrupta­men­te abertas ao Grande Dinheiro e aos seus Sacerdotes, que as maiorias em peso nem querem ouvir falar de Po­lítica, menos ainda de Práticas Políticas. E correm a meter-se em peso nos Está­dios do Futebol dos Milhões, aos gritos pelo seu clube de eleição, sem nunca se aperceberem de que ele já nem clu­be é, quanto mais de eleição. Metamorfose­ou-se em SAD /Sociedade Anónima Desportiva, uma Máquina-de-fazer-Di­nheiro a qualquer custo, sem o mínimo de escrúpulos e sem sequer cuidar em manter as aparências. Só se lixa o que roubar menos, o que mentir menos, o que (se) corromper menos, o que tiver lavado menos dinheiro sujo. Já os ou­tros que não não vão em Futebóis, me­tem-se nas Religiões, sobretudo as mais recentes que prometem este mundo e o outro, em correntes de oração com tudo de mentira e de ópio. Cobram dízi­mos sem conta, mas não é com isso que os respectivos pastores e a empresa /Igreja enriquece. Tudo isso serve ape­nas de manto para eles esconderem os rios de Dinheiro sujo que está constan­te­mente a ser lavado e a circular, enqu­an­to os crédulos e ingénuos fiéis batem palmas e gritam, na ilusão de que o Deus dos pastores comerciantes os ou­ve. Desconhecem que o Deus dos pastores comerciantes é o Deus-Dinheiro, o Grande Ídolo. E que os pastores co­mer­ciantes, mai-las suas Igrejas são o seu braço direito.

Dia 7 de Junho é dia de eleições para o Parlamento Europeu. Agora que os deputados portugueses passam a ga­nhar por mês o dobro do muito que já ganhavam, serão sete cães ao mes­mo osso. O que fazer? Abster-se? Por mim, entendo que o melhor é votar com protesto e, se possível, com proposta, es­critos à mão no próprio boletim de voto que nos é entregue na hora. Po­rém, a proposta, para ser verdadeira al­ternativa, tem de apontar como saída, a via da Política, feita, não de Poder Po­l­ítico, mas de Práticas Políticas e Eco­nómicas maiêuticas. E também de Due­los Teológicos que prossigam hoje no país, na Europa e no Mundo os mesmos Duelos Teológicos de Jesus. São Práti­cas Políticas assim, e Duelos Teológicos assim que ajudarão a derrubar o Poder Po­lítico e o Poder Religioso-Eclesiástico. Quando estes forem derrubados, emer­gem, em seu lugar, os Povos, finalmen­te, livres deles e de todos os tutores, que prenderão o Grande Dinheiro e o­bri­gá-lo-ão a passar de seu Senhor a seu servo. Esse será o Dia 1 da Huma­nidade chegada à Maioridade.

Mário, presbítero da Igreja do Porto


 

Frei Betto, Teólogo

Carta aos Judeus

 

“Por mais que o governo de Israel e todos os que o apoiam tentem, não irei odiar a vocês, irmãos judeus. Ainda que as tropas israelitas matem centenas de crianças e pessoas inocentes, não irei desejar a morte de suas crianças, nem jogar a culpa na totalidade de seu povo. Mesmo que manchem a Faixa de Gaza com o sangue de um povo, que tam­bém corre em minhas veias, meta­de árabe, não irei revoltar-me contra nenhuma etnia nem julgar que há ra­ças melhores ou com mais direitos que outras, como quer fazer-nos acreditar o governo israelita. Embora eu também queira ouvir as vozes judaicas de pro­tes­to contra o massacre dos palestinos, não deixarei de condenar os que se ca­laram diante do holocausto judeu. E mesmo que tomem à força a terra do povo árabe, não irei jamais apoiar o con­fisco dos bens do povo judaico, pra­ticado há tempos pelo governo nazista. Por mais que o governo de Israel e to­dos que o apoiam traiam a tradição he­braica dos grandes profetas que clama­ram por justiça e paz, ainda quero man­ter viva a esperança que eles anuncia­ram. Mesmo que joguem sua memória na lata de lixo, faço dos profetas do an­ti­go Israel os meus profetas, pois o anúncio da justiça não distingue cre­dos, nações ou etnias. Sei que muitos de vocês condenam a violência, não apoiam o massacre dos árabes pales­ti­nos, e gostariam que o governo de Israel respeitasse as decisões da ONU e o clamor da comunidade internacional pelo cessar-fogo imediato. Mas, gritem! Se sua voz não for ouvida, acreditar-se-ão com razão aqueles que ainda falam mal de seu povo. Mesmo que se­jam deploráveis todos os anti-semitas, o silêncio dos judeus diante do massa­cre perpetrado pelo país que ostenta a estrela de David na bandeira pode ser usado como reforço para os argumentos torpes da superioridade racial.

Há mais de 60 anos, seu povo cla­mou ao mundo por solidariedade. Che­gou o momento de retribuir, de mostrar que a solidariedade é um sentimento universal e não restrito a uma etnia. Não deixem o governo de Israel fazer esquecer o quanto vocês sofreram co­mo vítimas, só porque agora ele é al­goz e está protegido pela maior potên­cia mundial, os EUA. Não permitam que a ação de Israel faça parecer que, ape­sar das manifestações mundiais de con­denação, seu Estado se acredita o úni­co que possui razão, pois era assim que o governo alemão pensava no tempo do nazismo. Estejam certos de uma coisa: independentemente do re­sul­tado da absurda campanha israelita ou qualquer que seja a posição de seu povo diante da violência e injustiça cometida por aquele país, não irei ceder à tentação do pensamento racista; não irei apagar da minha memória a catás­trofe do nazismo e o sofrimento do povo judeu; não irei pensar que há povos que não merecem nação e que devem ser eliminados; não deixarei de conde­nar o anti-semitismo ou qualquer tipo de preconceito étnico. Continuarei de­fendendo a ideia de que todos, sem dis­tinção, somos iguais, e temos os mes­­mos direitos: judeus, negros, árabes, índios, asiáticos etc. Manter-me-ei firme em minhas convicções, pois jamais quero me igualar aos governan­tes de Israel e àqueles que os apoiam.”

Faço minhas estas palavras de meu querido amigo Maurício Abdalla, com­pa­nheiro no Movimento Fé e Política, professor de filosofia da Universidade Fe­deral do Espírito Santo e autor de reconhecida qualidade, como o com­pro­va o texto acima, que tão bem traduz a indignação e a dor de tantos que testemunhamos a guerra do Médio Ori­en­­te. Vários intelectuais judeus têm ma­ni­festado indignação frente às ope­ra­ções do Estado de Israel. Tom Segev, historiador e cientista político, escreveu no Haaretz que “Israel sempre acredi­tou que causar sofrimento a civis pales­tinos os faria rebelarem-se contra seus líderes nacionais, o que se mostrou er­rado várias vezes”. O escritor Amos Oz su­blinhou:“chegou o tempo de bus­car um cessar-fogo”, com o que concor­da o escritor David Grossman e o ex-chan­celer israelita, Shlomo Ben-Ami.


 

Frei Betto (2)

Pai Nosso

 

Escrevi esta versão do Pai-Nosso para os retiros dos grupos de oração que acompanho há 29 anos. Procurei dar um toque poético para permitir que seja rezado em forma de meditação louvativa e penitencial.

Pai-nosso que estais no céu, e sois nossa Mãe na Terra, amorosa orgia trinitária, criador da aurora boreal e dos olhos enamorados que enternecem o coração, Senhor avesso ao moralismo desvirtuado e guia da trilha peregrina das formigas do meu jardim;


Santificado seja o vosso nome gravado nos girassóis de imensos olhos de ouro, no enlaço do abraço e no sorriso cúmplice, nas partículas elementares e na candura da avó ao servir sopa;


Venha a nós o vosso Reino para saciar-nos a fome de beleza e semear partilha onde há acumula­ção, alegria onde irrompeu a dor, gosto de festa onde campeia desolação;


Seja feita a vossa vontade nas sendas desgovernadas de nossos passos, nos rios profundos de nossas intuições, no voo suave das garças e no beijo voraz dos amantes, na respiração ofegante dos aflitos e na fúria dos ventos subvertidos em furacões;


Assim na Terra como no céu, e também no âmago da matéria escura e na garganta abissal dos buracos negros, no grito inaudível da mulher aguilhoada e no próximo encarado como dessemelhante, nos arsenais da hipocrisia e nos cárceres que congelam vidas;


O pão nosso de cada dia nos dai hoje, e também o vinho inebriante da mística alucinada, a coragem de dizer não ao próprio ego e o domínio vagabundo do tempo, o cuidado dos deserdados e o destemor dos profetas;


Perdoai as nossas ofensas e dívidas, a altivez da razão e a acidez da língua, a cobiça desmesurada e a máscara a encobrir-nos a identidade, a indiferença ofensiva e a reverencial bajulação, a cegueira perante o horizonte despido de futuro e a inércia que nos impede fazê-lo melhor;


Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e aos nossos devedores, aos que nos esgarçam o orgulho e imprimem inveja em nossa tristeza de não possuir o bem alheio, e a quem, alheio à nossa suposta importância, fecha-se à inconveniente intromissão;


E não nos deixeis cair em tentação frente ao porte sumptuoso dos tigres de nossas cavernas interiores, às serpentes atentas às nossas indecisões, aos abutres predadores da ética;


Mas livrai-nos do mal, do desalento, da desesperança, do ego inflado e da vanglória insensata, da dessolidariedade e da flacidez do carácter, da noite desenluada de sonhos e da obesidade de convicções inconsúteis;


Amemos.


 

Manuel Sérgio, Reitor do Instituto Piaget

Carta Aberta a CRISTIANO RONALDO

 

Meu caro Cristiano Ronaldo

 

Perdoe-me a ousadia desta carta. Não sei se já ouviu falar de mim. Num pon­to estaremos de acordo: nem se­quer ainda nos cumprimentámos! Mas eu conheço-o inevitavelmente. O Cristi­ano é um dos grandes mitos do nosso tempo! Vejo futebol, há muitos anos e não me custa colocá-lo, no pódio, ao lado da meia-dúzia de melhores joga­do­res que conheci: o Pelé, o Maradona, o Matateu, o Eusébio, o Puskas e o Cruyff. Estou a vê-los, neste momento, com os olhos da saudade – da mais do­lorosa das saudades que é aquela que nós sentimos por nós mesmos!... Há-de estranhar não ter referido o no­me do Di Stéfano. Ele foi, para mim (e até é natural que eu me engane) o maior entre os maiores. Esperemos que haja prémio, no Céu, que o distinga. Na Terra, não há. Entre ele e todos os outros, há uma diferença de qualidade. No entanto, em Portugal, é bem possí­vel que nenhum jogador haja beneficiado da publicidade que  tem anunciado o Cristiano Ronaldo, por esse mundo além. Confesso, porém que talvez ne­nhum deles apresentasse o dom de co­municabilidade, a energia persuasiva, a originalidade criadora que o Cristia­no tem... indiscutivelmente! Se, neste caso, o todo é maior do que a soma das partes, a totalidade que você é, como futebolista de eleição, talvez não tenha par, na história do futebol portu­guês. E, por isso, para o nosso tempo (e não só na sua terra natal que, neste momento, estremece de emoção pelos seus feitos) o Cristiano Ronaldo é um semi-deus! Nas religiões tradicionais, as divindades sempre estiveram dire­ctamente relacionadas com as forças da natureza, fosse nos faraónicos egí­pcios, na Grécia ou na Roma da Anti­gui­dade. No judaísmo, Iavé fala com Moisés, no meio de trovões. No Evan­gelho, os ventos e as ondas obedecem a Jesus Cristo. Na nossa sociedade, laica e agnóstica, Deus parece poder ser dispensado, mas não morreu a ne­ces­si­dade de crer num Absoluto, qual­quer que ele seja.

Ortega y Gasset percebeu que “a religião do século XX é o futebol”. O historiador Eric Hobsbawn é mais es­pecífico e adianta: “o futebol é a reli­gião laica da classe operária”. Não sur­preende, por isso, que você, ilustre madeirense e português, produto do seminário de jogadores excepcionais, que é o Sporting Clube de Portugal, seja (repito) um semi-deus.

Eu estudo filosofia do desporto, há precisamente quarenta anos; já convi­vi, com muitos colegas seus de profis­são e com alguns treinadores de nomeada, como o José Maria Pedroto (para mim, o maior de todos) – e a­prendi, por isso, que o futebolista ge­ni­al não o é só pelas suas qualidades físico-motoras, mas também pelas suas qualidades psicológicas e espiri­tuais. Arrebatadores e assombrosos, fisica e tecnicamente, foram também o Mané Garrincha ou, em Portugal, o Vítor Batista e acabaram na miséria física e moral. E o Maradona é o actual seleccionador da Argentina, porque uma nação inteira o não deixa tombar por terra. Não há exemplo maior de divinização de um futebolista do que a referência ao golo ilegal que ele fez aos ingleses no Mundial de 1986... “com a mão de Deus” dizem! Só que nenhum dos tristes exemplos aqui cita­dos (e outros que me ocorrem) dispu­nha do dinheiro que você aufere, nem do calor que lhe transmite o regaço ca­rinhoso de sua família. Mesmo assim, não se esqueça do que há de frágil na glória, nem o que há de efémero no êxito. Com muito dinheiro, são mui­tos os que não são cidadãos exempla­res, são muitos os que não são modelos de virtudes cívicas, são muitos os que findam os seus dias, sem paz e sem amor, como, por exemplo, o George Best, também jogador do clube que você hoje representa.

Ora, um atleta da sua craveira, mes­­mo sujeito a errar, como “é próprio do Homem”, deve manifestar uma men­talidade forte, uma sólida formação mo­ral e política. Porque só se é verdadeiro campeão, quando o desporto é uma ética em movimento. O Cristiano Ronal­do já tem por si a admiração de muita gente, como jogador de futebol! Que a tenha também como Homem! No meu modesto entender, é preciso humani­zar “sub-homens” desumanizados por carências de toda a ordem e humani­zar “super-homens” desumanizados por excessos de toda a ordem! Não se deixe enfileirar, na fila dos “super-homens”, que fazem de uma política, em prol dos marginalizados, a dimensão esquecida das suas vidas...

Deixe-me, agora, lançar-lhe uma per­gunta difícil: sabe que o desporto de alta competição (o desporto de que é um exímio praticante) reproduz e multiplica as taras da sociedade neolibe­ral, ou seja, a competição sem coopera­ção ou solidariedade; a mania da medi­da, do rendimento, do recorde, onde a quantidade é tudo e a qualidade qua­se-nada; e ainda que fomenta o bellum omnium contra omnes (= a guerra de todos contra todos), típica do capitalis­mo? Tudo isto, para além de adormecer os marginalizados à recusa da socie­da­de injusta estabelecida!

Proclama-se, para papalvo ouvir, que o desporto dá saúde. Mas porque não se contrapõe que o que dá saúde é, sobre o mais, uma sociedade diferente, sem ricos e pobres, sem sábios e igno­rantes, sem dualismos de todo o tipo? Porque não se ensina que o des­por­to não é uma actividade física – por­que, no ser humano, um comportamento unicamente físico serve tão-só para ma­nipular, para reificar, para alienar. Os go­vernos não temem quem faz esse des­­porto, físico tão-só, temem,sim, quem pensa. Não é por acaso que, pa­ra o desporto físico, a-crítico, a-céfalo, ha­ja milhões de euros dos cofres do Es­tado.

Sou dos que acreditam no desporto, mas não naquele que o Cristiano Ronal­do pratica, se a especialização desporti­va não significa diálogo com os grandes valores da vida. É verdade que o des­porto deve desenvolver a resistência, a força, a velocidade, a flexibilidade, etc., etc. Mas não lhe parece pouco li­mi­tarmos o desporto à corporeidade, enquanto contexto biológico, num mun­do onde há fome e guerra e exclusão e num desporto onde há doping, corrup­ção e... lobbies, com sólidos apoios na ordem social estabelecida? Pode trans­formar-se o desporto mais publicitado e propagandeado, em contra-poder ao poder de uma visão monetarista est­rei­ta?

Uma vez mais, peço-lhe que me des­culpe, por esta carta. Afinal eu só queria associar-me aos aplausos que ecoam, pelo mundo fora, em honra da sua clas­se futebolística indiscutível, tentando pensar um pouco. É que nem tudo se explica biologicamente, ou com parvos patriotismos e regionalismos, na prática desportiva. Há mais a dizer (e eu disse tão pouco)... que as grandes centrais de manipulação da opinião pública escondem!     

Seu, Manuel Sérgio


 

OUTRAS CARTAS

“Como vê, a sua colecção de livros

à volta dos deuses em que deixou de acreditar

bem poderia começar pela Bíblia e pelo Alcorão”

 

Pombal. António Marques: Junto envio o cheque, no valor de… para retribuir o envio de dois exemplares do livro AS HOMILIAS DA PAZ. Mais uma vez lhe digo que me agradaria muito poder encontrar-me consigo, por aí, à sombra do Barracão de Cultura, mas, se calhar, os deuses não vão deixar, dada a insuficiência renal com que quiseram mimosear-me. Não é que não pudesse ir, mas o ter de sujeitar-me à diálise, dia sim, dia não, deixa-me o calendário e a agenda muito curtos.

Já li as duas Homilias. E digo: se o Autor foi parar a Caxias [por causa delas], não foi malfeito: elas bem o merecem. E mais: se o “santo bispo” Ferreira Gomes esteve por eles… Quem diria?!...

Agora, aqui para nós que somos racionalistas até às últimas consequências… Se um dos seus ouvintes (e agora eu também já o sou), o interpelasse mais ou menos assim: Pois, esses deuses todos, mais ou menos pagãos, menos ou mais judaico-cristãos, que, nestes milénios, foram sendo criados pelo Homem como você muito bem diria, ao invés da Bíblia, à sua imagem e semelhança, ou melhor, em conformidade (antropomorfidade – de que palavra mais bárbara eu me havia de lembrar!...) com o deus que ele desejava ser (sempre deseja…) …E, então, finalmente o Deus que recusou (“revelou”?...) o sacrifício do filho Isaac, não foi (porque não?) mais um deus, não revelado mas criado pelo homem, significando um gigantesco passo civilizacional, sem a intervenção de qualquer Deus (com maiúscula ou com minúscula) que, para um racionalista até às últimas consequências, não existe senão na mente ou no coração “criador” do Homem?...

Estou a amontoar uma colecção de livros girando à volta dos deuses em que deixei de acreditar. No monte estão incluídos, para que se não diga que estou a ser parcial: Deus no Século XXI e o Futuro do Cristianismo, Coord. de Anselmo Borges, Campo das Letras e, claro, A Desilusão de Deus, Richard Dawkins, Casa das Letras. Não preciso de dizer de qual deles mais aceito a argumentação. E então se lhe disser que do monte faz parte também o Tratado de Ateologia, Michel Onfray, Asa… Será caso para você dizer: o homem está mesmo perdido! Posso estar. Mas numa coisa estamos unidos, não é verdade? Com um grande abraço

 

ND

Para nos encontrarmos, cara a cara, basta que renuncie a ter de ser aqui, à sombra do BC e aceite que seja aí, à sombra da sua casa, ou de uma frondosa árvore. Ou à Mesa de um restaurante de Pombal que nos permita, num dos seus recantos, a Partilha-da-Comida-e-da Palavra-com-afectos-e-com-Espírito, o de Jesus, o único Homem à face da Terra que, desde que o Mundo é mundo, sempre detectou, detecta e detectará a presença do Ídolo, lá, onde todos os demais seres humanos sempre viram, vêem e continuarão a ver Deus e /ou Não-Deus. E, porque Jesus viu, também agiu politicamente em coerência e até às últimas consequências, nomeadamente, tudo fez para o desmascarar /denunciar /derrubar, ao mesmo tempo que convocou todos os povos e todas as nações para prosseguirmos na História as suas mesmas práticas políticas e económicas maiêuticas e o seu mesmo duelo teológico, inteiramente desarmado, não porque tivesse ciúmes do Ídolo, mas apenas porque percebeu que o Ídolo é sempre o Grande Inimigo, melhor, é o único Inimigo dos seres humanos que nós, cegos de nascença, não há maneira de O vermos como tal e por isso vivemos para O servir incondicionalmente, ao ponto de lhe darmos a própria alma, a própria identidade, a própria honra, a própria vida, sob a forma de culto religioso-eclesiástico, ou sob a forma de culto secular /laico /ateísta. E até lhe damos as nossas próprias filhas /os nossos próprios filhos, as quais /os quais, ainda antes de serem concebidos, já frequentam os seus ambientes e são todos gerados sob o seu bafo ou sopro homicida, genocida, ecocida. Sim, porque estamos rodeados, dia e noite e por todos os lados, pelo bafo ou sopro do Ídolo. É esse sopro ou bafo, o envenenado ar que habitualmente respiramos, a começar – imagine o meu caro António Marques! – por os próprios Ateus, elas e eles. Exactamente, por os Ateus. É esse o mortal risco que correm aquelas /aqueles que se apressam a dizer que são Racionalistas até às últimas consequências. Porque também o Racionalismo absoluto é filho do Ídolo, tal e qual como o Ateísmo. Por isso, em verdade, em verdade lhe digo: Só a mesma Fé de Jesus nos faz Humanos, pois é a única que nos coloca na Via ou Caminho que nos leva a dar pela presença do Ídolo, o qual, camaleónico como é, sempre se faz passar por Deus, por Religião, por Pátria, por Poder Político, por Ateísmo, por  Cristianismo, por Agnosticismo, por Racionalismo absoluto. Nunca, obviamente, por Ídolo, que é o que Ele intrinsecamente é! Já viu maior idólatra, e idólatra mais perigosamente refinado, que um Ateu confesso e militante, como é, por exemplo, hoje, o nosso Nobel da Literatura, José Saramago, tão admirado /cultuado até por cristãos de fala castelhana, que se têm na conta de progressistas e até adeptos da teologia da libertação, mas que, bem vistas as coisas, não passam, eles também, de adoradores do Grande Ídolo que, neles, se veste de intelectual /teólogo progressista que, entretanto, não abdica do seu status, dos seus títulos académicos e dos privilégios que esses títulos lhes garantem, nesta Ordem Mundial que é inteirinha dele, o Grande Ídolo? Como vê, a sua colecção de livros à volta dos deuses em que deixou de acreditar bem poderia começar pela Bíblia e pelo Alcorão e deveria incluir todos os milhões e milhões de outros livros que nasceram a partir dela e dele, e que nunca chegaram a descobrir que o Deus dela e dele é o Grande Ídolo. E ainda o António Marques pensa que o Ateísmo e o Racionalismo levados às últimas consequências já estão vacinados contra os deuses e as deusas que inventamos. Puro engano seu. Pura ilusão sua. E também de tanta outra gente que hoje se tem na conta de muito ilustrada, mas vive sacrificialmente, dia e noite, a dar corpo ao Poder Político e ao Poder Religioso-eclesiástico, um e outro completamente de cócoras perante o Grande Dinheiro, por isso, num viver individual /corporativo totalmente prostituído-e-sem-afectos, devorado por solidões-que-lhe-secam-as-entranhas-de-humanidade e, por isso, faz de toda ela, gente-assassina-de-povos por acção e por omissão, ou simplesmente por mera cumplicidade. “Gigantesco passo civilizacional em frente”?! Oh, António Marques, por favor. Confunde Treva ilustrada e globalizada com avanço civilizacional? Não, António. Não se deixe encandear pelo Ídolo. Deus? Saiba que não basta negar a sua existência para já não se ser idólatra. Ser-se simplesmente ateu, sabe sempre a muito pouco. Ateu, e ateu ilustrado, e de renome mundial, é, como já lhe disse, o nosso Saramago e é ver como ele é idólatra que se farta. Como religioso,  é o nosso Papa de Roma, Bento XVI, e é ver como ele é idólatra que se farta. Todo o Deus que pensamos, que dizemos, que imaginamos é sempre obra nossa, sim. Também o Deus que os ateus ilustrados criam /imaginam e depois negam. Não, António! Não diga que Ele não existe. Porque Ele está aí bem visível e é adorado /obedecido por ateus e religiosos, indistintamente. Todos vivem para O servir, uns, sob a forma de Ateísmo ilustrado, outros, sob a forma de Religião popular ou ilustrada. E esse é o drama da Humanidade. Jesus, o de Nazaré, foi crucificado, sabe porquê? Porque, ao contrário dos religiosos e dos ateus de todos os tempos, não O adorou, não O serviu. E levou este seu Non serviam! (= Não te servirei!) até ao limite, mais, até para lá do limite. Ainda ninguém, antes e depois dele, levou o Humano tão longe. Só ele. Por isso, dizemos que ele é o Caminho, o ser humano por antonomásia, o Paradigma dos seres humanos. O Ídolo nunca teve domínio sobre ele. Nem por um instante! Porque Jesus, felizmente, viu o que nós, que nascemos teologicamente cegos, corremos o risco de nunca chegarmos a ver, por mais anos que vivamos! Viu que o Deus que se vê e que se adora /serve, ou que se nega /serve é o Ídolo por antonomásia, sobre o qual se fundamenta a Ordem Mundial que temos e que tudo fazemos para que se mantenha em funcionamento, sobretudo, as nossas minorias ilustradas que são simultaneamente as minorias dos privilégios, numa hierarquia que vai da mulher-de-limpeza, do porteiro, do motorista ou do sacristão ao chefe de Estado, ao chefe do Império, ao patrão do Banco Mundial, e ao Papa de Roma. Vade retro, Satanás /Ídolo, sempre diz /faz Jesus! A este ver-de-Jesus-e-a-este-seu-agir-em-coerência, sem jamais ficar a meio caminho, é o que podemos chamar a Fé de Jesus. Só possível, porque Jesus se experimentou misteriosamente habitado, atravessado, empurrado por um Sopro outro que o fez a ele, não que ele fez, e que o fez-Homem-para-os-demais-e-com-os-demais, sem jamais excluir ninguém, nem nenhum povo, a pretexto nenhum. Por isso, Homem-com-os-demais-e-para-os-demais, a começar sempre pelas vítimas do Ídolo e da sua Ordem Mundial, um e outra intrinsecamente perversos, e a acabar nos verdugos ou algozes que as fabricam. É nestes lugares teológicos jesuânicos, os das vítimas, que, também eu, como um menino, procuro ter sempre os pés e a cabeça, as entranhas e as mãos, numa palavra, todo o meu ser /viver quotidiano. Uma coisa, posso então testemunhar: nunca, como desde que passei a frequentar estes lugares teológicos e a viver esta mesma Fé de Jesus, eu me descubro tão Humano, tão sororal-fraterno, tão Eu-sou entre os demais e com os demais.

 

Vila Verde. António Machado: Envio cheque para pagar a minha assinatura do FRATERNIZAR que muito aprecio. Todos os temas são de se lhe tirar o chapéu, mas no n.º 172 li um que mexeu muito comigo. Trata-se de Manifesto a favor da Comunidade Política de Jesus. Dou todo o meu apoio às sete Comunidades de Base do Brasil pela coragem que têm para se manifestarem e desmascararem a podridão que existe no seio da Igreja católica romana. Eu sei que é muito difícil o que estão fazendo, mas com coragem e fé vão chegar lá. Também li que o Pe. Mário está cada vez mais sozinho na Trincheira. Não! O sr. não está sozinho. Ainda há muita gente que está consigo, a contar comigo próprio e espero que nunca perca a coragem para enfrentar aqueles que só sabem dizer: Senhor, Senhor, e mais nada. A Teologia do Pe. Mário vai direita ao coração das pessoas, e não compreendo como, ao fim de algum tempo, elas viram as costas e regressam à Mediocridade em que estavam antes. São como a semente que caiu em terreno pedregoso. Ficam entusiasmadas, mas pouco tempo, depois esquecem tudo. Um grande abraço.

 

Brasil. Maria A.: Querido amigo padre Mário, Força de Mulher, Até o Nome Ela Perde, Maria João do Mar, Maria-mulher, Maria de Viadores e tantas outras Marias, todas cantadas em prosa e quase verso pela sua palavra libertadora! Pode-se acrescentar a tantas, também esta Maria aqui, do Brasil, que já sinto ventos de liberdade a rufar-me o rosto. Olha, demorei 40 anos de minha vida para conhecer o que chamam sexo, apesar de, a essas alturas, já ter 5 filhos e 25 anos de casamento tradicional... Sem mentir, devo tal repressão à Santa Madre! Ela, que pelas freiras e padres, me ensinou que sexo é feio, que sexo é pecado e que só é possível, se for para cumprir uma missão: a de gerar filhos... acabou por me castrar quase que completamente e deixar, em mim, marcas profundas e insolúveis, que ate hoje me castigam.

Padre Mário, suas palavras são carregadas de sensualidade e de carinho, quando fala de mulheres. Vejo-o como presbítero, mas também como homem que é e sempre será, pois foi assim que Deus o fez. O senhor não nega, em palavras, a sua sexualidade. Seus escritos não escondem o grande amor que tem por todas essas Marias de sua vida que, com certeza, lhe inspiraram e inspiram... Eu costumava ir à missa, às 3.as feiras, no centro da cidade, numa capela, a mais antiga da cidade, que possui como pároco um monsenhor tão preparado como o senhor, um teólogo na verdade… Ia lá, mais por causa dos fiéis que frequentam a capela, gente muito humilde e de grande fé. Mas este homem de tanta sabedoria e cultura, mostra em suas homilias, um amargor irónico que agora, depois de ler os seus escritos, vejo como o amargor do celibatário que, à forca, abandonou a própria sexualidade e desconta tal dano numa audiência que não tem culpa disso. A palavra que ele diz, quando não é condenando e reprimindo, é a pedir dinheiro para as obras de reconstrução da capela, ou para convidar aquele povo humilde à peregrinação anual que prepara à terra santa, de preço elevadíssimo!!! Padre Mário, voltarei a conversar com o senhor, muito obrigada por me ouvir (ler). Fique com Deus, Beijos.

 

ND

Querida Maria: Alegram-me sobremaneira estas suas considerações, a propósito do meu livro EM MEMÓRIA DELAS. LIVRO DE MULHERES, um dos livros de que eu mais gosto, de todos quantos já publiquei até hoje. Alegram-me, nomeadamente, as considerações que faz sobre alguns dos seus TEXTOS, que aqui destaca com tanta emoção. Felizmente, no meu percurso de presbítero da Igreja do Porto, também as Mulheres, não apenas os Homens, têm estado sempre e continuam a estar muito presentes na minha vida. E sempre como Graça, nunca como Tentação. Obviamente que a Mulher que mais me marcou /evangelizou até hoje foi sem dúvida a Ti Maria do Grilo, minha mãe. A ela devo o ter chegado a despertar para a mesma Fé de Jesus que, desde então, nunca mais deixei de viver e, por isso, é a única Fé que me “faz”. Nesse particular, ela foi como que a minha “parteira”. Nunca o seminário que frequentei durante 12 anos o fez como ela. Nem nenhum clérigo, os vários que conheci nos 12 anos do seminário ou outros quaisquer. Dos clérigos, recebi sobretudo a Fé religiosa tradicional, não a Fé fecundamente subversiva e conspirativa de Jesus. A de Jesus, apenas a minha Mãe ma despertou. Mas a minha Mãe não foi a única Mulher na minha vida a deixar-me marcas tão positivas. Muitas outras, felizmente, ao longo dos anos, “puxaram” por mim, ajudaram-me a “desclericalizar”, a perder os “tiques” clericais que o seminário havia desenvolvido em mim, porque me pretendia clérigo por toda a vida, em vez de Humano por toda a vida. As Mulheres e os Pobres humanizaram-me /evangelizaram-me. Com elas e com eles, reaprendi a ser Humano, a valorizar a Ternura, os Afectos, a viver o Celibato pelo Reino /Reinado de Deus, não por força duma Lei eclesiástica, objectivamente imoral e inumana que, como tal, nunca deve ser acatada /obedecida por nenhum ser humano, sob pena de Pecado, isto é, sob pena de nos desumanizarmos, mas como fruto de uma opção livre, por isso, um Celibato vivido naquele saudável e fecundo clima que paradigmaticamente se nos dá a respirar no poema bíblico Cântico dos Cânticos, fora do qual não há Celibato pelo Reino /Reinado de Deus, mas apenas Solteirismo, Fariseísmo, Repressão sexual, Castração, Homofobia, Misoginia, Moralismo imoral, numa palavra, só há “eunucos que o Poder Eclesiástico fez /faz tais”.

Infelizmente, com o andar dos anos, nem todas elas permaneceram fiéis ao caminho que, juntamente com muitos homens das Comunidades cristãs de base e fora delas, me ajudaram a abrir, abriram comigo e eu abri com elas, com eles. Não estranho o facto, muito menos condeno as pessoas. Porque sei por experiência própria que uma vivência assim é sempre via de “porta estreita”, de muito desprendimento e sobretudo, de total gratuidade que nem a todas as pessoas é dado entender e, por isso, o próprio Jesus, o do Evangelho de Mateus, quando fala desta via, não pôde deixar de concluir: “Quem puder compreender que compreenda” (19, 10-12). É também via de total entrega aos mais empobrecidos e oprimidos, cujas Causas Maiores há que abraçar em primeiro lugar e por toda a vida, porque se identificam com as Causas Maiores do Reino /Reinado de Deus na História. Em dada altura de tão “atrevida” Caminhada, bate-nos à porta a tentação do bem-bom, duma-família-própria-sem-as-demais-famílias e, pior ainda, a Tentação duma-família-própria-sem-nenhum-lugar-para-os-sem-família-e-os-sem-bom-nome-na-praça. Ou, em palavras mais pragmáticas, a tentação do regresso ao útero materno, à segurança, ao Institucional, ao Legal, ao Moralismo, ao Normativo, ao Rotineiro, ao Ser-como-toda-a-outra-gente, sem nada mais de Sinal-de-Contradição, por demais incómodo, particularmente nestes tempos de tanto Cinzentismo que são hoje os nossos. E, então, todo o Belo de antes aparece como Feio, senão mesmo como Pecado, quando, antes, Tudo era Graça e continua a ser Graça, Acção do Espírito Santo, o de Jesus, o do Reino /Reinado de Deus, não o do Eclesiástico e o do Moralismo hipócrita e imoral.

Sabe, certamente, a Maria que só lá, onde há Liberdade /Maioridade, é que há plenitude de Graça e de Verdade. Sabe igualmente que foi para a Liberdade que (o Espírito de) Jesus nos libertou. Só que para haver verdadeira e plena Liberdade, tem de haver também corpos-que-se-entregam-como-Pão-Partido-e-Repartido-que-se-dá-a-comer, vidas /sangue-derramado-como-Vinho-que-se-dá-a-beber pela vida do Mundo. Quando desistimos e até regredimos desta Dimensão que está para lá da Lei – a dimensão da Liberdade e da Graça – o estado em que nos tornamos corre o risco de passar a ser pior do que era antes de termos começado a ir por ele.

Felizmente, a Causa Maior do Reino /Reinado de Deus tem estado sempre aí, na minha frente e dentro de mim, e é ela que continua a dar sentido a todo o meu Ser /Viver Quotidiano e é a fonte de toda a Alegria e de toda a Paz que vivo e respiro, mesmo em pleno “Deserto”. Muitas são hoje as pessoas que não entendem este meu ser /viver, porque, para o entenderem, seria necessário que, primeiro, também elas se abrissem à Partilha dos bens, se fizessem pobres por opção, se abrissem sem medo à Liberdade e à Graça, em lugar de passarem o resto das suas vidas como súbditas da Lei /do Legal, do Institucional, do Normativo, do Eclesiástico, à semelhança daquele filho mais velho da parábola lucana dos dois filhos, mais conhecida por “Parábola do filho pródigo”.

Como vê, querida Maria, a sua mensagem trouxe muito de bálsamo ao meu Caminhar em “Deserto” que tem sido e continua a ser este meu ser /viver como sinal de contradição dentro desta Ordem Mundial sem jamais ser dela. É, por isso, uma mensagem muito fecunda, como só a Liberdade é capaz de ser. Bem-Haja, também por isso! Dou-lhe um beijo cheio de Ternura e de Paz. Mário

 

E-mail. Ancião Beto, das Testemunhas de Jeová (1): Boa tarde, quem escreve é o ancião Beto e gostaria de lhe dizer meu irmão que o Fim está Próximo e que se devia converter. Você anda a influenciar as minhas irmãs para que mudem de Deus, mas o Padre Mário não sabe que Deus é PODER E JUSTIÇA? Converta-se enquanto é tempo, pois o tempo urge, e é preciso mudar de esse seu deus para o Deus Justiça! O Dia do Senhor está Próximo, a Segunda vinda está próxima, converta-se!!!!!
Seu irmão.

 

ND

Meu irmão Beto, Ancião. Com que então eu escrevo para um pequeno grupo de três Testemunhas de Jeová (foi assim que, no início, elas me disseram que eram) e, desta vez, quem me responde, no mesmo endereço electrónico, é o Ancião que, pelos vistos manda nelas, na consciência delas e até lhes tirou o pio, concretamente, as proibiu de lerem outros livros que não os da Congregação Jeová e de se encontrarem ao vivo comigo, em dia, hora e local a combinar, de preferência, em redor duma Mesa Partilhada!? E, para cúmulo, ainda me escreve com quatro pedras bíblicas na mão!? Para um primeiro contacto, deixe-me que lhe diga, é de arrasar /esmagar /calar o mais assustadiço. Só que, meu irmão Beto, Medo de Deus, desse seu Deus PODER E JUSTIÇA, em mim não há nenhum. Pela simples razão de que esse Deus PODER E JUSTIÇA é um Ídolo, portanto, é igual a Nada! A existir, seria pior do que eu e do que a maior parte dos seres humanos que, hoje, neste século XXI, somos VÍTIMAS do Deus-Ídolo Dinheiro, o Grande Dinheiro, que, esse sim, é omnisciente, omnipotente e omnipresente, criador de INFERNOS, de DESEMPREGO EM MASSA, de POBRES e de POBREZA EM MASSA, como, de resto, está aí bem à frente dos olhos de toda a gente que queira ver.

Saiba, meu irmão Ancião, que não fui eu quem procurou as suas irmãs. Foram elas que me procuraram. Fiz mal em acolhê-las, tentar dialogar com elas, mostrar-lhes o outro lado da Bíblia que a Congregação Jeová sistematicamente esconde, salta à frente, escamoteia, interpreta de forma perversa e mentirosa? Pelo vistos, parece que sim.

E para que me vem, o meu irmão Ancião, com essas ameaças em nome de Deus-Jeová? Acha que eu sou assim tão infantil, que me assusto com elas? Sou, não me canso de o dizer e até de cantar, quero ser, como um menino, mas não sou, não quero ser, infantil, em dimensão nenhuma da minha vida humana, muito menos na da Fé, a mesma de Jesus. Sabe, certamente, que o Evangelho de João, logo no final do seu Prólogo, é taxativo: A Deus nunca ninguém O viu. Um Filho único, Deus, o que vive cara a cara com o Pai, é que O deu a conhecer (cf. Jo 1, 18). Quer dizer: O que sabemos de DeusVivo, é por Jesus que o sabemos, antes de mais, pelas suas práticas políticas e económicas maiêuticas /libertadoras, e pela sua Palavra geradora de libertação para a Liberdade, inclusive, pelos seus duelos teológicos que o levaram à Morte Crucificada. Imposta pela JUSTIÇA e pelo PODER dos poderosos sumos-sacerdotes do Templo de Jerusalém e pelos poderosos do Império de turno, na altura, o Romano. Pois bem, meu irmão Ancião, é por Jesus, o de Nazaré, que vou. Não por Moisés, nem pela Lei de Moisés, nem pela Casa de David /Salomão que mandou escrever o relato mítico bíblico de Adão e Eva e da Serpente, nem pela Cúria Romana e todas as outras Cúrias sob outros nomes, incluída a de Jeová. Deus, meu irmão Ancião? Só mesmo o de Jesus, que, felizmente para nós, é o descriador definitivo de todos os infernos históricos que, na nossa demência, possamos criar para nós próprios e para os demais, porque Ele é o único que é Criador de filhas e de filhos da mesma estatura da de Jesus, o Filho-Homem por antonomásia.

Deixe-se de mitos, meu irmão Ancião, como esse da Segunda Vinda, do Dia do Senhor que está próximo. Abra-se a Deus-Abbá /Mãe-Pai, o de Jesus e nosso, que é mais íntimo a nós do que nós próprios, e de modo ininterrupto. Como pode vir, quem nunca nos deixou nem deixa? E como pode o dia do Senhor estar próximo, se Deus, o de Jesus, nunca nos deixou, e, por isso, todos os dias, todas as noites, são dias e noites do Senhor, sempre mais íntimo a nós do que nós próprios? Razão tenho eu, quando escrevi e escrevo, Jeová, nome de Terror. Não dá para ver que se Deus fosse como o meu irmão Ancião diz, neste seu curto mail (imagino o que não dirá porta a porta às pessoas que lhe abram a porta), era bem melhor sermos todas, todos ateus? Haja modos, meu irmão! E não blasfememos o Santo Nome de Deus, ao atribuir a Deus intenções e acções que só o Grande Dinheiro, o Ídolo por antonomásia, mentiroso e assassino, concebe e realiza, está aí a conceber e a realizar. Abra-me esses olhos, irmão, se ainda for capaz!

Dou-lhe a minha paz. E o meu abraço fraterno. Seu, Mário

 

E-mail. Ancião das Testemunhas de Jeová (2): Quando no fim [da sua mensagem anterior], o Padre Mário diz para não blasfemar contra Deus é porque é um pecado Capital, certo?
Ancião Beto

 

ND

Não tente levar-me por aí, irmão Beto, sem fazer nenhum caso de tudo quanto de substantivo lhe escrevi no meu mail anterior, e muito foi. Porque eu não vou por aí. Não entro no seu jogo, perverso jogo, de resto já aqui bem à vista de toda a gente. Veja como, até essa sua conclusão a que perversamente tentou reduzir, sem o conseguir, todo o meu mail anterior, uma conclusão toda ela redigida com palavras suas, não com palavras minhas, o Ancião Beto teve necessidade, para o fazer, de, escandalosamente, tirar tudo do seu contexto que é, afinal, todo o mail que eu lhe dirigi, com muito afecto e de coração aberto. Fê-lo, sem dúvida, perversamente, para ver se, agora, munido dessa sua conclusão, me lançava uma fatal /mortal casca de banana e eu, ingenuamente, escorregava nela e me estatelava. Ao agir assim, o Ancião Beto mais não fez do que recorrer à técnica de manipulação de um texto, técnica em que todas as Testemunhas de Jeová que eu conheço, e muitas são, são perversamente peritas, concretamente, no que respeita ao uso /interpretação da Bíblia. Nisso, desculpe que lhe diga, Vós, Testemunhas de Jeová, sois como os chefes dos Judeus, nomeadamente, os fariseus, os escribas /doutores da Lei e os sumos-sacerdotes, do tempo e do país de Jesus (cf. João, todo o capítulo 8), acerca dos quais ele disse, sem papas na língua, que tinham por pai, não Deus Jeová, como eles se reivindicavam, nem sequer Abraão, mas apenas o Diabo, um termo mítico então muito em voga, que, posto em termos históricos, corresponde a dizer que eles eram uns Praticantes profissionais da Mentira e do Ódio teológico, por isso, uns verdadeiros Assassinos das populações que se deixassem guiar pelos seus ensinamentos. Como eles, também Vós, hoje, com essa técnica manipuladora em que sois perversamente peritos, acabais por levar a Bíblia a dizer o contrário do que ela efectivamente diz. Sois uns praticantes da Mentira e do Ódio teológico, por isso, uns Assassinos (quase) compulsivos. A Desonestidade intelectual que praticais – e que o Ancião Beto aqui pratica comigo e com o mail que lhe enviei - não pode ser maior e mais nefasta, mortal, até. Antes de mais, para Vós, anciãos e outros líderes hierarquicamente acima de vós, os anciãos, que a praticais e – o que mais me dói – também para os muitos milhares de pessoas ignorantes em interpretação bíblica, que vos dão ouvidos e, assim, se deixam aterrorizar /dominar /oprimir /humilhar /matar por vós e pelos vossos falsos ensinamentos. Por isso, Ancião Beto, digo-lhe agora o que já, antes, tinha dito às suas irmãs que, pelos vistos, o Ancião Beto já dissolveu, ao ponto de elas já não existirem mais desse lado: Qualquer diálogo mais comigo, só mesmo ao vivo, cara a cara, olhos nos olhos. Ainda assim, e a concluir este mail, sempre lhe digo: Volte a ler, como quem mastiga, a minha mensagem anterior e deixe que o Espírito libertador de Jesus que a atravessa do princípio ao fim, que é o Espírito da Ternura e da Liberdade, o fecunde e o torne, cada dia, um bocadinho mais humano, por isso, cada dia, um bocadinho menos cruel, menos opressor, menos terrorista, menos manipulador, menos assassino das suas irmãs, dos seus irmãos. O que, entretanto, só sucederá se, também para si, como para João Baptista, a sua alegria consistir em que as suas irmãs, os seus irmãos cresçam e o Ancião Beto diminua!

Renovo a minha paz e o meu abraço fraterno, Seu, Mário

 

E-mail. Hélder: Padre Mário: Como seu futuro discípulo li, aliás reli, porque já tinha partilhado consigo aqueles momentos irrepetíveis em Salvaterra de Magos, o seu Diário Aberto [2009 MARÇO 02]. Quanto à componente teológica/histórica julgo que a sua leitura é assaz pertinente, crível e consistente. Ficam-me dúvidas - certamente porque ainda não estou no adequado estado de maturação que a sua reflexão de décadas já atingiu - quanto à “culpabilização” do Ocidente. O Ocidente é, nas suas palavras, uma representação do que está menos bem.

Não estarão os ocidentais mais disponíveis para escutar outras leituras?! Não estarão os ocidentais mais preparados para receber outras mensagens?! Não estarão os ocidentais mais preparados, que outros, para mudar hábitos, conceitos e preconceitos?!

Padre, nós estamos vergados e controlados pelo dinheiro, também estamos vergados e controlados pelas hierarquias, mas muitos de nós já temos essa percepção. Isso é positivo. Ainda não encontrámos foi um modelo alternativo de organização social. Acredito que só lá chegaremos com a valorização da educação, da formação e da cultura (sob as diferentes formas de expressão de que se pode revestir) e a 2 ou 3 gerações de distância. Mas não vejo outro local no Mundo onde o Padre consiga lá chegar mais depressa! Em África a luta pela sobrevivência absorverá ainda durante longos anos as energias daqueles povos. Nos países islâmicos - onde as ditaduras ou monarquias absolutas imperam - não é admitido o contraditório, como influir então?!

Sobra algum oriente... talvez aí! Hum!... do que sei, também aí se repete o nosso modelo ocidental ainda que mais musculado. Não teme, Padre, que o seu “ataque” ao nosso estilo de vida possa ser confundido como um ataque ao Ocidente, que para mim é o único capaz de inverter e corrigir? Não sei se tenho dados muito fiáveis, mas já pouca gente acredita na Virgem Maria, nos milagres de Cristo, na Ressurreição, etc. Alguns ainda não encontraram o caminho, mas sabem que não é por ALI. Abraço, padre. Até um dia.

 

ND

Meu caro Hélder

Não se deixe encandear assim tanto pela Treva Ilustrada que o nosso Ocidente é. Com ela, ele cega-nos e nós nem sequer nos vemos uns aos outros. Tão pouco nos vemos a nós próprios, tais quais somos. A partir das vítimas, o olhar é outro, muito outro. Meta-se na pele delas e olhe o Ocidente. Será o Ocidente ainda capaz de inverter a marcha que leva a grande velocidade para o abismo? Ou, pelo contrário, dele se poderá - deverá - dizer o que Jesus disse de toda a grandeza que era o Templo de Jerusalém, que não ficará pedra sobre pedra?

O nosso bem-estar europeu e ocidental é Mentira. É fruto de roubo, de exploração, de espoliação de genocídio e de ecocídio em massa e sem medida. Estamos edificados sobre os gritos dos Povos que conquistamos, dominamos, escravizamos, sugamos, espoliamos, assassinamos. O nosso Deus é um Ídolo que tanto dá para o Religioso, como para o Ateísmo! Desde que não o denunciemos e desmascaremos, não o derrubemos nem o decapitemos, ele está-se nas tintas para a Religião e para o Ateísmo! Por isso eu digo - e não estou sozinho a dizê-lo - o Ocidente é um acidente gerador de acidentes em cadeia. Tanta Inteligência demente-demente ao comando do Ocidente não o deixa inquieto? Ainda é capaz de pensar /dizer que vive no melhor dos mundos? Só porque, aqui, quem for da Trindade do Poder sempre se safa à grande e à ocidente, e só o mexilhão é que se lixa?

Se o seu Ateísmo não der para topar o Ídolo devorador que se disfarça sob o manto diáfano da Treva Ilustrada, que é o nosso Ocidente, acha que pode continuar a dormir descansado?

Por mim, prefiro continuar a fazer da casa uma Trincheira, da palavra, duelo teológico, e ser Sentinela, dia e noite, na cidade e na aldeia.

Seu, no abraço e na paz, Mário 

 

V.N. Gaia. Felícia: Obrigada pela força que me transmite nas palavras que escreve e diz! Com pessoas como você, é que as areias lá se vão movendo, muito devagarinho… Mas é bom saber que há gente a tentar. Um bem-haja. Obrigada.


 

DOCUMENTO

O grande teólogo da Teologia de Libertação, L. Boff,

completou 70 anos de idade. Houve quem lhe promovesse homenagens.

Esqueçam-nas. E mergulhem nesta sua imperdível reflexão teológica

Velho, Cristão, Franciscano, Teólogo, Homem

 

Entre os marcos mais salientes da sua vida de 70 anos, o grande Teólogo da Teologia da Libertação, L. Boff, salienta o de velho, cristão, franciscano, teólogo e homem. A reflexão teológica aconteceu por ocasião dos 70 anos, em finais de 2008. Das homenagens, sempre dispensáveis (aos pobres ninguém se lembra de lhas fazer!), não queiram saber. Mas não percam esta Partilha teológica com que nos brinda. A começar pelos extractos do texto, um sobre cada destas suas cinco dimensões

 

1. A vida na velhice impõe esta exi­gência: que nos confrontemos, com te­mor e tremor, com as questões derra­dei­ras e inadiáveis. É então que de facto podemos amadurecer, ganhar gra­­vidade e acabar de nascer. É a opor­tunidade de virarmos sábios. En­tão teremos concluído a tarefa de nossa vida. Saímos do palco. Entramos no si­lêncio. Morremos. Se não carregados de dias, pelo menos, carregados de ex­pe­riência, quem sabe, de sabedoria

 

2. Deus [o de Jesus] é tão humano, que é divino (Fernando Pessoa). Ele quis caminhar, alegrar-se, sofrer, viver e mor­rer conosco, para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de nós, que nós somos da sua Casa. Ele não quis fundar uma nova religião ou uma nova sinagoga que se chama Igreja, nem nomeou her­deiros. Quis um homem novo e uma mulher novos. Deslanchou um so­nho e um movimento que nos alcan­çam até os dias de hoje

 

3. De São Francisco aprendi que não basta ser cristão. Temos que ser bons, humanos, finos, sensíveis, amorosos e abraçar ternamente a cada criatura até o voraz irmão lobo de Gubbio. Então não vivemos num vale de lágrimas, mas numa montanha de bem-aventuranças. Como nos recorda Gaston Bachelard, “não aparecemos como filhos e filhas da necessidade, mas como filhos e filhas da alegria”.

 

4. Por ser teólogo da libertação, co­nhe­ci tribulações, tive que me justificar diante das mais altas instâncias doutri­ná­rias da Igreja e sofri discriminações por parte de irmãos da fé até os dias de hoje. Mas este padecimento nada é em comparação com o que os pobres sofrem. É um privilégio poder parti­cipar, por um pouco, de sua paixão dolorosa

 

5. Quem somos? Como já o acenei anteriormente, talvez o espelho no qual Deus mesmo quer olhar-se a si mesmo. Num momento de sua superabundância, criou alguém fora de si, diferente, uma alteridade consciente para poder co­mu­nicar-se a ela em amor, em entendi­mento e em ternura. Nós somos frutos desta auto-comunicação divina. Numa só palavra: somos Deus por participa­ção

 

1. Agradecimentos

 

Antes de mais nada, quero agrade­cer a Deus por ter chegado a esta ida­de. Bem diz o salmo (90,10): “70 anos é a nossa idade e se tivermos saúde, 80”. Ele é, como dizem as Escrituras, “o soberano amante da vida” (Sab 11,26). Ele inclui-me em seu amor.

Em seguida, quero agradecer aos familiares segundo a carne. Deles não falo para não chorar, porque eles estão dentro de mim e sinto muitas saudades deles. Neste contexto não posso esque­cer a família dos Monteiro Miran­da com a companheira Márcia e seus 6 filhos com quem comparto a vida e que me enraizaram no chão da realidade no qual todos os humanos nos encontra­mos.

Depois, sinto o dever de agrade­cer à comunidade cristã. Ela me trans­mitiu a fé, o amor e a esperança de Je­sus. Alimento-me do seu sonho de um novo céu e uma nova Terra, de um novo homem e de uma nova mulher junto com a ressurreição de todo o uni­verso, feito corpo de Deus-Trindade.

Agradeço também a outra família espiritual, à família franciscana de quem herdei o legado de S. Francisco, o mais humano de todos os humanos [depois de Jesus]. Dele aprendi que a vida só será verdadeiramente plena, se for cons­truída com ternura e vigor e na con­fraternização com todas as coisas.

Desejo agradecer aos peregrinan­tibus mecum - aos que peregrinaram comigo - ao longo destes tantos anos, aqueles, homens e mulheres, com quem compartilhei a vida, as utopias, as lutas, as tribulações e os avanços. São tantos que nem sequer posso no­mear.

Quero manifestar a alegria pela dupla homenagem literária que me foi feita. Primeiramente, pelo livro Leituras Críticas sobre Leonardo Boff organizado pelo prof. Juarez Guimarães, num tra­balho em conjunto do Instituto Per­seu Abramo e da Universidade Federal de Belo Horizonte. Honram-me nomes no­táveis de nosso pais e do estran­geiro.

Em seguida, quero expressar tam­bém a minha satisfação e reconheci­mento ao número especial da revista Estudos Teológicos da Escola Superior de Teologia (EST), da Igreja Evangé­lica de Confissão Luterana no Brasil. É fruto de um debate que durou uma semana com especialistas que estuda­ram a fundo os meus escritos e fizeram-lhe observações e criticas pertinentes das quais muito aprendi. Ressaltaram as convergências e as diferenças entre a sensibilidade dos Reformadores e a sensibilidade romano-franciscano-cató­lica.

Meu agradecimento vai também a todos os que organizaram esta celebra­ção dos 70 anos, universidades, entida­des, grupos, pessoas, especialmente o Centro de Defesa dos Direitos Huma­nos de Petrópolis, do qual sou presi­dente ho­norário, o Serviço de Educação e Or­ga­ni­zação Popular (SEOP) que também ajudei a fundar e não em último lugar o Instituto Bennett da Igreja Meto­dista que sempre esteve do meu lado. Foi nos seus espaços que se celebrou um acto de desagravo por ocasião do “si­lêncio obsequioso” imposto pelo Va­ti­cano em 1985.

Por fim, quero agradecer a todos os que vieram nesta noite do dia 9 de Dezembro 2008 aqui no Rio de Janeiro, alguns de longe e que pelo carinho se tornaram próximos.

Não direi muitas palavras. Nem farei um balanço aos 70 como fiz aos 50 e aos 60, pois não é aqui a ocasião. Apenas quero realçar alguns marcos salientes como numa leitura de cego.

2. Marcos salientes

 

a) Velho

Em primeiro lugar, devo dizer e re­conhecer que estou velho. Para as con­dições brasileiras, sou oficialmente ve­lho. Não quero, porém, entender o ser velho meramente na óptica da biologia. Mesmo assim, há no velho uma perda irrefreável do capital vital e um lento colapso dos sentidos. Mas a velhice é mui­to mais que sua dimensão biológica. É a última etapa da vida, a oportu­ni­dade derradeira que a vida nos oferece para continuarmos a crescer, chegar a amadurecer e, por fim, acabar de nas­­cer.

Se bem repararmos, começamos um dia a nascer, mas ainda não acaba­mos de nascer, porque ainda não esta­mos prontos. Estamos sempre na génese de nós mesmos, trabalhando, so­fren­do, nos alegrando, nos frustran­do, es­tabelecendo relações, amando e criando sentidos para a nossa curta pas­sagem por este pequeno planeta. Vamos nascendo lentamente, em prestações até acabar de nascer.

A velhice é a oportunidade última de dar o toque final à estátua que fo­mos talhando de nós mesmos.

A velhice tem suas vantagens. Você não precisa usar mais as máscaras que a vida lhe impõe a cada momento. Pois a vida é como um teatro no qual você é chamado a representar vários papéis. Você veste a máscara de homem, de fra­de, de padre, de teólogo, de escritor, de conferencista, de antigo torcedor do Canto do Rio e depois do América e de não sei o que mais. Agora como ve­lho você tem o direito e o privilégio de ser você mesmo e de livrar-se das máscaras.

Não é um momento fácil, porque fre­quentemente nos identificamos com as máscaras. Mas quando desapare­cem, irrompe você mesmo em sua identidade. Então surgem perguntas ame­drontadoras: quem é você, finalmente? Que faz você realmente neste mundo? Quais são seus sonhos fundamentais? Que demónios o atormentam? Qual é o seu lugar no desígnio do Mistério?

Neste momento, deixamos todos companheiros para trás. Estamos sós com a nossa solidão. E não dá mais para se esconder atrás de máscaras e de papéis. Ego factus sum quaestio magna diz Santo Agostinho: “eu me fiz para mim mesmo, a grande questão”.

A vida na velhice impõe esta exi­gência: que nos confrontemos, com te­mor e tremor, com as questões derra­dei­ras e inadiáveis. É então que de facto podemos amadurecer, ganhar gra­­vidade e acabar de nascer. É a opor­tunidade de virarmos sábios. É ilu­são pensar que a sabedoria vem com os muitos anos da velhice. Ela não vem. É o espírito, é a coragem com a qual enfrentamos estas questões incontor­náveis que nos pode fazer sábios. En­tão teremos concluído a tarefa de nossa vida. Saímos do palco. Entramos no si­lêncio. Morremos. Se não carregados de dias, pelo menos, carregados de expe­riência, quem sabe, de sabedoria.

Pois cheguei a esta derradeira fa­se da vida. Não chegaram meu pai que morreu com 54 anos, nem minha mãe que faleceu com 64, nem minha queridíssima irmã Cláudia que se transfigu­rou aos 33 anos. Eu cheguei e isso é graça de Deus.

Por isso, para atender a estas ques­tões, deverei tomar tempo, renun­ciar a tantas andanças, falar menos, meditar mais e levar avante a viagem mais longa da vida que é rumo ao pró­prio coração. E então preparar o Gran­de Encontro. Descer como Cristo até o coração do universo, lá onde o coração da pedra, o coração da flor, o coração de todo vivente, o coração do ser huma­no e o coração do universo são um só cora­ção. Encontrar-se com Deus, o Cora­ção dos corações, a Fonte originária de todo ser, de toda bondade, de todo amor, de toda ternura e de toda compaixão.

Se ser velho é poder vivenciar es­se processo, então bem-vinda a ve­lhice, bendita seja a velhice. Não é cas­tigo, mas graça sobre graça. Ela nos permite experimentar o que nos diz São Paulo: “Na medida em que definha o homem exterior, se rejuvenesce o homem o interior”(2Cor 4,16).

Portanto, sou um velho, rumo à Fonte da perene juventude que é Deus.

 

b) Cristão

Sou um velho e cristão. Que me ensinou, em síntese, o Cristianismo? Muitas coisas, mas quero me ater ao essencial. O Cristianismo me fez ver que, no fundo, há somente dois misté­rios: Deus e o mundo. Por que não exis­te o nada e sim Deus? Ele não conhece o ontem nem o amanhã. Só o agora. É a eternidade, o absoluto limite da ra­zão. E quando me ponho a pensar qua­se enlouqueço. E o mundo. Por que ao lado de Deus existe o mundo? O que ele significa? Talvez o espelho no qual Deus mesmo se quer ver a si mesmo e permitir que nós o vejamos também. Mas eles não estão separados por um abismo. Este o equívoco do pensa­men­to grego e nosso: Deus, o transcenden­te, e o mundo, o imanente. Na verdade, não é assim. Existe o transparente: um dentro do outro, um presente no outro formando um único grande Coração.

Imaginem a alegria de sabermos que não estamos apenas na palma da mão de Deus, mas no seu próprio cora­ção. E esse Deus é comunhão e não solidão. Ele é feito de relações eternas entre as três divinas Pessoas. Não é sem razão que o mundo todo, como nos dizem os físicos quânticos e os moder­nos cosmólogos, também é feito de rela­ções e nada existe fora da relação Por­que Mundo e Deus são afins, um é ima­gem e semelhante do outro.

Para que isso fosse realmente ver­dade, Deus mesmo veio até nós e se fez humano. Então podemos dizer: “os nossos ouvidos o ouviram, os nossos olhos o viram, as nossas mãos o apal­pa­ram e o nosso coração o sentiu” (cf. 1Jo 1,1). Esse Deus é tão humano, que é divino (Fernando Pessoa). Ele quis caminhar, alegrar-se, sofrer, viver e mor­rer connosco, para que tivéssemos a absoluta certeza de que Deus nunca está longe de nós, longe de modo ne­nhum. Que nós somos da sua Casa. E quando morrermos, Ele vem e toma o que é seu e introduz para dentro de sua Família. Ele não quis fundar uma nova religião ou uma nova sinagoga que se chama Igreja, nem nomeou her­deiros, mas quis um homem novo e uma mulher novos. Deslanchou um so­nho e um movimento que nos alcan­çam até os dias de hoje.

Portanto, esse Deus não é apenas Mistério sem nome. Ele é vida, comu­nhão e amor. E se Ele é amor, comu­nhão e vida, significa então que para Ele importa que cegos vejam, coxos andem, surdos ouçam, famintos sejam saciados. Ele não fica indiferente face à paixão de seus filhos e filhas. Sofre com eles e sua ressurreição simboliza uma insurreição contra a violação da vida destes últimos.

 

c) Franciscano

Sou velho, cristão e franciscano. Que significa para mim ser franciscano? Ser franciscano é encontrar através da figura de São Francisco a porta pela qual se entra e se descobre o único Cris­to verdadeiro, aquele que foi um ar­tesão e camponês mediterrâneo, tão anónimo, que as crónicas da época, se­ja de Jerusalém, de Atenas e de Ro­ma nem sequer notificaram seu nas­cimento e sua morte. Era um pobre, con­siderado por seus familiares um lou­co (cf. Mc 3,21), que saiu pelos cami­nhos pedregosos da Palestina a pregar um sonho, o do Reino de Deus que é uma criação reconciliada com Deus, descoberto como Paizinho, na justiça, no amor, no cuidado de uns para com os outros e no perdão e que começa pelos pobres. Crucificado, ressuscitou, fazendo uma revolução dentro da evo­lu­ção, mostrando que o fim da criação é o bom. Ressurreição é também uma insurreição contra um tipo de justiça que condena os inocentes.

Mas o que ensinou Francisco é en­contrar Deus na criação. Ele, com gran­de humildade, colocou-se ao pé de to­dos os seres. Confraternizou-se com as obscuras forças da Mãe Terra e com o brilho benfazejo do Sol. Fez-se irmão das flores do campo, dos passarinhos, do vento, da chuva, das estrelas, do Sol e da Lua e até da morte. Por isso tratava a todos os seres com finura e cor­tesia. Seu mundo é cheio de magia, de encantamento e de música.

De São Francisco aprendi que não basta ser cristão. Temos que ser bons, humanos, finos, sensíveis, amorosos e abraçar ternamente a cada criatura até o voraz irmão lobo de Gubbio. Então não vivemos num vale de lágrimas, mas numa montanha de bem-aventuranças. Como nos recorda Gaston Bachelard, “não aparecemos como filhos e filhas da necessidade, mas como filhos e filhas da alegria”.

 

d) Teólogo

Sou velho, cristão, franciscano e teólogo. O que é um teólogo? É um ser quase impossível. Ele levanta uma pre­tensão inaudita: pensar a Ultima Realida­de, Deus, e tentar exprimi-la com palavras adequadas. De saída, dá-se conta de que esta tarefa é impossível. Se, mesmo assim, tenta, suas palavras parecem-se mais a mentiras que a ver­dades. Como expressar quem é por de­finição Inexprimível? Aquele que vem antes do antes e que existe previa­mente a qualquer palavra?

Como não desiste, não lhe resta ao teólogo outra alternativa que não seja voltar-se para as criaturas, lidas a partir de Deus e iluminadas por Deus. Elas todas se fazem sacramentos de sua inefável realidade. Por isso toda teo­logia se vê obrigada a articular o dis­curso sobre Deus com o discurso sobre o mundo. Como diziam os anti­gos mestres: a teologia vem dotada de dois olhos, ante et retro occulata: um vol­tado para trás onde capta os sinais deixados por Deus na história, na vida dos povos, dos mestres, dos santos e santas e das Escrituras sagradas não só judaico-cristãs mas também das Es­cri­tu­ras sagradas dos povos. E outro voltado para frente, lendo os sinais dos tempos, as intimidações que nos vêm da realidade e que desafiam a nossa cons­ciência. Combinando os dois olha­res, faze­mos uma teologia fiel à tradi­ção e ao mesmo tempo fiel à história actual. É antiga e moderna e sempre contempo­râ­nea.

Olhando com o olho da frente, a rea­lidade sofredora, injusta e opres­sora da maioria de nossos irmãos e ir­mãs, senti-me, em consciência, obri­gado a ser um teólogo da libertação. O gemido dos escravizados do Egipto; o clamor dos exilados da Babilónia, de ontem e de sempre, as invectivas dos profetas, a prática de Jesus e dos Após­tolos nos forçam a nos engajarmos na li­bertação dos oprimidos, a partir de sua fé e de sua força histórica. Se não formos teólogos da libertação em nosso contexto, dificilmente, escaparemos da crítica de cinismo e desumanidade. Na verdade nos colocaríamos fora da he­ran­ça de Jesus que foi libertador, não porque nós o dizemos, mas porque os textos fundadores do Evangelho assim no-lo mostram. E a libertação tem que ser integral: não apenas libertar os se­res humanos oprimidos, mas toda a co­munidade de vida que geme e da Ter­ra, nossa Casa Comum, devastada pela voracidade do produtivismo e do consu­mismo. Se não libertamos a Terra, vãs serão todas as demais libertações que pressupõem uma Terra viva, saudável e íntegra. Nos últimos anos tenho-me batido por esta causa verdadeiramente urgente: articular o grito dos pobres com o grito da Terra, grito por liberta­ção.

Por ser teólogo da libertação, co­nhe­ci tribulações, tive que me justificar diante das mais altas instâncias doutri­ná­rias da Igreja e sofri discriminações por parte de irmãos da fé até os dias de hoje. Mas este padecimento nada é em comparação com o que os pobres sofrem. É um privilégio poder participar, por um pouco, de sua paixão dolorosa.

 

e) Velho, cristão, franciscano, teó­logo e um homem.

Ser homem, plenamente homem: eis o grande desafio. Suspeito que a ve­lhice, o cristianismo, o franciscanismo e a teologia não sejam outra coisa que caminhos e subsídios que Deus e nós criamos para chegarmos a ser o que somos, homens. “Sê o que és”, rezava o aforismo antigo dos sábios de todas as culturas. Talvez o maior mistério de­pois de Deus, seja o universo e dentro do universo, o ser humano, homem e mulher.

Quem somos? Eu não sei. Apenas suspeito. De seguro, só sei que sou um ser contraditório, sapiente e simulta­nea­mente demente; por um lado centra­do em mim mesmo e por outro aberto aos outros; portador de uma dimensão sim-bólica que me faz ouvinte da Pala­vra que vem de todos os lados, capaz de amor e de compaixão e também porta­dor da dimensão dia-bólica que me faz rejeitar, me enraivecer e ofen­der os outros.

Apesar desta união dos opostos, sinto-me tomado por uma fome de infi­nito e que me surpreendo como um pro­jecto também infinito. E fico com o cor inquietum [coração inquieto] agos­tiniano, enquanto não repousar no In­finito.

Cada vez mais me convenço de que o supremo imperativo ético é tratar hu­ma­­namente os humanos. Tratá-los hu­ma­namente implica aceitar a condição humana ambígua e por isso ser paci­ente e compassivo com as dimensões sombrias e também ser solidário e ins­pi­rador com as dimensões luminosas.
Esta compreensão de mim mesmo aprofundou-se e problematizou-se ain­da mais, a partir de minha continuada ocupação com a nova cosmologia, a astrofísica, a nova antropologia e com as ciências da Terra, encerradas na palavra Ecologia, objecto de meus estudos já quase há 30 anos.

Ai resulta claro que o universo tra­­balhou 13 mil e setecentos milhões de anos, para que surgissem ordens com­ple­xas, teias de relações e siste­mas de informação que permitiss­em a vida e como expressão maior da vida, a cons­ci­ência reflexa. Para que ela fosse pos­sível, ocorreu um subtil equi­líbrio de todas as energias e de todos movimen­tos evolucionários. Caso contrário, não estaríamos aqui para celebrar esta festa.

O universo como que pressentia a nossa irrupção lá na frente e se orga­nizou de tal forma que finalmente pu­des­se surgir este ser raro que sou eu e que somos cada um de nós. Em cada um de nós, culmina o universo por nós conhecido. Através de nossa consciên­cia o universo e a Terra se pensam a si mesmos. Por nosso amor e nosso enternecimento as coisas todas se atraem como que enamoradas entre si.

Quem somos? Como já o acenei anteriormente, talvez o espelho no qual Deus mesmo quer olhar-se a si mesmo. Num momento de sua supera­bundância, criou alguém fora de si, diferente, uma alteridade consciente para poder co­mu­nicar-se a ela em amor, em entendi­mento e em ternura. Nós somos frutos desta auto-comuni­cação divina. Numa só palavra: somos Deus por participa­ção. E nos criou para que pudéssemos corresponder ao seu amor. Pudésse­mos amar também a Deus. Talvez a maior contribuição de Duns Sco­tus, o génio medieval da teo­lo­gia fran­ciscana, foi ter entendido o propósito supremo da emergência do ser humano na criação: Deus quis que alguém fora de Deus pudesse amar a Deus como Deus se ama. Para isso projectou a san­ta humanidade de Jesus. Para que pudesse amar a Deus divinamente, o elevou ao nível divino. Então pode, sendo homem, amar a Deus como Deus se ama. E ao dizer isso, mais não digo porque ficaria aquém do que disse.

 

3. Conclusão: a Deus

a última palavra.

 

Vejam aonde cheguei: sou velho, cristão, franciscano, teólogo, homem e por fim, por participação, Deus. E Deus junto com vocês todos. É isso loucura ou a suprema descoberta? To­dos os místicos de todos os tempos, do Oriente e do Ocidente, testemu­nham: somos chamados a fazer uma experiência de não-dualidade. Não sim­ples­mente o Tao e o Mundo ou Deus e a Criação, mas o Tao no mundo e com o mundo, Deus na Criação e com a Cria­ção. E chamaram a isso de experiência de bem-aventurança, de Satori, de Nir­vana, de Graça e de união mística ou na expressão de São João da Cruz: “da alma amada no Amado transfor­mada”. É a suprema Sabedoria.

 

Nesta altura de minha vida, sem­pre me voltam à mente, quase obsessi­vamente as duas questões fundamen­tais que São Francisco, meu pai espiritual, sempre colocava para si mes­mo em forma de oração: “Senhor, quem sois Vós e quem sou eu? Vós o Altíssimo Senhor do céu e da Terra e eu o mise­rável vermezinho, vosso ín­fi­mo servo”. Depois que os biólogos nos en­si­na­ram que 4 quintos dos se­res vivos são cons­tituídos por vermes nematóides (vermes cilíndricos), aque­les que man­tém a ter­ra sempre fofa e apta para produzir vida é um privilégio cósmico sermos vermes, mesmo miseráveis.

As duas perguntas são suspiros da alma e não têm, na verdade, ne­nhu­ma resposta porque tanto Deus quanto nós somos mistério. Por isso as pergun­tas sempre retornam como num ritor­nelo. Bem sentenciava um fi­ló­sofo que no final da vida virou mís­tico (Witgens­tein): “sobre o que não podemos falar, deve­mos calar”. Assim todo discurso re­ligio­so é convidado a retirar-se para o no­bre silêncio ou pa­ra a silenciosa reve­rên­cia.

 

Suspeito que nosso conhecimento de Deus possui a estrutura da sauda­de. Esta é uma presença e uma ausên­cia. A presença na memória e no coração e uma ausência nos sentidos. Tra­ta-se, pois, de uma presença ausente ou de uma ausência presente. Toda sau­dade nos produz uma noble tristes­se, uma alegria num transfundo de tris­teza e uma tristeza aliviada pela alegria.

A única fala permitida porque não quer definir nada apenas acenar e su­gerir, seja a da poesia. Ela guarda a saudade de Deus e respeita o silêncio, o silêncio diante de uma absoluta pre­sença, inexprimível por palavras.

É neste espírito que, numa noite ator­mentada, numa espécie de luta en­tre Javé e Jacob, escrevi:

 

Sinto em mim um grande vazio
Tão grande, do tamanho de Deus.
Nem o Amazonas que é dos rios o rio

Pode enchê-lo com os afluentes seus.

Tento, intento e de novo tento
Sanar esta chaga que mata.
Quem pode, qual é o portento
Que estanca esta veia ou a ata?
Pode o finito conter o Infinito
Sem ficar louco ou adoecer?
Não pode. Por isso, eu grito
Contra esse morrer sem morrer.
Implode o Infinito no finito!
O vazio é Deus no meu ser!

Leonardo Boff, theologus pere­grinus et peccator [= teólogo peregrino e pecador]

Petrópolis 14 de Dezembro 2008.


 

IGREJA /SOCIEDADE

O D. Hélder que eu conheci

Testemunho de Frei Betto, Teólogo

(Com vénia à Revista Fórum)

 

De uma carta, recém-divulgada, de Dom Hélder Câmara (1909-1999), ar­ce­bispo de Olinda e Recife, datada de 27/28 de Maio de 1969 e endereçada a seus amigos e amigas, a quem cha­ma­va de “família mecejanense” (Mece­ja­na é o distrito de Fortaleza no qual ele nasceu): De repente, às 13h30min me chega o boato de que o padre Antó­nio Henrique havia sido assassinado. Procura daqui, procura dali, ele foi iden­tificado no necrotério de Santo A­maro, onde dera entrada como cadáver desconhecido. Estaria com sinais de sevícias incríveis: três balas na cabeça, uma instalada na garganta, sinais evidentes de que foi amarrado pelos bra­ços e pelo pescoço, e arrastado... 28 anos de idade, três anos de sacerdote. Crime: trabalhar com estudantes e ser da linha do Arcebispo.

Coube-me procurar os velhos pais e dar-lhes a notícia terrível. No necro­tério – onde ficamos até 19h, quando o cadáver foi liberado pelos médicos legistas – vivi uma avant-première de mi­nha própria morte. Burburinho na sa­la. Gente chegando de todos os cantos. A imprensa escrita, falada, teve ordem de ignorar o acontecimento, mas de­mos avisos a todas as paróquias, por telefone e recados pessoais. Levei-o para a matriz do Espinheiro. (...) Na primeira concelebração, às 21h, tínha­mos mais de 40 sacerdotes, e a igreja, enorme, estava transbordante de jo­vens.

Dei uma tríplice palavra:

· Palavra de fé, aos velhos Pais, esmagados de dor;

· Palavra de esperança aos jovens com quem ele trabalhava; assumi o com­pro­misso de que eles não ficariam órfãos;

· Aos fiéis que enchiam o templo – mais uma vez a imprensa escrita e fala­da tinha ordem para recusar até o aviso pa­go de falecimento - pedi que ajudas­sem a espalhar que às 9h haverá nova concelebração, saindo o enterro, às 10h, para o cemitério da Várzea, que é o cemitério da família.

Li, então, a nota, assinada pelo Go­ver­no Colegia­do, nota que a imprensa não divulgará, mas que nós tentaremos es­pa­lhar por toda a cidade, pelo País e... pelo Mundo.

Faz, pois, 40 anos que padre Hen­rique Pereira Neto foi assassinado no Recife.

 

O coordenador

Conheci Dom Hélder Câmara - cujo centenário de nascimento ele teria co­me­morado no último dia 2 de Feve­rei­ro 2009 - quando ele era bispo auxiliar do Rio de Janeiro, nos anos 60. Ho­mem de muitos talentos e tarefas, ocu­pa­va-se também da Acção Católica, mo­vi­mento que agrupava o chamado A, E, I, O e U (JAC, JEC, JIC, JOC e JUC). Eu participava da direção nacio­nal da JEC (Juventude Estudantil Católica). Dom Hélder nos coordenava, cuidava de nos matricular numa escola, com bolsa de estudos, e de nos assegu­rar recursos para o trabalho, como pas­sagens aéreas que possibilitavam aos dirigentes do movimento viajar por todo o país. Graças ao prestígio dele, as portas se abriam.

Embora ele nos assegurasse o “ata­cado”, às vezes padecíamos no “vare­jo”. Morávamos em Laranjeiras - 12 ra­pa­zes da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica) -, num aparta­men­to de três quartos, verdadeira repú­blica da pindaíba! Ali, com frequência se hospedavam os líderes estudantis Betinho, de Minas, e José Serra, de São Paulo. Tínhamos recursos para viajar e escritório bem montado na rua Mi­guel Lemos, em Copacabana, mas nem sempre para a voracidade de nosso apetite juvenil...

Na época, o governo Kennedy, pre­o­cupado com a penetração do comu­nismo na América Latina, criou o pro­gra­ma chamado Aliança para o Pro­gres­so: doava leite e queijo, em caixas de papelão, para os pobres do Brasil. Parte da cota da Igreja ia para a nossa alimentação. Como as caixas ficavam meses no porto, humedeciam e o ali­mento se deteriorava. Tivemos sérios problemas de saúde por comer o quei­jo do Kennedy e beber o leite da Jaqueline...

 

O empreendedor

Além dos anos em que fiquei na direção da Acção Católica (1962-1964), con­vi­vi com Dom Hélder no último pe­río­do da vida dele; anualmente eu participava, no Recife, da Semana Teológica promovida pelo grupo Igreja Nova. Nunca deixava de visitá-lo na igreja das Fronteiras, onde residia.

Homem pequeno e frágil, Dom Hél­der tinha características curiosas: quase não se alimentava. Todos diziam que ele comia feito passarinho. Também dor­mia pouco, tinha um horário estra­nho de sono: deitava-se  por volta de on­ze, levantava às duas da madrugada, sentava numa cadeira de balanço e se entregava à oração. Era, como ele di­zia, seu “momento de vigília”. Rezava até as quatro, dormia mais uma hora, hora e meia, e levantava para celebrar missa e começar seu dia.

Nos anos 60, Dom Hélder encabeça­va, no Rio, a Cruzada São Sebastião, projecto de desfavelização criado por ele. Malgrado a meritória intenção de propiciar aos mais pobres condições di­gnas de moradia, não deu certo: sem renda suficiente ou desempregados, moradores de favela eram transferidos para um apartamento que tratavam de subalugar; ou arrancavam a banheira, a pia, a torneira, para fazer dinheiro e comer.

Como Dom Hélder obtinha recursos? Havia um programa de grande sucesso na TV, no qual sorteava-se uma pessoa da plateia, colocava-a numa cabine fe­cha­da, a partir da qual a escolhida não conseguia enxergar nada do que se pas­sa­va fora. O auditório, repleto de prendas: carro, televisor, liquidificador, geladeira, relógio, pinça, cortador de unhas... uma porção de objectos. Dom Hélder recebeu convite do patrocinador do programa para perguntar ao seu Joa­quim, operário sorteado: “O senhor troca isto por aquilo?” Joaquim não ti­nha ideia do que estava sendo propos­to, cabia-lhe responder sim ou não. Isso umas sete ou oito vezes, até que, ces­sa­da a pergunta, o objecto da última troca era o prémio merecido. O auditó­rio, na torcida pelo operário, lamentou quando seu Joaquim deixou de ganhar um carro, por preferir, jogando no escu­ro, um abridor de latas. O apresentador lamentou ao entregar-lhe o prémio: “O senhor teve a oportunidade de ganhar este carro ou aquela geladeira, mas insistiu no abridor de latas... Queremos agradecer, em nome de nossos patroci­na­dores, a presença de Dom Hélder; e aqui vai um cheque para as obras da Cruzada São Sebastião”. Dom Hélder, génio da comunicação, virou-se e propôs: “Seu Joaquim, você troca isto (o cheque) por este abridor?” E en­tregou o cheque ao operário!

No dia seguinte, na sede da Acção Católi­ca, comentámos com ele: “Mas Dom Hélder, o senhor abriu mão do di­nhei­ro da Cruzada, uma contribuição impor­tan­te! Como vai obter igual va­lor?” Ele retrucou: “Ah... vocês não têm ideia: o que perdi no cheque ganhei em publicidade. Maiores recursos virão”.

 

O articulador

Homem de mil actividades, dotado de profundo senso crítico, Dom Hélder tinha o dom de dialogar com qualquer pessoa, de qualquer nível. Figura muito carismática, difícil alguém considerá-lo inimigo, depois de falar pessoalmen­te com ele, ainda que continuasse a dis­cordar de suas ideias. Espírito gre­gá­rio, onde Dom Hélder chegasse jun­tava gente em torno dele. Foi quem cri­ou a CNBB, inventando as conferên­ci­as episcopais, e o CELAM, o conselho dos bispos da América Latina. Todos esses organismos que, de certa forma, descentralizam a Igreja romana, saíram da cabeça do bispo que, para azar dos militares golpistas, virou arcebispo exa­ctamente em 1964. O papa o nomeou para São Luís e, dias depois, o transfe­riu para a arquidiocese de Olinda e Recife, na qual ele permaneceu até falecer.

 

O agitador

Dom Hélder despontou, em 1972, como forte candidato ao Prémio Nobel da Paz. Hoje sabemos que não ganhou o prémio por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua ima­gem exterior, caso ele fosse lau­reado. Mesmo dentro do Brasil, Dom Hélder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o “ar­ce­bispo vermelho” falava era reprodu­zi­do ou noticiado pelos media de nosso país. A outra razão: ciúmes da Cúria Ro­mana. Esta considerava uma inde­licadeza, por parte da comissão norue­guesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um pré­mio que deveria, primeiro, ser dado ao papa...

Nos anos 70, ele era a única figura brasileira a competir, fora do país, com o prestígio do Pelé. Aonde ia, lotava auditórios. Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num auditório em que cabiam 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo o para o Palácio dos Desportos, que com­porta 12 mil.

Um dia, o governo militar, preocu­pado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo lhe acontecesse e a culpa recaísse so­bre a ditadura, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: “Dom Hélder, o governo teme que al­gum maluco ameace o senhor e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos a­qui para lhe oferecer segurança”. Dom Hélder reagiu: “Não preciso de vo­cês, já tenho quem cuide de minha se­gurança”. “Mas, Dom Hélder, o se­nhor não pode ter um esquema priva­do. Todos que têm serviço de seguran­ça precisam registá-lo na Polícia Fe­deral. Esta equipa precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança”. Dom Hélder retrucou: “Po­dem anotar os nomes: são três pes­soas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

 

O denunciador

Dom Hélder morava numa casa mo­desta ao lado da igreja das Frontei­ras. Frequentemente, as pessoas que tocavam a campainha eram atendidas pelo próprio arcebispo. Certa noite, a polícia fez uma batida numa favela do Re­cife, em busca do chefe do tráfico de drogas. Confundiu um operário com o homem procurado. Levou-o para a de­le­gacia e passou a torturá-lo. A ló­gica da polícia era esta: se o cara apa­nha e não fala é porque é importante, treinado para guardar segredos. Vizi­nhos e a família, desesperados, ficaram em volta da delegacia ouvindo os gritos do homem. Até que alguém teve a ideia de sugerir que a esposa do operário re­cor­resse a Dom Hélder. A mulher ba­teu na igreja das Fronteiras: “Dom Hél­der, pelo amor de Deus, vem comigo porque lá na delegacia do bairro estão matando meu marido de pancada”. O pre­lado acompanhou-a. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: “Emi­nência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?” Dom Hélder explicou: “Doutor, vim aqui, porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano”. “Seu irmão?!” “É, fulano de tal – deu o nome – é meu irmão”. “Mas, Dom Hélder – reagiu o de­legado -, o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!”. Dom Hélder aproximou-se do ouvido do po­lícia e sussurrou: “É que somos irmãos só por parte de Pai”. “Ah, entendi, en­ten­di”. E libertou o homem.

Essas, as tiradas de Dom Hélder, capaz de jogadas proféticas que pro­vocavam certa ciumeira entre os bispos. Ele tinha muitos aliados no e­pis­copado, mas também quem invejas­se seu prestígio mundial.

Durante o tempo em que estive na prisão, Dom Hélder moveu intensa cam­panha no exterior de denúncia da di­tadura brasileira. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou crimi­nalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Hélder era financiado por Cuba e Moscovo. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do car­deal de São Paulo, Dom Agnelo Ros­si, amigo do governador e de Dom Hélder. Não foi capaz de tomar uma po­sição firme na contenda. Depois a denúncia caiu no vazio, não havia pro­vas, apenas recortes de jornais.

Incomodava ao governo ver desmo­ralizada pelo discurso de Dom Hélder, a imagem que a ditadura queria proje­ctar do Brasil no exterior, negando tortu­ras e assassinatos. Ele sempre res­sal­tava que, se o governo brasileiro qui­sesse provar que ele mentia, então abrisse as portas do país, para que comissões internacionais de direitos hu­manos viessem investigar, como fez a ditadura da Grécia. A ditadura grega era militar, mas abriu as portas para a investigação, o que o governo brasi­leiro, evidentemente, nunca fez.

Se nós, hoje, na Igreja, falamos de direitos humanos, especificamente a Igreja do Brasil, que tem uma pauta e­xemplar de defesa desses direitos, apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Hélder. Nenhum episcopado do mundo tem a­gen­da semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc. Isso é real­mente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pe­lo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.

Dom Hélder sempre dizia: “Quando falo dos famintos, todos me chamam de cristão; quando falo das causas da fome, me chamam de comunista”. Isso de­monstra bem o incómodo que causa­va. Não era um bispo que falava ape­nas de quem passa fome, mas também das causas da fome e da miséria, o que incomodava o sistema que se re­cusa a tratar as causas da miséria, por­que são parte da sua lógica.


 

Irmã Dorothy, assassinada há quatro anos

Deu a vida pela causa das famílias

de pequenos agricultores da Amazónia

 

A bela homilia do Bispo do Xingu, Erwin Krautler, um dos três bispos ameaçados de morte no Pará (Brasil), por enfrentarem o crime organizado na região, durante a Eucaristia celebrada por ocasião do quarto aniversário da morte /nova vida da Irmã Dorothy Stang, da Congregação de Notre Dame de Namur, na Igreja Matriz de Santa Luzia, dia 12 de Fevereiro 2009

 

Irmãs e irmãos caríssimos em Nosso Senhor Jesus Cristo, meu bom Povo de Deus de Anapu, da Trans­ama­zónica e do Xingu,

 

Quatro anos passaram, desde o assassinato de Irmã Dorothy. Morreu porque não estava de acordo que a Amazónia fosse loteada entre alguns grileiros. Sonhou sempre com uma A­ma­zónia, terra de todos os povos que aqui vivem, terra herdada das gera­ções passadas indígenas e ribeirinhas, terra confiada a essa e às futuras gera­ções para que possam viver e sobre­viver sem destruí-la. Nunca foi contra o “desenvolvimento“ como alguns queriam incriminá-la, mas queria um de­sen­volvimento sustentável.

Ela enten­deu esse termo como indicador de um desenvolvimento soci­al­mente justo e ambientalmente res­pon­sável. Hoje, já estamos mais caute­losos com o termo “desenvolvimento sustentável“, pois os seguidores do neo­liberalismo já se apo­deraram do conceito e usam-no como “fachada“ para encobrir a verda­dei­ra intenção. Con­tinuam acumulando e querem sus­tentar essa ambição atra­vés de sem­pre novas formas científicas e tecnoló­gicas de exploração.

Desenvolvimento tem para eles o sentido de sustentar a ânsia, a sede insaciável de riquezas. “Sustentável“ assumiu paulatinamente a conotação de salvaguardar a exploração sem se­quer se lembrar dos primeiros habitan­tes da Amazónia, indígenas, quilombo­las, ribeirinhos e seus direitos à educação, saúde, segurança, habitação, transporte.

Dorothy entendeu desenvolvimento sustentável no sentido de “convivência“ com a natureza que Deus criou, de viver dela e com ela, cuidando dela e zelan­do por ela como se cuida do próprio lar em que vive e convive a família. Ela sonhou com a comunidade que se sus­ten­ta nessa Amazónia, usufruindo do que ela oferece sem destruí-la, sem arrasá-la. Amazónia é uma região única no mundo e por isso merece todo o cari­nho. Por milénios e milênios o equilíbrio en­tre selvas e águas ficou intacto, a flo­resta deu seus frutos e sua caça, as águas os peixes e mariscos. Até que um dia a ambição de dominar e subju­gar a natureza e a ganância subverte­ram os homens e os fizeram perder a vergonha. Daqui em diante não foi mais o zelo e o cuidado, o amor pela terra e o carinho pelas futuras gerações que moveram os corações e estabeleceram as normas de convivência, mas é o lucro imediato, sem dó nem piedade, sem cuidado nem cautela, sem remorso ou arrependimento, que dita as regras. Violentaram a mãe-terra e estupraram a mata-virgem.

 

Não faltam vozes que denunciam os crimes e acusam os criminosos. Não faltam vozes que defendem a terra e a selva, os rios e os lagos como lar dos po­vos da floresta. Mas os crimi­nosos não aceitam o “oráculo do Se­nhor“ de quem fala em nome do Deus Criador. Matam e ameaçam matar a quem se opõe à sua ganância, a quem sonha com uma Amazónia, lar de todos os povos, de comunidades que sabem vi­ver em harmonia com o mundo que Deus criou e nos confiou.

Dorothy, a Irmã, morreu, dando a sua vida pela causa das famílias de pe­quenos agricultores, seus irmãos, suas irmãs. Dema, pai de família, morreu de­fendendo a região do Xingu como lar de sua mulher, suas filhas e seus filhos. Ambos tornaram-se mártires da Amazó­nia pela Amazónia, do Xingu pelo Xingu.

Mas o sangue derramado engen­drou uma luta que nunca mais parou. Em vez de deixar-se amedrontar pelos que causam a morte, em lugar de deixar-se intimidar e bater em retirada, o povo se organiza e conquista seus di­reitos. Sepultamos os mártires, mas o grito por uma sociedade justa e pela defesa do meio-ambiente tornou-se um brado ensurdecedor. A morte gerou vi­da, trouxe novo alento para a luta. “Se o grão de trigo que cai na terra não mor­re, fica só. Mas, se morre, produz muito fruto“ (Jo 12,24). Surgiram e sur­gem cada vez mais mulheres e homens nesta Amazónia que, de cara erguida, enfrentam os inimigos da Amazónia. Os emissários dos grandes projectos não conseguem convencê-los nem cooptá-los, pois seus argumentos são inbatí­veis. Indígenas, ribeirinhos, povo do cam­po e da cidade, mulheres e ho­mens, jovens e idosos vão a luta pela vida contra a morte, pela Amazónia contra a sua devastação.

O que São Paulo escreveu aos Coríntios, repetimos hoje na Amazónia: “Somos amaldiçoados e bendizemos“ (1 Cor 4,12), O que os inimigos podem fazer? Sua maldição não surte efeito, pois nossa resposta é “bênção“, “bên­ção“ para a Amazónia agredida, “bên­ção“ contra a praga da destruição, do sacrifício inescrupuloso do Xingu, “gra­ça“ contra a desgraça dos grandes projectos, “vida“ contra a morte que querem decretar para o rio e seus povos.

Também repetimos com São Paulo: “Somos perseguidos e suportamos“ (1 Cor 4,12). A perseguição foi e é a logo­marca do profetismo, das mulheres e dos homens que acreditam e defendem um mundo diferente. Quem hoje grita “Um outro mundo é possível“ e dá tes­te­munho desta sua convicção, agride o sistema estabelecido e prega a morte de estruturas que põem em risco todo o planeta. E sabemos que esse sistema se vinga e persegue e tantas vezes ma­ta.

Se a nossa Igreja deixar de ser per­seguida é sinal de que ela se aco­modou e renunciou à sua vocação pro­fética. Proclamar que tudo já é “paz e amor“ e dar-se conta de que o sistema já não reage mais deixando de perse­guir, é sinal de que a Igreja perdeu sua audácia, sua intrepidez, sua ousadia, sua coragem, sua paixão pela cau­sa do Reino, sua “parrhesia“ (cfr. At 4,13; 4,29; 4,31; 9,27; 13,46; 14,3; 19,8; 26,26; 28,31).

“Suportamos“ porque acreditamos que “outro mundo é possível“. E esse “outro mundo“ que “é possível“ coincide para nós com o Reino de Deus, é a re­a­lização do sonho de Jesus, é o anún­cio e o testemunho da Boa Nova do amor de Deus, da fraternidade, da solidariedade para toda a família humana. “Enviada por Cristo“, a Igreja tem por missão “manifestar e a comunicar a todos os seres humanos e povos o amor de Deus“ (AG 10).

E ainda mais repetimos com São Paulo: “Somos caluniados e consola­mos.“ (1 Cor 4,13). A calúnia, a difama­ção foi e continua sendo o método empre­gado pelos inimigos do Reino de Deus, do “outro mundo possível“. Inú­me­ras foram as calúnias que antece­deram a morte de Irmã Dorothy. As mensageiras, os mensageiros da Boa Nova são criminalizados, até demoni­zados. Nada de novo! O próprio Jesus foi acusado de ser “louco“ (Mc 3,21) e de agir “pelo poder de Belzebu, o chefe dos demónios“ (Lc 11,15). Mas é exa­ctamente nesta fase, em que gritam contra as discípulas e discípulos de Jesus, quando escarram em nosso ros­to e usam de todos os meios para cons­purcar nosso bom nome, cobrindo-nos de injúrias, que sentimos, como nunca, a presença de Deus e ouvimos sua voz: “Eles lutarão contra ti, mas nada poderão contra ti, porque eu es­tou contigo – oráculo do Senhor – para te libertar“ (Jr 1,19).

É nesta noite escura que o próprio Jesus dirige sua palavra a Paulo após­tolo: “Não temas. Continua a falar e não te cales. Eu estou contigo...“ (At 18,9). A nossa fé inquebrantável na presença de Deus é nosso consolo e ao mesmo o motivo de consolarmo-nos uns aos outros. Esta é a nossa mística. Só Deus mesmo consola e na medida em que nos deixarmos inspirar por seu Espírito consolamos também os oprimidos, es­ten­dendo-lhes as mãos e abrindo-lhes o coração. E quando falamos em opri­mi­dos, “já não se trata simplesmente do fenómeno da exploração e opres­são, mas de algo novo: da exclusão social. (...) já não se está abaixo, na pe­riferia ou sem poder, mas se está de fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “des­car­táveis” (DA 65).

Somos cidadãs e cidadãos do Reino, do “outro mundo possível“ em que acreditamos. Esse direito à nossa fé ilimitada e irredutível, conquistado pelo Sangue do Senhor, ninguém ja­mais será capaz de arrancar-nos das mãos e do coração. Amém.



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